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Vários autores
Araçatuba, 2015
Contos
MELHORES
2015
Copyright © vários autores
Edição: Hélio Consolaro
(Publicado sem revisão)
Capa: Rodolfo Rangel
Editoração gráfica: Rodolfo Rangel
CTP e Impressão: Editora Eko Gráfica - (18) 3623.0006
Secretaria Municipal da Cultura
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Araçatuba - SP
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Contos melhores 2015. -- Araçatuba, SP : Editora Eko Gráfica, 2015. Vários autores
	 1. Contos brasileiros - Coletâneas.
	15-07951 					CDD-869.9308
Índices para catálogo sistemático:
1. Contos : Antologia : Literatura brasileira
869.9308
Contos Melhores Regionais
1º Lugar - Capitão do céu.......................................................................8
2º Lugar - Todos os jardins do mundo...................................................12
3º Lugar - Fora dos trilhos ...................................................................15
1ª Menção Honrosa - Um dia é da caça...............................................21
2ª Menção Honrosa - Os olhos secos de Oberón .................................27
3ª Menção Honrosa - Assassino..........................................................31
4ª Menção Honrosa - Julgamento do gravitoriano.................................33
Contos Melhores Nacionais
1º Lugar - A tonsura, a vida conforme se rege.......................................39
2º Lugar - Um filme que não vi.............................................................46
3º Lugar - Poesia concreta...................................................................49
1ª Menção Honrosa - Abela e sua flor de aquarela................................54
2ª Menção Honrosa - Macadâmia........................................................61
3ª Menção Honrosa - A Índia...............................................................68
4ª Menção Honrosa - As mãos do Barão..............................................75
5ª Menção Honrosa - Névoas na chuva................................................81
Indice
Contos Melhores Internacionais
	
1º Lugar - Mulheres de água.............................................................85
2º Lugar - À rédea solta....................................................................92
3º Lugar - As estações da primavera .................................................99
1ª Menção Honrosa - Laços desfeitos.............................................103
2ª Menção Honrosa - Amorzade.....................................................106
3ª Menção Honrosa - A espera.......................................................112
4ª Menção Honrosa - Jeremias.......................................................119
5ª Menção Honrosa - A Denúncia...................................................126
Contos Membros da Comissao Julgadora
A Grama Azul...................................................................................133
Ipê Roxo..........................................................................................136
PREFÁCIO
Pela sétima vez, desde 22.ª edição do Concurso de Contos Cidade de
Araçatuba que os contos vencedores são publicados numa antologia e
entregue aos contistas (cinco volumes por participante) e ao púbico do dia
da premiação gratuitamente.
Assim, os participantes do certame literário são duplamente premiados,
pois têm a oportunidade de divulgar seu texto entre os contemplados, seus
familiares e ao público da 7ª. Jornada de Literatura de Araçatuba 2015.
Apesar do modesto prêmio em dinheiro, contistas se esmeram na tessitura
de seu texto, fazendo tudo para ganhar literariedade.
Caro leitor, você tem um recorte da literatura contemporânea em suas
mãos. Todo texto literário é um exercício até que o autor sucumba. O
prêmio para o jovem é um incentivo, para o idoso, uma consagração. Essa
coletânea é o que a Comissão Julgadora encontrou de melhor dentre 789
contos.
Para mostrar que também escrevem contos, três julgadores publicam seus
textos aqui, neste livro: Emília Goulart, Marilurdes Campezi e Tharso
Ferreira.
Assim, a Secretaria Municipal de Cultura cumpre a tarefa de incentivar
também a literatura dentre as modalidades artísticas, não só no município,
mas no Brasil e no mundo lusófono. Além disso, projeta-se Araçatuba
para além das fronteiras brasileiras.
Setembro de 2015
Hélio Consolaro, secretário municipal de Cultura de Araçatuba-SP
7
Contos
regionais
8
Entrou na terra por uma caverna chamada nascer, e fez isso
em cativeiro, no interior da Bahia, nos tempos da escravidão.
Era um dia qualquer, indeterminado, insípido, comum, igual
a todos os outros já vividos por aqueles que o antecederam.
Chegou em silêncio, sem alardes, sem choro e anônimo, sob
o manto da indiferença.
Não tinha pai. Os homens feitos dormiam em lugares
diferentes das mulheres, e com elas encontravam-se somente
aos domingos, quando se reuniam para procriar, festejar e
também lamentar. Fora em um desses domingos que aquela
que viria a ser sua mãe, entorpecida de aguardente, aceitou
ser amada e possuída por um desconhecido, acolhendo em
seu ventre o sêmen da estranheza.
Se pai não tinha, mãe era como se não tivesse. As mulheres
sadias desempenhavam diversos trabalhos na casa-grande,
entre quatorze e dezesseis horas por dia, de maneira que as
crianças ficavam sempre sob os cuidados das mulheres mais
velhas ou doentes.
Como gado no cercado, os escravos eram criados para
reproduzir e trabalhar, oferecendo, em sacrifício, a vida
digna que um dia poderiam ter vivido. Eram abastados em
ignorâncias, e essa condição acerca das coisas tornava suas
vidas extremamente limitadas, pois não havia terreno fértil
para sonhos que pudessem ser plantados além dos limites
da fazenda onde moravam.
O menino, além de não ter nome, não tinha identidade em
meio ao seu povo. Tomou lugar entre seus pares, como se
fosse apenas mais um, mimetizando-se em meio às entranhas
1ºlugarCapitãodocéuMário Henrique Silveira Bueno*
9
cinzentas do sertão nordestino.
O sertão carrega em si uma força
avassaladora. Apresenta-se ressecado,
torcido e aparentemente frágil, mas,
na verdade, demonstra todo seu poder
ao expor as mazelas daqueles que se
metem com ele. Nos detalhes de seus
infinitos desvãos e nos segredos da
sua aridez há um adversário forte e
implacável.Assimeraomenino;trazia,
em algum lugar do peito, semelhanças
com o lugar onde morava.
Suaposturaarqueadaeraconseqüência
da sua insignificância. Tinha medo de
encarar as pessoas e sempre dirigia o
olhar para baixo. Com isso, entretanto,
desenvolveu um apurado sentido
de atenção e importância para as
pequenezas encontradas ao rés-do-
chão.
O tempo passava, mas o menino
permanecia franzino aos olhos de
todos, sempre tímido e inerte. Seus
ossos, de aparência delicada, eram
secos, à semelhança da folha que cai
pela falta d’água; seu caráter, porém,
guardava a resistência do umbuzeiro.
À noite, quando os lampiões se
apagavam e a escuridão invadia a
senzala, emergia de dentro do miúdo
um verdadeiro gigante. Sem luz, ele
não tinha outra opção a não ser
olhar para dentro de si. Enquanto
os outros dormiam, passava noites
em claro dando asas ao pensamento,
e o inevitável ato de olhar para
si transformou-o em homem,
observador, insatisfeito, infeliz e
indignado.
Para o céu olhava somente quando
estava deitado ao ar livre, nos
raros momentos de descanso.
Nessas ocasiões algum sentimento
esperançoso lhe dizia que, além-mar
– esse mar arenoso e ocre sobre o
qual andava –, encontraria chance de
real felicidade. Imaginava um lugar de
sonhos possíveis, realizáveis; árvores
frutíferas.
Incomodava-lhe o caminho rígido
e demarcado das trilhas destinadas
aos escravos, onde só se olhava para
a nuca do companheiro à frente.
Seu pensamento, por vezes, errava.
Gostava de fazer defeitos, e sabia que
issonãoeradoença.Tinhapredileções
por desvios, onde encontrava a
verdadeira beleza do viver.
Frequentementeenxergavaasimesmo
flutuando por cima das árvores, e
concebia um lugar onde pudesse
expressar-se através de um olhar
generoso e atento para as sutilezas
da permanente construção que é a
vida. Um olhar que a poucos é dado
o privilégio de ter. E então o banzo
habitual era substituído por uma
paz inominável, que, entretanto, era
dissipada, aos poucos, pela realidade
do dia a dia.
Era jovem ainda quando criou boca
e soltou um resmungo qualquer
diante de uma ordem estúpida do
capataz da fazenda. A reação foi
instantânea e desproporcional. A
violênciadocapatazdeixou-lhemarcas
profundas no corpo e no espírito:
uma cicatriz enorme no rosto e um
10
ódio desmedido na alma. Depois
disso, passou a ser deliberada e
sistematicamente perseguido pelos
seus senhores, sofrendo constantes
humilhaçõesperantetodosmoradores
da fazenda.
Se antes olhava apenas para baixo
e para dentro de si, agora, seus
pensamentos, dia e noite, eram
ocupados com planos de fuga. Seus
desejos repousavam sempre para além
das cercas que circundavam as terras
onde nasceu e cresceu. Não sabia ao
certo nem como, nem quando, sabia
apenas que precisava ir, que ali não
era seu lugar.
O dia chegou de maneira incomum,
taciturno, cinza e chuvoso. O excesso
de chuvas impossibilitou qualquer
tipo de trabalho externo, e os homens
ficaram amontoados na senzala
envolvidos com pequenos afazeres,
enquanto as mulheres permaneciam
trabalhando na casa-grande. Havia
uma bruma invisível no ar, tóxica,
que pairava imperceptível entre
todos, impregnando o lugar com uma
densidade ansiosa e agitada, porém
silenciosa.
Nuvens esculpidas formaram-se
no céu e, com o chegar da noite,
manifestou-se um fenômeno nunca
antes visto na terra. O oceano, distante
a muitos quilômetros dali, precipitou-
se com fúria sobre aquelas terras,
derramando sal sobre os viventes,
senhores, escravos, animais e plantas.
Assustadas, as pessoas corriam
indistintas pelo terreiro, olhando
para cima boquiabertas, sem nada
entender.
O negro sem nome, agora homem,
observavacomêxtaseoacontecimento.
O ar se tornou pesado, pegajoso,
esbranquiçado. Fortes rajadas de
vento encheram sua boca com sal, que
passou rascante por sua garganta. Teve
sede e ânsias. Tossiu com violência
e vomitou longe uma massa salgada.
Sentiu, então, que era o momento.
Mirou o corredor de árvores que
dava acesso à fazenda e, sem pensar,
saiu disparado. Enquanto corria,
imaginava-se passando pela caverna
por onde chegou, atravessando o
túnel escuro que o tirou da segurança
uterina e o colocou no mundo. Agora
faria o caminho contrário. Percorreria
novamente essa passagem, mas para
ganhar autonomia e independência.
Correu como animal fustigado, sem
olhar para trás. Só depois de muitas
horas parou para descansar, e então
se deu conta de que já era noite.
Na fazenda, após muito esforço e
brutalidade, os capatazes e feitores
controlaram a confusão e procederam
à contagem dos escravos. Em pouco
tempo, deram por falta do franzino.
Rapidamente reuniram uma equipe
de busca, composta por cachorros,
cavalos e capangas, tendo à liderança
o capitão do mato.
Os cães, nervosos e ganindo muito,
saíram correndo na frente, seguidos
pelos homens em seus cavalos, em
busca de rastros do fugitivo. Enquanto
11
isso, o escravo corria desesperado pela
caatinga,nomeiodanoite,orientando-
se apenas com a luz do luar. Marcas
da sua passagem iam ficando pelo
caminho, em espinhos, raízes, pedras
e arbustos. Sangue, suor, pelos, carne
e vestes: rastros indeléveis para os cães
e o capitão do mato, hábeis na tarefa
de perseguir.
Por quase uma semana correu
perdido e desorientado pelo mato,
sem saber onde estava. Após esses
dias, enfraquecido pelo cansaço e pela
fome, deparou-se com um intricado
complexo de árvores e raízes expostas:
um manguezal. Nunca, em sua
modesta vivência, tinha visto vegetação
parecida.Nem,aomenos,nossonhos.
A maré vazante do mangue expunha
aos seus olhos lama, animais exóticos,
lagunas, flores e um infindável
emaranhado de raízes, quase
intransponíveis. Atirou-se ao mangue
e imediatamente foi abatido pelo
desespero, ao ter quase metade do
corpo atolado na lama. No segundo
passo, um grande caranguejo cravou-
lhe as fortes pinças no pé. Conteve o
grito, reuniu forças e prosseguiu na
trama de raízes, ora por cima, ora por
baixo, ora dentro e ora fora d’água.
Precisou de horas para vencer o
mangue, e então, subitamente,
apareceu-lhe a praia. A visão do
mar foi estarrecedora e paralisante.
Estático e com a respiração
descompassada, contemplou a
infinitude daquilo que ele só ouvira
falar nas cantigas e lendas dos
escravos mais velhos. O horizonte
longo e linear, o eterno ir e vir das
ondas, a vastidão da água, da areia e
o sal, que dias antes havia lhe ferido
a garganta, indicando a hora de partir.
Movendo-se lentamente pela areia
branca e pesada, ouviu ao longe
os latidos dos cães. Estava exausto,
sedento, faminto, machucado e
nu. Continuou, cambaleante, em
sentido contrário ao de onde vinham
os latidos. O desconhecimento do
terreno havia lhe custado tempo
precioso na fuga. Poderia facilmente
ter evitado o manguezal.
Em virtude disso, não demorou
muito para que o capitão do mato
surgisse na praia, liderando jagunços,
cavalos e cães.
Sem ter para onde correr, o menino,
ainda escravo, parou diante de um
enorme bando de aves marinhas que
se alimentava na flutuante divisão
entre a água e a areia. O pequeno
exército se aproximava rapidamente
e, como não havia mais tempo,
arriscou a única possibilidade que lhe
veio à cabeça; e então bastou apenas
um gesto, um olhar, um pleno vôo e
o céu. Abriu os braços e, juntamente
com os pássaros, lançou-se para a
liberdade.
*Mário Henrique Silveira Bueno,fotógrafo,
advogado, 42 anos, Araçatuba-SP
12
2ºlugarTodos os jardins
do mundo
Jean da Silva Oliveira*
O jardineiro, entre cores e tons, era nada. Nunca fora
ninguém, mas guardava em seu peito pardo todos os sonhos
do mundo. Em meio às flores, ele espiava a vida pela fresta
do muro. Para que tantas pernas?, perguntava o seu coração.
Tantas pessoas nas ruas. Muitas cheias de sonhos e outras
vazias, desfeitas. Israel não vira o pai, mal conhecera a mãe
e da escola se lembrava apenas do gosto saudoso da polenta
e do azul festivo das saias das meninas do pátio lavado de
sol. Hoje, estava vencido, velho antes dos 30. Consciente,
como se estivesse para expirar. Vivia de canteiro em canteiro,
enfeitando a casa dos outros. Em sue casebre, no entanto,
apenas um vaso: um cacto que oferece fina flor, tão rara
quanto seu sorriso.
Israel queria saber falar às pétalas as coisas que brotavam em
sua alma. Queria descrever os mundos que criava enquanto as
cultivava. E quando era consumido por este desejo, chegava a
desentortar a coluna. Sentia-se homem, gente como as outras
pessoas que ele via pelas ruas. Mas mal sabia as palavras. As
poucas que conheciam não encheriam uma folha de recados.
Tinha consciência do parco vocábulo. Por isso, quando tinha
que expor seu mundo, era bicho. Juntava palavras. Pouco
dizia. Era apenas animal que sobrevive.
Era sexta-feira e a tarde já findava, fazendo laranja as janelas. O
jardineiro juntou suas coisas, despediu-se de suas amigas, que
mudas como ele, lhe eram cúmplices. Subiu as escadas da casa
antiga na esperança de receber o salário que lhe daria comida
13
para o final de semana. Encontrou
a porta dos fundos semiaberta, deu
um toque de leve e a abriu. Em uma
mesa farta, a senhora dona da casa
ria com amigas. Sobre a mesa, bolos,
biscoitos, leite, sucos e café. Israel
apenas a olhou na intenção de pedir
o que lhe era devido e na esperança
de não precisar falar. Recebeu apenas
uma ordem.
- Fecha a porta; disse a senhora, séria,
fazendo um sinal ríspido.
O cultivador de flores e de sonhos
cumpriu a ordem imediatamente.
Fechou a porta. Era bicho fazedor
das coisas que as pessoas, essas sim
gentes, mandavam. Foi sem dinheiro,
sem responder ou exigir o que era
seu. Partiu em direção à sua casa com
a mochila nas costas. Cerrado em
teu ser restrito, espiava e auscultava
a vida dos homens e das mulheres,
que indiferentes, passavam. Tinha
inveja deles, que em seus sorrisos e
casacos pareciam felizes e pessoas
de verdade. O som da sua tristeza se
misturava ao de seus sapatos, que era
arrastado e estéril.
O jardineiro se equilibrava entre o
ódio e a aceitação. A frase “fecha a
porta” não lhe saia da cabeça. Era uma
sentença de sua pequenez. Sentou-
se desapontado no banco do ponto
de ônibus. Esperou pacientemente o
embarque, sem interesse na conversa
das animadas moças ao lado. Fez a
viagem sem sentir. Chegou acabadiço
ao seu bairro, que já estava coberto
de estrelas. Uma lua indolente fazia
o favor de emprestar algum brilho
ao caminho. Na noite, no escuro
da periferia, seguiu o jardineiro
desajeitado sem saber que um homem
com uma dor é muito mais elegante.
Seus passos seguiam solenes quando
o som de um bom forró cortou o ar.
O jardineiro, então, ponderou sobre
o pó no corpo, o cheiro de suor, mas
o batido da zabumba lhe encanta.
Israel aprendera, na árdua escrita de
sua vida, a não discutir com o destino:
comia o prato dos fatos de acordo
como o determinado pelo acaso. Se
fosse prato quente, soprava; se gelado,
engolia depressa. Decidido, seguiu
para o forró no bar grande da esquina.
No jardim de seu peito nascia a rosa
sutil e anêmica da esperança de ser
gente - pelo menos enquanto a música
tocasse. Assim como há pouco se deu
à tristeza, abria-se agora para a alegria;
posto que são espinhos da mesma flor,
avessos e complementares.
O bate-estaca da zabumba, o frenesi
do triângulo e o roda-roda das saias
das moças encantavam o jardineiro.
Sentado em uma cadeira, no canto
do salão, ele respirava a alegria que
saía daqueles corpos cansados das
surras da vida. Ali não existiam
príncipes ou pessoas que mandavam
fechar a porta. Voltou a desentortar
a coluna. Era gente de novo. Na pista
de dança, não via mais casais, mas sim
rosas, centáurias, gardênias, lírios e
margaridas girando, girando, ao som
14
da valsa dos nordestinos. A sanfona
regava corações e mentes, que se
desabrochavam como em sorriso
tulipa.
Todos os jardins do mundo têm seu
jeito de ser colhido. A vida semeia
muitas vezes de forma aleatória, e
é o jardineiro que deve saber como
proceder. Israel estava embriagado
com a visão que teve, de flores
dançantes, quando foi arrebatado
por uma linda morena que o levou
a valsar pelo escuro salão. Ele era
flor também, que rodopiava entre os
pares. Fora colhido por uma moça
de olhos de primavera e teve uma
noite de deslembrar os desaforos da
vida. Não pensou mais na porta a ser
fechada, apenas dançava.
Passou o resto da noite e o início da
madrugadacomela.SeunomeéNaty.
Boa moça, que mora em uma casa
de dois cômodos no mesmo bairro.
Solteira, solitária, a moça costuma
cultivarrosasemumpequenocanteiro
para se sentir menos desabitada. A
madrugada os abraçou e foi quando
ela disse que precisava ir. Despediu-
se com a promessa de um beijo, que
passou perto. Deixou apenas um
convite para que ele fosse à sua casa
logo pela manhã.
Israel voltou para casa ditoso. Uma
lua sorridente emprestava seu brilho
feliz ao caminho. Na noite, no escuro
da periferia, seguiu o jardineiro
desfilando em felicidade sem saber
que um homem feliz é muito menos
jeitoso.
Era sábado e a manhã já estava
quente, fazendo brilhar as janelas. O
jardineiro juntou forças, despediu-se
de seu cacto, lhe era cúmplice mudo
daquela madrugada de devaneios, e
seguiu esperançoso para a casa de
Naty. Chegou, deu a volta no quintal
na esperança de receber o carinho
que lhe alimentaria a vida. Encontrou
a porta dos fundos semiaberta, deu
um toque de leve e a abriu. Em uma
mesa simples, a moça de olhos de
primavera estava só. Sobre a mesa,
um pão e café. Israel apenas olhou,
na esperança de não precisar falar.
Desta vez, endireitou a coluna e deu
dois passos para dentro da casa.
- Fecha a porta, disse ela, feliz, fazendo
um sinal alegre com as mãos.
O cultivador de flores e de sonhos
cumpriu a ordem imediatamente.
Fechou a porta. Era bicho fazedor
das coisas que as pessoas mandavam,
mas agora se sentia mais gente.
* Jean da Silva Oliveira, jornalista,
turismólogo, 39 anos, em 2014 foi
primeiro colocado nesta categoria,
Araçatuba-SP
15
3ºlugarFora dos trilhos
Odair Maurício de Albuquerque*
Pedro, sempre que podia, vinha visitar os avós. Gostava da
companhia dos velhos, que moravam perto, o que o animava
a ir a pé, geralmente no fim da tarde, quando começava a
escurecer. Logo que dobrava a esquina, avistava o velho
Vicente a balançar na cadeira de vime.
Aproximava-se e fazia um leve carinho nos seus cabelos
brancos.
– Como está?
– Vou levando... Essas dores nas pernas não me dão sossego.
Pedro afastava-se um pouco para melhor observar o avô.
Percebia, de fato, que o corpo já dava sinais de esgotamento.
A saúde precária, contudo, não tirava o gosto por um cigarro
de palha, mania desde os tempos de moço. Para acompanhá-
lo, o neto tirou do bolso um maço de Hollywood e sentou do
lado. Sem vento que atrapalhasse sua trajetória, as fumaças
se uniam e se perdiam no céu.
Vicente continuou a se balançar na cadeira, como se o neto
não estivesse ali. Seus dias passavam-se assim, silencioso,
perscrutando o movimento ao redor. Pedro notava-o cada vez
mais calado, mas percebia que sua audição continuava aguda:
conseguia distinguir o apito do trem que se aproximava; apito
esse com o qual Vicente conviveu por décadas e décadas,
e que se tornara tão familiar quanto sua cadeira que, de tão
antiga, poderia contar ao neto, se pudesse, a história do velho,
desde a mocidade até a altura dos seus quase noventa anos.
16
Narraria suas viagens, a chegada de
cada dia e a partida no dia seguinte;
seu vislumbre dos descampados, as
novidades que colhia num canto aqui,
noutro ali e trazia para conhecimento
da esposa, Marieta.
– Você não vai acreditar.
Invariavelmente era assim que
começava seus relatos. O caso, que
parecia assombroso ou espetacular,
escandaloso ou vulgar, não passava
de uma historieta de cidade pequena,
um conhecido cuja presença há muito
não via ou um parente que por alguns
minutos, aproveitando a parada do
trem e sabendo da presença de
Vicente, vinha dar um dedo de prosa,
nada mais do que isso. Mas Pedro
gostava de ouvi-las. Acompanhou,
desde criança, a trajetória do avô
maquinista. Fez muitas viagens à
casa dos primos de Araçatuba em
companhia dos pais. Gostava de
olhar os campos abarrotados de gado.
Mesmo quando desertos, admirava
sua imensidão.
Pedrorelembravacomoavôosmuitos
passageiros que por ali passaram,
vindos de São Paulo ou de Corumbá,
dependendo do destino.
Como sempre, no começo Vicente
parecia não ligar, mais ouvindo do
que falando, mas aos poucos ia se
animando, puxando da memória
nome de pessoas, episódios, exercício
que mantinha a mente ativa.
– Lembra o que seu pai fazia pra não
pagar sua passagem?
– Não muito, era pequeno.
– Quando o cobrador passava, ele te
levava pro banheiro.
– E o vendedor de salgadinhos? Dele
eu me lembro.
– Que é que tinha ele.
– Saía gritando pelo corredor: “Olha
as coxas de minha irmããã!”.
– É verdade, quando as coxinhas de
frango não eram as da irmã, eram
da mãe.
– E aquele fulano que desceu do trem
para fazer sabe-se lá o quê e teve que
correr com um cachorro na sua cola
pra não ficar pra trás.
E conversa vai, conversa vem, Vicente
sem perceber já sorria, e Pedro,
satisfeito por conseguir seu intento,
já via a hora de ir embora.
Então ajudava o avô a entrar, levando
sua cadeira e segurando-o por um
dos braços.
Mas, por mais que o neto animasse
seus dias, quando Vicente se via
sozinho, só sabia reclamar, e acabava
xingando a mulher, como se ela fosse
a culpada.
E o que era uma vida de lamentações
17
e queixumes, só veio a se agravar
com a chegada da aposentadoria. O
irrequieto Vicente não suportaria ficar
em casa, sem ter o que fazer.
Entrou num processo desolador
de autocomiseração, como se de
repente se desse conta de que estava
velho e imprestável. Por mais que o
consolassem com as possibilidades
de uma nova vida, a imagem que lhe
ficava incrustada era a de um objeto
superado que caíra em desuso; e para
piorar tudo, aquele trem a azucrinar-
lhe a vida, que poderia, aliás, ter sido
mais amena para um cidadão como
ele, que honrosamente chegara ao fim
da linha. No seu caso, a frase de efeito
tinha um quê de irônico e verdadeiro.
Se pelo menos pudesse ser poupado
daquele apito infernal! Quantos anos,
Deus!, por várias vezes fizera projetos
desemudar,masassúplicasdaesposa,
somadas às suas próprias incertezas,
juntamentecomosprotestosdosfilhos
e netos, que consideravam aquela
casa antiga um patrimônio familiar,
fizeram-no desistir. Sepultada a ideia
de mudança, Vicente se prostrara na
cadeira em frente à casa, resignado. A
convivência com aquele trilho à porta
da moradia, como a estar ali a esfregar-
lhe na cara a realidade, a concreta
realidade, sem meias verdades,
provocava-lhe saltos no estômago,
num nervosismo reprimido.
– Praga de trem que não me deixa
dormir – gritava, por fim.
Quando estava por perto, Pedro
tentava mudar de assunto, voltando-
se para fatos presentes, aniversário de
algum parente próximo, ou a morte de
velhoconhecido.Erainútil.Ohomem
que gostava de uma boa conversa e
de histórias, pelo menos naquele
momento, já se desfizera, como as
emanações da chaminé de uma maria-
fumaça. Apenas ouvia; mal respondia.
Velhos conhecidos passavam e
paravam, e, para sua tortura, sempre
tinham um episódio da ferrovia a
contar.
– O senhor se lembra da viagem ao
Pantanal? Que loucura andar naquela
tempestade. O senhor tinha mesmo
sangue frio para controlar aquele trem
em uma situação tão adversa.
Mal sabiam eles que se borrara todo
por medo de morrer e não ver os
filhos crescerem. Vicente meneava a
cabeça pouco amistosa e o visitante,
vendoseudescaso,ia-se,resmungando
impropérios. O velho estava imune às
boas maneiras; já não tinha a mínima
pretensão de alegrar alguém, nem a
si mesmo.
Pedrosabiabemoporquêdetamanha
18
contrariedadevindadeumcoraçãotão
bondoso. Exigente, porém bondoso.
Équeascoisasforamsedelineandode
forma funesta. Quando entrara para a
ferrovia, mocinho de tudo, era outra
realidade. Antes, passageiros; hoje,
produtos das mais variadas origens.
Sua mente não conseguia entender
as sutilezas do tempo, as pequenas
engrenagensquemoviamasmudanças
queseprocessavamnosubsolodavida
de homens comuns como Vicente.
Na sua concepção, toda mudança que
houvera tinha um nome e uma causa:
esta, a venda da ferrovia ao grupo
de americanos de nomes uns mais
estranhos do que os outros; nomes
estes que nunca conseguira gravar.
Aquele, Osvaldo, jovem promissor
que assumira seu lugar, na ótica de
Vicente o usurpara de seu trono. A
aposentadoria que vinha protelando
há tanto tempo saltara de repente
da mala de um forasteiro de boa
aparência, gestos e maneiras polidas.
Para os grandes executivos, figuras
como Vicente são apenas mais um
na folha de pagamento.
– Vicente da Silva Costa?
–Simsenhor–respondeu,meiocurvo,
submisso, posição que aprendera
com o pai sempre que alguém mais
graduado lhe dirigia a palavra.
Esses sujeitos chegam de mansinho,
sem fazer barulho com seus belos
sapatos sempre brilhando e, no
momento da má notícia, fazem de
uma forma tão educada, profissional,
que o infeliz que está sendo demitido,
só falta agradecer por estar no olho da
rua; mas, passados aqueles segundos,
acorda pra vida e vê no buraco em que
se encontra. Tinha sido ludibriado.
Vicente se viu, forçosamente, tendo
que se aposentar, ou, em outras
palavras, ter que sair por uma porta,
enquanto Osvaldo entrava pela outra.
O jovem operador viera no bojo das
mudanças implantadas pelos novos
donos. O pessoal fora reduzido ao
mínimo necessário e os passageiros
já não teriam mais acentos com
os quais iriam se preocupar. As
companhias de ônibus se alastraram,
com novos veículos, mais conforto e
preços módicos. Os americanos não
se interessaram por esta parcela nos
lucros, concentrando-se no transporte
de grãos e combustível. Vicente ficou
atordoado com tantas mudanças em
tão pouco tempo. Homens entre seus
trinta e quarenta anos, donos de um
linguajar diferenciado, com ideias
novas, propondo outros rumos.
– Temos que melhorar nosso
desempenho, implantar novas
concepções, não podemos ficar
19
inertes. Temos e devemos prosseguir.
O governo sucateou as ferrovias,
acabaramcomosvagões,deixandoum
legado em petição de miséria, e, não
dando conta do desmantelamento que
realizaram, resolvem vender. Agora
somos nós quem dá as cartas.
Em outros momentos, em lapsos de
tempo que sua mente já não conseguia
mais distinguir, chegava até ele termos
obscuros: privatização, reengenharia,
globalização, novas tecnologias e
equipamentos. Os velhos vagões
foram trocados por modernos, mas
sem os acentos que tantos passageiros
utilizaram e reutilizaram e que Vicente
viu e reviu subirem e descerem tantas
vezes que não poderia contar, mesmo
vivendo mais cem anos.
O velho colhia essas frases de tempos
emtemposantesdereceberumafolha
que mal pôde ler, como se lá estivesse
escrito: você está descartado de nossos
planos, sua presença é dispensável.
Demorou-se a cair em si; dias e dias
passaram sem que decifrasse aquelas
palavras que desenhavam num papel
cheio de timbres e slogans da nova
empresa o nascimento de sua morte.
O consolo, ou quase isso, era que
a ausência de passageiros dava a
fugaz impressão de que ele não era o
único a perder. Sentiria saudade das
inúmeras pessoas que conhecera e
suas infindáveis histórias; as viagens
que fizera e os lugares pelos quais
passara ficariam em sua trajetória
como a pele ao corpo.
Vira a mudança gradativa dos campos
que, de pastos e gados, foram dando
lugaraoscanaviais.Maisumamudança
que lhe imprimia uma nostalgia inútil,
sabedor de que a visão de mundo
que teria não seria nunca mais a
mesma. A perenidade do tempo lhe
impingia, sem que ele percebesse,
aquela vontade platônica de tudo
permanecer imutável e imperecível
para se chegar à verdade suprema.
Uma luta inglória na qual seria um
perdedor em potencial.
Às vezes, a muito custo, Pedro
conseguia levá-lo para além da estação,
onde a linha se dividia em duas, e uma
linhaparalelasedestacavadaprincipal.
Nesta, vagões sem uso permaneciam a
um canto, a esfarelar sob a chuva e o
sol. Vicente se achegava de mansinho,
para não parecer um visitante
inoportuno. Acariciava a madeira
desfolhada, o desbotado das cores
vermelhas de antigamente que agora
se tornavam um rosa mais do que
apagado. Pedro seguia ao seu lado,
olhando seus gestos. Não ousava falar
nada, até que Vicente se pronunciasse:
– Quanto tempo!
20
Os olhos de Vicente não resistiam
à certeza de que eles se pareciam:
enferrujados e imprestáveis.
– Não fique assim, tem coisas que não
podemos mudar.
Pedro tentava apaziguá-lo, mas
era inútil. Tentava explicar os
novos tempos, as mudanças que se
processavam aqui e no mundo.
– Hoje vivemos outra realidade. O
governo não dá conta de manter essas
ferrovias. Da mesma forma estão
transferindo as estradas à iniciativa
privada. Bancos e telefones a mesma
coisa: estamos “falando espanhol”.
– E esses estrangeiros que compraram
o “meu” trem?
– Esses falam inglês. São americanos.
E Vicente fazia cara azeda, como se
estivesse com dor de estômago.
Pedro sorria, como se quisesse dar
a entender ao avô que não adiantava
ele fazer aquela cara, pois as coisas
não voltariam a ser o que eram antes.
E Vicente voltava à cadeira; e quando
se dava ao trabalho de responder a um
colegadostemposdeferroviaquemais
uma vez relembrava o passado, em
frases como: “O trem vem chegando,
conheço o barulho de longe”, Vicente
fazia sua cara desleixada para o ex-
parceiro e respondia, entredentes,
maisparasidoqueparaointerlocutor:
– Não sei, esse trem fala outra
língua, uma língua estrangeira que
desconheço.
* Odair Maurício deAlbuquerque,formado
em Letras,funcionário municipal,45 anos,
Penápolis-SP
21
1ªMençãoHonrosaUm dia é da caça...
Eduardo Lima de Paula*
Em meados de 1975, os dois estavam na cabine da
caminhonete C-10 que ainda cheirava a “carro novo” e já
viajavam há pelo menos quatro horas sem parar, sempre por
estradas vicinais, de modo a evitar qualquer via principal.
- Primo, eu ainda não acredito que a sua ideia deu certo! Eu
podia jurar que alguma coisa pudesse dar errado, mas na
hora certa, parecia até um filme! Não errei nenhuma fala e
aquele pato caiu na sua história direitinho! – disse Augusto,
realmente surpreso.
- Augusto, eu tenho certeza que você nunca vai se esquecer
deste seu primeiro grande golpe! Mas te digo que logo você
irá participar de outros ainda maiores e garanto que com o
tempo eles sairão cada vez mais naturais... Modéstia à parte,
eu acho que eu sou o melhor do Brasil naquilo que faço e
com muito orgulho vou te ensinar o caminho das pedras,
afinal, você é da família e já tem a malandragem no sangue! –
respondeu Fábio, dirigindo cada vez mais veloz pela estrada
de chão batido.
No dia anterior, os dois estavam na cidade de Barretos e
participaram de um grande leilão de gado onde se reuniram
com os fazendeiros mais ricos de todo o interior paulista.
Com algumas roupas boas e grandes sorrisos nos rostos,
afirmaram que eram fazendeiros vindos do norte de Goiás,
e logo ganharam a confiança de alguns figurões, por pagarem
uma ou duas rodadas de bebidas para cada quatro ou cinco
senhores com quem conversaram, sempre com notas de
cruzeiros novas, as quais haviam sido conseguidas com uma
22
moça que acreditava ser namorada de
Fábio e trabalhava em uma agência
bancária da capital.
Não demorou muito para que um
curioso fazendeiro de São José do
Rio Preto se aproximasse dos dois e
pedisse para conversar em particular.
Fábio, de início, se mostrou difícil para
aceitaraconversa,poisqueriadesfrutar
dacompanhiadosdemaisfazendeiros,
mas acabou por concordar em ir com
aquele senhor até um local mais
reservado, levando consigo Augusto,
que havia sido apresentado a todos
como sendo seu irmão mais novo.
Depois de alguns minutos de
conversa, o fazendeiro logo abriu
o jogo e falou que não sabia o que
estava acontecendo, mas que queria
participar daquela jogada. Fábio então
contou que eles eram donos de uma
máquina de fazer dinheiro, onde
bastavacolocarfolhasdepapelsimples
cortadas no tamanho das cédulas de
um lado, esperar por quatro horas
para que o dinheiro fosse impresso
e logo estariam com cinco mil
cruzeiros prontos para serem gastos.
O fazendeiro ficou desconfiado,
mas afirmou que desejava ver uma
máquina dessas funcionando. Fábio
pediu que ele entregasse cinco mil
cruzeiros adiantados para eles e que o
dinheiro que saísse da máquina depois
do processo seria seu, para conferir
se as notas eram verdadeiras e gastar
como e onde quisesse.
O fazendeiro então combinou com os
dois de se encontrarem no seu quarto
de hotel depois do jantar daquela
noite. Ele entregaria o dinheiro
solicitado e juntos, aguardariam para
ver o funcionamento da máquina.
No horário combinado, os dois
levaram a máquina, que era do
tamanho de uma grande mala de
viagens, até o hotel do fazendeiro. Ele
entregou o dinheiro e acompanhou
ansioso quando Fábio colocou o
maço de folhas de papel em branco
já cortadas no tamanho ideal em uma
cavidade da máquina e apertou alguns
botões para ela começasse o processo
de fabricação de dinheiro.
Amáquinafaziaumbarulhomecânico
característico e assim perdurou pelo
tempo que havia sido combinado.
Após as quatro horas, parou e emitiu
um som de campainha de que estava
pronto. Do outro lado da máquina,
começaram a sair notas de dinheiro
(parte daquelas conseguidas com
a garota de São Paulo) de diversos
valores, ainda “quentes pela impressão
recente” e que totalizaram o valor
prometido.
O fazendeiro conferiu cada uma delas
nos seus mínimos detalhes e após se
convencer de que eram verdadeiras,
fez a proposta: Quanto eles queriam
para lhe vender aquela preciosidade?
Fábio se fez de rogado, falando que
não poderia vender uma máquina
daquelas por preço nenhum, pois ela
era importada dos Estados Unidos,
23
que somente haviam conseguido ter
acesso àquela preciosidade após muito
negociar com antigo dono e como ela
fazia dinheiro tão bem, não tinham
motivo para repassá-la para ninguém.
O fazendeiro, acostumado a sempre
ganhar em todas as negociações, não
queria que aquela vez fosse diferente
e lançou uma proposta irrecusável:
eles poderiam estabelecer o preço
que quisessem, e por mais alto que
fosse, ele pagaria.
Fábio pensou alguns minutos e fez
a seguinte proposta: Ele e o irmão
iriam precisar viajar para a Europa em
breve e ficariam por lá por pelo menos
cinco meses. Não queriam levar a
máquina consigo para não levantar
suspeitas, então poderiam alugar
o equipamento para o fazendeiro
durante este período, em troca do
valor que ela produziria em dois
meses. O fazendeiro barganhou e
ofereceu como forma de pagamento
a sua caminhonete C-10 que não tinha
nem um mês de uso e mais vinte mil
cruzeiros. Fábio novamente pensou
por alguns minutos, pediu para
conversar em particular com Augusto
e na sequência aceitou.
Explicou que havia um porém: a
máquina estragaria se fosse usada
diversas vezes seguidas e o ideal
seria esperar vinte e quatro horas
até fazer um novo uso, afinal, se o
equipamento quebrasse, onde ele
conseguiria realizar o conserto sem
levantar suspeitas?
O fazendeiro aceitou a condição sem
pensarduasvezes,entregouodinheiro
prometido e as chaves do veículo. Na
noite seguinte, quando ele tentasse
fazer uma nova remessa de dinheiro e
descobrissequeamáquinanãopassava
de uma enganação barata, os dois já
estariam bem longe e provavelmente,
o fazendeiro nunca mais iria ver seu
veículo novamente.
Já era início de tarde quando eles
passaram pela cidade de Clementina,
local onde decidiram descansar por
algumas horas, talvez pernoitar, antes
de seguir para o Sul e transformar
aquela caminhonete em dinheiro.
Conseguiram um quarto em uma
pensão próximo à praça central
da cidade e como não poderiam
perder o costume, decidiram aplicar
algum pequeno golpe em alguém da
população local.
Augusto vestiu uma roupa mais
simples e foi até a praça, onde
encontrou um senhor idoso sentado
em um dos bancos da praça, o qual
se apresentou como João Francisco, e
se dispôs a ouvir a história que aquele
rapaz contava:
Dizia ter chegado há pouco tempo de
uma cidade distante e que possuía um
bilhete de loteria premiado, porém
sua religião não permitiria sacar o
dinheiro, sem sofrer represálias de
seus familiares e amigos, precisava
então da ajuda de alguém para sacar
o dinheiro e em troca da ajuda, estaria
disposto a dar uma boa soma. Na
24
sequência apareceu Fábio, bem
vestido, com um bigode falso e um
chapéu que dificultava a visão de seu
rosto. Ofereceu ajuda para que aquele
rapaz e o senhor João Francisco
conseguissem ir até a cidade mais
próxima e juntos, sacariam o dinheiro
do prêmio em um banco.
- Olha meus senhores, eu tenho
oitenta anos e não sei ler ou escrever.
Não estou entendendo tudo dessas
coisas que vocês estão falando não,
mas jovenzinho, se você ganhou
mesmo esse prêmio, é o caso de ir
atrás de pegar o dinheiro sozinho, sem
precisar de ajuda de mais ninguém
não! E toma cuidado senão é capaz
de alguém querer se aproveitar de
você! Esse mundão é perigoso que
você não imagina... Tem gente que
pode querer fazer até mal para você
se souber que carrega um negócio que
vale dinheiro assim como você falou!
Se tiver alguma dúvida ainda, eu acho
que seria melhor falar com o ‘seu’
André que está carpindo um lote na
rua de baixo e tenho certeza que ele
irá ajudar! – falou João Francisco para
logo se levantar do banco da praça e
seguir seu caminho.
Os dois estelionatários, acostumados
com a maioria das pessoas com quem
conversavam nas grandes cidades,
as quais certamente ouviriam um
pouco mais da história contada e
algumas delas logo aceitariam “dar
alguma coisa em garantia” para poder
participar da grande jogada, foram
surpreendidos com a simplicidade
daquele senhor e a forma como este
encerrou o assunto.
Como ainda estavam com algumas
horas livres naquela cidadezinha e
“tempo é dinheiro”, decidiram tentar
alguns outros golpes contra alguns
comerciantes locais, os quais também
resultaram em saídas semelhantes
àquela dada por João Francisco.
Ninguém parecia estar disposto a
participar de alguma grande jogada
e ficar rico, o que realmente era
algo incomum, porém, o que mais
chamou a atenção de Augusto e
Fábio foi o fato de algumas pessoas
terem recomendado que procurassem
aquele tal de ‘seu’ André.
Curiosos com este fato e tendo em
vista que já trabalhavam há horas sem
nenhum resultado prático, decidiram
investir uma última tentativa naquela
cidade: ofereceriam para André uma
oportunidadeúnicadeserproprietário
de uma grande fazenda no Mato
Grosso, em troca de dar alguma
quantia agora pela boa informação
prestada.
Chegaram até o terreno onde
encontraram um senhor de meia
idade, roupas de trabalhar bem
desgastadas, com um chapéu de palha
equasenofimdotrabalhoderoçagem
daquela terra.
- Boa tarde, seu André! – a menção
do nome, foi suficiente para atrair a
atenção do trabalhador – Nós somos
25
corretores de fazendas que estamos
de passagem aqui por Clementina
e alguns amigos do senhor falaram
que a nossa proposta certamente
irá interessá-lo, então viemos para
conversar.
- É mesmo? Sou todo ouvidos... –
disse o desconfiado roceiro.
- O senhor já imaginou ser um
fazendeiro, dono de uma grande
extensão de terras, bem além
daquilo que consegue enxergar? A
sua oportunidade acabou de chegar:
Uma viúva de um grande fazendeiro
nos incumbiu de vender as terras
do seu marido para poder distribuir
o dinheiro para os filhos e netos.
Já vendemos quase todas as vinte
fazendas, mas ainda existe uma delas,
que certamente será do seu interesse!
– disse Augusto.
- Moço, eu não sei não... Sou só um
trabalhador, acho que não vou ter
dinheiro para pagar isso tudo ai não...
- Não se preocupe, é justamente nisto
que surgiu a oportunidade da sua vida!
Nós conseguimos que ela faça um
preço muito bom e o senhor só vai
pagar daqui um ano!
- É mesmo? E como eu conseguiria
isso? Eu vou ter que falar com essa
senhora antes!
- Não se preocupe com negociações,
nós faremos tudo pelo senhor!
Somente pedimos três mil cruzeiros
adiantados a título de confiança no
nosso trabalho e para que possamos
dar andamento na documentação
necessária!
- Nossa... Se eu tivesse esse dinheirão
todo, eu estava rico! Juntando todo o
meu trabalho de uns dois anos para cá,
eu só consegui economizar um mil e
quinhentoscruzeiros!Eeuguardoesse
dinheiro bem escondidinho dentro
do colchão lá de casa, onde ninguém
poderá encontrar!
Demonstrando já uma clara
impaciência com a relutância
daquele senhor, mas ciente que mil
e quinhentos cruzeiros eram melhores
do que nada, Augusto falou:
- Acredito que este dinheiro deverá
bastar para emissão dos primeiros
documentos. Nós podemos
acompanhar o senhor até a sua casa
e buscar o dinheiro?
- Moço, eu vou acabar com esse
terreno aqui em mais uma meia hora,
então eu vou pra minha casa, que fica
três ruas para lá, uma casa vermelha,
não tem como se enganar. Vocês me
encontram lá na frente daqui uma
hora que nós já conversamos.
Crentes que teriam finalmente
conseguido “não passar em branco”
por Clementina, os dois foram para a
pensão para arrumar as malas deixar
tudo pronto, caso precisassem sair
rapidamente daquele local e na
sequência, foram aguardar ‘seu’ André
recebê-los.
26
No horário combinado, ‘seu’ André
saiu de dentro da casa, juntamente
comumrapaz,possivelmenteseufilho
e veio em direção a Augusto e Fábio.
Assim que os quatro estavam bem
próximos, ‘seu’ André falou:
- Pedro, pode algemá-los. Os dois
estão presos em flagrante pelo crime
de estelionato tentado.
Tanto Augusto como Fábio ficaram
surpresos com aquela frase que sequer
esboçaram reação quando o metal
frio das algemas veio a roçar contra
o pulso de cada um deles.
- Deve ter havido algum engano aqui...
O que está acontecendo? – ainda
tentou perguntar Augusto.
-Dr.André,nestesquasetrêsanosque
eu já estou na polícia já vi um pouco
de tudo, mas dois paspalhos como
esses aqui é a primeira vez! – disse o
Investigador de Polícia Pedro – Os
caras chegam a uma cidade pequena
comumabaitacaminhonetenovinhae
acham que ninguém vai perceber que
tem alguma coisa estranha? Tentam
abordar o meu tio João Francisco, que
aposentou depois de quase quarenta
anos de Polícia, entram em todos os
comércios da cidade contando umas
histórias cada vez piores... Agora, eu
aposto que a maior surpresa de todas
para eles foi descobrir que o Delegado
de Polícia da cidade gostava de carpir
uns lotes nas horas de folga, só por
diversão! Já telefonei para o fazendeiro
para avisar que recuperamos a
caminhonete e ele falou que chega
ainda hoje à noite ou no mais tardar
amanhã cedo.
Satisfeito com o bom resultado do
trabalho realizado, o Delegado André
encerrou o assunto:
Vamos para a Delegacia que ainda
temos um flagrante para lavrar, quero
interrogar estes dois com muita calma
e logo vamos estar cheios de vítimas
dispostas a reconhecer estes dois
safados...
*Eduardo Lima de Paula, formado em
Direito, delegado de Polícia, 28 anos,
Birigui –SP
27
2ªMençãoHonrosaOs olhos secos
de Oberón
Carlos Eduardo Marotta Peters*
Bermii, filho mais novo de Oberón, cortou o peito do pé com
a enxada quase cega. O sangue espirrou na terra já vermelha
do Vale dos Quatro Ventos. O menino baliu de dor e caiu
no chão aos prantos. Os homens bateram as botas no chão
e correram em sua direção.
- Enfêxa o pé! Enfêxa o pé! – gritou o tio Bênias, com as
mãos na cabeça.
Alfinerma, primo de Bermii, correu para a casa das mulheres
em busca de ajuda. Tropeçou e gritou feito um barrigudo,
mas chegou lá antes do pé ter descanso. Escancarou a porta
e mandou chamar Narierna, a mãe do cortado.
- E olha que nem risco grande fez o rançado, mas deságua
qui nem um riacho... – falou o primo, ainda gritando e
apavorado com o sangue.
Narierna, como mãe que era, e que aprendeu com a vó Nila
a fazer cura de corte, correu com lenço na cabeça e tudo para
lá, carregando consigo a vasilha de curação de corpo bambo.
Oberón, pai severo, viu com canto de olho a cena e carpiu
mais um tanto antes de ir para o teatro daquela dor toda.
Viu Bermii no chão e coçou a barba de homem velho. O
olho de lá continuou na enxada e no trabalho que faltava,
mas o de cá até que cuidou de tentar entender o machucado.
- Preocupanão com o fraco... É peça de gritá de toa, que
nem carnêro no amate!
Todos se calaram, mas sabiam que a ferida sangrava além da
conta. Oberón não parecia estar certo com aquela calma, mas,
de uma forma ou de outra, sempre provava que estava. No fim
28
de pouca discussão levaram Bermii
para casa, ofendendo o entendimento
de Oberón. O olho de lá ficou com
raiva e quis saber quem ia suar no
lugar do caído.
O menino precisava de médico,
mas o único que existia por aquelas
bandas estava na vila com doença de
bebida. Melhor foi chamar o padre,
que também trabalhava no negócio de
curar. E quem foi atrás do dito cujo foi
o mesmo Alfinerma que mal parara
de gritar desde o começo daquela
cena toda. E gritou mais ainda quando
passou pelas casas dos vizinhos.
- Meu primo tá a perder tudo de
dentro com pé riscado de enxada! –
gritou, para quem quisesse ouvir. E
muitos queriam.
- Quase perde o pé por causa do
riscador de terra cego... E nem cobra
tinha pra distrambeiá a mão!
Quasuir, vizinho quase sem dentes na
boca, gritou de volta que queria ver
Bermii arrumado de volta na saúde,
mas Alfinerma era daqueles que
destravavam a falar sem ouvir, como
se a boca fosse a tampa dos ouvidos.
- Chama o cura, chama o cura, quiçá
ele costura de vórta as tripa do pé do
primo...
E tudo voltou à conformidade das
coisas. O padre acudiu o menino,
passou pó amarelo e rezou para os
santos que lidavam com a questão.
Na hora da comida, Bermii até pôde
sentar em sua cadeira de costume, ao
lado de Oberón, que só esperou a
choradeira parar para dizer tudo que
o olho de lá tinha engolido por horas.
- Quiria eu proseá das coisa dessa
hora, mas teatro assim precisa de
muita vagabundagem pá engordar.
E vagabundo gritador num côme,
porque de engorda essa casa só pricisa
dos porco.
A mãe chorou pelo filho, falando
que doente tinha que comer para
repor o sangue. Até caiu de joelhos,
mas Oberón tirou o prato da mesa e
fez o pobre menino ficar num canto
esperando as migalhas.
Ninguém mais discutiu o assunto
com Oberón. Nem ele deixou mais
acontecerem choradeiras que tirassem
sua fome e sua opinião.
- Nóis num criâmo fio pá ficá de
horizonte qual fosse fileira de tijolo
seco! – emendou Oberón, para fechar
a conta da conversa.
- E diga pro padre que a parte dele já
tá paga na cota da cestinha da semana.
Eu num sô mucamo de santo prá ficá
dando farelo na boca.
Narierna, a mãe, já tinha os dois olhos
roxos e uma boca inchada por causa
do corretivo que levara por pedir pelo
filho. Oberón nem queria saber dela
quando esticou a corda do chuveiro
meia hora depois. Queria ir para a
cama em silêncio para poder acordar
cedo no dia seguinte.
-Acordaespertoqueacobrafumadora
tá de olho na sua malícia! – disse
Oberón, com voz severa, enquanto
puxava a cortina da cama do filho
29
cortado.
- Come o que tem qui comê e põe ôtra
perna para puxar o cabo da enxada
de novo, qui a hora da receita já passô
faz desde ontem!
Bermii levantou o mais rápido que
pôde, pois Oberón não era de falar
sem precisar. Teve dor ao ficar em
pé, mas tinha que ser homem para
trabalhar sem resmungar. Oberón
nem queria saber mais do ocorrido
no dia anterior. Agora era outro dia
e outras contas deveriam ser pagas.
A mãe foi só choro quando viu aquela
perna manca suportando o peso do
corpo do filho. Tentou correr para
ajudá-lo, mas a filha mais nova puxou
suaroupacomoquempuxaacordado
poço na hora da sede. Narierna queria
ir acudir a cria, mas soube que as mãos
da filha tinham uma verdade mais
certeira. Então parou e chorou atrás
do punho, único choro que Oberón
tolerava.
A parentalha tentou não se meter
no assunto, mas era da opinião
que Oberón não devia tratar palha
como madeira. Mas ninguém fez
nada, porque a opinião de Oberón
era sustentada pela violência. Ele
não queria argumento, então não
adiantaria discutir.
Oberón explorou o filho como nunca.
Era enxada, ancinho, balde de água e
enterrador. E quando via o enfermo
cabulando, engatava um discurso tão
duro que o menino rapidamente
voltava ao batente, ainda que com
lágrimas nos olhos.
Alfinerma, que nunca tivera muito
entendimento, chegou tarde ao
trabalho e não compreendeu direito
aquelesilênciotenso.Oberónmandou
o menino calar a boca assim que ele
começou a falar, e quase lhe deu um
tapa. Só não o fez porque aí teria que
bater no pai também e isso ele não
queriaagora.NãoqueOberónsentisse
medodealguém,maspensavaqueum
corretivo desses iria atrasar o trabalho,
e isso ele não suportava.
Oberón exigiu tanto do filho que
Bermii acabou despencando no
chão que nem fruta madura. Mas
não chegou a desmaiar. Teve o azar
de ficar acordado para apanhar de
Oberóncomosefosseroupabatidade
lavadeira. O menino gritou tanto que
até os bichos foram embora do vale.
Quando acabou, havia tanto silêncio
por ali que Oberón quase pensou que
tinha disciplinado demais o doente.
- Qui é qui tão olhano? Eu palavreei
que tava perigando corrigir o artista.
E ele continuou com a traição qui
nem artista de caravana. Agora vai tê
dor de verdade pra valorizá o choro!
Ninguém falou nada, mas todos
pararam de trabalhar e foram ajudar
o menino. Oberón ficou furioso de
novo e ameaçou partir para cima de
quem afagasse o castigado.
	 Um tio mais velho, irmão
de Oberón, não arredou o pé. Nem
olhou para o pai raivoso quando foi
acudirBermii.Oberóncoçouacabeça
e tralhou com ele em voz alta.
- Qué desgraçá a família toda, irmão
30
meu? Qué pôr sangue contra sangue?
Nem olho quando você arrebenta suas
cria!Porquevocêquéacudíasminha?
Prolegomo, o irmão, não fez som
algum e catou o menino nos braços.
Levou para casa e não voltou no
dia seguinte. Falou para a mulher
de Oberón que algumas coisas
rebentavam sua grande paciência.
Daquele dia em diante, Oberón
perdeu muitos dos que trabalhavam
com ele. Solidários ao menino, eles
preferiram ficar em casa e esperar
aquilo tudo passar. Oberón nem se
abalou. Matou todos eles na cabeça,
como fizera com outro irmão do qual
se apartara vinte anos antes.
- Qué disgraçá tudo, faiz sem
mim! – dizem ter ouvido o velho
resmungando, nos dias posteriores
ao acontecido.
Como a produção da terra vermelha
caiu, Oberón ficou ainda com mais
raiva do irmão e do filho. O irmão
estava longe, mas o filho estava ao
seu alcance. O velho arrancou-o da
cama todos os dias. O pé ficou cada
vez mais inchado e o machucado não
fechava nem mais com pó santo. A
mãe chorava e pedia, mas ganhava de
consolo o punho fechado de Oberón.
Tinha dias que nem ela conseguia
levantar, de tanta dor que sentia no
corpo castigado.
Oberón fez tanto que o filho pediu
paraverummédico.Masmédicosnão
existiam na vila. O único disponível
viajou dias antes. Ele também nunca
havia salvado muita gente de verdade,
já que tinha poucos recursos. Então
só veio o padre, que trouxe mais pó
de curar e reza para o menino.
Quando a mãe já ia fugindo para
apelaraosparentes,Bermii piorou.Os
parentes, alarmados, tiveram até que
chamar as autoridades para tirarem
o menino de casa. Oberón disse que
era injusto deixar gente do governo se
meter em casa de homem crescido,
mas foi dissuadido por um amigo
de resistir à bala àquela intromissão.
Preferiu descontar sua raiva na esposa.
O pé de Bermii inchou mais e mais,
e de tanto inchar acabou causando
sua morte. A mãe foi só desconsolo e
chorou por várias semanas. Alfinerma
correu pela vila gritando a morte do
primo.
- Bermii morreu pelo pé... Porque não
teve pó nem reza que curasse!
- Também, de tanto trabalhar sem
fechar talho, não há como segurar
alma no corpo...
Mas, de prosa em prosa, o menino
sentia era saudade do amigo.
Oberón não foi ao enterro. Os
parentes que deram a ele a notícia
da morte do filho disseram que nem
o olho de cá derramou lágrimas pelo
menino.
*Carlos Eduardo Marotta Peters,professor
de História (ensino médio e superior), já
publicou quatro livros,44 anos,Araçatuba-
SP
31
Assassino
Nara Lêda Franco*
A boca estava seca. Se é que aquele risco fino e pálido
tivesse semelhança com boca. Encarcerados dentes brancos,
enfileirados, batiam-se: rangidentes. O corpo delgado
transpirava. A camisola, amarrada à cintura, colava nos
seios pequenos. Quem dera o suor que escorria lavasse a
alma. Mas sal nunca foi bálsamo para feridas.
Tentou levantar-se. As unhas curtas e pintadas de lilás
encravaram-se ferozmente nos minúsculos vãos do azulejo.
Metade do corpo desgrudou-se do piso frio, mas as pernas
não obedeciam. Dormentes e finas, eram de chumbo. Talvez,
se alcançasse o vaso, pudesse se sentar e afastar a frialdade da
morte. Mas ao erguer a cabeça para olhar em direção ao seu
alvo, descobriu que força de vontade não movia um corpo.
Não dispunha de três passos. “Arraste-se!” a voz sussurrou
num tom debochado e autoritário. Então ela o fez, devagar
e devagar, enquanto o suor escorria, na vã tentativa de diluir
o sangue viscoso.
O gelo das mãos se uniu à fria cerâmica do vaso numa rima
perfeita. A dormência nas pontas dos dedos não lhe deixava
sentir nem textura nem nada. Sua única certeza era a de
que estava agarrada ao vaso sanitário como um náufrago se
agarra a uma bóia. Quando a cabeça pendeu, viu os cabelos
lisos e pretos valsarem na água amarelada de urina recente,
embaralhando a imagem cadavérica de seu rosto.
Deixou-se ficar ali. Sem perspectiva de movimento possível.
Não havia outro lugar que a força fragilizada de suas carnes
lhe permitisse chegar.
3ªMençãoHonrosa
32
Como um cavalo enfurecido, o tempo
galopou sem rumo, relinchando
dores. As batidas do seu coração
seguiam aquele galope desgovernado.
Um tempo impreciso e livre de
minutos e horas.
Aos poucos, a pele febril fez evaporar
o suor frio e nauseante. Soltou-se do
vaso, escorrendo o corpo no piso
úmido. Arrastou-se em direção à
toalha dependurada, mas não a
alcançou. Num esforço doloroso,
apoiou-se sobre os cotovelos. Não
sentia as pernas, mas sabia que
estavam ali: pernas de elefante que
precisavam ser arrastadas para frente.
Abriu a boca embranquecida pela
dor e o fez, colocando-se de joelhos.
Bem podia rezar, pensou, e quase riu
de deboche: de si mesma e de Deus.
Num último esforço, ergueu o braço
e seus dedos magros agarraram a
toalha amarela, que ficou laranja e
depois vermelha, pressionada entre
suas coxas. A umidade densa e quente
lhe trazia um pouco de calor.
Devagar, bicho ferido, quadrúpede
como se deixou ser, foi em direção
à caneta sangrenta jogada perto da
porta. Limpou-a na ponta da toalha,
que arrastava entre as pernas, e
alcançou o bloco de papel deixado
sobre o cesto de roupas sujas. A carta
estava ali, com suas letras implorantes.
Arrancou-a do bloco e amassou-a
devagar. Soltou-a, sem olhar. Sentiu
acanetaestranguladaentreseusdedos.
Destacou a folha branca, quase com
carinho, e buscou com os olhos um
lugar que não estivesse sujo de sangue.
Depositou-a, devagar, junto à parede,
e tentou escrever, mas a caneta falhou.
Olhou a poça de sangue, já coagulado,
ao alcance da mão. Com a ponta do
dedo indicador, afastou o pedaço de
carne macilento, e ganhou a liquidez
vermelha. Deixou que as letras, uma
a uma, bebessem o sangue, antes de
caírem sobre o papel, num desenho
perfeito de dor e raiva. Depois dobrou
a folha, lenta e dolorosamente, uma,
duas, três vezes.
...
A campainha tocou. Com um pedaço
de sanduíche avolumando a bochecha
esquerda e uma latinha de refrigerante
na mão, caminhou em direção à porta,
mas de olhos voltados para a televisão.
Seu time estava no ataque.
Cumprimentou o carteiro com um
gesto de cabeça e apressou-se em
receber a correspondência. Os olhos
castanhos buscaram o remetente. Um
sorriso irônico ensaiou dançar na boca
bonita. Abriu o envelope e alcançou o
papel. Desdobrou-o, uma, duas, três
vezes... e leu: “Assassino”.
*Nara Lêda Franco,diretora de escola,45
anos, Araçatuba-SP
33
Julgamento do
gravitoriano
Ronaldo Ruiz Galdino*
Toc, toc, toc! – soou o martelo do juiz no tribunal.
- Ordem, ordem! – gritou o magistrado diante do barulho
que havia se instaurado no julgamento de um nativo do
planeta JVE3091.
De um lado, as pessoas que defendiam a execução do acusado
por crime de furto, como mandava a legislação para esse tipo
de infração praticada por extraterrestres contra humanos.
- Essas criaturas não foram visitadas por Jesus Cristo! – berrava
um velho terráqueo, que desejava a morte do nativo.
Do outro lado estavam os que queriam a absolvição do
escravo, a maioria deles jovens, todos nascidos em JVE3091,
mas descendentes de terráqueos.
- Somos todos irmãos! – respondeu ao velho, um dos garotos
que parecia não ter mais de 16 anos.
- Meritíssimo, acredito que a desordem na corte se deva a
esse advogado, que nutre simpatia por esses seres e espalha
entre a população a falácia de que somos semelhantes a essas
criaturas, semeando a desordem e incentivando a bandidagem
– disse o promotor de Justiça, Carl.
A gritaria aumentou depois dessa declaração.
O advogado acusado por Carl de promover a bagunça na
Suprema Corte Universal era um jovem terráqueo chamado
Louis. Ele veio com a família para JVE3091 quando tinha
cinco anos. Seus pais foram embora da Terra em uma das
naves que levavam colonos para planetas habitáveis.
A Terra estava com os dias contados, com poucos lugares
onde ainda era possível viver. No começo das missões
4ªMençãoHonrosa
34
expedicionárias empreendidas
pelos terráqueos, em busca de vida
pelo Universo, o objetivo era trazer
os recursos desses planetas para a
Terra. Mas a medida não durou
muito tempo, pois o planeta já estava
condenado. As missões, então, se
tornaram colonizadoras, a fim
de garantir a existência da espécie
humana e ainda mostrar para todas
as galáxias que os homens eram os
senhores de tudo. Sofrendo com
altas temperaturas, falta de água e
alimentos, quem tinha algum dinheiro
tratava logo de ir embora.
Pelo fato de ter crescido naquele
planeta, que parecia ser o paraíso
em termos de beleza natural, Louis
amava JVE3091 como seu verdadeiro
lar. E adorava brincar com as crianças
nativas, com suas peles alvas, quase
transparentes.
Um dia, Louis tomou uma surra de
sua mãe, porque passou o dia na
senzala, onde vivia o filho de um de
seus escravos.
- Eu já falei para você não brincar
com essas criaturas. Você é gente! –
censurou a mãe de Louis.
- Mas eles não são também? –
perguntou o pequeno Louis.
- Olhe para sua mão. Você consegue
ver o outro lado? Não! Porque ela é
pura carne, fibra e ossos. Agora pegue
a mão de uma dessas criaturas – disse
a mulher, puxando o braço de um de
seus escravos nativos. Consegue ver
os sóis brilhando atrás dela? Hein?
Responda! – gritou a mãe.
- S-sim – respondeu o garoto.
- Então ele não é igual a você, que é
gente, e ponto final! – falou a mulher.
Louis foi direto para o quarto, sem
jantar, naquela noite. Chorou muito.
O filho de um de seus escravos, o Joe,
o havia levado na tarde daquele dia
para conhecer o lugar onde viviam.
Lá, Louis conversou com o pai de
Joe, que contou muitas histórias
interessantes. A que o deixou
profundamente fascinado era sobre
a origem do Universo. Uma grande
explosão de energia que havia criado
tudo o que existia: estrelas, galáxias,
planetas, a Terra e JVE3091. Os
cometas e meteoros espalharam a
vida por toda a parte, como insetos
voadores que levam as sementes
de plantas para onde vão. Por isso,
todoséramosdescendentesdomesmo
embrião.
Outro nativo, esse mais velho, avô
de Joe, disse-lhe que as descobertas
da ciência dos humanos eram
semelhantes às dos gravitorianos –
nome que eles próprios se davam:
os filhos de Gráviton. Este era o
verdadeiro nome de JVE3091, que
numa tradução livre seria algo como
mãe ou deusa. Aquilo que dá a vida.
Porém, a ciência, a filosofia, tecnologia
e política gravitorianas eram muito
mais avançadas que às da Terra,
segundo o velho.
- Quando seus antepassados chegaram
aqui, Louis, já havíamos abandonado
as armas faz tempo. Quando
compreendemos o funcionamento
35
do Universo, que ele um dia deixaria
deexistir,assimcomooutrosuniversos
já haviam desaparecido antes, e que
não havia nada que poderíamos fazer,
decidimos que o melhor era aguardar
a chegada desse grande momento da
melhor maneira possível. Plantando,
colhendo, se divertindo, amando,
estudando e pensando. Quando as
navesterráqueaschegaram,devastando
nossas moradas, não sabíamos o que
fazer. Havíamos esquecido como
brigar e nos rendemos – narrou o
avô de Joe.
Tudo o que havia acontecido naquele
dia, as histórias que ouviu e a surra,
marcou para sempre a vida de Louis.
Aoentrarnauniversidadeparaestudar
Direito, Louis já sabia o que iria fazer:
defender os gravitorianos no tribunal.
E ele não era o único. Vários colegas
seus defendiam o direito à vida aos
nativos de JVE3091. Só que nenhum
deles com a brilhante oratória e
argumentação de Louis. A modéstia e
a timidez eram seus únicos “defeitos”.
O julgamento de Schuman – o nativo
acusado de furto e “cliente” de Louis –
era apenas para cumprir formalidades.
Nunca a Suprema Corte Universal,
composta somente por terráqueos,
absolveu um extraterrestre. Schuman
seria condenado. O máximo que os
advogados poderiam fazer era tentar
reduzir a pena de seus “clientes”
gravitorianos.
- Quando eu quiser sua opinião,
senhor Carl, eu a pedirei – disse o
juiz, repreendendo o promotor de
Justiça, que havia aumentado ainda
maisaconfusão,aotentaracusarLouis
de tumulto.
- Meritíssimo, gostaria de chamar
como testemunha a vítima do furto,
a senhora Elisabete Santos.
Elisabete era uma mulher terráquea
rica, que havia chegado a Gráviton
em uma das primeiras naves
colonizadoras. Ela subiu os degraus
para sentar no banco das testemunhas
e jurou sobre a bíblia dizer a verdade
e nada mais que a verdade, sob as
penas da lei.
- Gostaria de perguntar para a senhora,
dona Elisabete, o que o nome Vitória
lhe significa – perguntou Louis.
- Eu não compreendo – respondeu
Elisabete.
- Estou falando daquela garota
gravitoriana – disse o advogado de
defesa apontando para uma menina
nativa, de aproximadamente 15 anos.
O que ela significa para a senhora? –
questionou novamente Louis.
- E-ela é filha do meu escravo, esse aí
que levou as minhas joias – declarou
Elisabete.
- Gostaria de chamar a menina
para responder algumas perguntas,
meritíssimo.
- Pedido deferido, senhor Louis –
decidiu o juiz.
A garota gravitoriana fez o juramento e
também se sentou no lugar destinado
às testemunhas.
- Vitória, quem é Elisabete Santos para
você? – perguntou Louis.
36
- Minha mãe – respondeu a garota.
A gritaria recomeçou.
- Meritíssimo, isso é um absurdo! Eu
peço que interrompa a palhaçada que
esse advogado está promovendo e
retire a declaração dessa criatura da
ata deste julgamento – berrou Carl.
- Não precisa disso, promotor. Eu
já ouvi o que precisava. Quero
ouvir Elisabete novamente – falou o
advogado de defesa.
- Isso não é possível, meritíssimo –
interveio o promotor.
- Já disse, Carl, quando eu quiser a sua
opinião pedirei – respondeu o juiz.
A velha rica mais uma vez se sentou
no banco das testemunhas, pálida e
suando frio.
- Quero que a senhora olhe nos olhos
daquela garota e me diga que ela está
mentindo – pediu Louis.
- E-eu... – balbuciou Elisabete em
meio à nova gritaria que estava
reinando no tribunal.
- Quero que você confesse a verdade.
Que dormiu com esse gravitoriano e
que seu ventre gerou um ser híbrido
– disse entre dentes Louis, olhando
firmemente para Elisabete.
- E-eu... - gaguejou a mulher de novo.
-Jáchega,senhoradvogado–decretou
o juiz.
- Está bem! Eu confesso! – gritou
Elisabete. Imediatamente fez-se
silêncio no tribunal.
- Schuman foi meu amante por vários
anos – continuou a mulher. Quando
descobri que estava grávida dele –
continuou–sendosolteira,meescondi
de todos para evitar a vergonha. Pensei
em matar aquele bebê que crescia
dentro de mim e pensei em matá-lo
depois que ele nasceu. Porém, meu
coração de mãe falou mais alto e
tratei de entregar aquela criança, alva
e quase transparente, para Schuman.
Para que ele cuidasse dela como se
fosse sua filha com alguma outra
mulher gravitoriana. Mas Schuman
acabou contando o segredo para
Vitória quando ela ainda era criança.
Até então somente eu, ele, o médico
e uma escrava, que adotou a menina
como mãe, sabiam da história.
- Então, por que você inventou toda
essa coisa de furto? – questionou
Louis.
- Por inveja. Eu amo Schuman! Não
suportava vê-lo feliz mesmo sendo
escravo, ao lado de sua mulher, filhos
e da minha Vitória. Queria que ele
morresse! Deixasse de existir, para
acabar com o meu sofrimento. Por
isso, escondi as minhas joias em seu
barraco e armei um escândalo de
que elas haviam sido furtadas. Os
policiais as encontraram na senzala
de Schuman e fizeram o flagrante.
- Diante dessa declaração, meritíssimo,
vejo que não há razão para condenar
o meu cliente por furto. Mesmo que
os nativos de JVE3091 não tenham
o mesmo tratamento jurídico que
os terráqueos, acredito que seja
impossível condenar alguém por
um crime que nunca cometeu.
Caso contrário, pretendo deixar a
37
advocacia para sempre. E vou além:
se foi possível que de uma relação
sexual entre humanos da Terra e
gravitorianos resultar em um filho,
penso que não somos tão diferentes
assim um dos outros. E pela pele da
pequena Vitória, vejo que os genes de
Schuman foram mais determinantes
do que os da mãe terráquea na hora
de definir as características da menina.
Mas isso é algo que a ciência dirá. Não
quero extrapolar os limites do direito,
digníssimo juiz.
O promotor de Justiça não sabia o
que dizer. Estava estupefato e disse
que não havia mais nada a acrescentar.
O juiz, então, se retirou por alguns
minutos para redigir sua sentença e
voltou.
- Diante da declaração da parte
acusatória de que o réu é inocente
e que a acusação foi motivada por
questões passionais, não há que se
falar em condenação do escravo
Schuman. Por isso, o absolvo e
condeno Elisabete Santos a pagar as
despesas de um processo forjado com
base em mentiras e sentimento de
vingança – decidiu o magistrado.
Os policiais libertaram Schuman que
correu para os braços de Vitória e de
sua esposa. Os jovens que queriam ver
a absolvição do nativo comemoravam.
Os velhos que desejavam o escravo
morto foram embora resmungando
queojulgamentohaviasidocomprado.
Elisabete passou mal e teve que ser
socorrida ao hospital.
Calmamente, Louis fechou sua pasta
e saiu do tribunal. No caminho, foi
abraçado por Schuman, que não
parava de agradecê-lo.
- Não sei como vou fazer, mas vou
juntar todo o dinheiro que puder para
pagá-lo, doutor – disse Schuman entre
lágrimas.
- Sou advogado do Estado, senhor. O
meu salário já está pago – disse Louis.
Felicidadesatodosvocês–acrescentou
oadvogado,cumprimentandocadaum
dos gravitorianos que acompanhavam
Schuman.
Na sala da casa de Louis, a TV estava
ligada para as paredes.
- O julgamento desta tarde será
um divisor de águas. A decisão
que absolveu um escravo nativo de
JVE3091 pela primeira vez na história
da colonização do planeta pode abrir
uma brecha jurídica para que todos
os chamados gravitorianos sejam,
no futuro, julgados com os mesmos
direitos que os terráqueos – narrou a
repórter da frente da Suprema Corte
Universal.
Louis entra na cozinha.
- Querida, cheguei – anuncia o
advogado.
- Oi, meu amor! Que dia difícil o de
hoje, heim? – comenta a mulher.
Faz parte do meu trabalho, querida.
O que tem para jantar? – perguntou
Louis, após beijar a face alva, quase
transparente, de sua mulher.
*Ronaldo Ruiz Galdino,jornalista,29 anos
– Araçatuba-SP Profissão: repórter.
38
Contos
Nacionais
39
Meu pai olhou as distâncias e comemorou uma informação
de beleza. Estava sentado à varanda da casa e media os
movimentos de uma tarde de fim de mês de setembro.
Ali era vizinhança de São Roque, uma quase grota enfiada
nos meandros da Serra da Canastra, lugar onde o rio São
Francisco lança suas águas à luz do mundo e logo, mais
abaixo, dardejam as primeiras cachoeiras. Lugar bonito,
com as ventanias iniciando a mudança dos elementos e o
aviso que não ia demorar a cair a primeira chuva depois do
tempo das secas medonhas de mês de julho e agosto. Um
espinho começado era aquele modo de chegar o vento e
erguer no ar tudo quanto era cavaco de pau, casca de cobra
e folha seca. O ano de 1964 e meu pai fazia vésperas com o
universo inteiro. Esperava pelas chuvas que iam bater com a
regularidade dos dias e fariam umidade demais nos ninhos
dos anus e das tesourinhas. Outubro chegava com essa
imensa carga de pequenos nós e uma série de reverências.
A chuva é alegre por natureza. As águas chegam com as
cargas e dedos de um Deus inequívoco. Ele me olhava de
frente e falava.
- Geraldo, isso aqui onde estamos a pisar pode mesmo ser
um dos lugares mais bonitos do mundo. Presta atenção
nesse silêncio que se costura com a cantiga do canarinho.
Assunta só!
Pois que, conforme era mesmo esperado, aquele corgo
miúdo do Filisbino, um que fazia a barra com o São
A tonsura, a vida
conforme se rege
José Humberto da Silva Henriques*
1ºLugar
40
Francisco à distância já andada de
uma légua depois de fazer a travessia
daqueles cocurutos de serras e fazer
seus poços, houve que o pequeno
eito de água receber enxurradas e
ciscos de longe à medida que a chuva
batia sobre a terra. Era mesmo o fim
de setembro. Com a chegada das
águas tudo mudava. Aquele cheiro de
chamuscado sumia e ficava somente
a batida fresca dos ares. Meu pai
mudava o semblante e me avisava
que era hora de jogar o anzol nas
águas do Filisbino porque a primeira
enchente já tinha abaixado e o peixe
estava doido para aproveitar os restos
que desciam das serranias. Ele ria
quando fazia os cálculos. O que mais
gostava de fazer, jogar na água turva
o anzol iscado.
-Geraldo,hojeopeixeestámormaçado.
Vamos apanhar os bagres hoje!
Eu era menino de oito anos de idade
nessa ocasião e ia em sua companhia.
Sempre ia. Nome do meu pai era
Geraldo. O pai dele fora Geraldo
e eu era Geraldo Neto. Acho que
o avô do pai dele também um
dia fora Geraldo. Ali no Filisbino
era praticamente certeiro o bagre
grande, a pirapitinga e uns piaus
de última hora, esses peixes que
galgavam as corredeiras e as pedras
do São Francisco, subiam o pequeno
riacho e faziam sua postura. Meu
pai, apenas entardecia, que achava o
tempo bom, apesar de muitas nuvens
se acumularem para as bandas de
noroeste, apanhava a vara de bambu,
mandava-me colher umas minhocas
brabas na horta de couve; em prazo
curto chegávamos naquele pesqueiro
que ele gostava, num lugar meio
cavado pelas águas de aluvião, uma
moita de bambu cuidando de dar
firmeza ao lugar para que o resto
do barranco não se precipitasse nas
águas. Ali tinha demais o lambari do
rabo vermelho, uns que chegam a
medir uma chave de mão, espertos
e ladrões de minhoca: aprenderam
com a evolução do mundo e seus
ciclos.
Minha mãe tinha feito um bolo de
mandiocacomcertoexagerodecanela.
Ele me dava um pedaço daquilo.
Sentados em beira do Filisbino, ele
dizia.
- Geraldo, essa água pode ser bebida
à luz de qualquer lua!
Aquela imagem do meu pai me ficava
como uma fotografia inalienável. Meu
respeito por ele ia além de qualquer
estribeira. O tempo passou e houve
que minha mãe ser achacada pela
mazela de dores nos ossos, arranjou
lá um caranguejo grande na madre
e nem teve tempo de pedir muita
ajuda para doutor. Desencarnou
no princípio da década de setenta
e meu pai sentiu demais o baque da
questão. Eu ia aos dezoito anos de
idade e chorei com amargura aquela
situação instalada de forma nova no
41
seio de nossas ilusões. O mundo
mudava demais de ângulo. O fato
foi que meu pai sentiu. Pareceu-me
mais ancião. Uma idéia mesquinha
me surgiu. Quem é que vai cuidar
de nossas pequenas coisas, as mais
miúdas que há? Porém, ele falava
com aquele seu jeito de quem está
conformado demais com a sorte. Sua
sabedoria sem cartilhas.
- Deus dá e Deus tira, ó Geraldo. Isso
é lei e isso não pode ser mudada por
nenhum comedor de feijão!
Foi um princípio de década terrível.
Com um ano após essa tragédia
absurda, meu pai encurtou o fôlego
e deu de inchar os pés e canelas, a tal
ponto ficavam-lhe pesados os passos,
tinha dificuldade simples de calçar
as botinas. E não era mais o mesmo
que subia um morrote atrás de uma
bezerra velhaca e que não queria
entrar no curral. Tive que dar uma
demão mais afincada e minhas cismas
se desfizeram um tanto quando
minhas irmãs, as duas, assumiram
o serviço miúdo da casa. Aquilo ia
durar até que arranjassem casório,
o que não seria difícil, já que nem
a Maria Elvira e nem a Terezinha
eram feias, o bastante para não serem
aquele sapato velho que vai encontrar
um pé certo por aí.
Chegou o ano de 1972. As chuvas
deram de atrasar um tanto e
chegaram somente quando as mangas
de outubro já estavam estendidas.
A beleza de todo aquele lugar se
conservava. Meu pai punha os
olhos, olhava em torno, entendia
uma chaminé expelindo fumaça
atrás das serras, acolá. Um telhado
de casa miúda na distância. Era ali
que morava Pedro Machado. O que
gostava das Festas de Reis. Aquele foi
um ano cheio de sustos para nós. A
dizer a verdade, o progresso atingia
as alturas de São Roque e de plagas
mais a jusante dali. O mundo sofria
de pequenas mudanças. As chuvas
atrasadas. Por fim, veio a primeira
mudança de tempo. O céu se fechou
e o vento tocou o contingente de
nuvens, à revelia de movimentos
e formatos. Ficou baixo o céu.
Passarinho voou depressa e um sabiá
cantou no canto do telhado, mania
deles, dos sabiás, fazer o ninho ali
com seus cinco ovos azuis pintalgados
de marrom.
Caiu água. O Filisbino apanhou
corpo, extravasou, jogou nas várzeas e
meu pai, ainda querendo sair do luto
pela perda da minha mãe, olhou-me
e falou com aqueles seus modos de
homem que peca pouco.
- Geraldo, vamos pegar os peixes.
Está na hora. Todos esfomeados.
Vamos ao Filisbino. Hora da
pirapitinga!
Marchamos com a vontade
dos acomodados a um mundo
excepcional. Meu pai sentou-se no
barranco e pescou quatro peixes
42
miúdos. Na quinta tentativa, que
a boca da noite já chegava meio
esgualepada, ele sentiu um peso
na linha que referendou como
desagradável. Acabara de pegar um
protetor feminino ainda com sinais
de ranço e ferrugem. Uma ferrugem
fugidia, algo que mesmo poderia
combinar com o peso desagradável
que ele anunciara de antemão. Ele
me olhou de banda. Ainda havia
luz do dia o bastante para fazer o
inventário daquele arremedo de
dificuldades. Ele coçou as entradas,
aquela parte da testa que começa a
dar noção de nascimento de cabelo.
- Geraldo, aqui o mundo começa a
se avariar!
Falou comigo somente essa frase
curta. E chamou para voltar. Ao
contrário de como sempre ocorria,
gostava de ficar até mais tarde,
termos em que a saparia anunciava
a orquestração. Naquele ano ele não
quis esperar. Voltamos para casa com
uma colheita minguada. Como é
que aquele protetor feminino fora
parar no poço, entre as varas de
bambu? Devia ter descido das hordas
mais altas do riacho, devia estar
escorrendo desde os lugares onde o
progresso já havia alcançado grandeza
mais proporcionada. Aquela face
de desgosto do meu pai me atingiu
frontalmente. Tive pena dele, um
homem habituado ao ar puro que
venta das serras e das grotas de pedra
untada em água.
- Alguma coisa me diz, ó Geraldo,
que nunca mais seremos os mesmos
homens de outros tempos!
Naqueles dias, minha irmã mais
nova deu de prever as vontades de
casório. Era das duas a mais bonita.
Maria Elvira adquiria penas maiores
e asas firmes. Com a busca feita
pelo Orlandino Machado, daquele
povo mesmo de Machado que tinha
uma casa lá da banda contrária da
vertente, ela capitulou. Aceitou as
propostas dele. Aquilo, a dizer a
verdade, vinha já anunciado desde
a última festa de Santos Reis. E, ela
partiu com o marido naquele ano
que se seguiu e ficamos minguados
demais em número dentro de casa.
Naqueles dias, tomada de ímpeto
muito familiar, Terezinha anunciou
que não se casaria, pelo menos
enquanto o pai e o irmão fossem
vivos. Ia cuidar dos dois Geraldos,
da forma antiga e equivocada que
vem desde os tempos de antigamente.
Sentia-se responsável.
Assim, tudo entrava na mesma
rotina de sempre. As mazelas do
meu pai deram de sofrer melhorias.
Continuava cansado ao subir os
morros, porém, já mais acostumado
com aquilo, aprendeu a se retratar e
a se limitar. Deixava todo trabalho
mais fundo e duro para meus braços.
Chegou o ano de 1982 e mais alguma
coisa mudou. Achei que era hora de
43
fazer a minha família própria. Como
sempre tive consideração por aquele
povo de Machado, foi da casa deles
que eu tirei a noiva, a Rosalinda.
Foram seis meses de noivado e logo
ela veio morar em casa. A família
crescia de novo. Em um ano nasceu
o Geraldo Filho, o nome mesmo que
me cabia para nomear o primogênito.
Quando chegou outubro, a chuva
retesou seu ramo nos rumos e aparas
do céu. Recusava-se a cair. Não vinha.
O calor grande abrasava as almas
e deixava o céu naquele estado de
chamuscado perene. Meu pai olhava
o céu, olhava a terra debulhada, falava
com jeito choroso.
- Isso aqui está virando um deserto,
ó Geraldo!
De qualquer forma, estava feliz com
o neto e com outro neto que lhe dera
Maria Elvira, outro Geraldo Sobrinho
que se cultivava de lá. No fim do mês
de outubro, entretanto, o céu mudou
de cor, nasceram nuvens alaranjadas
para as bandas do poente. E não
chovia. Mesmo assim a coisa estava
esgrouvinhada e não chovia de jeito
nenhum. Somente em princípios de
novembro a chuva caiu, uma chuva
parcimoniosa chegou sob a forma
de tempestade. Mais fuligem do que
chuva. Parou mais cedo do que o
esperado. Assim mesmo, quando
percebeu que o Filisbino poderia
ter mostrado sinais de corpo mais
espesso, meu pai me avisou que era
hora de apanhar os peixes.
Chegamos na beirada do fluxo e o
corgo estava baixo. Nos lugares onde
a água fazia remanso, numa guaxuma
com raiz de pau e folhagem de são-
josé, as flores brancas e perfumadas
da planta, havia muitas latas vazias,
havia mais protetores femininos,
camisinhas de Vênus, havia frascos
de pesticidas, embalagens diversas
de refrigerantes e cervejas, maços de
cigarro amassados. Uma miscelânea
de todas as cores possíveis.
- Minha Nossa Senhora da Medalha
Milagrosa!
Meu pai falou. Havia rugas fundas em
sua face. O progresso vinha a cavalo.
Vinha a todo vapor. Esquálido, sem
graça, ele iscou e atirou o anzol
na água. Eu fiquei mais abaixo, na
mesma tentativa de prioridades que
eram as suas. Não havia peixe ali.
Não havia nem girino.
- Água muito baixa, filho. Os peixes
não subiram o córrego. Devem ter
descido em rumo de algum lugar!
Vi que ele tentava não chorar. Meu
pai tinha a face de um boi ferido
de morte. Aquele que agoniza na
arena depois de ser picado fundo
pela espada. Ergueu-se, bateu o
cisco da bunda e avisou que era
melhor voltarmos. Não discuti com
ele porque eu sabia que isso não ia
levar a lugar algum; só ia piorar o
caso. Subimos o trilho de volta para
44
casa. Deixamos lá a lata de extrato
de tomate cheia de minhocas e
nos embornais não levamos nada.
Comemos um pedaço de bolo que a
Terezinha tinha preparado para nós.
Conversamos amenidades enquanto
subíamos de volta. Eu tinha que
caminhar devagar porque o fôlego
dele exigia esse cuidado. Nenhum
peixe. Nada.
- O que vai ser de nós se Deus não
tiver dó, ó Geraldo?
Ele dizia assim. A situação se
tornava a cada dia mais magmática.
Naquele ano choveu pouco. E, com a
presença da Rosalinda, já meio beata
de todo, Terezinha resolveu se casar.
Ajuntou os panos com um viúvo, da
casa mesma dos Machados. Era o
Espiridião. Homem bom demais.
Gostava de contar casos enquanto
picava fumo para o cigarro. Ele tinha
a mania de seguir o curso das papa-
terras ao longo do rio São Francisco.
Contou que sumiam a cada dia. Ele ia
a cavalo, seguia pelas margens, fazia
os cálculos. Estavam sumindo. Era
a realidade triste que o Espiridião
contava.
Esperidião era um homem astuto
demais para os negócios. Como
fosse meio temporão para ele ter os
filhos com a Terezinha – e como já
os tivesse de um primeiro casório
-, resolveram adotar um menino
que atendia pelo nome de Geraldo
Primo. A família ia aumentando. De
um jeito ou de outro ia aumentando.
Meu pai gostava daquilo. Com esse
modo de ser do mundo, chegou o
ano de 1992. Os dias cada vez mais
quentes. Tínhamos já televisão em
casa e eram as explicações muito
variadas sobre estas variações
climáticas. Meu pai ouvia, balançava
a cabeça e ia calcular vaga-lumes e
tesourinhas lá na varanda. Ficava
imerso naquele jeito disperso por
longas horas. Chegou setembro e
nada de chuva. Chegou novembro e a
seca estava medonha. Em meados de
dezembro choveu pela primeira vez
naquele ano. Uma chuva medrosa,
estrangulada. Uma chuva pulverizada,
econômica. Mesmo assim, esquecido
de tanto contratempo, meu pai me
chamou para pescar. Sua voz era
muito pautada por escorregões.
- Geraldo e Geraldo Neto e Primo,
o Filisbino deve ter apanhado poço.
Hora de descer e apanhar os peixes.
Depois se mede o susto sobre o resto
da vida!
Descemos e os sinais lá embaixo
estavam terríveis. Progresso
demasiado causa infortúnios? Foi
o que perguntou o menino, aquele
mulatinho adotivo, o Geraldo Primo
que gostava de passar dias lá em
casa. O Filisbino carregava detritos
mais espessos. Fezes. Urina. Couro
de bicho morto. Construíram um
curtume a montante de São Roque.
Fedia demais. Cheiro de esgoto. A
45
água era azulada. Meu pai fez o sinal
da cruz. Geraldo Neto olhava tudo
com pavor.
- Será que em outros países jogam
merda nas águas dos mananciais?
Ele falou assim. Meu pai jogar o anzol
na corrente. Porém, a água pouca
trazia aquele sinal de fezes ainda
jovens e ele desistiu. Uma lágrima
gorda nasceu do canto de seus olhos
e escorreu pela sua face. Eu me senti
penalizado. Falei com aquele jeito de
convalescente.
- Pai...!
Abracei o velho e ele estava aos
soluços. Aquele menino, o Geraldo
Primo não entendia nada e ficava
olhando com cara de curiango
quando eu penteava com os meus
dedos bambos os cabelos de Geraldo
Pai enquanto o apertava contra o
peito. E Geraldo Neto nos olhava
a todos com pena. Do bolo de fubá
cremoso que tínhamos levado – a
Rosalinda era especialista naquela
receita – não chegamos a comer nem
um naco porque os estômagos se
recusavam a aceitar o cibo.
Meu pai não chegou a conhecer o
ano das travessias. Não chegou a 2002
com seu século novo. Seu peito ficou
mais fraco. Faleceu com as mãos nas
minhas e o rosto deitado no meu
colo. Falou coisas apropriadas e
tristes demais.
- Geraldo, tu deves recorrer aos
santos quando voltares ao Filisbino. O
mundo morre à míngua, ó Geraldo!
Um ano depois de sua morte, a
casa vazia como nunca, era 2002
que chegava sem chuva, somente
umas nuvens metódicas e avarentas
surgiram nos céus depois que veio
janeiro do ano seguinte. Desci ao
Filisbino e vi o córrego seco. Água
nenhuma. Geraldo Primo já era
rapazola e me abraçou enquanto eu
chorava feito um perdido. Nunca
mais eu veria o peixe e muito menos
o córrego. Geraldo Primo olhou-me
de forma atravessada. Geraldo Neto
me abraçou e me penteou os cabelos
com dedos bambos.
- O que será de nós em 2012?
Eu não sabia. Meu pai não estava
ali para me ajudar nas lamentações.
Fiquei calado e voltei para casa como
quem nunca mais vai segurar uma
gota que despencou das alturas dos
anjos mais extemporâneos.
* José Humberto da Silva Henriques,
médico cardiologista, 56 anos, 40 livros
publicados, Uberaba- MG
46
Um filme que
não vi
Valdecir Roberto de Oliveira*
A dor vinha mais forte ao anoitecer, gritos de Bergman,
soluços e choro dentro de uma combustão de perda,
a amargura tirava toda vontade de viver, uma vida
dolorida, sem a chama viva da sua mais linda criatura.
O olhar azul fortalecido pela camiseta verde de James
Dean, era somente uma cor, ali não havia mais vida,
não se plantava mais alguma semente para germinar,
um pequeno sorriso, um gesto de felicidade. A dor
quando ela chega esmaga todo relevo, toda vegetação,
toda circulação periférica dos pequenos vasos sanguíneos,
anula a produção férrico-fólico. Aquele corpo se
materializou como um espião que veio do frio. O
corpo no sofá, uma xícara de café descafeinado é o
que sobrou em seu presente cotidiano, sua tez pálida,
o olhar para o vazio. Ele agora é um resto de farrapo
humano, em posição feto sabe-se lá se tudo aquilo
era uma viagem para voltar ao esconderijo materno,
eu ali como um intruso amargurado pelo acontecido.
Ilhas, ilharga, a morte incomoda como palavras soltas
em um contexto solitário sem sentido, a morte é o
que não aceitamos pelo frêmito que causa em nossas
vidas. Entre aquelas paredes brancas aquele ser que
está de luto por toda vida, uma temporada quem sabe,
dias, meses, enquanto houver o sol a brilhar, ou água
cristalina para banhar seu rosto nas manhas torpes
a ausência martelando em sua cabeça, e os ganidos,
ganidos de morte... O cheiro de colônia no vestido
florido sobre a cama, no quarto da mais linda criatura
2ºLugar
47
que ele tanto amava.
O colar de perolas em suas mãos,
as lágrimas amargas de Petra von
kant, combinavam com aquele
cenário desolador, tudo o que
o amor é, se acaba de repente
em um leito de hospital, um
cruzamento de uma avenida, uma
escalada na montanha, o sabor
dos perdedores fica em nossa
boca como gosto de ferrugem,
mistura néctar de secura e saliva
adormecida de um velório que
nunca termina. Somos esse faraó
mumificado, ajoelhado em nossa
vergonha de fraquezas, de não
aceitar, de urrar na multidão nosso
desespero, de abraçar o amigo
mais querido e chorar... chorar...
Ela é tão trágica que não nos
envergonhamos de sermos patéticos
frente à dor, é assim que ele está
agora; um devorador de perolas,
andando pelas luzes da cidade.
Ainda em seus olhos vejo
sofrimento, sua mudança para
olhar a vida já não é mais a
mesma, se tornou mais solitário, o
riso sai aos poucos de sua face o
andar é mais vagaroso, olha para
as flores nos muros das casas vai
até elas e as observa por um bom
tempo. Observa os carros na linha
de pedestre e com um olhar de
paciência sabe que a vida tem que
continuar, que assim caminha a
humanidade.
A morte de minha mãe para meu
irmão foi crucial, eu não sabia o
quanto aquele amor era ungido
pelos dois. De mãos dadas no
mercado, bolinho de chuva das
tardes frias quando eu chegava
esporadicamente, minha ocupação
era tamanha que não olhava para
aquele amor de filme francês,
um truffaut tropical, aquele irmão
incompreendido mamãe que faz
cem anos. Por vezes sábado a tarde
o estouro das pipocas assistindo o
futebol com os dois comemorando
os jogos de Ademir da Guia, jogos
que gravara para ela, e os dois se
abraçando tantas vezes pelo mesmo
gol daquele homem “divino”. Eu,
chegando sempre no final de
cada partida, de cada sessão, e
apenas amargamente os assistia e
não enxergava aquela felicidade
que parecia - me tão de graça aos
meus olhos e não conseguia entrar
naquela cena nem mesmo como
um coadjuvante, nem mesmo como
um gandula levando a bola para
o artilheiro marcar mais um gol.
Em dias mais soturnos passeava
pela casa um CD de Cascatinha e
Inhana que comprou em uma loja
de CDs antigos, “saudade palavra
triste quando se perde um grande
amor...” eu não compreendia o
que acontecia, cada um em seu
quarto, um silencio de inocência,
as caras fechadas, ela cerzindo e
alinhavando o vestido florido, nem
percebe minha presença. Ele, na
poltrona com seu livro, quieto,
meio carranca, nada sai daquelas
bocas, penso que o que estão
48
ouvindo é o passado de cada
um, a lembrança do amor não
realizado, das despedidas que se
acumularam durante parte da vida.
Minha mãe com as lembranças dos
bailes que ia com meu pai, até
o trágico acidente pelos cafundós
(como ela dizia). Ele, aquele rocha
intransponível, difícil de detectar
por onde passa seu pensamento.
Naquele fragmento de minha
passagem pela casa, era eu um
elemento sem presença, não me
fazia pertencer aquele momento
onde apenas a ligação era algo de
simbiose entre os dois, e ali se
arrastava a tarde toda com aquele
casal de cantores e minha amarga
inveja de não ser ouvido, por eu
estar radiante de alegria pela minha
promoção de chefia no posto da
secretaria em que trabalhava, me
sentia um estranho no ninho.
Minha mãe era a bonequinha de
luxo para Otávio. Seu amor era
intransferível, a figura indelével
daquela criatura mais linda do
mundo, assim que ele a chamava,
aos carinhos abraços e beijos. Aos
olhares alheiros ele era exagerado,
não tinha amor próprio, não
pensava em ter família, mulher,
filhos, cachorro, periquito... até
suspeitavam de um lado edipiano
de meu irmão em relação a esse
aparente amor desmedido, onde
em conversas notava-se que não
dava a mínima, apenas sentia-se
confortável, uma doce vida ao lado
de nossa mãe.
Durante essa travessia de três anos
meu irmão se parecia um junk
pelas ruas, enrolado em cobertores
com medo da vida, definhou,
apresentou manias, esquizofrenia
suicida, desapego à vida. Um belo
dia de chuva, gostava dos dias
com chuva, apareceu em casa.
Otavio não movia seus sapatos
para minha casa desde o trágico
acidente de meu pai, foi dar ao
meu filho as abotoaduras que meu
pai queria que fossem dadas ao
seu único neto em algum momento
extraordinário. Seus olhos me
revistaram de cima abaixo com
uma doçura que nunca alguém me
olhou com tanto encantamento, os
olhos mergulhados em maremotos,
tempestades e devaneios, como
uma embarcação a deriva. Foram
aos poucos abrandados e uma
tranquilidade reinou naquele
semblante. Os braços abetos,
aquele corpo frágil caiu sobre
meus ombros, arquejante, sombrio,
fazendo-me entender tudo sobre
minha mãe.
*Valdecir Roberto de Oliveira, 51 anos,
professor, Florianópolis-SP
49
Poesia concreta
Cristiano Escobar Carvalho Bernardes*
A tarde havia sido longa. Cumpriu com afinco sua bebedeira
e um mormaço etílico ainda estava extenso sobre ele até
aquela altura da noite. Sabia, sem olhar para relógio algum,
que já se ia a madrugada em horas adiantadas: era o silêncio
entrecortado de cachorro que vinha do lado de fora quem
lhe informava. Passara a tarde inteira mamando cachaça
numa garrafinha de duzentos e cinquenta cinco mililitros de
água mineral. No olho do sol de abril. No cu de uma cidade
decadente do Rio Grande do Sul. No beco onde noutros
dias de outrantes correram trilhos da R.F.F.S.A. – sigla que
ele intuía como sendo algo relativo à Rede Ferroviária et
cetera e tal: por onde um dia correu um arremedo de riqueza
daquele estado, agora se amontoavam as moradas de todas
as misérias, dos barracos de mais frestas que paredes, dos
cachorros rarefeitos em pulga e couro e osso, dos ratos à luz
do dia, de crianças de narizes carcomidos de ranho e terra.
Não tinha instintos de quanto tempo havia dormido.
Lembrava de estar sentado na rua de terra, numa cadeira
de abrir. Vinha-lhe a consciência o gritedo e não os motivos
deste. Lembrava que havia pedido para um piá – não sabia se
era para o seu neto ou Mateus da Elaine, vizinha do barraco
do lado – que lhe fosse encher a garrafinha plástica de
cachaça. Mandou o menino pedir fiado ao Getúlio da venda.
Os gritos começaram a ganhar um tanto mais de nitidez de
lembrança no oco latente de sua cabeça: “Não pai! Tu não
vai lá!” isso era o que lhe vinha. Tudo estava embaraçado,
tudo confuso e difuso demais. Achava que havia bebido três
daquelas garrafinhas lagarteado, sem almoçar, apesar das
3ºLugar
50
insistências da filha. Lembrou que
havia pago à vista pelas três, então
uma essa outra certeza no instantâneo
da rememória: o Getúlio lhe negou
crédito. Entendeu noutra certeza, por
que das vozes altas da filha.
Os dentes foram se cerrando. Uma
raiva lhe requentou o sangue. A
mesma raiva da tarde. Tudo se
reveio claro: o filhadaputa do Getúlio
agora dera disso, de não fiar para os
fodidos. Desde que a Antártica lhe
dera em consignado aquela placa
para dependurar na frente daquele
armazém, desde que ele conseguira
erguer um segundo piso na laje
daquela casa, que dera disso. Para
uns tinha crédito nos caderninhos,
para os outros não: só com o dinheiro
na mão.
Pois tudo tinha se esclarecido para
ele naquele rebote de bebedeira:
aquele Getúlio se fizera nos juros que
há dezessete anos enfiava goela baixo
do pobrerio do Beco dos Trilhos, e
agora se enchia de razão por um real
e pouco de cachaça. O sono não lhe
arrefecera. Pois, lhe azedara mais
ainda o fígado quando lembrou que
só não havia ido lá naquela bosta de
venda porque a filha, além dos gritos,
lhe havia escondido a faca: aquele
resto de aço e zinabre que já era um
pouco mais nada, gasto no ido dos
anos em pedra e chaira.
Tudo ressonava na casa, à exceção de
uma folha de zinco do telhado que
rebatia no bafo morno daquele vento
norte temporão. Sentiu o cheiro da
terra úmida da chuva que não havia
percebido do fundo do seu sono.
Escutava o sono da filha e do neto no
quarto – desde que a esposa falecera
há quatro anos que ele dera o quarto
do casal para a filha e o neto. Ele
palmeava de ouvido os entressilêncios
daquele casebre. Já havia decidido:
iria aprontar o que ficara incompleto
pela meia tarde. Melhor então que
filha estivesse dormindo. Precisava
saber da faca: tinha uma certeza que
a filha, de um caráter muito feito de
inocências, haveria de haver guardado
no lugar de sempre, confiando que
ele acalmasse no sono. Foi erguendo
aquele corpo impregnado de etanóis
e as náuseas lhe vinham de arrasto.
Quando meteu o pé no chão, todo o
madeirame podre do casebre ringiu
nos pregos contra o calado da noite.
Esperou o barraco se acomodar
quieto e depois mais um instante para
o sono da filha do neto se aninharem
de novo em profundidades.
Péporpé,tateandoummenosbarulho
naquelas tábuas umidifareleiras, foi
ao balcão da pia da cozinha e catou
na ponta dos dedos, por entre os
talheres, o ferro branco e nem os
garfos tortos souberam acordar. Pelos
escuros, sabia onde tudo estava mais
que nos claros, por que aprendeu
a ser silêncio de velar pelo véu do
sono da mulher e dos filhos e filha
nas madrugadas geadas em saia para
o trabalho. Vislumbrava por detrás
dos olhos o bailado do seu punho
conduzindo a faquinha ferruginosa na
pança do dono da venda – sua mão
51
negra banhada em sangue branco.
Quase sentiu um gosto doce na boca,
antecipando o melaço da vingança
feita a faca, mas a cachaça lhe azedava
os vãos largos entre os dentes.
Agarrou apenas um par de chinelos,
que o porre da tarde lhe tinha
desmaiado de roupa e tudo. Firmou a
porta da rua no ombro, amordaçando
o choro oxidado das dobradiças. A
fresta que entreabriu deixou passar
seu corpo esqualidizado a quarenta
e tantos anos de trabalho braçal
subindignamenterremunerado: por
ela verteram para dentro da casa
adormecida aquelas assombrações
íntimas desenhadas pela luz hepática
do poder público. Atravessou o
terreiro do seu pátio para chegar a
viela sem calçamento que cortava o
Beco de ponta a ponta. As incidências
das lumiclaridades pendidas dos
postes redesenhavam os lapsos
daquela paisagem e aquele teatro
de sombras reavivando no seu peito
carcomido de asma, um sentimento
antigo e madrugado que aquele
senhor portava sem saber bem dizê-
lo. Aquelas pobrezas entrecobertas
pelos véus da noite, vistas menos
que pelas metades, triplicavam-se
em mais misérias do que quando
olhadas pornograficamente à luz
viva de sol. Aquele sentimento sem
data, sem verbo e nem nome, lhe ia
no encalço dos passos pisados pelas
poças d’água, enquanto o homem
valia-se da metade de seu vocabulário
– a constituída de palavrões – para
recriminar-se de haver saído de
chinelos, mesmo sabendo que havia
chovido.
Ia certeiro para a venda, que sua
raiva era translúcida e urgente.
Ouvia televisores ligados em poucos
volumes por entre as vazantes de luz
e vento das casas. Ouviu cachorro
se coçando em desespero. Sentiu
mesmo cheiro podre da tarde: era
a fossa asséptica que se encontrava
aberta no pátio da casa da Irene
do seu Atílio e o aroma da merda
empestando e traduzindo o mundo
inteiro.
De repente as quietudes do beco lhe
deram por conta que a hora já era
adiantada e mesmo antes de avistar
a placa da Antártica que balançava
apagada no hálito quente do vento
norte soube que o estabelecimento
já se encontraria de portas cerradas.
Tinha para si que a venda ainda estaria
aberta matando a sede e chamando o
sono dos últimos bêbados. Continuou
caminhando até estancar na frente do
silêncio do armazém do desafeto e do
segundo andar se vinha o ronco do
terceiro sono do Getúlio, filhadaputa.
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  • 2. Copyright © vários autores Edição: Hélio Consolaro (Publicado sem revisão) Capa: Rodolfo Rangel Editoração gráfica: Rodolfo Rangel CTP e Impressão: Editora Eko Gráfica - (18) 3623.0006 Secretaria Municipal da Cultura Rua Anita Garibaldi, 75 - CEP 16010-280 Araçatuba - SP secretariacult@gmail.com - (18) 3636.1270 concursodecontos.blogspot.com Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Contos melhores 2015. -- Araçatuba, SP : Editora Eko Gráfica, 2015. Vários autores 1. Contos brasileiros - Coletâneas. 15-07951 CDD-869.9308 Índices para catálogo sistemático: 1. Contos : Antologia : Literatura brasileira 869.9308
  • 3. Contos Melhores Regionais 1º Lugar - Capitão do céu.......................................................................8 2º Lugar - Todos os jardins do mundo...................................................12 3º Lugar - Fora dos trilhos ...................................................................15 1ª Menção Honrosa - Um dia é da caça...............................................21 2ª Menção Honrosa - Os olhos secos de Oberón .................................27 3ª Menção Honrosa - Assassino..........................................................31 4ª Menção Honrosa - Julgamento do gravitoriano.................................33 Contos Melhores Nacionais 1º Lugar - A tonsura, a vida conforme se rege.......................................39 2º Lugar - Um filme que não vi.............................................................46 3º Lugar - Poesia concreta...................................................................49 1ª Menção Honrosa - Abela e sua flor de aquarela................................54 2ª Menção Honrosa - Macadâmia........................................................61 3ª Menção Honrosa - A Índia...............................................................68 4ª Menção Honrosa - As mãos do Barão..............................................75 5ª Menção Honrosa - Névoas na chuva................................................81 Indice
  • 4. Contos Melhores Internacionais 1º Lugar - Mulheres de água.............................................................85 2º Lugar - À rédea solta....................................................................92 3º Lugar - As estações da primavera .................................................99 1ª Menção Honrosa - Laços desfeitos.............................................103 2ª Menção Honrosa - Amorzade.....................................................106 3ª Menção Honrosa - A espera.......................................................112 4ª Menção Honrosa - Jeremias.......................................................119 5ª Menção Honrosa - A Denúncia...................................................126 Contos Membros da Comissao Julgadora A Grama Azul...................................................................................133 Ipê Roxo..........................................................................................136
  • 5. PREFÁCIO Pela sétima vez, desde 22.ª edição do Concurso de Contos Cidade de Araçatuba que os contos vencedores são publicados numa antologia e entregue aos contistas (cinco volumes por participante) e ao púbico do dia da premiação gratuitamente. Assim, os participantes do certame literário são duplamente premiados, pois têm a oportunidade de divulgar seu texto entre os contemplados, seus familiares e ao público da 7ª. Jornada de Literatura de Araçatuba 2015. Apesar do modesto prêmio em dinheiro, contistas se esmeram na tessitura de seu texto, fazendo tudo para ganhar literariedade. Caro leitor, você tem um recorte da literatura contemporânea em suas mãos. Todo texto literário é um exercício até que o autor sucumba. O prêmio para o jovem é um incentivo, para o idoso, uma consagração. Essa coletânea é o que a Comissão Julgadora encontrou de melhor dentre 789 contos. Para mostrar que também escrevem contos, três julgadores publicam seus textos aqui, neste livro: Emília Goulart, Marilurdes Campezi e Tharso Ferreira. Assim, a Secretaria Municipal de Cultura cumpre a tarefa de incentivar também a literatura dentre as modalidades artísticas, não só no município, mas no Brasil e no mundo lusófono. Além disso, projeta-se Araçatuba para além das fronteiras brasileiras. Setembro de 2015 Hélio Consolaro, secretário municipal de Cultura de Araçatuba-SP
  • 6.
  • 8. 8 Entrou na terra por uma caverna chamada nascer, e fez isso em cativeiro, no interior da Bahia, nos tempos da escravidão. Era um dia qualquer, indeterminado, insípido, comum, igual a todos os outros já vividos por aqueles que o antecederam. Chegou em silêncio, sem alardes, sem choro e anônimo, sob o manto da indiferença. Não tinha pai. Os homens feitos dormiam em lugares diferentes das mulheres, e com elas encontravam-se somente aos domingos, quando se reuniam para procriar, festejar e também lamentar. Fora em um desses domingos que aquela que viria a ser sua mãe, entorpecida de aguardente, aceitou ser amada e possuída por um desconhecido, acolhendo em seu ventre o sêmen da estranheza. Se pai não tinha, mãe era como se não tivesse. As mulheres sadias desempenhavam diversos trabalhos na casa-grande, entre quatorze e dezesseis horas por dia, de maneira que as crianças ficavam sempre sob os cuidados das mulheres mais velhas ou doentes. Como gado no cercado, os escravos eram criados para reproduzir e trabalhar, oferecendo, em sacrifício, a vida digna que um dia poderiam ter vivido. Eram abastados em ignorâncias, e essa condição acerca das coisas tornava suas vidas extremamente limitadas, pois não havia terreno fértil para sonhos que pudessem ser plantados além dos limites da fazenda onde moravam. O menino, além de não ter nome, não tinha identidade em meio ao seu povo. Tomou lugar entre seus pares, como se fosse apenas mais um, mimetizando-se em meio às entranhas 1ºlugarCapitãodocéuMário Henrique Silveira Bueno*
  • 9. 9 cinzentas do sertão nordestino. O sertão carrega em si uma força avassaladora. Apresenta-se ressecado, torcido e aparentemente frágil, mas, na verdade, demonstra todo seu poder ao expor as mazelas daqueles que se metem com ele. Nos detalhes de seus infinitos desvãos e nos segredos da sua aridez há um adversário forte e implacável.Assimeraomenino;trazia, em algum lugar do peito, semelhanças com o lugar onde morava. Suaposturaarqueadaeraconseqüência da sua insignificância. Tinha medo de encarar as pessoas e sempre dirigia o olhar para baixo. Com isso, entretanto, desenvolveu um apurado sentido de atenção e importância para as pequenezas encontradas ao rés-do- chão. O tempo passava, mas o menino permanecia franzino aos olhos de todos, sempre tímido e inerte. Seus ossos, de aparência delicada, eram secos, à semelhança da folha que cai pela falta d’água; seu caráter, porém, guardava a resistência do umbuzeiro. À noite, quando os lampiões se apagavam e a escuridão invadia a senzala, emergia de dentro do miúdo um verdadeiro gigante. Sem luz, ele não tinha outra opção a não ser olhar para dentro de si. Enquanto os outros dormiam, passava noites em claro dando asas ao pensamento, e o inevitável ato de olhar para si transformou-o em homem, observador, insatisfeito, infeliz e indignado. Para o céu olhava somente quando estava deitado ao ar livre, nos raros momentos de descanso. Nessas ocasiões algum sentimento esperançoso lhe dizia que, além-mar – esse mar arenoso e ocre sobre o qual andava –, encontraria chance de real felicidade. Imaginava um lugar de sonhos possíveis, realizáveis; árvores frutíferas. Incomodava-lhe o caminho rígido e demarcado das trilhas destinadas aos escravos, onde só se olhava para a nuca do companheiro à frente. Seu pensamento, por vezes, errava. Gostava de fazer defeitos, e sabia que issonãoeradoença.Tinhapredileções por desvios, onde encontrava a verdadeira beleza do viver. Frequentementeenxergavaasimesmo flutuando por cima das árvores, e concebia um lugar onde pudesse expressar-se através de um olhar generoso e atento para as sutilezas da permanente construção que é a vida. Um olhar que a poucos é dado o privilégio de ter. E então o banzo habitual era substituído por uma paz inominável, que, entretanto, era dissipada, aos poucos, pela realidade do dia a dia. Era jovem ainda quando criou boca e soltou um resmungo qualquer diante de uma ordem estúpida do capataz da fazenda. A reação foi instantânea e desproporcional. A violênciadocapatazdeixou-lhemarcas profundas no corpo e no espírito: uma cicatriz enorme no rosto e um
  • 10. 10 ódio desmedido na alma. Depois disso, passou a ser deliberada e sistematicamente perseguido pelos seus senhores, sofrendo constantes humilhaçõesperantetodosmoradores da fazenda. Se antes olhava apenas para baixo e para dentro de si, agora, seus pensamentos, dia e noite, eram ocupados com planos de fuga. Seus desejos repousavam sempre para além das cercas que circundavam as terras onde nasceu e cresceu. Não sabia ao certo nem como, nem quando, sabia apenas que precisava ir, que ali não era seu lugar. O dia chegou de maneira incomum, taciturno, cinza e chuvoso. O excesso de chuvas impossibilitou qualquer tipo de trabalho externo, e os homens ficaram amontoados na senzala envolvidos com pequenos afazeres, enquanto as mulheres permaneciam trabalhando na casa-grande. Havia uma bruma invisível no ar, tóxica, que pairava imperceptível entre todos, impregnando o lugar com uma densidade ansiosa e agitada, porém silenciosa. Nuvens esculpidas formaram-se no céu e, com o chegar da noite, manifestou-se um fenômeno nunca antes visto na terra. O oceano, distante a muitos quilômetros dali, precipitou- se com fúria sobre aquelas terras, derramando sal sobre os viventes, senhores, escravos, animais e plantas. Assustadas, as pessoas corriam indistintas pelo terreiro, olhando para cima boquiabertas, sem nada entender. O negro sem nome, agora homem, observavacomêxtaseoacontecimento. O ar se tornou pesado, pegajoso, esbranquiçado. Fortes rajadas de vento encheram sua boca com sal, que passou rascante por sua garganta. Teve sede e ânsias. Tossiu com violência e vomitou longe uma massa salgada. Sentiu, então, que era o momento. Mirou o corredor de árvores que dava acesso à fazenda e, sem pensar, saiu disparado. Enquanto corria, imaginava-se passando pela caverna por onde chegou, atravessando o túnel escuro que o tirou da segurança uterina e o colocou no mundo. Agora faria o caminho contrário. Percorreria novamente essa passagem, mas para ganhar autonomia e independência. Correu como animal fustigado, sem olhar para trás. Só depois de muitas horas parou para descansar, e então se deu conta de que já era noite. Na fazenda, após muito esforço e brutalidade, os capatazes e feitores controlaram a confusão e procederam à contagem dos escravos. Em pouco tempo, deram por falta do franzino. Rapidamente reuniram uma equipe de busca, composta por cachorros, cavalos e capangas, tendo à liderança o capitão do mato. Os cães, nervosos e ganindo muito, saíram correndo na frente, seguidos pelos homens em seus cavalos, em busca de rastros do fugitivo. Enquanto
  • 11. 11 isso, o escravo corria desesperado pela caatinga,nomeiodanoite,orientando- se apenas com a luz do luar. Marcas da sua passagem iam ficando pelo caminho, em espinhos, raízes, pedras e arbustos. Sangue, suor, pelos, carne e vestes: rastros indeléveis para os cães e o capitão do mato, hábeis na tarefa de perseguir. Por quase uma semana correu perdido e desorientado pelo mato, sem saber onde estava. Após esses dias, enfraquecido pelo cansaço e pela fome, deparou-se com um intricado complexo de árvores e raízes expostas: um manguezal. Nunca, em sua modesta vivência, tinha visto vegetação parecida.Nem,aomenos,nossonhos. A maré vazante do mangue expunha aos seus olhos lama, animais exóticos, lagunas, flores e um infindável emaranhado de raízes, quase intransponíveis. Atirou-se ao mangue e imediatamente foi abatido pelo desespero, ao ter quase metade do corpo atolado na lama. No segundo passo, um grande caranguejo cravou- lhe as fortes pinças no pé. Conteve o grito, reuniu forças e prosseguiu na trama de raízes, ora por cima, ora por baixo, ora dentro e ora fora d’água. Precisou de horas para vencer o mangue, e então, subitamente, apareceu-lhe a praia. A visão do mar foi estarrecedora e paralisante. Estático e com a respiração descompassada, contemplou a infinitude daquilo que ele só ouvira falar nas cantigas e lendas dos escravos mais velhos. O horizonte longo e linear, o eterno ir e vir das ondas, a vastidão da água, da areia e o sal, que dias antes havia lhe ferido a garganta, indicando a hora de partir. Movendo-se lentamente pela areia branca e pesada, ouviu ao longe os latidos dos cães. Estava exausto, sedento, faminto, machucado e nu. Continuou, cambaleante, em sentido contrário ao de onde vinham os latidos. O desconhecimento do terreno havia lhe custado tempo precioso na fuga. Poderia facilmente ter evitado o manguezal. Em virtude disso, não demorou muito para que o capitão do mato surgisse na praia, liderando jagunços, cavalos e cães. Sem ter para onde correr, o menino, ainda escravo, parou diante de um enorme bando de aves marinhas que se alimentava na flutuante divisão entre a água e a areia. O pequeno exército se aproximava rapidamente e, como não havia mais tempo, arriscou a única possibilidade que lhe veio à cabeça; e então bastou apenas um gesto, um olhar, um pleno vôo e o céu. Abriu os braços e, juntamente com os pássaros, lançou-se para a liberdade. *Mário Henrique Silveira Bueno,fotógrafo, advogado, 42 anos, Araçatuba-SP
  • 12. 12 2ºlugarTodos os jardins do mundo Jean da Silva Oliveira* O jardineiro, entre cores e tons, era nada. Nunca fora ninguém, mas guardava em seu peito pardo todos os sonhos do mundo. Em meio às flores, ele espiava a vida pela fresta do muro. Para que tantas pernas?, perguntava o seu coração. Tantas pessoas nas ruas. Muitas cheias de sonhos e outras vazias, desfeitas. Israel não vira o pai, mal conhecera a mãe e da escola se lembrava apenas do gosto saudoso da polenta e do azul festivo das saias das meninas do pátio lavado de sol. Hoje, estava vencido, velho antes dos 30. Consciente, como se estivesse para expirar. Vivia de canteiro em canteiro, enfeitando a casa dos outros. Em sue casebre, no entanto, apenas um vaso: um cacto que oferece fina flor, tão rara quanto seu sorriso. Israel queria saber falar às pétalas as coisas que brotavam em sua alma. Queria descrever os mundos que criava enquanto as cultivava. E quando era consumido por este desejo, chegava a desentortar a coluna. Sentia-se homem, gente como as outras pessoas que ele via pelas ruas. Mas mal sabia as palavras. As poucas que conheciam não encheriam uma folha de recados. Tinha consciência do parco vocábulo. Por isso, quando tinha que expor seu mundo, era bicho. Juntava palavras. Pouco dizia. Era apenas animal que sobrevive. Era sexta-feira e a tarde já findava, fazendo laranja as janelas. O jardineiro juntou suas coisas, despediu-se de suas amigas, que mudas como ele, lhe eram cúmplices. Subiu as escadas da casa antiga na esperança de receber o salário que lhe daria comida
  • 13. 13 para o final de semana. Encontrou a porta dos fundos semiaberta, deu um toque de leve e a abriu. Em uma mesa farta, a senhora dona da casa ria com amigas. Sobre a mesa, bolos, biscoitos, leite, sucos e café. Israel apenas a olhou na intenção de pedir o que lhe era devido e na esperança de não precisar falar. Recebeu apenas uma ordem. - Fecha a porta; disse a senhora, séria, fazendo um sinal ríspido. O cultivador de flores e de sonhos cumpriu a ordem imediatamente. Fechou a porta. Era bicho fazedor das coisas que as pessoas, essas sim gentes, mandavam. Foi sem dinheiro, sem responder ou exigir o que era seu. Partiu em direção à sua casa com a mochila nas costas. Cerrado em teu ser restrito, espiava e auscultava a vida dos homens e das mulheres, que indiferentes, passavam. Tinha inveja deles, que em seus sorrisos e casacos pareciam felizes e pessoas de verdade. O som da sua tristeza se misturava ao de seus sapatos, que era arrastado e estéril. O jardineiro se equilibrava entre o ódio e a aceitação. A frase “fecha a porta” não lhe saia da cabeça. Era uma sentença de sua pequenez. Sentou- se desapontado no banco do ponto de ônibus. Esperou pacientemente o embarque, sem interesse na conversa das animadas moças ao lado. Fez a viagem sem sentir. Chegou acabadiço ao seu bairro, que já estava coberto de estrelas. Uma lua indolente fazia o favor de emprestar algum brilho ao caminho. Na noite, no escuro da periferia, seguiu o jardineiro desajeitado sem saber que um homem com uma dor é muito mais elegante. Seus passos seguiam solenes quando o som de um bom forró cortou o ar. O jardineiro, então, ponderou sobre o pó no corpo, o cheiro de suor, mas o batido da zabumba lhe encanta. Israel aprendera, na árdua escrita de sua vida, a não discutir com o destino: comia o prato dos fatos de acordo como o determinado pelo acaso. Se fosse prato quente, soprava; se gelado, engolia depressa. Decidido, seguiu para o forró no bar grande da esquina. No jardim de seu peito nascia a rosa sutil e anêmica da esperança de ser gente - pelo menos enquanto a música tocasse. Assim como há pouco se deu à tristeza, abria-se agora para a alegria; posto que são espinhos da mesma flor, avessos e complementares. O bate-estaca da zabumba, o frenesi do triângulo e o roda-roda das saias das moças encantavam o jardineiro. Sentado em uma cadeira, no canto do salão, ele respirava a alegria que saía daqueles corpos cansados das surras da vida. Ali não existiam príncipes ou pessoas que mandavam fechar a porta. Voltou a desentortar a coluna. Era gente de novo. Na pista de dança, não via mais casais, mas sim rosas, centáurias, gardênias, lírios e margaridas girando, girando, ao som
  • 14. 14 da valsa dos nordestinos. A sanfona regava corações e mentes, que se desabrochavam como em sorriso tulipa. Todos os jardins do mundo têm seu jeito de ser colhido. A vida semeia muitas vezes de forma aleatória, e é o jardineiro que deve saber como proceder. Israel estava embriagado com a visão que teve, de flores dançantes, quando foi arrebatado por uma linda morena que o levou a valsar pelo escuro salão. Ele era flor também, que rodopiava entre os pares. Fora colhido por uma moça de olhos de primavera e teve uma noite de deslembrar os desaforos da vida. Não pensou mais na porta a ser fechada, apenas dançava. Passou o resto da noite e o início da madrugadacomela.SeunomeéNaty. Boa moça, que mora em uma casa de dois cômodos no mesmo bairro. Solteira, solitária, a moça costuma cultivarrosasemumpequenocanteiro para se sentir menos desabitada. A madrugada os abraçou e foi quando ela disse que precisava ir. Despediu- se com a promessa de um beijo, que passou perto. Deixou apenas um convite para que ele fosse à sua casa logo pela manhã. Israel voltou para casa ditoso. Uma lua sorridente emprestava seu brilho feliz ao caminho. Na noite, no escuro da periferia, seguiu o jardineiro desfilando em felicidade sem saber que um homem feliz é muito menos jeitoso. Era sábado e a manhã já estava quente, fazendo brilhar as janelas. O jardineiro juntou forças, despediu-se de seu cacto, lhe era cúmplice mudo daquela madrugada de devaneios, e seguiu esperançoso para a casa de Naty. Chegou, deu a volta no quintal na esperança de receber o carinho que lhe alimentaria a vida. Encontrou a porta dos fundos semiaberta, deu um toque de leve e a abriu. Em uma mesa simples, a moça de olhos de primavera estava só. Sobre a mesa, um pão e café. Israel apenas olhou, na esperança de não precisar falar. Desta vez, endireitou a coluna e deu dois passos para dentro da casa. - Fecha a porta, disse ela, feliz, fazendo um sinal alegre com as mãos. O cultivador de flores e de sonhos cumpriu a ordem imediatamente. Fechou a porta. Era bicho fazedor das coisas que as pessoas mandavam, mas agora se sentia mais gente. * Jean da Silva Oliveira, jornalista, turismólogo, 39 anos, em 2014 foi primeiro colocado nesta categoria, Araçatuba-SP
  • 15. 15 3ºlugarFora dos trilhos Odair Maurício de Albuquerque* Pedro, sempre que podia, vinha visitar os avós. Gostava da companhia dos velhos, que moravam perto, o que o animava a ir a pé, geralmente no fim da tarde, quando começava a escurecer. Logo que dobrava a esquina, avistava o velho Vicente a balançar na cadeira de vime. Aproximava-se e fazia um leve carinho nos seus cabelos brancos. – Como está? – Vou levando... Essas dores nas pernas não me dão sossego. Pedro afastava-se um pouco para melhor observar o avô. Percebia, de fato, que o corpo já dava sinais de esgotamento. A saúde precária, contudo, não tirava o gosto por um cigarro de palha, mania desde os tempos de moço. Para acompanhá- lo, o neto tirou do bolso um maço de Hollywood e sentou do lado. Sem vento que atrapalhasse sua trajetória, as fumaças se uniam e se perdiam no céu. Vicente continuou a se balançar na cadeira, como se o neto não estivesse ali. Seus dias passavam-se assim, silencioso, perscrutando o movimento ao redor. Pedro notava-o cada vez mais calado, mas percebia que sua audição continuava aguda: conseguia distinguir o apito do trem que se aproximava; apito esse com o qual Vicente conviveu por décadas e décadas, e que se tornara tão familiar quanto sua cadeira que, de tão antiga, poderia contar ao neto, se pudesse, a história do velho, desde a mocidade até a altura dos seus quase noventa anos.
  • 16. 16 Narraria suas viagens, a chegada de cada dia e a partida no dia seguinte; seu vislumbre dos descampados, as novidades que colhia num canto aqui, noutro ali e trazia para conhecimento da esposa, Marieta. – Você não vai acreditar. Invariavelmente era assim que começava seus relatos. O caso, que parecia assombroso ou espetacular, escandaloso ou vulgar, não passava de uma historieta de cidade pequena, um conhecido cuja presença há muito não via ou um parente que por alguns minutos, aproveitando a parada do trem e sabendo da presença de Vicente, vinha dar um dedo de prosa, nada mais do que isso. Mas Pedro gostava de ouvi-las. Acompanhou, desde criança, a trajetória do avô maquinista. Fez muitas viagens à casa dos primos de Araçatuba em companhia dos pais. Gostava de olhar os campos abarrotados de gado. Mesmo quando desertos, admirava sua imensidão. Pedrorelembravacomoavôosmuitos passageiros que por ali passaram, vindos de São Paulo ou de Corumbá, dependendo do destino. Como sempre, no começo Vicente parecia não ligar, mais ouvindo do que falando, mas aos poucos ia se animando, puxando da memória nome de pessoas, episódios, exercício que mantinha a mente ativa. – Lembra o que seu pai fazia pra não pagar sua passagem? – Não muito, era pequeno. – Quando o cobrador passava, ele te levava pro banheiro. – E o vendedor de salgadinhos? Dele eu me lembro. – Que é que tinha ele. – Saía gritando pelo corredor: “Olha as coxas de minha irmããã!”. – É verdade, quando as coxinhas de frango não eram as da irmã, eram da mãe. – E aquele fulano que desceu do trem para fazer sabe-se lá o quê e teve que correr com um cachorro na sua cola pra não ficar pra trás. E conversa vai, conversa vem, Vicente sem perceber já sorria, e Pedro, satisfeito por conseguir seu intento, já via a hora de ir embora. Então ajudava o avô a entrar, levando sua cadeira e segurando-o por um dos braços. Mas, por mais que o neto animasse seus dias, quando Vicente se via sozinho, só sabia reclamar, e acabava xingando a mulher, como se ela fosse a culpada. E o que era uma vida de lamentações
  • 17. 17 e queixumes, só veio a se agravar com a chegada da aposentadoria. O irrequieto Vicente não suportaria ficar em casa, sem ter o que fazer. Entrou num processo desolador de autocomiseração, como se de repente se desse conta de que estava velho e imprestável. Por mais que o consolassem com as possibilidades de uma nova vida, a imagem que lhe ficava incrustada era a de um objeto superado que caíra em desuso; e para piorar tudo, aquele trem a azucrinar- lhe a vida, que poderia, aliás, ter sido mais amena para um cidadão como ele, que honrosamente chegara ao fim da linha. No seu caso, a frase de efeito tinha um quê de irônico e verdadeiro. Se pelo menos pudesse ser poupado daquele apito infernal! Quantos anos, Deus!, por várias vezes fizera projetos desemudar,masassúplicasdaesposa, somadas às suas próprias incertezas, juntamentecomosprotestosdosfilhos e netos, que consideravam aquela casa antiga um patrimônio familiar, fizeram-no desistir. Sepultada a ideia de mudança, Vicente se prostrara na cadeira em frente à casa, resignado. A convivência com aquele trilho à porta da moradia, como a estar ali a esfregar- lhe na cara a realidade, a concreta realidade, sem meias verdades, provocava-lhe saltos no estômago, num nervosismo reprimido. – Praga de trem que não me deixa dormir – gritava, por fim. Quando estava por perto, Pedro tentava mudar de assunto, voltando- se para fatos presentes, aniversário de algum parente próximo, ou a morte de velhoconhecido.Erainútil.Ohomem que gostava de uma boa conversa e de histórias, pelo menos naquele momento, já se desfizera, como as emanações da chaminé de uma maria- fumaça. Apenas ouvia; mal respondia. Velhos conhecidos passavam e paravam, e, para sua tortura, sempre tinham um episódio da ferrovia a contar. – O senhor se lembra da viagem ao Pantanal? Que loucura andar naquela tempestade. O senhor tinha mesmo sangue frio para controlar aquele trem em uma situação tão adversa. Mal sabiam eles que se borrara todo por medo de morrer e não ver os filhos crescerem. Vicente meneava a cabeça pouco amistosa e o visitante, vendoseudescaso,ia-se,resmungando impropérios. O velho estava imune às boas maneiras; já não tinha a mínima pretensão de alegrar alguém, nem a si mesmo. Pedrosabiabemoporquêdetamanha
  • 18. 18 contrariedadevindadeumcoraçãotão bondoso. Exigente, porém bondoso. Équeascoisasforamsedelineandode forma funesta. Quando entrara para a ferrovia, mocinho de tudo, era outra realidade. Antes, passageiros; hoje, produtos das mais variadas origens. Sua mente não conseguia entender as sutilezas do tempo, as pequenas engrenagensquemoviamasmudanças queseprocessavamnosubsolodavida de homens comuns como Vicente. Na sua concepção, toda mudança que houvera tinha um nome e uma causa: esta, a venda da ferrovia ao grupo de americanos de nomes uns mais estranhos do que os outros; nomes estes que nunca conseguira gravar. Aquele, Osvaldo, jovem promissor que assumira seu lugar, na ótica de Vicente o usurpara de seu trono. A aposentadoria que vinha protelando há tanto tempo saltara de repente da mala de um forasteiro de boa aparência, gestos e maneiras polidas. Para os grandes executivos, figuras como Vicente são apenas mais um na folha de pagamento. – Vicente da Silva Costa? –Simsenhor–respondeu,meiocurvo, submisso, posição que aprendera com o pai sempre que alguém mais graduado lhe dirigia a palavra. Esses sujeitos chegam de mansinho, sem fazer barulho com seus belos sapatos sempre brilhando e, no momento da má notícia, fazem de uma forma tão educada, profissional, que o infeliz que está sendo demitido, só falta agradecer por estar no olho da rua; mas, passados aqueles segundos, acorda pra vida e vê no buraco em que se encontra. Tinha sido ludibriado. Vicente se viu, forçosamente, tendo que se aposentar, ou, em outras palavras, ter que sair por uma porta, enquanto Osvaldo entrava pela outra. O jovem operador viera no bojo das mudanças implantadas pelos novos donos. O pessoal fora reduzido ao mínimo necessário e os passageiros já não teriam mais acentos com os quais iriam se preocupar. As companhias de ônibus se alastraram, com novos veículos, mais conforto e preços módicos. Os americanos não se interessaram por esta parcela nos lucros, concentrando-se no transporte de grãos e combustível. Vicente ficou atordoado com tantas mudanças em tão pouco tempo. Homens entre seus trinta e quarenta anos, donos de um linguajar diferenciado, com ideias novas, propondo outros rumos. – Temos que melhorar nosso desempenho, implantar novas concepções, não podemos ficar
  • 19. 19 inertes. Temos e devemos prosseguir. O governo sucateou as ferrovias, acabaramcomosvagões,deixandoum legado em petição de miséria, e, não dando conta do desmantelamento que realizaram, resolvem vender. Agora somos nós quem dá as cartas. Em outros momentos, em lapsos de tempo que sua mente já não conseguia mais distinguir, chegava até ele termos obscuros: privatização, reengenharia, globalização, novas tecnologias e equipamentos. Os velhos vagões foram trocados por modernos, mas sem os acentos que tantos passageiros utilizaram e reutilizaram e que Vicente viu e reviu subirem e descerem tantas vezes que não poderia contar, mesmo vivendo mais cem anos. O velho colhia essas frases de tempos emtemposantesdereceberumafolha que mal pôde ler, como se lá estivesse escrito: você está descartado de nossos planos, sua presença é dispensável. Demorou-se a cair em si; dias e dias passaram sem que decifrasse aquelas palavras que desenhavam num papel cheio de timbres e slogans da nova empresa o nascimento de sua morte. O consolo, ou quase isso, era que a ausência de passageiros dava a fugaz impressão de que ele não era o único a perder. Sentiria saudade das inúmeras pessoas que conhecera e suas infindáveis histórias; as viagens que fizera e os lugares pelos quais passara ficariam em sua trajetória como a pele ao corpo. Vira a mudança gradativa dos campos que, de pastos e gados, foram dando lugaraoscanaviais.Maisumamudança que lhe imprimia uma nostalgia inútil, sabedor de que a visão de mundo que teria não seria nunca mais a mesma. A perenidade do tempo lhe impingia, sem que ele percebesse, aquela vontade platônica de tudo permanecer imutável e imperecível para se chegar à verdade suprema. Uma luta inglória na qual seria um perdedor em potencial. Às vezes, a muito custo, Pedro conseguia levá-lo para além da estação, onde a linha se dividia em duas, e uma linhaparalelasedestacavadaprincipal. Nesta, vagões sem uso permaneciam a um canto, a esfarelar sob a chuva e o sol. Vicente se achegava de mansinho, para não parecer um visitante inoportuno. Acariciava a madeira desfolhada, o desbotado das cores vermelhas de antigamente que agora se tornavam um rosa mais do que apagado. Pedro seguia ao seu lado, olhando seus gestos. Não ousava falar nada, até que Vicente se pronunciasse: – Quanto tempo!
  • 20. 20 Os olhos de Vicente não resistiam à certeza de que eles se pareciam: enferrujados e imprestáveis. – Não fique assim, tem coisas que não podemos mudar. Pedro tentava apaziguá-lo, mas era inútil. Tentava explicar os novos tempos, as mudanças que se processavam aqui e no mundo. – Hoje vivemos outra realidade. O governo não dá conta de manter essas ferrovias. Da mesma forma estão transferindo as estradas à iniciativa privada. Bancos e telefones a mesma coisa: estamos “falando espanhol”. – E esses estrangeiros que compraram o “meu” trem? – Esses falam inglês. São americanos. E Vicente fazia cara azeda, como se estivesse com dor de estômago. Pedro sorria, como se quisesse dar a entender ao avô que não adiantava ele fazer aquela cara, pois as coisas não voltariam a ser o que eram antes. E Vicente voltava à cadeira; e quando se dava ao trabalho de responder a um colegadostemposdeferroviaquemais uma vez relembrava o passado, em frases como: “O trem vem chegando, conheço o barulho de longe”, Vicente fazia sua cara desleixada para o ex- parceiro e respondia, entredentes, maisparasidoqueparaointerlocutor: – Não sei, esse trem fala outra língua, uma língua estrangeira que desconheço. * Odair Maurício deAlbuquerque,formado em Letras,funcionário municipal,45 anos, Penápolis-SP
  • 21. 21 1ªMençãoHonrosaUm dia é da caça... Eduardo Lima de Paula* Em meados de 1975, os dois estavam na cabine da caminhonete C-10 que ainda cheirava a “carro novo” e já viajavam há pelo menos quatro horas sem parar, sempre por estradas vicinais, de modo a evitar qualquer via principal. - Primo, eu ainda não acredito que a sua ideia deu certo! Eu podia jurar que alguma coisa pudesse dar errado, mas na hora certa, parecia até um filme! Não errei nenhuma fala e aquele pato caiu na sua história direitinho! – disse Augusto, realmente surpreso. - Augusto, eu tenho certeza que você nunca vai se esquecer deste seu primeiro grande golpe! Mas te digo que logo você irá participar de outros ainda maiores e garanto que com o tempo eles sairão cada vez mais naturais... Modéstia à parte, eu acho que eu sou o melhor do Brasil naquilo que faço e com muito orgulho vou te ensinar o caminho das pedras, afinal, você é da família e já tem a malandragem no sangue! – respondeu Fábio, dirigindo cada vez mais veloz pela estrada de chão batido. No dia anterior, os dois estavam na cidade de Barretos e participaram de um grande leilão de gado onde se reuniram com os fazendeiros mais ricos de todo o interior paulista. Com algumas roupas boas e grandes sorrisos nos rostos, afirmaram que eram fazendeiros vindos do norte de Goiás, e logo ganharam a confiança de alguns figurões, por pagarem uma ou duas rodadas de bebidas para cada quatro ou cinco senhores com quem conversaram, sempre com notas de cruzeiros novas, as quais haviam sido conseguidas com uma
  • 22. 22 moça que acreditava ser namorada de Fábio e trabalhava em uma agência bancária da capital. Não demorou muito para que um curioso fazendeiro de São José do Rio Preto se aproximasse dos dois e pedisse para conversar em particular. Fábio, de início, se mostrou difícil para aceitaraconversa,poisqueriadesfrutar dacompanhiadosdemaisfazendeiros, mas acabou por concordar em ir com aquele senhor até um local mais reservado, levando consigo Augusto, que havia sido apresentado a todos como sendo seu irmão mais novo. Depois de alguns minutos de conversa, o fazendeiro logo abriu o jogo e falou que não sabia o que estava acontecendo, mas que queria participar daquela jogada. Fábio então contou que eles eram donos de uma máquina de fazer dinheiro, onde bastavacolocarfolhasdepapelsimples cortadas no tamanho das cédulas de um lado, esperar por quatro horas para que o dinheiro fosse impresso e logo estariam com cinco mil cruzeiros prontos para serem gastos. O fazendeiro ficou desconfiado, mas afirmou que desejava ver uma máquina dessas funcionando. Fábio pediu que ele entregasse cinco mil cruzeiros adiantados para eles e que o dinheiro que saísse da máquina depois do processo seria seu, para conferir se as notas eram verdadeiras e gastar como e onde quisesse. O fazendeiro então combinou com os dois de se encontrarem no seu quarto de hotel depois do jantar daquela noite. Ele entregaria o dinheiro solicitado e juntos, aguardariam para ver o funcionamento da máquina. No horário combinado, os dois levaram a máquina, que era do tamanho de uma grande mala de viagens, até o hotel do fazendeiro. Ele entregou o dinheiro e acompanhou ansioso quando Fábio colocou o maço de folhas de papel em branco já cortadas no tamanho ideal em uma cavidade da máquina e apertou alguns botões para ela começasse o processo de fabricação de dinheiro. Amáquinafaziaumbarulhomecânico característico e assim perdurou pelo tempo que havia sido combinado. Após as quatro horas, parou e emitiu um som de campainha de que estava pronto. Do outro lado da máquina, começaram a sair notas de dinheiro (parte daquelas conseguidas com a garota de São Paulo) de diversos valores, ainda “quentes pela impressão recente” e que totalizaram o valor prometido. O fazendeiro conferiu cada uma delas nos seus mínimos detalhes e após se convencer de que eram verdadeiras, fez a proposta: Quanto eles queriam para lhe vender aquela preciosidade? Fábio se fez de rogado, falando que não poderia vender uma máquina daquelas por preço nenhum, pois ela era importada dos Estados Unidos,
  • 23. 23 que somente haviam conseguido ter acesso àquela preciosidade após muito negociar com antigo dono e como ela fazia dinheiro tão bem, não tinham motivo para repassá-la para ninguém. O fazendeiro, acostumado a sempre ganhar em todas as negociações, não queria que aquela vez fosse diferente e lançou uma proposta irrecusável: eles poderiam estabelecer o preço que quisessem, e por mais alto que fosse, ele pagaria. Fábio pensou alguns minutos e fez a seguinte proposta: Ele e o irmão iriam precisar viajar para a Europa em breve e ficariam por lá por pelo menos cinco meses. Não queriam levar a máquina consigo para não levantar suspeitas, então poderiam alugar o equipamento para o fazendeiro durante este período, em troca do valor que ela produziria em dois meses. O fazendeiro barganhou e ofereceu como forma de pagamento a sua caminhonete C-10 que não tinha nem um mês de uso e mais vinte mil cruzeiros. Fábio novamente pensou por alguns minutos, pediu para conversar em particular com Augusto e na sequência aceitou. Explicou que havia um porém: a máquina estragaria se fosse usada diversas vezes seguidas e o ideal seria esperar vinte e quatro horas até fazer um novo uso, afinal, se o equipamento quebrasse, onde ele conseguiria realizar o conserto sem levantar suspeitas? O fazendeiro aceitou a condição sem pensarduasvezes,entregouodinheiro prometido e as chaves do veículo. Na noite seguinte, quando ele tentasse fazer uma nova remessa de dinheiro e descobrissequeamáquinanãopassava de uma enganação barata, os dois já estariam bem longe e provavelmente, o fazendeiro nunca mais iria ver seu veículo novamente. Já era início de tarde quando eles passaram pela cidade de Clementina, local onde decidiram descansar por algumas horas, talvez pernoitar, antes de seguir para o Sul e transformar aquela caminhonete em dinheiro. Conseguiram um quarto em uma pensão próximo à praça central da cidade e como não poderiam perder o costume, decidiram aplicar algum pequeno golpe em alguém da população local. Augusto vestiu uma roupa mais simples e foi até a praça, onde encontrou um senhor idoso sentado em um dos bancos da praça, o qual se apresentou como João Francisco, e se dispôs a ouvir a história que aquele rapaz contava: Dizia ter chegado há pouco tempo de uma cidade distante e que possuía um bilhete de loteria premiado, porém sua religião não permitiria sacar o dinheiro, sem sofrer represálias de seus familiares e amigos, precisava então da ajuda de alguém para sacar o dinheiro e em troca da ajuda, estaria disposto a dar uma boa soma. Na
  • 24. 24 sequência apareceu Fábio, bem vestido, com um bigode falso e um chapéu que dificultava a visão de seu rosto. Ofereceu ajuda para que aquele rapaz e o senhor João Francisco conseguissem ir até a cidade mais próxima e juntos, sacariam o dinheiro do prêmio em um banco. - Olha meus senhores, eu tenho oitenta anos e não sei ler ou escrever. Não estou entendendo tudo dessas coisas que vocês estão falando não, mas jovenzinho, se você ganhou mesmo esse prêmio, é o caso de ir atrás de pegar o dinheiro sozinho, sem precisar de ajuda de mais ninguém não! E toma cuidado senão é capaz de alguém querer se aproveitar de você! Esse mundão é perigoso que você não imagina... Tem gente que pode querer fazer até mal para você se souber que carrega um negócio que vale dinheiro assim como você falou! Se tiver alguma dúvida ainda, eu acho que seria melhor falar com o ‘seu’ André que está carpindo um lote na rua de baixo e tenho certeza que ele irá ajudar! – falou João Francisco para logo se levantar do banco da praça e seguir seu caminho. Os dois estelionatários, acostumados com a maioria das pessoas com quem conversavam nas grandes cidades, as quais certamente ouviriam um pouco mais da história contada e algumas delas logo aceitariam “dar alguma coisa em garantia” para poder participar da grande jogada, foram surpreendidos com a simplicidade daquele senhor e a forma como este encerrou o assunto. Como ainda estavam com algumas horas livres naquela cidadezinha e “tempo é dinheiro”, decidiram tentar alguns outros golpes contra alguns comerciantes locais, os quais também resultaram em saídas semelhantes àquela dada por João Francisco. Ninguém parecia estar disposto a participar de alguma grande jogada e ficar rico, o que realmente era algo incomum, porém, o que mais chamou a atenção de Augusto e Fábio foi o fato de algumas pessoas terem recomendado que procurassem aquele tal de ‘seu’ André. Curiosos com este fato e tendo em vista que já trabalhavam há horas sem nenhum resultado prático, decidiram investir uma última tentativa naquela cidade: ofereceriam para André uma oportunidadeúnicadeserproprietário de uma grande fazenda no Mato Grosso, em troca de dar alguma quantia agora pela boa informação prestada. Chegaram até o terreno onde encontraram um senhor de meia idade, roupas de trabalhar bem desgastadas, com um chapéu de palha equasenofimdotrabalhoderoçagem daquela terra. - Boa tarde, seu André! – a menção do nome, foi suficiente para atrair a atenção do trabalhador – Nós somos
  • 25. 25 corretores de fazendas que estamos de passagem aqui por Clementina e alguns amigos do senhor falaram que a nossa proposta certamente irá interessá-lo, então viemos para conversar. - É mesmo? Sou todo ouvidos... – disse o desconfiado roceiro. - O senhor já imaginou ser um fazendeiro, dono de uma grande extensão de terras, bem além daquilo que consegue enxergar? A sua oportunidade acabou de chegar: Uma viúva de um grande fazendeiro nos incumbiu de vender as terras do seu marido para poder distribuir o dinheiro para os filhos e netos. Já vendemos quase todas as vinte fazendas, mas ainda existe uma delas, que certamente será do seu interesse! – disse Augusto. - Moço, eu não sei não... Sou só um trabalhador, acho que não vou ter dinheiro para pagar isso tudo ai não... - Não se preocupe, é justamente nisto que surgiu a oportunidade da sua vida! Nós conseguimos que ela faça um preço muito bom e o senhor só vai pagar daqui um ano! - É mesmo? E como eu conseguiria isso? Eu vou ter que falar com essa senhora antes! - Não se preocupe com negociações, nós faremos tudo pelo senhor! Somente pedimos três mil cruzeiros adiantados a título de confiança no nosso trabalho e para que possamos dar andamento na documentação necessária! - Nossa... Se eu tivesse esse dinheirão todo, eu estava rico! Juntando todo o meu trabalho de uns dois anos para cá, eu só consegui economizar um mil e quinhentoscruzeiros!Eeuguardoesse dinheiro bem escondidinho dentro do colchão lá de casa, onde ninguém poderá encontrar! Demonstrando já uma clara impaciência com a relutância daquele senhor, mas ciente que mil e quinhentos cruzeiros eram melhores do que nada, Augusto falou: - Acredito que este dinheiro deverá bastar para emissão dos primeiros documentos. Nós podemos acompanhar o senhor até a sua casa e buscar o dinheiro? - Moço, eu vou acabar com esse terreno aqui em mais uma meia hora, então eu vou pra minha casa, que fica três ruas para lá, uma casa vermelha, não tem como se enganar. Vocês me encontram lá na frente daqui uma hora que nós já conversamos. Crentes que teriam finalmente conseguido “não passar em branco” por Clementina, os dois foram para a pensão para arrumar as malas deixar tudo pronto, caso precisassem sair rapidamente daquele local e na sequência, foram aguardar ‘seu’ André recebê-los.
  • 26. 26 No horário combinado, ‘seu’ André saiu de dentro da casa, juntamente comumrapaz,possivelmenteseufilho e veio em direção a Augusto e Fábio. Assim que os quatro estavam bem próximos, ‘seu’ André falou: - Pedro, pode algemá-los. Os dois estão presos em flagrante pelo crime de estelionato tentado. Tanto Augusto como Fábio ficaram surpresos com aquela frase que sequer esboçaram reação quando o metal frio das algemas veio a roçar contra o pulso de cada um deles. - Deve ter havido algum engano aqui... O que está acontecendo? – ainda tentou perguntar Augusto. -Dr.André,nestesquasetrêsanosque eu já estou na polícia já vi um pouco de tudo, mas dois paspalhos como esses aqui é a primeira vez! – disse o Investigador de Polícia Pedro – Os caras chegam a uma cidade pequena comumabaitacaminhonetenovinhae acham que ninguém vai perceber que tem alguma coisa estranha? Tentam abordar o meu tio João Francisco, que aposentou depois de quase quarenta anos de Polícia, entram em todos os comércios da cidade contando umas histórias cada vez piores... Agora, eu aposto que a maior surpresa de todas para eles foi descobrir que o Delegado de Polícia da cidade gostava de carpir uns lotes nas horas de folga, só por diversão! Já telefonei para o fazendeiro para avisar que recuperamos a caminhonete e ele falou que chega ainda hoje à noite ou no mais tardar amanhã cedo. Satisfeito com o bom resultado do trabalho realizado, o Delegado André encerrou o assunto: Vamos para a Delegacia que ainda temos um flagrante para lavrar, quero interrogar estes dois com muita calma e logo vamos estar cheios de vítimas dispostas a reconhecer estes dois safados... *Eduardo Lima de Paula, formado em Direito, delegado de Polícia, 28 anos, Birigui –SP
  • 27. 27 2ªMençãoHonrosaOs olhos secos de Oberón Carlos Eduardo Marotta Peters* Bermii, filho mais novo de Oberón, cortou o peito do pé com a enxada quase cega. O sangue espirrou na terra já vermelha do Vale dos Quatro Ventos. O menino baliu de dor e caiu no chão aos prantos. Os homens bateram as botas no chão e correram em sua direção. - Enfêxa o pé! Enfêxa o pé! – gritou o tio Bênias, com as mãos na cabeça. Alfinerma, primo de Bermii, correu para a casa das mulheres em busca de ajuda. Tropeçou e gritou feito um barrigudo, mas chegou lá antes do pé ter descanso. Escancarou a porta e mandou chamar Narierna, a mãe do cortado. - E olha que nem risco grande fez o rançado, mas deságua qui nem um riacho... – falou o primo, ainda gritando e apavorado com o sangue. Narierna, como mãe que era, e que aprendeu com a vó Nila a fazer cura de corte, correu com lenço na cabeça e tudo para lá, carregando consigo a vasilha de curação de corpo bambo. Oberón, pai severo, viu com canto de olho a cena e carpiu mais um tanto antes de ir para o teatro daquela dor toda. Viu Bermii no chão e coçou a barba de homem velho. O olho de lá continuou na enxada e no trabalho que faltava, mas o de cá até que cuidou de tentar entender o machucado. - Preocupanão com o fraco... É peça de gritá de toa, que nem carnêro no amate! Todos se calaram, mas sabiam que a ferida sangrava além da conta. Oberón não parecia estar certo com aquela calma, mas, de uma forma ou de outra, sempre provava que estava. No fim
  • 28. 28 de pouca discussão levaram Bermii para casa, ofendendo o entendimento de Oberón. O olho de lá ficou com raiva e quis saber quem ia suar no lugar do caído. O menino precisava de médico, mas o único que existia por aquelas bandas estava na vila com doença de bebida. Melhor foi chamar o padre, que também trabalhava no negócio de curar. E quem foi atrás do dito cujo foi o mesmo Alfinerma que mal parara de gritar desde o começo daquela cena toda. E gritou mais ainda quando passou pelas casas dos vizinhos. - Meu primo tá a perder tudo de dentro com pé riscado de enxada! – gritou, para quem quisesse ouvir. E muitos queriam. - Quase perde o pé por causa do riscador de terra cego... E nem cobra tinha pra distrambeiá a mão! Quasuir, vizinho quase sem dentes na boca, gritou de volta que queria ver Bermii arrumado de volta na saúde, mas Alfinerma era daqueles que destravavam a falar sem ouvir, como se a boca fosse a tampa dos ouvidos. - Chama o cura, chama o cura, quiçá ele costura de vórta as tripa do pé do primo... E tudo voltou à conformidade das coisas. O padre acudiu o menino, passou pó amarelo e rezou para os santos que lidavam com a questão. Na hora da comida, Bermii até pôde sentar em sua cadeira de costume, ao lado de Oberón, que só esperou a choradeira parar para dizer tudo que o olho de lá tinha engolido por horas. - Quiria eu proseá das coisa dessa hora, mas teatro assim precisa de muita vagabundagem pá engordar. E vagabundo gritador num côme, porque de engorda essa casa só pricisa dos porco. A mãe chorou pelo filho, falando que doente tinha que comer para repor o sangue. Até caiu de joelhos, mas Oberón tirou o prato da mesa e fez o pobre menino ficar num canto esperando as migalhas. Ninguém mais discutiu o assunto com Oberón. Nem ele deixou mais acontecerem choradeiras que tirassem sua fome e sua opinião. - Nóis num criâmo fio pá ficá de horizonte qual fosse fileira de tijolo seco! – emendou Oberón, para fechar a conta da conversa. - E diga pro padre que a parte dele já tá paga na cota da cestinha da semana. Eu num sô mucamo de santo prá ficá dando farelo na boca. Narierna, a mãe, já tinha os dois olhos roxos e uma boca inchada por causa do corretivo que levara por pedir pelo filho. Oberón nem queria saber dela quando esticou a corda do chuveiro meia hora depois. Queria ir para a cama em silêncio para poder acordar cedo no dia seguinte. -Acordaespertoqueacobrafumadora tá de olho na sua malícia! – disse Oberón, com voz severa, enquanto puxava a cortina da cama do filho
  • 29. 29 cortado. - Come o que tem qui comê e põe ôtra perna para puxar o cabo da enxada de novo, qui a hora da receita já passô faz desde ontem! Bermii levantou o mais rápido que pôde, pois Oberón não era de falar sem precisar. Teve dor ao ficar em pé, mas tinha que ser homem para trabalhar sem resmungar. Oberón nem queria saber mais do ocorrido no dia anterior. Agora era outro dia e outras contas deveriam ser pagas. A mãe foi só choro quando viu aquela perna manca suportando o peso do corpo do filho. Tentou correr para ajudá-lo, mas a filha mais nova puxou suaroupacomoquempuxaacordado poço na hora da sede. Narierna queria ir acudir a cria, mas soube que as mãos da filha tinham uma verdade mais certeira. Então parou e chorou atrás do punho, único choro que Oberón tolerava. A parentalha tentou não se meter no assunto, mas era da opinião que Oberón não devia tratar palha como madeira. Mas ninguém fez nada, porque a opinião de Oberón era sustentada pela violência. Ele não queria argumento, então não adiantaria discutir. Oberón explorou o filho como nunca. Era enxada, ancinho, balde de água e enterrador. E quando via o enfermo cabulando, engatava um discurso tão duro que o menino rapidamente voltava ao batente, ainda que com lágrimas nos olhos. Alfinerma, que nunca tivera muito entendimento, chegou tarde ao trabalho e não compreendeu direito aquelesilênciotenso.Oberónmandou o menino calar a boca assim que ele começou a falar, e quase lhe deu um tapa. Só não o fez porque aí teria que bater no pai também e isso ele não queriaagora.NãoqueOberónsentisse medodealguém,maspensavaqueum corretivo desses iria atrasar o trabalho, e isso ele não suportava. Oberón exigiu tanto do filho que Bermii acabou despencando no chão que nem fruta madura. Mas não chegou a desmaiar. Teve o azar de ficar acordado para apanhar de Oberóncomosefosseroupabatidade lavadeira. O menino gritou tanto que até os bichos foram embora do vale. Quando acabou, havia tanto silêncio por ali que Oberón quase pensou que tinha disciplinado demais o doente. - Qui é qui tão olhano? Eu palavreei que tava perigando corrigir o artista. E ele continuou com a traição qui nem artista de caravana. Agora vai tê dor de verdade pra valorizá o choro! Ninguém falou nada, mas todos pararam de trabalhar e foram ajudar o menino. Oberón ficou furioso de novo e ameaçou partir para cima de quem afagasse o castigado. Um tio mais velho, irmão de Oberón, não arredou o pé. Nem olhou para o pai raivoso quando foi acudirBermii.Oberóncoçouacabeça e tralhou com ele em voz alta. - Qué desgraçá a família toda, irmão
  • 30. 30 meu? Qué pôr sangue contra sangue? Nem olho quando você arrebenta suas cria!Porquevocêquéacudíasminha? Prolegomo, o irmão, não fez som algum e catou o menino nos braços. Levou para casa e não voltou no dia seguinte. Falou para a mulher de Oberón que algumas coisas rebentavam sua grande paciência. Daquele dia em diante, Oberón perdeu muitos dos que trabalhavam com ele. Solidários ao menino, eles preferiram ficar em casa e esperar aquilo tudo passar. Oberón nem se abalou. Matou todos eles na cabeça, como fizera com outro irmão do qual se apartara vinte anos antes. - Qué disgraçá tudo, faiz sem mim! – dizem ter ouvido o velho resmungando, nos dias posteriores ao acontecido. Como a produção da terra vermelha caiu, Oberón ficou ainda com mais raiva do irmão e do filho. O irmão estava longe, mas o filho estava ao seu alcance. O velho arrancou-o da cama todos os dias. O pé ficou cada vez mais inchado e o machucado não fechava nem mais com pó santo. A mãe chorava e pedia, mas ganhava de consolo o punho fechado de Oberón. Tinha dias que nem ela conseguia levantar, de tanta dor que sentia no corpo castigado. Oberón fez tanto que o filho pediu paraverummédico.Masmédicosnão existiam na vila. O único disponível viajou dias antes. Ele também nunca havia salvado muita gente de verdade, já que tinha poucos recursos. Então só veio o padre, que trouxe mais pó de curar e reza para o menino. Quando a mãe já ia fugindo para apelaraosparentes,Bermii piorou.Os parentes, alarmados, tiveram até que chamar as autoridades para tirarem o menino de casa. Oberón disse que era injusto deixar gente do governo se meter em casa de homem crescido, mas foi dissuadido por um amigo de resistir à bala àquela intromissão. Preferiu descontar sua raiva na esposa. O pé de Bermii inchou mais e mais, e de tanto inchar acabou causando sua morte. A mãe foi só desconsolo e chorou por várias semanas. Alfinerma correu pela vila gritando a morte do primo. - Bermii morreu pelo pé... Porque não teve pó nem reza que curasse! - Também, de tanto trabalhar sem fechar talho, não há como segurar alma no corpo... Mas, de prosa em prosa, o menino sentia era saudade do amigo. Oberón não foi ao enterro. Os parentes que deram a ele a notícia da morte do filho disseram que nem o olho de cá derramou lágrimas pelo menino. *Carlos Eduardo Marotta Peters,professor de História (ensino médio e superior), já publicou quatro livros,44 anos,Araçatuba- SP
  • 31. 31 Assassino Nara Lêda Franco* A boca estava seca. Se é que aquele risco fino e pálido tivesse semelhança com boca. Encarcerados dentes brancos, enfileirados, batiam-se: rangidentes. O corpo delgado transpirava. A camisola, amarrada à cintura, colava nos seios pequenos. Quem dera o suor que escorria lavasse a alma. Mas sal nunca foi bálsamo para feridas. Tentou levantar-se. As unhas curtas e pintadas de lilás encravaram-se ferozmente nos minúsculos vãos do azulejo. Metade do corpo desgrudou-se do piso frio, mas as pernas não obedeciam. Dormentes e finas, eram de chumbo. Talvez, se alcançasse o vaso, pudesse se sentar e afastar a frialdade da morte. Mas ao erguer a cabeça para olhar em direção ao seu alvo, descobriu que força de vontade não movia um corpo. Não dispunha de três passos. “Arraste-se!” a voz sussurrou num tom debochado e autoritário. Então ela o fez, devagar e devagar, enquanto o suor escorria, na vã tentativa de diluir o sangue viscoso. O gelo das mãos se uniu à fria cerâmica do vaso numa rima perfeita. A dormência nas pontas dos dedos não lhe deixava sentir nem textura nem nada. Sua única certeza era a de que estava agarrada ao vaso sanitário como um náufrago se agarra a uma bóia. Quando a cabeça pendeu, viu os cabelos lisos e pretos valsarem na água amarelada de urina recente, embaralhando a imagem cadavérica de seu rosto. Deixou-se ficar ali. Sem perspectiva de movimento possível. Não havia outro lugar que a força fragilizada de suas carnes lhe permitisse chegar. 3ªMençãoHonrosa
  • 32. 32 Como um cavalo enfurecido, o tempo galopou sem rumo, relinchando dores. As batidas do seu coração seguiam aquele galope desgovernado. Um tempo impreciso e livre de minutos e horas. Aos poucos, a pele febril fez evaporar o suor frio e nauseante. Soltou-se do vaso, escorrendo o corpo no piso úmido. Arrastou-se em direção à toalha dependurada, mas não a alcançou. Num esforço doloroso, apoiou-se sobre os cotovelos. Não sentia as pernas, mas sabia que estavam ali: pernas de elefante que precisavam ser arrastadas para frente. Abriu a boca embranquecida pela dor e o fez, colocando-se de joelhos. Bem podia rezar, pensou, e quase riu de deboche: de si mesma e de Deus. Num último esforço, ergueu o braço e seus dedos magros agarraram a toalha amarela, que ficou laranja e depois vermelha, pressionada entre suas coxas. A umidade densa e quente lhe trazia um pouco de calor. Devagar, bicho ferido, quadrúpede como se deixou ser, foi em direção à caneta sangrenta jogada perto da porta. Limpou-a na ponta da toalha, que arrastava entre as pernas, e alcançou o bloco de papel deixado sobre o cesto de roupas sujas. A carta estava ali, com suas letras implorantes. Arrancou-a do bloco e amassou-a devagar. Soltou-a, sem olhar. Sentiu acanetaestranguladaentreseusdedos. Destacou a folha branca, quase com carinho, e buscou com os olhos um lugar que não estivesse sujo de sangue. Depositou-a, devagar, junto à parede, e tentou escrever, mas a caneta falhou. Olhou a poça de sangue, já coagulado, ao alcance da mão. Com a ponta do dedo indicador, afastou o pedaço de carne macilento, e ganhou a liquidez vermelha. Deixou que as letras, uma a uma, bebessem o sangue, antes de caírem sobre o papel, num desenho perfeito de dor e raiva. Depois dobrou a folha, lenta e dolorosamente, uma, duas, três vezes. ... A campainha tocou. Com um pedaço de sanduíche avolumando a bochecha esquerda e uma latinha de refrigerante na mão, caminhou em direção à porta, mas de olhos voltados para a televisão. Seu time estava no ataque. Cumprimentou o carteiro com um gesto de cabeça e apressou-se em receber a correspondência. Os olhos castanhos buscaram o remetente. Um sorriso irônico ensaiou dançar na boca bonita. Abriu o envelope e alcançou o papel. Desdobrou-o, uma, duas, três vezes... e leu: “Assassino”. *Nara Lêda Franco,diretora de escola,45 anos, Araçatuba-SP
  • 33. 33 Julgamento do gravitoriano Ronaldo Ruiz Galdino* Toc, toc, toc! – soou o martelo do juiz no tribunal. - Ordem, ordem! – gritou o magistrado diante do barulho que havia se instaurado no julgamento de um nativo do planeta JVE3091. De um lado, as pessoas que defendiam a execução do acusado por crime de furto, como mandava a legislação para esse tipo de infração praticada por extraterrestres contra humanos. - Essas criaturas não foram visitadas por Jesus Cristo! – berrava um velho terráqueo, que desejava a morte do nativo. Do outro lado estavam os que queriam a absolvição do escravo, a maioria deles jovens, todos nascidos em JVE3091, mas descendentes de terráqueos. - Somos todos irmãos! – respondeu ao velho, um dos garotos que parecia não ter mais de 16 anos. - Meritíssimo, acredito que a desordem na corte se deva a esse advogado, que nutre simpatia por esses seres e espalha entre a população a falácia de que somos semelhantes a essas criaturas, semeando a desordem e incentivando a bandidagem – disse o promotor de Justiça, Carl. A gritaria aumentou depois dessa declaração. O advogado acusado por Carl de promover a bagunça na Suprema Corte Universal era um jovem terráqueo chamado Louis. Ele veio com a família para JVE3091 quando tinha cinco anos. Seus pais foram embora da Terra em uma das naves que levavam colonos para planetas habitáveis. A Terra estava com os dias contados, com poucos lugares onde ainda era possível viver. No começo das missões 4ªMençãoHonrosa
  • 34. 34 expedicionárias empreendidas pelos terráqueos, em busca de vida pelo Universo, o objetivo era trazer os recursos desses planetas para a Terra. Mas a medida não durou muito tempo, pois o planeta já estava condenado. As missões, então, se tornaram colonizadoras, a fim de garantir a existência da espécie humana e ainda mostrar para todas as galáxias que os homens eram os senhores de tudo. Sofrendo com altas temperaturas, falta de água e alimentos, quem tinha algum dinheiro tratava logo de ir embora. Pelo fato de ter crescido naquele planeta, que parecia ser o paraíso em termos de beleza natural, Louis amava JVE3091 como seu verdadeiro lar. E adorava brincar com as crianças nativas, com suas peles alvas, quase transparentes. Um dia, Louis tomou uma surra de sua mãe, porque passou o dia na senzala, onde vivia o filho de um de seus escravos. - Eu já falei para você não brincar com essas criaturas. Você é gente! – censurou a mãe de Louis. - Mas eles não são também? – perguntou o pequeno Louis. - Olhe para sua mão. Você consegue ver o outro lado? Não! Porque ela é pura carne, fibra e ossos. Agora pegue a mão de uma dessas criaturas – disse a mulher, puxando o braço de um de seus escravos nativos. Consegue ver os sóis brilhando atrás dela? Hein? Responda! – gritou a mãe. - S-sim – respondeu o garoto. - Então ele não é igual a você, que é gente, e ponto final! – falou a mulher. Louis foi direto para o quarto, sem jantar, naquela noite. Chorou muito. O filho de um de seus escravos, o Joe, o havia levado na tarde daquele dia para conhecer o lugar onde viviam. Lá, Louis conversou com o pai de Joe, que contou muitas histórias interessantes. A que o deixou profundamente fascinado era sobre a origem do Universo. Uma grande explosão de energia que havia criado tudo o que existia: estrelas, galáxias, planetas, a Terra e JVE3091. Os cometas e meteoros espalharam a vida por toda a parte, como insetos voadores que levam as sementes de plantas para onde vão. Por isso, todoséramosdescendentesdomesmo embrião. Outro nativo, esse mais velho, avô de Joe, disse-lhe que as descobertas da ciência dos humanos eram semelhantes às dos gravitorianos – nome que eles próprios se davam: os filhos de Gráviton. Este era o verdadeiro nome de JVE3091, que numa tradução livre seria algo como mãe ou deusa. Aquilo que dá a vida. Porém, a ciência, a filosofia, tecnologia e política gravitorianas eram muito mais avançadas que às da Terra, segundo o velho. - Quando seus antepassados chegaram aqui, Louis, já havíamos abandonado as armas faz tempo. Quando compreendemos o funcionamento
  • 35. 35 do Universo, que ele um dia deixaria deexistir,assimcomooutrosuniversos já haviam desaparecido antes, e que não havia nada que poderíamos fazer, decidimos que o melhor era aguardar a chegada desse grande momento da melhor maneira possível. Plantando, colhendo, se divertindo, amando, estudando e pensando. Quando as navesterráqueaschegaram,devastando nossas moradas, não sabíamos o que fazer. Havíamos esquecido como brigar e nos rendemos – narrou o avô de Joe. Tudo o que havia acontecido naquele dia, as histórias que ouviu e a surra, marcou para sempre a vida de Louis. Aoentrarnauniversidadeparaestudar Direito, Louis já sabia o que iria fazer: defender os gravitorianos no tribunal. E ele não era o único. Vários colegas seus defendiam o direito à vida aos nativos de JVE3091. Só que nenhum deles com a brilhante oratória e argumentação de Louis. A modéstia e a timidez eram seus únicos “defeitos”. O julgamento de Schuman – o nativo acusado de furto e “cliente” de Louis – era apenas para cumprir formalidades. Nunca a Suprema Corte Universal, composta somente por terráqueos, absolveu um extraterrestre. Schuman seria condenado. O máximo que os advogados poderiam fazer era tentar reduzir a pena de seus “clientes” gravitorianos. - Quando eu quiser sua opinião, senhor Carl, eu a pedirei – disse o juiz, repreendendo o promotor de Justiça, que havia aumentado ainda maisaconfusão,aotentaracusarLouis de tumulto. - Meritíssimo, gostaria de chamar como testemunha a vítima do furto, a senhora Elisabete Santos. Elisabete era uma mulher terráquea rica, que havia chegado a Gráviton em uma das primeiras naves colonizadoras. Ela subiu os degraus para sentar no banco das testemunhas e jurou sobre a bíblia dizer a verdade e nada mais que a verdade, sob as penas da lei. - Gostaria de perguntar para a senhora, dona Elisabete, o que o nome Vitória lhe significa – perguntou Louis. - Eu não compreendo – respondeu Elisabete. - Estou falando daquela garota gravitoriana – disse o advogado de defesa apontando para uma menina nativa, de aproximadamente 15 anos. O que ela significa para a senhora? – questionou novamente Louis. - E-ela é filha do meu escravo, esse aí que levou as minhas joias – declarou Elisabete. - Gostaria de chamar a menina para responder algumas perguntas, meritíssimo. - Pedido deferido, senhor Louis – decidiu o juiz. A garota gravitoriana fez o juramento e também se sentou no lugar destinado às testemunhas. - Vitória, quem é Elisabete Santos para você? – perguntou Louis.
  • 36. 36 - Minha mãe – respondeu a garota. A gritaria recomeçou. - Meritíssimo, isso é um absurdo! Eu peço que interrompa a palhaçada que esse advogado está promovendo e retire a declaração dessa criatura da ata deste julgamento – berrou Carl. - Não precisa disso, promotor. Eu já ouvi o que precisava. Quero ouvir Elisabete novamente – falou o advogado de defesa. - Isso não é possível, meritíssimo – interveio o promotor. - Já disse, Carl, quando eu quiser a sua opinião pedirei – respondeu o juiz. A velha rica mais uma vez se sentou no banco das testemunhas, pálida e suando frio. - Quero que a senhora olhe nos olhos daquela garota e me diga que ela está mentindo – pediu Louis. - E-eu... – balbuciou Elisabete em meio à nova gritaria que estava reinando no tribunal. - Quero que você confesse a verdade. Que dormiu com esse gravitoriano e que seu ventre gerou um ser híbrido – disse entre dentes Louis, olhando firmemente para Elisabete. - E-eu... - gaguejou a mulher de novo. -Jáchega,senhoradvogado–decretou o juiz. - Está bem! Eu confesso! – gritou Elisabete. Imediatamente fez-se silêncio no tribunal. - Schuman foi meu amante por vários anos – continuou a mulher. Quando descobri que estava grávida dele – continuou–sendosolteira,meescondi de todos para evitar a vergonha. Pensei em matar aquele bebê que crescia dentro de mim e pensei em matá-lo depois que ele nasceu. Porém, meu coração de mãe falou mais alto e tratei de entregar aquela criança, alva e quase transparente, para Schuman. Para que ele cuidasse dela como se fosse sua filha com alguma outra mulher gravitoriana. Mas Schuman acabou contando o segredo para Vitória quando ela ainda era criança. Até então somente eu, ele, o médico e uma escrava, que adotou a menina como mãe, sabiam da história. - Então, por que você inventou toda essa coisa de furto? – questionou Louis. - Por inveja. Eu amo Schuman! Não suportava vê-lo feliz mesmo sendo escravo, ao lado de sua mulher, filhos e da minha Vitória. Queria que ele morresse! Deixasse de existir, para acabar com o meu sofrimento. Por isso, escondi as minhas joias em seu barraco e armei um escândalo de que elas haviam sido furtadas. Os policiais as encontraram na senzala de Schuman e fizeram o flagrante. - Diante dessa declaração, meritíssimo, vejo que não há razão para condenar o meu cliente por furto. Mesmo que os nativos de JVE3091 não tenham o mesmo tratamento jurídico que os terráqueos, acredito que seja impossível condenar alguém por um crime que nunca cometeu. Caso contrário, pretendo deixar a
  • 37. 37 advocacia para sempre. E vou além: se foi possível que de uma relação sexual entre humanos da Terra e gravitorianos resultar em um filho, penso que não somos tão diferentes assim um dos outros. E pela pele da pequena Vitória, vejo que os genes de Schuman foram mais determinantes do que os da mãe terráquea na hora de definir as características da menina. Mas isso é algo que a ciência dirá. Não quero extrapolar os limites do direito, digníssimo juiz. O promotor de Justiça não sabia o que dizer. Estava estupefato e disse que não havia mais nada a acrescentar. O juiz, então, se retirou por alguns minutos para redigir sua sentença e voltou. - Diante da declaração da parte acusatória de que o réu é inocente e que a acusação foi motivada por questões passionais, não há que se falar em condenação do escravo Schuman. Por isso, o absolvo e condeno Elisabete Santos a pagar as despesas de um processo forjado com base em mentiras e sentimento de vingança – decidiu o magistrado. Os policiais libertaram Schuman que correu para os braços de Vitória e de sua esposa. Os jovens que queriam ver a absolvição do nativo comemoravam. Os velhos que desejavam o escravo morto foram embora resmungando queojulgamentohaviasidocomprado. Elisabete passou mal e teve que ser socorrida ao hospital. Calmamente, Louis fechou sua pasta e saiu do tribunal. No caminho, foi abraçado por Schuman, que não parava de agradecê-lo. - Não sei como vou fazer, mas vou juntar todo o dinheiro que puder para pagá-lo, doutor – disse Schuman entre lágrimas. - Sou advogado do Estado, senhor. O meu salário já está pago – disse Louis. Felicidadesatodosvocês–acrescentou oadvogado,cumprimentandocadaum dos gravitorianos que acompanhavam Schuman. Na sala da casa de Louis, a TV estava ligada para as paredes. - O julgamento desta tarde será um divisor de águas. A decisão que absolveu um escravo nativo de JVE3091 pela primeira vez na história da colonização do planeta pode abrir uma brecha jurídica para que todos os chamados gravitorianos sejam, no futuro, julgados com os mesmos direitos que os terráqueos – narrou a repórter da frente da Suprema Corte Universal. Louis entra na cozinha. - Querida, cheguei – anuncia o advogado. - Oi, meu amor! Que dia difícil o de hoje, heim? – comenta a mulher. Faz parte do meu trabalho, querida. O que tem para jantar? – perguntou Louis, após beijar a face alva, quase transparente, de sua mulher. *Ronaldo Ruiz Galdino,jornalista,29 anos – Araçatuba-SP Profissão: repórter.
  • 39. 39 Meu pai olhou as distâncias e comemorou uma informação de beleza. Estava sentado à varanda da casa e media os movimentos de uma tarde de fim de mês de setembro. Ali era vizinhança de São Roque, uma quase grota enfiada nos meandros da Serra da Canastra, lugar onde o rio São Francisco lança suas águas à luz do mundo e logo, mais abaixo, dardejam as primeiras cachoeiras. Lugar bonito, com as ventanias iniciando a mudança dos elementos e o aviso que não ia demorar a cair a primeira chuva depois do tempo das secas medonhas de mês de julho e agosto. Um espinho começado era aquele modo de chegar o vento e erguer no ar tudo quanto era cavaco de pau, casca de cobra e folha seca. O ano de 1964 e meu pai fazia vésperas com o universo inteiro. Esperava pelas chuvas que iam bater com a regularidade dos dias e fariam umidade demais nos ninhos dos anus e das tesourinhas. Outubro chegava com essa imensa carga de pequenos nós e uma série de reverências. A chuva é alegre por natureza. As águas chegam com as cargas e dedos de um Deus inequívoco. Ele me olhava de frente e falava. - Geraldo, isso aqui onde estamos a pisar pode mesmo ser um dos lugares mais bonitos do mundo. Presta atenção nesse silêncio que se costura com a cantiga do canarinho. Assunta só! Pois que, conforme era mesmo esperado, aquele corgo miúdo do Filisbino, um que fazia a barra com o São A tonsura, a vida conforme se rege José Humberto da Silva Henriques* 1ºLugar
  • 40. 40 Francisco à distância já andada de uma légua depois de fazer a travessia daqueles cocurutos de serras e fazer seus poços, houve que o pequeno eito de água receber enxurradas e ciscos de longe à medida que a chuva batia sobre a terra. Era mesmo o fim de setembro. Com a chegada das águas tudo mudava. Aquele cheiro de chamuscado sumia e ficava somente a batida fresca dos ares. Meu pai mudava o semblante e me avisava que era hora de jogar o anzol nas águas do Filisbino porque a primeira enchente já tinha abaixado e o peixe estava doido para aproveitar os restos que desciam das serranias. Ele ria quando fazia os cálculos. O que mais gostava de fazer, jogar na água turva o anzol iscado. -Geraldo,hojeopeixeestámormaçado. Vamos apanhar os bagres hoje! Eu era menino de oito anos de idade nessa ocasião e ia em sua companhia. Sempre ia. Nome do meu pai era Geraldo. O pai dele fora Geraldo e eu era Geraldo Neto. Acho que o avô do pai dele também um dia fora Geraldo. Ali no Filisbino era praticamente certeiro o bagre grande, a pirapitinga e uns piaus de última hora, esses peixes que galgavam as corredeiras e as pedras do São Francisco, subiam o pequeno riacho e faziam sua postura. Meu pai, apenas entardecia, que achava o tempo bom, apesar de muitas nuvens se acumularem para as bandas de noroeste, apanhava a vara de bambu, mandava-me colher umas minhocas brabas na horta de couve; em prazo curto chegávamos naquele pesqueiro que ele gostava, num lugar meio cavado pelas águas de aluvião, uma moita de bambu cuidando de dar firmeza ao lugar para que o resto do barranco não se precipitasse nas águas. Ali tinha demais o lambari do rabo vermelho, uns que chegam a medir uma chave de mão, espertos e ladrões de minhoca: aprenderam com a evolução do mundo e seus ciclos. Minha mãe tinha feito um bolo de mandiocacomcertoexagerodecanela. Ele me dava um pedaço daquilo. Sentados em beira do Filisbino, ele dizia. - Geraldo, essa água pode ser bebida à luz de qualquer lua! Aquela imagem do meu pai me ficava como uma fotografia inalienável. Meu respeito por ele ia além de qualquer estribeira. O tempo passou e houve que minha mãe ser achacada pela mazela de dores nos ossos, arranjou lá um caranguejo grande na madre e nem teve tempo de pedir muita ajuda para doutor. Desencarnou no princípio da década de setenta e meu pai sentiu demais o baque da questão. Eu ia aos dezoito anos de idade e chorei com amargura aquela situação instalada de forma nova no
  • 41. 41 seio de nossas ilusões. O mundo mudava demais de ângulo. O fato foi que meu pai sentiu. Pareceu-me mais ancião. Uma idéia mesquinha me surgiu. Quem é que vai cuidar de nossas pequenas coisas, as mais miúdas que há? Porém, ele falava com aquele seu jeito de quem está conformado demais com a sorte. Sua sabedoria sem cartilhas. - Deus dá e Deus tira, ó Geraldo. Isso é lei e isso não pode ser mudada por nenhum comedor de feijão! Foi um princípio de década terrível. Com um ano após essa tragédia absurda, meu pai encurtou o fôlego e deu de inchar os pés e canelas, a tal ponto ficavam-lhe pesados os passos, tinha dificuldade simples de calçar as botinas. E não era mais o mesmo que subia um morrote atrás de uma bezerra velhaca e que não queria entrar no curral. Tive que dar uma demão mais afincada e minhas cismas se desfizeram um tanto quando minhas irmãs, as duas, assumiram o serviço miúdo da casa. Aquilo ia durar até que arranjassem casório, o que não seria difícil, já que nem a Maria Elvira e nem a Terezinha eram feias, o bastante para não serem aquele sapato velho que vai encontrar um pé certo por aí. Chegou o ano de 1972. As chuvas deram de atrasar um tanto e chegaram somente quando as mangas de outubro já estavam estendidas. A beleza de todo aquele lugar se conservava. Meu pai punha os olhos, olhava em torno, entendia uma chaminé expelindo fumaça atrás das serras, acolá. Um telhado de casa miúda na distância. Era ali que morava Pedro Machado. O que gostava das Festas de Reis. Aquele foi um ano cheio de sustos para nós. A dizer a verdade, o progresso atingia as alturas de São Roque e de plagas mais a jusante dali. O mundo sofria de pequenas mudanças. As chuvas atrasadas. Por fim, veio a primeira mudança de tempo. O céu se fechou e o vento tocou o contingente de nuvens, à revelia de movimentos e formatos. Ficou baixo o céu. Passarinho voou depressa e um sabiá cantou no canto do telhado, mania deles, dos sabiás, fazer o ninho ali com seus cinco ovos azuis pintalgados de marrom. Caiu água. O Filisbino apanhou corpo, extravasou, jogou nas várzeas e meu pai, ainda querendo sair do luto pela perda da minha mãe, olhou-me e falou com aqueles seus modos de homem que peca pouco. - Geraldo, vamos pegar os peixes. Está na hora. Todos esfomeados. Vamos ao Filisbino. Hora da pirapitinga! Marchamos com a vontade dos acomodados a um mundo excepcional. Meu pai sentou-se no barranco e pescou quatro peixes
  • 42. 42 miúdos. Na quinta tentativa, que a boca da noite já chegava meio esgualepada, ele sentiu um peso na linha que referendou como desagradável. Acabara de pegar um protetor feminino ainda com sinais de ranço e ferrugem. Uma ferrugem fugidia, algo que mesmo poderia combinar com o peso desagradável que ele anunciara de antemão. Ele me olhou de banda. Ainda havia luz do dia o bastante para fazer o inventário daquele arremedo de dificuldades. Ele coçou as entradas, aquela parte da testa que começa a dar noção de nascimento de cabelo. - Geraldo, aqui o mundo começa a se avariar! Falou comigo somente essa frase curta. E chamou para voltar. Ao contrário de como sempre ocorria, gostava de ficar até mais tarde, termos em que a saparia anunciava a orquestração. Naquele ano ele não quis esperar. Voltamos para casa com uma colheita minguada. Como é que aquele protetor feminino fora parar no poço, entre as varas de bambu? Devia ter descido das hordas mais altas do riacho, devia estar escorrendo desde os lugares onde o progresso já havia alcançado grandeza mais proporcionada. Aquela face de desgosto do meu pai me atingiu frontalmente. Tive pena dele, um homem habituado ao ar puro que venta das serras e das grotas de pedra untada em água. - Alguma coisa me diz, ó Geraldo, que nunca mais seremos os mesmos homens de outros tempos! Naqueles dias, minha irmã mais nova deu de prever as vontades de casório. Era das duas a mais bonita. Maria Elvira adquiria penas maiores e asas firmes. Com a busca feita pelo Orlandino Machado, daquele povo mesmo de Machado que tinha uma casa lá da banda contrária da vertente, ela capitulou. Aceitou as propostas dele. Aquilo, a dizer a verdade, vinha já anunciado desde a última festa de Santos Reis. E, ela partiu com o marido naquele ano que se seguiu e ficamos minguados demais em número dentro de casa. Naqueles dias, tomada de ímpeto muito familiar, Terezinha anunciou que não se casaria, pelo menos enquanto o pai e o irmão fossem vivos. Ia cuidar dos dois Geraldos, da forma antiga e equivocada que vem desde os tempos de antigamente. Sentia-se responsável. Assim, tudo entrava na mesma rotina de sempre. As mazelas do meu pai deram de sofrer melhorias. Continuava cansado ao subir os morros, porém, já mais acostumado com aquilo, aprendeu a se retratar e a se limitar. Deixava todo trabalho mais fundo e duro para meus braços. Chegou o ano de 1982 e mais alguma coisa mudou. Achei que era hora de
  • 43. 43 fazer a minha família própria. Como sempre tive consideração por aquele povo de Machado, foi da casa deles que eu tirei a noiva, a Rosalinda. Foram seis meses de noivado e logo ela veio morar em casa. A família crescia de novo. Em um ano nasceu o Geraldo Filho, o nome mesmo que me cabia para nomear o primogênito. Quando chegou outubro, a chuva retesou seu ramo nos rumos e aparas do céu. Recusava-se a cair. Não vinha. O calor grande abrasava as almas e deixava o céu naquele estado de chamuscado perene. Meu pai olhava o céu, olhava a terra debulhada, falava com jeito choroso. - Isso aqui está virando um deserto, ó Geraldo! De qualquer forma, estava feliz com o neto e com outro neto que lhe dera Maria Elvira, outro Geraldo Sobrinho que se cultivava de lá. No fim do mês de outubro, entretanto, o céu mudou de cor, nasceram nuvens alaranjadas para as bandas do poente. E não chovia. Mesmo assim a coisa estava esgrouvinhada e não chovia de jeito nenhum. Somente em princípios de novembro a chuva caiu, uma chuva parcimoniosa chegou sob a forma de tempestade. Mais fuligem do que chuva. Parou mais cedo do que o esperado. Assim mesmo, quando percebeu que o Filisbino poderia ter mostrado sinais de corpo mais espesso, meu pai me avisou que era hora de apanhar os peixes. Chegamos na beirada do fluxo e o corgo estava baixo. Nos lugares onde a água fazia remanso, numa guaxuma com raiz de pau e folhagem de são- josé, as flores brancas e perfumadas da planta, havia muitas latas vazias, havia mais protetores femininos, camisinhas de Vênus, havia frascos de pesticidas, embalagens diversas de refrigerantes e cervejas, maços de cigarro amassados. Uma miscelânea de todas as cores possíveis. - Minha Nossa Senhora da Medalha Milagrosa! Meu pai falou. Havia rugas fundas em sua face. O progresso vinha a cavalo. Vinha a todo vapor. Esquálido, sem graça, ele iscou e atirou o anzol na água. Eu fiquei mais abaixo, na mesma tentativa de prioridades que eram as suas. Não havia peixe ali. Não havia nem girino. - Água muito baixa, filho. Os peixes não subiram o córrego. Devem ter descido em rumo de algum lugar! Vi que ele tentava não chorar. Meu pai tinha a face de um boi ferido de morte. Aquele que agoniza na arena depois de ser picado fundo pela espada. Ergueu-se, bateu o cisco da bunda e avisou que era melhor voltarmos. Não discuti com ele porque eu sabia que isso não ia levar a lugar algum; só ia piorar o caso. Subimos o trilho de volta para
  • 44. 44 casa. Deixamos lá a lata de extrato de tomate cheia de minhocas e nos embornais não levamos nada. Comemos um pedaço de bolo que a Terezinha tinha preparado para nós. Conversamos amenidades enquanto subíamos de volta. Eu tinha que caminhar devagar porque o fôlego dele exigia esse cuidado. Nenhum peixe. Nada. - O que vai ser de nós se Deus não tiver dó, ó Geraldo? Ele dizia assim. A situação se tornava a cada dia mais magmática. Naquele ano choveu pouco. E, com a presença da Rosalinda, já meio beata de todo, Terezinha resolveu se casar. Ajuntou os panos com um viúvo, da casa mesma dos Machados. Era o Espiridião. Homem bom demais. Gostava de contar casos enquanto picava fumo para o cigarro. Ele tinha a mania de seguir o curso das papa- terras ao longo do rio São Francisco. Contou que sumiam a cada dia. Ele ia a cavalo, seguia pelas margens, fazia os cálculos. Estavam sumindo. Era a realidade triste que o Espiridião contava. Esperidião era um homem astuto demais para os negócios. Como fosse meio temporão para ele ter os filhos com a Terezinha – e como já os tivesse de um primeiro casório -, resolveram adotar um menino que atendia pelo nome de Geraldo Primo. A família ia aumentando. De um jeito ou de outro ia aumentando. Meu pai gostava daquilo. Com esse modo de ser do mundo, chegou o ano de 1992. Os dias cada vez mais quentes. Tínhamos já televisão em casa e eram as explicações muito variadas sobre estas variações climáticas. Meu pai ouvia, balançava a cabeça e ia calcular vaga-lumes e tesourinhas lá na varanda. Ficava imerso naquele jeito disperso por longas horas. Chegou setembro e nada de chuva. Chegou novembro e a seca estava medonha. Em meados de dezembro choveu pela primeira vez naquele ano. Uma chuva medrosa, estrangulada. Uma chuva pulverizada, econômica. Mesmo assim, esquecido de tanto contratempo, meu pai me chamou para pescar. Sua voz era muito pautada por escorregões. - Geraldo e Geraldo Neto e Primo, o Filisbino deve ter apanhado poço. Hora de descer e apanhar os peixes. Depois se mede o susto sobre o resto da vida! Descemos e os sinais lá embaixo estavam terríveis. Progresso demasiado causa infortúnios? Foi o que perguntou o menino, aquele mulatinho adotivo, o Geraldo Primo que gostava de passar dias lá em casa. O Filisbino carregava detritos mais espessos. Fezes. Urina. Couro de bicho morto. Construíram um curtume a montante de São Roque. Fedia demais. Cheiro de esgoto. A
  • 45. 45 água era azulada. Meu pai fez o sinal da cruz. Geraldo Neto olhava tudo com pavor. - Será que em outros países jogam merda nas águas dos mananciais? Ele falou assim. Meu pai jogar o anzol na corrente. Porém, a água pouca trazia aquele sinal de fezes ainda jovens e ele desistiu. Uma lágrima gorda nasceu do canto de seus olhos e escorreu pela sua face. Eu me senti penalizado. Falei com aquele jeito de convalescente. - Pai...! Abracei o velho e ele estava aos soluços. Aquele menino, o Geraldo Primo não entendia nada e ficava olhando com cara de curiango quando eu penteava com os meus dedos bambos os cabelos de Geraldo Pai enquanto o apertava contra o peito. E Geraldo Neto nos olhava a todos com pena. Do bolo de fubá cremoso que tínhamos levado – a Rosalinda era especialista naquela receita – não chegamos a comer nem um naco porque os estômagos se recusavam a aceitar o cibo. Meu pai não chegou a conhecer o ano das travessias. Não chegou a 2002 com seu século novo. Seu peito ficou mais fraco. Faleceu com as mãos nas minhas e o rosto deitado no meu colo. Falou coisas apropriadas e tristes demais. - Geraldo, tu deves recorrer aos santos quando voltares ao Filisbino. O mundo morre à míngua, ó Geraldo! Um ano depois de sua morte, a casa vazia como nunca, era 2002 que chegava sem chuva, somente umas nuvens metódicas e avarentas surgiram nos céus depois que veio janeiro do ano seguinte. Desci ao Filisbino e vi o córrego seco. Água nenhuma. Geraldo Primo já era rapazola e me abraçou enquanto eu chorava feito um perdido. Nunca mais eu veria o peixe e muito menos o córrego. Geraldo Primo olhou-me de forma atravessada. Geraldo Neto me abraçou e me penteou os cabelos com dedos bambos. - O que será de nós em 2012? Eu não sabia. Meu pai não estava ali para me ajudar nas lamentações. Fiquei calado e voltei para casa como quem nunca mais vai segurar uma gota que despencou das alturas dos anjos mais extemporâneos. * José Humberto da Silva Henriques, médico cardiologista, 56 anos, 40 livros publicados, Uberaba- MG
  • 46. 46 Um filme que não vi Valdecir Roberto de Oliveira* A dor vinha mais forte ao anoitecer, gritos de Bergman, soluços e choro dentro de uma combustão de perda, a amargura tirava toda vontade de viver, uma vida dolorida, sem a chama viva da sua mais linda criatura. O olhar azul fortalecido pela camiseta verde de James Dean, era somente uma cor, ali não havia mais vida, não se plantava mais alguma semente para germinar, um pequeno sorriso, um gesto de felicidade. A dor quando ela chega esmaga todo relevo, toda vegetação, toda circulação periférica dos pequenos vasos sanguíneos, anula a produção férrico-fólico. Aquele corpo se materializou como um espião que veio do frio. O corpo no sofá, uma xícara de café descafeinado é o que sobrou em seu presente cotidiano, sua tez pálida, o olhar para o vazio. Ele agora é um resto de farrapo humano, em posição feto sabe-se lá se tudo aquilo era uma viagem para voltar ao esconderijo materno, eu ali como um intruso amargurado pelo acontecido. Ilhas, ilharga, a morte incomoda como palavras soltas em um contexto solitário sem sentido, a morte é o que não aceitamos pelo frêmito que causa em nossas vidas. Entre aquelas paredes brancas aquele ser que está de luto por toda vida, uma temporada quem sabe, dias, meses, enquanto houver o sol a brilhar, ou água cristalina para banhar seu rosto nas manhas torpes a ausência martelando em sua cabeça, e os ganidos, ganidos de morte... O cheiro de colônia no vestido florido sobre a cama, no quarto da mais linda criatura 2ºLugar
  • 47. 47 que ele tanto amava. O colar de perolas em suas mãos, as lágrimas amargas de Petra von kant, combinavam com aquele cenário desolador, tudo o que o amor é, se acaba de repente em um leito de hospital, um cruzamento de uma avenida, uma escalada na montanha, o sabor dos perdedores fica em nossa boca como gosto de ferrugem, mistura néctar de secura e saliva adormecida de um velório que nunca termina. Somos esse faraó mumificado, ajoelhado em nossa vergonha de fraquezas, de não aceitar, de urrar na multidão nosso desespero, de abraçar o amigo mais querido e chorar... chorar... Ela é tão trágica que não nos envergonhamos de sermos patéticos frente à dor, é assim que ele está agora; um devorador de perolas, andando pelas luzes da cidade. Ainda em seus olhos vejo sofrimento, sua mudança para olhar a vida já não é mais a mesma, se tornou mais solitário, o riso sai aos poucos de sua face o andar é mais vagaroso, olha para as flores nos muros das casas vai até elas e as observa por um bom tempo. Observa os carros na linha de pedestre e com um olhar de paciência sabe que a vida tem que continuar, que assim caminha a humanidade. A morte de minha mãe para meu irmão foi crucial, eu não sabia o quanto aquele amor era ungido pelos dois. De mãos dadas no mercado, bolinho de chuva das tardes frias quando eu chegava esporadicamente, minha ocupação era tamanha que não olhava para aquele amor de filme francês, um truffaut tropical, aquele irmão incompreendido mamãe que faz cem anos. Por vezes sábado a tarde o estouro das pipocas assistindo o futebol com os dois comemorando os jogos de Ademir da Guia, jogos que gravara para ela, e os dois se abraçando tantas vezes pelo mesmo gol daquele homem “divino”. Eu, chegando sempre no final de cada partida, de cada sessão, e apenas amargamente os assistia e não enxergava aquela felicidade que parecia - me tão de graça aos meus olhos e não conseguia entrar naquela cena nem mesmo como um coadjuvante, nem mesmo como um gandula levando a bola para o artilheiro marcar mais um gol. Em dias mais soturnos passeava pela casa um CD de Cascatinha e Inhana que comprou em uma loja de CDs antigos, “saudade palavra triste quando se perde um grande amor...” eu não compreendia o que acontecia, cada um em seu quarto, um silencio de inocência, as caras fechadas, ela cerzindo e alinhavando o vestido florido, nem percebe minha presença. Ele, na poltrona com seu livro, quieto, meio carranca, nada sai daquelas bocas, penso que o que estão
  • 48. 48 ouvindo é o passado de cada um, a lembrança do amor não realizado, das despedidas que se acumularam durante parte da vida. Minha mãe com as lembranças dos bailes que ia com meu pai, até o trágico acidente pelos cafundós (como ela dizia). Ele, aquele rocha intransponível, difícil de detectar por onde passa seu pensamento. Naquele fragmento de minha passagem pela casa, era eu um elemento sem presença, não me fazia pertencer aquele momento onde apenas a ligação era algo de simbiose entre os dois, e ali se arrastava a tarde toda com aquele casal de cantores e minha amarga inveja de não ser ouvido, por eu estar radiante de alegria pela minha promoção de chefia no posto da secretaria em que trabalhava, me sentia um estranho no ninho. Minha mãe era a bonequinha de luxo para Otávio. Seu amor era intransferível, a figura indelével daquela criatura mais linda do mundo, assim que ele a chamava, aos carinhos abraços e beijos. Aos olhares alheiros ele era exagerado, não tinha amor próprio, não pensava em ter família, mulher, filhos, cachorro, periquito... até suspeitavam de um lado edipiano de meu irmão em relação a esse aparente amor desmedido, onde em conversas notava-se que não dava a mínima, apenas sentia-se confortável, uma doce vida ao lado de nossa mãe. Durante essa travessia de três anos meu irmão se parecia um junk pelas ruas, enrolado em cobertores com medo da vida, definhou, apresentou manias, esquizofrenia suicida, desapego à vida. Um belo dia de chuva, gostava dos dias com chuva, apareceu em casa. Otavio não movia seus sapatos para minha casa desde o trágico acidente de meu pai, foi dar ao meu filho as abotoaduras que meu pai queria que fossem dadas ao seu único neto em algum momento extraordinário. Seus olhos me revistaram de cima abaixo com uma doçura que nunca alguém me olhou com tanto encantamento, os olhos mergulhados em maremotos, tempestades e devaneios, como uma embarcação a deriva. Foram aos poucos abrandados e uma tranquilidade reinou naquele semblante. Os braços abetos, aquele corpo frágil caiu sobre meus ombros, arquejante, sombrio, fazendo-me entender tudo sobre minha mãe. *Valdecir Roberto de Oliveira, 51 anos, professor, Florianópolis-SP
  • 49. 49 Poesia concreta Cristiano Escobar Carvalho Bernardes* A tarde havia sido longa. Cumpriu com afinco sua bebedeira e um mormaço etílico ainda estava extenso sobre ele até aquela altura da noite. Sabia, sem olhar para relógio algum, que já se ia a madrugada em horas adiantadas: era o silêncio entrecortado de cachorro que vinha do lado de fora quem lhe informava. Passara a tarde inteira mamando cachaça numa garrafinha de duzentos e cinquenta cinco mililitros de água mineral. No olho do sol de abril. No cu de uma cidade decadente do Rio Grande do Sul. No beco onde noutros dias de outrantes correram trilhos da R.F.F.S.A. – sigla que ele intuía como sendo algo relativo à Rede Ferroviária et cetera e tal: por onde um dia correu um arremedo de riqueza daquele estado, agora se amontoavam as moradas de todas as misérias, dos barracos de mais frestas que paredes, dos cachorros rarefeitos em pulga e couro e osso, dos ratos à luz do dia, de crianças de narizes carcomidos de ranho e terra. Não tinha instintos de quanto tempo havia dormido. Lembrava de estar sentado na rua de terra, numa cadeira de abrir. Vinha-lhe a consciência o gritedo e não os motivos deste. Lembrava que havia pedido para um piá – não sabia se era para o seu neto ou Mateus da Elaine, vizinha do barraco do lado – que lhe fosse encher a garrafinha plástica de cachaça. Mandou o menino pedir fiado ao Getúlio da venda. Os gritos começaram a ganhar um tanto mais de nitidez de lembrança no oco latente de sua cabeça: “Não pai! Tu não vai lá!” isso era o que lhe vinha. Tudo estava embaraçado, tudo confuso e difuso demais. Achava que havia bebido três daquelas garrafinhas lagarteado, sem almoçar, apesar das 3ºLugar
  • 50. 50 insistências da filha. Lembrou que havia pago à vista pelas três, então uma essa outra certeza no instantâneo da rememória: o Getúlio lhe negou crédito. Entendeu noutra certeza, por que das vozes altas da filha. Os dentes foram se cerrando. Uma raiva lhe requentou o sangue. A mesma raiva da tarde. Tudo se reveio claro: o filhadaputa do Getúlio agora dera disso, de não fiar para os fodidos. Desde que a Antártica lhe dera em consignado aquela placa para dependurar na frente daquele armazém, desde que ele conseguira erguer um segundo piso na laje daquela casa, que dera disso. Para uns tinha crédito nos caderninhos, para os outros não: só com o dinheiro na mão. Pois tudo tinha se esclarecido para ele naquele rebote de bebedeira: aquele Getúlio se fizera nos juros que há dezessete anos enfiava goela baixo do pobrerio do Beco dos Trilhos, e agora se enchia de razão por um real e pouco de cachaça. O sono não lhe arrefecera. Pois, lhe azedara mais ainda o fígado quando lembrou que só não havia ido lá naquela bosta de venda porque a filha, além dos gritos, lhe havia escondido a faca: aquele resto de aço e zinabre que já era um pouco mais nada, gasto no ido dos anos em pedra e chaira. Tudo ressonava na casa, à exceção de uma folha de zinco do telhado que rebatia no bafo morno daquele vento norte temporão. Sentiu o cheiro da terra úmida da chuva que não havia percebido do fundo do seu sono. Escutava o sono da filha e do neto no quarto – desde que a esposa falecera há quatro anos que ele dera o quarto do casal para a filha e o neto. Ele palmeava de ouvido os entressilêncios daquele casebre. Já havia decidido: iria aprontar o que ficara incompleto pela meia tarde. Melhor então que filha estivesse dormindo. Precisava saber da faca: tinha uma certeza que a filha, de um caráter muito feito de inocências, haveria de haver guardado no lugar de sempre, confiando que ele acalmasse no sono. Foi erguendo aquele corpo impregnado de etanóis e as náuseas lhe vinham de arrasto. Quando meteu o pé no chão, todo o madeirame podre do casebre ringiu nos pregos contra o calado da noite. Esperou o barraco se acomodar quieto e depois mais um instante para o sono da filha do neto se aninharem de novo em profundidades. Péporpé,tateandoummenosbarulho naquelas tábuas umidifareleiras, foi ao balcão da pia da cozinha e catou na ponta dos dedos, por entre os talheres, o ferro branco e nem os garfos tortos souberam acordar. Pelos escuros, sabia onde tudo estava mais que nos claros, por que aprendeu a ser silêncio de velar pelo véu do sono da mulher e dos filhos e filha nas madrugadas geadas em saia para o trabalho. Vislumbrava por detrás dos olhos o bailado do seu punho conduzindo a faquinha ferruginosa na pança do dono da venda – sua mão
  • 51. 51 negra banhada em sangue branco. Quase sentiu um gosto doce na boca, antecipando o melaço da vingança feita a faca, mas a cachaça lhe azedava os vãos largos entre os dentes. Agarrou apenas um par de chinelos, que o porre da tarde lhe tinha desmaiado de roupa e tudo. Firmou a porta da rua no ombro, amordaçando o choro oxidado das dobradiças. A fresta que entreabriu deixou passar seu corpo esqualidizado a quarenta e tantos anos de trabalho braçal subindignamenterremunerado: por ela verteram para dentro da casa adormecida aquelas assombrações íntimas desenhadas pela luz hepática do poder público. Atravessou o terreiro do seu pátio para chegar a viela sem calçamento que cortava o Beco de ponta a ponta. As incidências das lumiclaridades pendidas dos postes redesenhavam os lapsos daquela paisagem e aquele teatro de sombras reavivando no seu peito carcomido de asma, um sentimento antigo e madrugado que aquele senhor portava sem saber bem dizê- lo. Aquelas pobrezas entrecobertas pelos véus da noite, vistas menos que pelas metades, triplicavam-se em mais misérias do que quando olhadas pornograficamente à luz viva de sol. Aquele sentimento sem data, sem verbo e nem nome, lhe ia no encalço dos passos pisados pelas poças d’água, enquanto o homem valia-se da metade de seu vocabulário – a constituída de palavrões – para recriminar-se de haver saído de chinelos, mesmo sabendo que havia chovido. Ia certeiro para a venda, que sua raiva era translúcida e urgente. Ouvia televisores ligados em poucos volumes por entre as vazantes de luz e vento das casas. Ouviu cachorro se coçando em desespero. Sentiu mesmo cheiro podre da tarde: era a fossa asséptica que se encontrava aberta no pátio da casa da Irene do seu Atílio e o aroma da merda empestando e traduzindo o mundo inteiro. De repente as quietudes do beco lhe deram por conta que a hora já era adiantada e mesmo antes de avistar a placa da Antártica que balançava apagada no hálito quente do vento norte soube que o estabelecimento já se encontraria de portas cerradas. Tinha para si que a venda ainda estaria aberta matando a sede e chamando o sono dos últimos bêbados. Continuou caminhando até estancar na frente do silêncio do armazém do desafeto e do segundo andar se vinha o ronco do terceiro sono do Getúlio, filhadaputa.