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DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO
IRINEU STRENGER
22. Dos Bens
22.1. Facetas históricas. 22.2. Imóveis e móveis: localização. 22.3. Móveis e imóveis como termos
técnicos. 22.4. Direitos relativos aos bens. 22.5. Jurisdição territorial. 22.6. Classificação dos bens. 22.7.
Posse. 22.8. Propriedade. 22.9. Usufruto. 22.10. Hipoteca. 22.11. Obra literária. 22.12. Direito da
personalidade e privacidade.
22.1. Facetas históricas
Os bens podem ser vistos sob duplo aspecto. Cada valor, com efeito, é passível de consideração
individual ou como fazendo parte de conjunto que forma o patrimônio de certa pessoa em íntima
relação consigo própria. Dessa intimidade resultam numerosas combinações, das quais as mais
importantes são o regime das sucessões e o regime de bens entre marido e mulher.
Deixando de lado, porém, o estatuto dos bens enquanto constituem património de uma pessoa,
conduziremos nossa análise no sentido do que dispõe o Código Civil brasileiro a respeito, com as
devidas extensões e visão internacional.
No direito antigo fazia-se distinção entre imóveis e móveis. Enquanto aos primeiros se aplicava a
lei do lugar da situação (lex rei sitae), os segundos eram regidos pela lei do domicílio de seu
proprietário, seja assinando-Lhes uma situação ficta na determinação do lugar ou fazendo depender do
estatuto real, seja considerando-os como acessórios das pessoas, devendo assim obedecer à mesma
lei que patrocinava o estatuto pessoal (mobilia sequuntur personam). Em numerosas hipóteses, porém,
aplicava-se tanto aos imóveis como aos móveis a lei do lugar de sua situação efetiva.
Tomemos do Prof. Haroldo Valladão algumas importantes facetas históricas do instituto, que no
nosso Código Civil está disciplinado no Livro li, intitulado "Dos Bens".
"Na história doutrinária do direito internacional privado é conhecida a frase de Waechter de que o
princípio da lei da situa
ção, da lex rei sitae para os bens, era o mais seguro e o mais corrente, porém, com uma restritiva:
'tratando-se de imóveis'. Veremos que essa restritiva está desaparecendo...
Nas escolas estatutárias, Bartolo IV aplicava aos bens imóveis (a uma casa) a lei do lugar da
respectiva situação, lex rei sitae, nada dizendo sobre os móveis, que Baldo, todavia, submetia à lei do
domicílio da pessoa, do proprietário, mobília personam sequuntur unindo-a à primeira: 'immobilia
concernent territoria'. O princípio era intuitivo para os imóveis, e acerca dos móveis a lei da pessoa se
impunha porque, segundo Dumoulin, eles estavam situados no domicílio do proprietário. Já a escola
francesa, com WArgentré, seguida pela escola holandesa, via na lex rei sitae para os imóveis uma
expressão da soberania territorial e quanto aos móveis a lei do domicílio do proprietário decorria da
variação de sua situação e confusão final com a própria pessoa (D'Argentre) ou da ficção legal
(Rodemburgus) de estarem situados naquele domicílio. Mas segundo ressaltou Anzilotti também para
os móveis se aplicava em certos casos a lex rei sitae e Lainé referia que se visava mais os móveis
numa universalidade (sucessão).
Nas doutrinas modernas, Story, seguindo os estatutários, levou a lex rei sitae para os imóveis a
um extremo rigor, na diretriz de D'Argentré, até à capacidade, à forma e ao fundo dos contratos sobre
os mesmos e aos direitos transmitidos, e admitia para os móveis a lei do domicílio do proprietário, mas
com a larga exceção de disposição contrária do lugar da situação dos mesmos móveis. Sua doutrina
dominou o direito angloamericano e na Europa ocidental, através das obras de Rocco, na Itália, e de
Foelix, com muitas exceções, na França, Espanha, etc. Já Savigny afastou-se imperativamente da
tradição estatutária pluralista, para adotar o regime unitário, da moderna doutrina alemã, com
Muffienbuch, Meizner e Waechter, pois a sede quer dos bens imóveis quer dos bens móveis é sempre o
lugar da respectiva situação, regulados, assim, uns aos outros, pela lex rei sitae; fazia, porém, a justa
exceção dos móveis que ocupam no espaço um lugar indeterminado e variável, que será indicado pela
vontade do proprietário ou coincidirá com o respectivo domicílio, assim a bagagem do viajante ou as
mercadorias expedidas pelo negociante para um país longínquo. Justificou a lex rei sitae pelas idéias
da moda, pela autonomia da vontade, afirmando: 'quem deseja adquirir ou exercer um direito sobre
uma coisa transporta-se para onde está situada, submetendo-se, assim, voluntariamente ao direito do
lugar'. Finalmente, para Mancini e a escola ítalo-franco-belga, a tendência lógica seria considerar o
direito dos bens como pertencente ao direito privado necessário e, pois, regido pela lei nacional do
proprietário e assim dois dos seus grandes seguidores, Laurent (Bélgica) no seu projeto de Cód. Civil,
art. 13, e WeiSS (França), em sua obra, aplicaram aos bens a lei nacional do proprietário. Mas o Cód.
ital., 1865, art. 7°-, só a aplicou aos bens móveis e com a larga exceção de Story, antes referida, e
muitos autores italianos justificaram a lex rei sitae para os imóveis por uma exigência de ordem pública,
tendo Bartin, na França, visto na regra um princípio de 'sécurité', que impõe a absoluta generalidade
dos preceitos sobre os bens".
Na doutrina coletiva, o lnstitut de Droit Internacional aprovou a Resolução de Madrid, de 19 de
abril de 1911, acerca dos conflitos de leis em matéria de direitos reais, em geral estabelecendo o
regime unitário, lex rei sitae, sem distinção entre bens imóveis e móveis (art. 3°-), e sem excessos, pois
a capacidade e forma extrínseca relativas seguiriam as respectivas regras gerais, com algumas
variantes.
"A posição original, necessária para dar eficácia ao princípio unitarista, no caso difícil da
mudança de situação dos bens móveis, em trânsito, sem situação permanente, foi a proposta pelo
insigne brasileiro Freitas, 1860, no art. 411 do Esboço do Cód. Civ. do Império do Brasil."
Suprimiu ele as exceções de Savigny para a bagagem do viajante e as mercadorias em trânsito,
para os bens móveis em movimento, por uma fórmula feliz e prática, localizando-os no tempo, fixando
temporalmente a respectiva lex rei sitae. Eis o seu texto, na íntegra, sobre a matéria: "Art. 411. O lugar
da existência das coisas imóveis no Império, ou fora dele, será o de sua situação; e o das coisas
móveis, aquele em que se achavam no dia da aquisição dos direitos reais que sobre elas se alegar, ou
no dia da aquisição da posse, ou em que se acharem no dia em que sobre elas se intentar alguma ação
ou procedimento judicial", sublinhada a novidade. E, em nota justificativa, declarava ser "falsa a
distinção que se tem feito entre as coisas móveis e imóveis, reconhecendo que ela deriva de uma ficção
e que a ficção deve cessar com o fato real da existência das coisas em um lugar dado", citando as
muitas exceções de Foelix e Savigny.
Teixeira de Freitas, com a sábia solução acima, tornou desnecessárias quaisquer exceções,
estabelecendo para os móveis a
lei da sua situação no dia (fixação local temporal) da aquisição dos direitos reais que sobre eles se
alegarem ou do dia da aquisição de sua posse, ou do dia em que se acharem, em que sobre eles se
intentar procedimento judicial.
Completando o texto de Freitas, para localizar também os imóveis no tempo e lhes dar ainda
situação local temporal (pois eles podem, também, mudar de situação, fisicamente: acessão, avulsão;
ou juridicamente: permuta ou anexação de territórios) dispôs Haroldo Valladão no Anteprojeto de seu
Código de Aplicação das Normas Jurídicas, art. 45: "A aquisição da posse e dos direitos reais se rege
segundo a lei da situação do bem no dia em que se integraram as respectivas condições, e os direitos
alegados nas ações reais segundo a mesma lei no dia em que se iniciou o processo judicial". É fórmula
genérica que fixa, no tempo, a lex rei sitae para quaisquer bens.
O direito internacional privado brasileiro recebeu a influência de Savigny em relação ao critério
unitário da regra lex rei sitae. Dizia o art. 10 da Introdução ao Código Civil (1916), em sua primeira
parte: "Os bens, móveis ou imóveis, estão sob a lei do lugar onde situados...".
22.2. Imóveis e móveis: localização
A aplicação dessa regra, em verdade, não cria dificuldade para os imóveis. No que concerne à
conexão propriamente dita, os imóveis que estiverem situados aqui ou acolá de uma fronteira podem ter
aplicação distributiva de duas leis interessadas. Contudo, as coisas transportadas, como mercadorias,
bem assim os meios de transporte eles próprios, oferecem dificuldades de localização. Como é sabido
no que concerne a aeronaves e navios, ou sofrem qualificação legal, considerando-se-os imóveis, ou
têm a tutela do lugar da matrícula ou de pavilhão.
Quando a hipótese é de transporte terrestre, a localização do bem envolve problema de prova, e
para considerar resolvida a situação do bem no momento preciso em que o estatuto pode ser posto em
causa, não constitui elemento de conexão significativo, em razão de sua precariedade. Melhor do que
aplicar a lei da situação efetiva dos bens, supostamente determinada, deve-se
submeter as mercadorias à lei do lugar de destinação ou, se este for desconhecido, a do lugar da
expedição.
Freqüentemente a venda de mercadorias exige transferência de documentos, sendo, então de
maior conveniência considerá-los como representativos das mercadorias, sem consulta à lei da
situação efetiva; em conseqüência, a lei do lugar da remessa será reconhecida apta a apelar a
transferência da propriedade. É preciso, porém, admitir que os direitos de um adquirente a non domino
cedem diante daqueles do possuidor segundo a lei da situação efetiva do bem.
Analisando a questão do conflito móvel, Bemard Audit adverte que o deslocamento de móvel de
um país para outro acarreta sua submissão sucessiva a duas leis, sem reconhecer necessariamente os
mesmos direitos sobre ele, quer dizer, um conflito imóvel. A teoria dos direitos adquiridos desejaria que
os direitos do qual o móvel é objeto no país de origem fossem reconhecidos, nos países onde viesse a
ser introduzido. Essa solução faz prevalecer a segurança dos terceiros de boa-fé, assim obrigados a
respeitar direitos sobre os quais não poderiam praticamente conhecer a existência. Em compensação, a
transposição de princípios recebidos em matéria de conflitos de leis no tempo conduz a não aplicar a lei
antiga senão pelos modos de aquisição dos direitos sobre o bem e os efeitos correspondentes, ao
passo que o conteúdo dos direitos e seus efeitos vindouros serão imediatamente submetidos à lei da
situação atual.
Em todos os casos em que se aceitará reconhecer os direitos adquiridos sob o império de uma
lei estrangeira, pode tornarse necessária a transposição dos direitos em questão, por não serem
exatamente equivalentes àqueles previstos pela lei local.
A lei do lugar da situação dos bens móveis e imóveis determina o conjunto de seu regime,
compreendido como disposição das relações entre a pessoa e a coisa. O princípio faz respeitar a
soberania do Estado sobre os bens situados sobre seu território. Do ponto de vista do direito privado,
ele tende a preservar os terceiros da surpresa que constituiria a revelação de direitos desconhecidos da
lei local ou oponíveis, nas condições não previstas por esta. A lei local define, assim, em primeiro lugar,
as coisas objeto de imóvel, de onde se deduz seu regime. Essa regra está
ligada ao fato de que a lex rei sitae é aplicável tanto aos imóveis como aos móveis.
22.3. Móveis e imóveis como termos técnicos
Contudo, como explica Amilcar de Castro móvel ou imóvel não são em direito o mesmo que
vulgarmente significam essas palavras. Bens móveis e imóveis são apenas termos técnicos.
Juridicamente considera-se conveniente tratar os valores de certas coisas como bens móveis e os
valores de outras como bens imóveis, independentemente da mobilidade natural das coisas cujos
valores são tomados em consideração.
Por outro lado, acrescenta o insigne mestre, o jurista só se refere à qualificação dos bens em si
mesmos considerados como pressupostos de validade das apreciações jurídicas. O jurista toma em
consideração as relações humanas a respeito dos valores que possam determinar coisas do mundo
exterior, e para esse efeito é que cuida de qualificar os bens (valores das coisas) como pressupostos de
validade daquelas apreciações.
Atualmente, a palavra e, "bens" compreende valores de toda espécie, como, por exemplo, de
casas, terras, móveis, créditos, rendas, direitos de autor, patentes de invenção, nome e clientela do
comerciante. Os bens, acentua Amilcar de Castro, podem, portanto, ser valores de coisas corpóreas, de
existência verificável pelos sentidos, principalmente o do tato (quae tangi possuno, e podem ser
também valores de coisas incorpóreas, de existência não reconhecível pela vista, ou por apalpação
(quae tangi non possunn, não podendo ser apanhados senão pela inteligência (solo juris intellectu
consistunl).
22.4. Direitos relativos aos bens
Conseqüentemente, a respeito dos bens, em si mesmos considerados ou como objeto de
relações juridicamente apreciáveis, vários direitos podem ser contemplados: o da situação para o jus in
re; o do lugar da constituição do contrato para o jus ad rem; o do domicílio para a capacidade das
partes; o do lugar do ato para a forma respectiva; o do domicílio do de cujus para a sucessão; o do
domicílio conjugal para o regime matrimonial; e o do lugar do principal estabelecimento para a falência.
22.5. Jurisdição territorial
Em razão do princípio inconteste segundo o qual cada país exerce seu poder exclusivo de
império e de jurisdição sobre toda a extensão do território, deve-se admitir que não somente o território
mas, ainda, as coisas ali contidas devem ser submetidos ao imperium, à auctoritas e à jurisdição do
soberano territorial, de onde o axioma quidquid est in territorio est etiam de territorio.
Desse princípio resulta que a qualificação das coisas diante de sua condição jurídica depende
absolutamente da lei territorial, porque na realidade o legislador, assim dispondo, não se preocupa em
saber se elas pertencem a tal ou qual pessoa, a um cidadão nacional ou estrangeiro, mas,
considerando essas coisas como objetos do direito, determina-lhes a qualidade das condições jurídicas
de que são dotadas.
A primeira vista, pode parecer que não existe nenhuma dúvida razoável a esse respeito.
Contudo, as dificuldades surgem, porque certos objetos, móveis por sua natureza, podem ser
declarados imóveis por uma disposição de lei, como é o caso dos navios entre nós. Em direito
comparado, verifica-se que inúmeros legisladores, com efeito, declaravam imobiliários certos bens
mobiliários, dependendo de sua destinação, tais como, por exemplo, os animais atrelados a uma
exploração agrícola, os instrumentos de agricultura, os aparelhos necessários às fábricas. Outros
legisladores declaravam certas coisas imóveis tendo em consideração o objeto ao qual se relacionam:
tal ~ é o fato, por exemplo, do legislador italiano, que considera imóvel o direito de enfiteuse sobre bens
de raiz submetidos a esse direito, as ações que se destinam à garantia de imóveis ou direitos relativos
aos imóveis, ou, ainda, como ocorre no Brasil, os títulos da dívida pública gravados de cláusula de
inalienabilidade.
22.6. Classificação dos bens
As classificações dos bens são bastante diversificadas nos diferentes sistemas. A título de
exemplo vejamos a disposição do Código Civil francês, cujo art. 524 é do seguinte teor:
"Art. 524. Les objets que le proprietaire d'un fonds y a piacés pour le service et I'exploitation de
ce fonds, sont immeubles par destination.
Ainsi, sont immeubles para destination, quand ils ont été piacés para le propriétaire pour le
service et I'exploitation du fonds:
Les animaux attachés à Ia culture;
Les ustensiles aratoires;
Les semences données aux fermiers ou colons partiaires;
Les pigeons des colombiers;
Les Japins des garennes;
Les ruches à miei;
Les poissons des étongs;
Les pressoirs, chaudières, alambies, cuves et tonnes;
Les restensiles necessaires à I'exploitation des forges, papeteries et autres usines;
Les pailles et engrais.
Sont aussi immeubles par destination tous effets mobiliers que le proprietaire a attachés au fonds
à perpétuelle demeure".
O princípio consagrado no art. 300 do Código Civil austríaco, que submete os imóveis à lei do
lugar onde estiverem situados e segundo o qual todos os outros bens, ao contrário, devem submeter-se
às leis às quais está subordinada a pessoa de proprietário, está em conformidade com a regra
tradicional consagrada pela doutrina e jurisprudência de todos os países que, admitindo a máxima
mobília personam sequuntur, mobilia ossibus personae inhaerent, constantamente reconheceram que
os bens mobiliários, do ponto de vista da lei aplicável para regular os direitos que lhes são
concernentes, devem ser regidos pela lei pessoal daquele ao qual eles pertencem, e que sua situação
real deve ser considerada irrelevante.
Essa é a orientação legal do direito internacional privado brasileiro, que, no art. 8°- da Lei de
Introdução ao Código Civil, assim dispõe:
"Art. 8° Para qualificar os bens e regular as relações a eles concernentes, aplicar-se-á a lei do
país em que estiverem situados.
§ 1°- Aplicar-se-á a lei do país em que for domiciliado o proprietário, quanto aos bens móveis que
ele trouxer ou se destinarem a transporte para outros lugares.
§ 2°- O penhor regula-se pela lei do domicílio que tiver a pessoa, em cuja posse se encontre a
coisa apenhada".
Considerando esse princípio pergunta-se se a lei pessoal do proprietário, segundo a qual dada
coisa é considerada como imobiliária, pode assim considerá-la em toda parte, e, em conseqüência,
mesmo na hipótese onde, de acordo com a lei territorial, ela fosse declarada imóvel, seja por
destinação, seja em razão do objeto ao qual ela se refere.
A solução dessa questão no sentido da afirmativa ou da negativa pode gerar conseqüências
jurídicas importantes na prática, pois a capacidade das pessoas de praticar certos atos depende em
alguns casos da condição jurídica dos bens. Assim, por exemplo, a alienação de bens pertencentes à
mulher casada não pode ser feita sem autorização do marido (art. 242 do Código Civil), mas, ao
contrário, é valida se se tratar de coisas mobiliárias. Essa circunstância serve para demonstrar que,
quanto aos atos sujeitos a certas formalidades substanciais, quer se trate de bens imobiliários ou
mobiliários, é natural que tudo deva depender da qualificação jurídica das coisas. Contudo, é preciso
salientar que nessa matéria não se admite a autoridade do estatuto pessoal, porque a lei que determina
a condição jurídica dos bens ou coisas dispõe a esse respeito sem se preocupar com as relações entre
a pessoa e a coisa e a pessoa à qual essa coisa pertence.
22.7. Posse
A posse pode ser considerada segundo duplo ponto de vista:
a) como um fato puro e simples, independente da aquisição ou do exercício de um direito. Tal é a
posse natural, que os romanos qualificavam muda defentio, esse in possessione;
b) como um fato jurídico, que, com abstração de todo direito preexistente, produz por si mesmo
certas conseqüências legais. É a posse no sentido técnico, ou posse jurídica: ela resulta dos atos
sensíveis exercidos por qualquer um sobre determinado objeto ex-
terior de modo a manifestar a intenção de submeter esse objeto ao exercício de um direito.
Considerada desse ponto de vista, a posse produz conseqüências jurídicas importantes,
sobretudo quando tende a afirmar um direito de propriedade ou um direito real, por meio da vontade de
possuir a coisa animo domini e de tê-la à sua disposição física, para adquirir, assim, abstração feita ao
direito preexistente, o direito de propriedade ou direito real.
A posse pode também ser considerada como fato jurídico, com a ajuda da qual se manifesta e se
exerce o direito de propriedade. Assim entendida, porém, torna-se antes exercício de direito
preexistente, constituindo o que se intitula o jus possidendi.
É evidente que a posse considerada como fato jurídico, realizada segundo condições
estabelecidas pela lei territorial, produz todas as conseqüências que esta atribui a tal fato.
Resulta, portanto, desse princípio que o possuidor, seja cidadão nacional ou estrangeiro, pode
prevalecer-se de todos os meios jurídicos permitidos pela lei do lugar da posse, quer para fazer cessar
turbações e para manter-se no seu exercício, quer para reintegrar-se se despojado da coisa.
Deve-se admitir, destarte, em princípio, que o jus possessionis deve ser regido pela lex rei sitae;
o mesmo ocorrendo em relação às ações possessórias.
22.8. Propriedade
A propriedade, em geral, é o direito de gozar e dispor das coisas de modo absoluto, desde que
não se faça uso proibido pelas leis e pelos regulamentos.
Considerada em face da pessoa que a detém, deve a propriedade ser regida pela lei da qual ela
possa resultar. Segundo as circunstâncias, pode ser tutelada pela lei do lugar onde a coisa que a
constitui está situada, mas não é valido assegurar que a lex rei sitae é o único princípio sustentável,
porque não se pode, de acordo com essa indicação territorial, determinar se a pessoa deve ou não ser
a legítima proprietária da coisa imobiliá-
ria. Genericamente, os modos de aquisição da propriedade dependem da lex rei sitae, seja ela a título
universal ou a título particular.
22.9. Usufruto
Em matéria de bens imóveis, podem ocorrer delicados problemas de direito real de usufruto, em
suas duas modalidades: voluntário ou legal. No primeiro aspecto, nosso direito concede certa margem
de autonomia da vontade, posto que, de acordo com o que resulta expresso nos arts. 713 e seguintes
do Código Civil, o usufruto se rege em primeiro lugar por seu título constitutivo e subsidiariamente pelas
disposições legais. Não obstante, na regulação do usufruto em todos os países existem disposições
imperativas que não podem ser descartadas por pacto em contrário ou por aparecer o usufruto regulado
por lei estrangeira, tais como as que estabelecem a esse direito real um limite máximo de duração ao
constituir-se a favor de uma pessoa jurídica ou durante a vida de vários indivíduos. É o caso do Brasil,
onde o usufruto se extingue com a pessoa jurídica, ou, se esta perdurar, aos cem anos da data em que
se começou a exercê-lo (art. 744).
Nos usufrutos legais podem entrar em colisão a lex rei sitae e a que regula a instituição dentro da
qual se concede a um de seus sujeitos o usufruto de certos bens. E em nosso Código existem três
possibilidades de usufruto legal: o do pai ou mãe sobre os bens dos filhos sujeitos ao pátrio poder, o do
marido que estiver na posse de bens particulares da mulher, se o rendimento for comum, ou de dote de
capitais e rendas, e o do cônjuge sobrevivente, casado sob o regime da comunhão universal. Em todas
essas hipóteses, o título legal constitutivo do usufruto é pessoal e não territorial. Claro é que a
efetividade dos direitos usufrutuários sobre bens imóveis estará também em função de seu
reconhecimento no país da situação dos bens, e do cumprimento das medidas que a legislação desse
país exija para sua oponibilidade diante de terceiros.
Reciprocamente, no Brasil, por exemplo, será suscetível de reconhecimento o usufruto legal
imposto sobre bens situados em nosso território pela legislação pessoal que rege o pátrio poder, o dote,
a sucessão de estrangeiros etc., segundo a regra geral de nosso direito.
22.10. Hipoteca
Quanto à hipoteca aplicar-se-á a lex rei sitae para determinar seu conteúdo e exercício;
relativamente à sua base contratual, ter-se-á em conta a autonomia da vontade dos contratantes, até o
limite em que não se oponha à ordem pública local.
Sendo a hipótese um direito limitativo do domínio, e, portanto, manifestação do regime de
propriedade, reger-se-á o gravame pela lei da situação do imóvel que presidirá sua constituição; a
retenção ou exame dos bens suscetíveis de ser hipotecados; as formalidades de inscrição e
publicidade. Modernamente, concedese aos estrangeiros o gozo dos chamados direitos preferenciais
sempre que a causa da preferência invocada seja reconhecida pela lei do país onde se pretende
invocá-la.
Importante e significativo o posicionamento do Prof. Haroldo Valladão, que passamos a
transcrever:
"Acerca dos direitos de garantia, especialmente da hipoteca, discutiu-se nos tribunais brasileiros
se a dívida por ela garantida, o contrato de empréstimo, se rege pela lei brasileira, aqui estando o
imóvel hipotecado.
Sustentamos em dois estudos, longamente desenvolvidos, sobre dívidas em moeda estrangeira
simples e sua distinção da 'cláusula ouro'.
Fica afastada desde logo qualquer influência da lei reguladora da garantia, da lei da situação dos
imóveis hipotecados. Não há em foco qualquer problema de direito real, não se questiona sobre direito
hipotecário, a respeito da validade da garantia dada pela devedora. E se não se discute a respeito de
'atos relativos ao regime hipotecário brasileiro' não é possível a aplicação da lei brasileira com
fundamento no parágrafo único, n. IV, do art. 13 da Introdução do Código Civil. Muito mais descabido
seria pleitear, num debate exclusivamente feito sobre o modo de cumprimento da obrigação, de
pagamento da importância mutuada, a aplicação da lei da garantia, pretender que a lei do acessório
disciplinasse o principal, que a lei da hipoteca fosse a reguladora da dívida". E ainda mais: "Mas é
corrente, até elementar, que a lei que rege a garantia, no caso a lei disciplinadora do direito real da
hipoteca, não é a mesma que regula a dívida, na espécie, o mútuo. Num contrato de empréstimo por
obrigações ao portador, com garantia especial hipotecária, há dois negócios, um, o principal, o emprés-
timo, e outro, o acessório, a hipoteca. O primeiro, direito de crédito, círculo do direito das obrigações, o
segundo, direito real, círculo do direito das coisas; cada um com suas regras próprias no campo do
direito internacional privado".
O assunto foi largamente discutido, em dois casos mandando-se aplicar a lei brasileira, mas por
se entender que o lugar da execução era o Brasil. Em um, da Cia. Tecidos Paulista e do British Bank of
South America Ltd., no Tribunal de Pernambuco (primeiro acórdão in Rev. Forense 92/179 e ss., não
prosseguindo por ter havido acordo) e noutro, da Cia. América Fabril S.A. e The City Bank Farmer Trust
Co. Ltd., no Tribunal do antigo Distrito Federal (Rev. Forense, 95/334) e no Supremo Tribunal Federal
(primeiro acórdão, 111 Turma, 15.6.44, Rev. Forense 99/652, não tendo prosseguido ex vi do D. L. n.
6.650, de 29.6.44, excetuando o caso de obrigação contratual no estrangeiro e exeqüível no Brasil, e
aplicável à espécie por não existir ainda decisão judicial transitada em julgado). É de se destacar, ainda,
no debate geral, notável voto vencido do eminente e saudoso Min. Philadelpho Azevedo (Rec. Extr.
6.728, Rev. Forense 99/354, em "Um Triênio de Judicatura", I, 115), concordando com a opinião acima
transcrita do eminente mestre Haroldo Valladão.
22.11. Obra literária
As prerrogativas jurídicas consistentes na exploração dos benefícios produzidos por uma obra
literária, científica ou industrial se encontram tratadas como propriedades especiais, em leis próprias,
denominadas propriedades intelectual e industrial.
A índole especial desses direitos reais de caráter material reclama extraterritorialidade em sua
proteção, que se conseguiu mediante tratados internacionais. Em razão da importância do direito
convencional, resultante notadamente de duas Convenções multilaterais, o direito interno adquire
significação mais restrita. São elas: a Convenção de Berna de 1886, várias vezes revisada, e a
Convenção de Genebra de 1952, igualmente revisada, chamada "Convenção Universal", de aplicação
mais extensa, mas menos protecionista. As diferentes convenções colocam o princípio da assimilação
do estrangeiro ao nacional, isto é, os autores estrangeiros devem beneficiar-se da mesma proteção
pelas suas obras que os autores nacionais, mas segundo modalidades diferentes. De acordo com a
Convenção de Berna, beneficiam-se da proteção
nacional, de um lado, os autores súditos dos países da União ou tendo sua residência habitual em um
desses países por suas obras publicadas ou não, e daqueles de países não pertencentes à União por
suas obras publicadas em um desses países (art. 3.1. e 2). A Convenção de Genebra beneficia com
proteção nacional os súditos de todo Estado contratante por suas obras publicadas pela primeira vez no
território de um Estado contratante; um Estado contratante pode, além disso, por sua legislação interna,
assimilar aos seus nacionais qualquer pessoa domiciliada em seu território (art. II). Segundo Bernard
Audit em boa análise, essas disposições visam a proteção dos estrangeiros e deixam teoricamente
aberta a questão de saber segundo qual lei os direitos são exercidos; chega-se assim a uma
combinação de leis do Estado de origem e do Estado receptor. Contudo, algumas vezes eles são
compreendidos como se um impusesse a aplicação integral da lei ao outro.
Anote-se, também, a existência da Convenção de Roma de 1961 sobre a proteção dos artistas,
intérpretes ou executantes, dos produtores de fonogramas e de organismos de radiodifusão.
22.12. Direito da personalidade e privacidade
O direito internacional privado contemporâneo impôs-se a tarefa de incorporar ao seu campo de
ação não só questões relativas à proteção da personalidade como à vida privada, na qual se inclui o
direito à imagem e suas conseqüências. Soma-se a esse cabedal o regime do dados informatizados.
O conceito de direito da personalidade é relativamente recente em direito interno, tanto no Brasil
como no estrangeiro. É, igualmente, heterogêneo, pois abrange aspectos muito diversificados, como o
direito à imagem, o respeito à privacidade, a integridade física, a honra, e, ainda, como abordado, o
direito moral do autor e do artista a sua criação.
Esses direitos adquirem particular relevo com o desenvolvimento da sociedade tecnocientífica
com as telecomunicações, informática, pesquisas genéticas etc., que multiplicam as possibilidades de
violação dos objetivos, notadamente através de suas aplicações mercantis. Pela mesma razão essas
violações cada vez mais adquirem caráter internacional, bastando pensar no papel que desempenha a
mídia, e em particular a televisão.
A sanção de uma violação em dado país coloca preliminarmente a questão do gozo de direitos
pelos estrangeiros. Este é, entretanto, muito teórico, tendo-se em vista o caráter fundamental da
maioria dos direitos em tela, que constituem freqüentemente o postigo privatista dos direitos do homem
ou liberdades públicas.
François Rigaux examinou essa problemática com muita acuidade ao estudar "a lei aplicável à
proteção dos individuos em face do tratamento automatizado dos dados de caráter pessoal' j
Esses elementos foram colhidos pelo autor na Convenção do Conselho da Europa, ainda em
projeto em 1980.
Assim, a matéria dos "dados de caráter pessoal" significa toda informação concernente a uma
pessoa física identificada ou identificável. E "tratamento informatizado" é compreendido como
operações subseqüentes efetuadas na totalidade, ou em parte, com a ajuda de procedimentos
automatizados: registro de dados, aplicação a esses dados de operações lógicas e/ou aritméticas, sua
modificação, apagamento, extração ou difusão.
Segundo o art. "2b" do projeto supra-aludido, "fichário automatizado" significa "todo conjunto de
informações tendo como objeto um tratamento automatizado", contendo o seguinte comentário: "A
expressão fichário automatizado substitui aquela de banco de dados eletrônico, utilizada anteriormente,
assim como em certas leis nacionais. Em nossos dias, banco de dados é utilizado em sentido mais
especializado, notadamente um fundo comum de dados acessível a diversos utilizadores".
A advertência de Rigaux é de que não mais é permitido ignorar a concentração de informações
pessoais, nos "fichários automatizados", capazes de subverter o equilíbrio atual dos poderes societários
e ameaçar a intimidade da vida privada de cada cidadão.
Para o inventário das principais questões de direito internacional privado suscitadas para a
proteção dos indivíduos em face do tratamento automatizado de dados de caráter pessoal, deve-se ter
conta:
- da diferença de estatuto entre um fichário automático gerado por administração pública e tal
fichário pertencente ao setor privado.
- da diversidade de métodos de proteção postos em prática, a principal distinção separando os
controles exercidos por autoridade administrativa das ações civis pertencentes à pessoa em cujo nome
os dados foram registrados, sendo essas ações dirigidas seja contra o dono do fichário, seja contra um
terceiro utilizando esses dados produzidos ou adquiridos de modo ilícito.
Amplamente considerada a temática, verifica-se que, no domínio das violações contra a pessoa,
os demandantes se colocam geralmente no terreno da responsabilidade civil. Em termos de
jurisprudência internacional, a qualificação tem-se orientado no sentido de considerar as conseqüências
dos atentados contra a vida privada de uma pessoa ou da violação do direito que ela possui sobre sua
imagem ligadas à lei do lugar onde esses atos foram cometidos.
Essa concepção, entretanto, leva ao afrontamento de uma dificuldade importante: a da
localização dos fatos visados e daqueles que devem ser retidos em face da grande dispersão possível.
Quanto ao caso típico de transgressão da vida privada por publicação de fotografias indiscretas em
"magazine", por exemplo, o fato gerador é constituído por uma cadeia de acontecimentos, indo da
observação dos fatos e gestos do interessado à tomada de clichês e posteriormente sua impressão e
difusão, cada um podendo situar-se em um país diferente. No que tange à localização do dano, pode-se
hesitar, notadamente, entre o lugar da difusão, na maior parte das vezes múltiplos, e o domicílio da
vítima ou a sede de sua atividade principal. Se fizermos preponderar o dano sobre o fato gerador, o
domicílio do demandante deve prevalecer enquanto lugar onde se concentra o prejuízo. É, igualmente,
concebível admitir ao interessado opção em favor da lei do estabelecimento do autor do delito, sob o
argumento de que este deve respeitar as regras de comportamento que ali estiverem vigorando.
Contudo, parece mais conforme à realidade considerar que, nos casos das violações por meio da
imprensa, a difusão realiza um dano distinto em cada país onde ocorre, e, assim, aplicar
distributivamente a lei dos diferentes países em que o efeito se produziu; isso levará a adotar o critério
da difusão local e a avaliar distintamente o dano sofrido em cada território.
Como se vê, nesse campo a matéria se torna cada vez mais importante, dado que a facilidade
das comunicações propicia com maior intensidade a ocorrência de tais fatos, e ao direito internacional
privado incumbe proporcionar os meios de solução de tais problemas.
Todo esse contigente fático se inclui no quadro amplíssimo da propriedade intelectual, no qual
encontra esteio metodológico o direito da personalidade, compondo essas duas áreas fértil manancial
técnico-conflitual para o direito internacional privado na extensão e abrangência da problemática dos
bens.
23. Das Obrigações
23.1. Matéria polêmica. 23.2. Evolução cronológica. 23.3. Direito comum de nossos dias. 23.4.
Elementos caracterizadores. 23.5. Lex validitatis e specific performance. 23.6. Princípio da autonomia
da vontade. 23.7. Direito subjetivo. 23.8. Autonomia da vontade no plano conflitivo. 23.9. Designação de
lei e contrato sem lei. 23.10. Regra obrigacional brasileira. 23.11. Obrigações não convencionais. 23.12.
Aplicação do direito. 23.13. Substância do contrato.
23.1. Matéria polêmica
A obrigação voluntária e a obrigação convencional, isto é, as obrigações que nascem do contrato
ou do fato contratual, implicam a presença de tão complexos elementos integrantes que suscitam
sempre árdua questão quando se trata de regulá-las no tráfico internacional privado. A dificuldade de
localizar o contrato, a concorrência aderida aos elementos pessoais, reais e formais e a participação
dos interesses públicos e privados internos e internacionais converteram as obrigações voluntárias em
uma das matérias mais polêmicas em direito internacional privado.
No mesmo sentido a afirmação de Amílcar de Castro:
"Tem sido penoso e interminável o problema da prevalência desta ou daquela circunstância de
conexão em matéria de obrigações: até agora doutrinariamente insolúvel, e positivamente mal resolvida
pela legislação e pela jurisprudência, na opinião de Arminjon 'é sem dúvida a mais difícil das questões
de direito internacional privado'. Numerosos autores modernos têm pelejado por submeter as
obrigações a um só direito, pretendendo manter a unidade do contrato e o espírito do direito por que há
de ser apreciado, mas o resultado do esforço tem sido nulo, podendo-se dizer que cada autor tem seu
sistema. Entendem vários tratadistas que a desconjunção do contrato não só o desfigura, como importa
desnaturação dos direitos aplicados em pequenas porções. Ensi-
nam que o direito perde sua significação e sua eficácia quando mutilado, parcialmente aplicado, ou
combinado com direito estranho, pois falta unidade e coesão lógica à composição de vários direitos,
enquanto o contrato forma um todo, cujos elementos não podem ser convenientemente articulados
senão apreciados por critérios fornecidos por uma única ordem jurídica".
Os comentários assim encaminhados, entretanto, não desconstituem o rico acervo das questões
que envolvem o direito das obrigações no direito internacional privado, recheado de incidentes
doutrinários e práticos, mas nunca enfraquecendo o papel que, em decorrência, desempenham os
contratos como instrumentos indispensáveis de sua efetivação nos inúmeros campos jurídicos
delimitados pela natureza das coisas.
Ao enfrentar o estado das obrigações é indispensável distinguir duas modalidades fáticas:
aquelas que têm sua origem no contrato e aquelas com fonte diversa, denominadas obrigações
extracontratuais. Tanto na primeira hipótese como na segunda, a pesquisa do elemento de conexão é o
objeto principal, sendo desde logo assinalável que nas obrigações contratuais essa tarefa é
particularmente difícil.
Ao contrário das relações de família, cujo elemento de conexão é singelamente determinado pelo
princípio do estatuto pessoal (lei nacional ou domiciliar), ou, então, nos direitos reais, a lei do lugar da
situação, não ocorre o mesmo com a individuação, mais apropriada para regular os contratos. A
essência de um contrato, como diz Edoardo Vitta, consiste, de fato, no surgimento de um vínculo
obrigatório entre as partes, e isso, por si só, não apresenta características tais que permitam agilmente
determinar a conexão a uma ou outra lei.
23.2. Evolução cronológica
Em épocas remotas, os autores que cuidaram da questão propuseram a respeito da solução as
mais diversificadas, como explicam alguns historiadores do direito internacional privado, entre os quais
Lainé (Introduction au droit intemational privé; contenant une étude historique et critique de Ia theorie
des statuts, 2 vols., Paris, 1892), Gutzwiller (Le dévelopement historique du droit international privé, RC,
29, 1929) e Meijers (L'histoire des principes
fondamentaux du droit intemational privé, à partir du Moyen Age, speciallement daus I'Europe
occidentale, RC, 49, 1934).
Edoardo Vitta, colocando em ordem cronológica essa evolução, distingue teorias que individuam
a lei reguladora dos contratos, estabelecendo uma conexão de caráter territorial entre contrato e lugar
de sua conclusão, ou, então, entre contrato e lugar de sua execução. Nesse sentido já se orientavam
autores dos séculos XII e XIII e, posteriormente o estatutário Bártolo de Sassoferrato (1314-1357), o
qual, referindo-se à lei Si fundus, afirmava a natural dependência do contrato ao lugar de sua
conclusão. Entre os sequazes de Bártolo, menciona-se Paolo di Castro que, comentando também a lei
Si fundus, acentuava que o contrato é regulado pela lei do lugar de sua conclusão, in verbis: "guia talis
contractus dicitur ibi nasci ubi nascitur, et sicut persona ratione originis ligatur a statutis loci originis ita et
actus", ou, em vernáculo: Porque do contrato se diz que é nascido onde nasceu, como uma pessoa que
é ligada por motivo de sua origem às leis de seu lugar de origem.
Saltando no tempo encontramos Savigny, que, também referindo-se às fontes romanas,
sustentou que o contrato deve ser regulado pela lei do lugar no qual é destinado a ser executado (lex
loci solutionis), isto é, os contraentes estabelecem onde as obrigações recíprocas devem ser
cumpridas. Para Savigny, a execução é o verdadeiro escopo em vista do qual o contrato se conclui, e
constitui, portanto, o momento essencial na vida da relação obrigacional.
Outras teorias, desenvolvidas por Windscheid, von Bar e Zitelmann, já não se fundam em uma
conexão territorial, mas, sobretudo naquela que deflui das pessoas dos contraentes, e, em especial do
devedor, afirmando que se deve recorrer às leis pessoais destes. No que respeita às motivações,
Zitelmann assevera que a obrigação exprime um poder jurídico de uma pessoa, poder que, portanto,
poderia ser conferido somente pela lei à qual a pessoa estivesse sujeita, isto é, a sua lei pessoal. Na
mesma linha, outros autores dessa teoria proclamavam que é lógico submeter o devedor à lei que
melhor conhece, ou seja, sua lei pessoal.
Ulteriormente o pensamento se orientou no sentido de tomar os contraentes como ponto de
partida, mas marginalizou as leis
pessoais, fixando-se, prevalentemente, na vontade, de modo que o contrato se submetesse à lei objeto
da escolha das partes. Adotou-se nessa fase o princípio da autonomia da vontade, cuja origem é muito
antiga, como se sabe, remontando aos estatutários do século XVI.
No common law alei reguladora do contrato não pode ser prefixada de modo absoluto, nem
mesmo pelos próprios contraentes, mas deve ser individuada em cada caso pelo juiz, tendo em vista os
elementos relevantes, entre os quais a vontade das partes. O juiz, no momento do litígio sobre um
contrato, deverá pesquisar a lei mais apropriada, isto é, a proper law do contrato, na base da qual
proferirá sua decisão. Todas as teorias supra-referidas, em medida maior ou menor, influenciaram os
atuais sistemas de direito internacional privado, podendo-se afirmar que boa parte das legislações
vigentes toma como ponto de partida o principio da autonomia da vontade, na pior das hipóteses
integrando-o com outros princípios vigentes.
23.3. Direito comum de nossos dias
Em nossos dias, o direito comum foi praticamente substituído pela Convenção de Roma de 19 de
junho de 1980, sobre a lei aplicável às obrigações contratuais, destinada a unificar as regras do conflito
no seio dos Estados-membros da CEE e que entrou em vigor no dia 1°- de abril de 1991.
Como nos ensina Bemard Audit, o direito francês, como a quase, totalidade dos sistemas (o
Brasil entra nas exceções), consagrou o princípio da lei da autonomia da vontade, isto é, a faculdade
para as partes de designar a lei aplicável ao contrato. Na ausência de escolha, a jurisprudência se
pronuncia, em geral, em função da localização do contrato. Contudo, adverte o mesmo autor, a Corte
de Cassação não tomava nitidamente partido da teoria subjetiva, segundo a qual a determinação da lei
aplicável resulta diretamente da vontade expressa ou implícita das partes, e da teoria da localização,
misturando objetivismo e subjetivismo, segundo a qual o objeto da vontade das partes não é senão
colocar o contrato sob o império de determinada lei. A teoria da localização consagra a possibilidade de
escolha direta, uma vez que a vontade das partes seja exprimida sem equívoco.
23.4. Elementos caracterizadores
As passagens doutrinárias e algumas fixações teóricas de efeitos determinadores dos contratos
internacionais levam, naturalmente, à enunciação das características identificadoras das formalizações
do comércio internacional, por meio das diversas modalidades de ajustes negociais.
Antes de se chegar a um esboço de classificação, pertine esclarecer que o vocábulo
características é adotado com o sentido de entrever, nos contratos internacionais, certas notas
distintivas, não só de estrutura como de sistema.
Ao estudar esse assunto, verificamos que nos contratos internacionais ocorre um processo
inexoravelmente desenvolvimentista, que, continuamente, gera a eclosão de novas cláusulas, sempre
destinadas a satisfazer as exigências do comércio internacional, sempre desempenhando papel de
extrema singularidade quanto às diferentes instituições que abrange.
Sem dúvida, existem regras nascidas das práticas internacionais, compostas pelos usos
profissionais, e princípios gerais do direito, com encaminhamentos inevitáveis de adaptação à vida
própria do comércio internacional, e, mesmo que se admita a forma normativa dos direitos estatais,
verifica-se que no plano internacional, em matéria de lei aplicável ao contrato, interferem disposições
supletivas e imperativas, sendo de notar-se que as primeiras periodicamente revigoram-se, por meio de
regulamentações associativas, e mesmo através da criatividade individualizada pelas especializações
do comércio.
Fenômeno que deve ser especialmente realçado é o da força crescente do princípio da
autonomia da vontade, cuja extensão já avança inclusive para a área dos países de economia
planificada, e hoje parece incontestável que a noção de contrato, estimulada por essa influência, sofreu
notáveis evoluções.
Henri Batiffol, ao prefaciar o magnífico livro de Annie Toubiana, confirma essa perspectiva, com o
seguinte pensamento: "O regime dos contratos em Direito Internacional Privado aparece dividido entre
duas tendências antagônicas. De um lado, o procedimento geral da designação de uma lei aplicável ao
contrato é visto como inadequado: são contratos que não se conectam efetivamente a nenhum sistema
jurídico estatal determinado, e esses sistemas foram concebidos por relações internas, ao passo que o
comércio internacional tem suas exigências próprias bem melhor conhecidas por aqueles que nele
estão enganjados e que se exprimem por seus próprios acordos livremente negociados, sem referência
a qualquer lei. De outro lado, e em sentido diametralmente oposto, a ênfase é colocada na intervenção
crescente do Estado em matéria de contratos, e no dirigismo econômico e social, que reduz
inexoravelmente a liberdade contratual: como recusar, a tal legislação, a aplicabilidade que reclama a
título imperativo, não obstante a designação pelas partes da lei que governa os contratos segundo o
método bem assentado dos conflitos de leis?".
Com efeito, os contratos do comércio internacional ainda se debatem entre essas duas direções,
mas o elasticismo dessa dupla tendência tem sofrido grandes distensões, com visível vantagem para as
solicitações do comércio internacional.
Essas ponderações permitem chegar, como primeira conclusão, ao convencimento de que o
principio da submissão de um contrato a uma lei determinada, no plano internacional, é quase
abstração teórica, com a evidente ressalva da ordem pública, pois interferiria, em caso contrário, na
operação contratual um elemento de estraneidade, bloqueador de sua eficácia; isso porque não se
podem deixar de considerar os efeitos de ordem técnica e as diferentes finalidades que orientam a
atividade internacional do comércio.
Em verdade, a prática jurídica internacional repousa grandemente, e até com certa obstinação,
na lex voluntatis, pois, perdendo esse princípio, aquele caráter tradicional de ajuste de vontades dos
indivíduos transformou-se numa expressão de natureza comunitária, através dos regulamentos e das
leis-tipo, quase sempre emanadas de órgãos e entidades não governamentais.
Se tomarmos o conceito de contrato segundo os cânones tradicionais, veremos que os juristas
distinguem entre os contratos clássicos - aqueles a título oneroso ou gratuito, desinteressados,
sinalagmáticos, unilaterais, consensuais, reais, solenes etc. - e procuram definir suas condições de
formação e de validade por meio do consentimento, objeto, causa, e seus efeitos entre as partes,
principalmente as relações causais entre contratantes e terceiros.
Essas visões, sedimentadas em certa acomodação doutrinária, não se coadunam com a
natureza e as características dos
contratos internacionais, que repousam mais na execução do que nos outros elementos formadores do
contrato, para o fim de se deduzir sua real contextura jurídica.
Um autor já dizia, habitualmente, que quase não há diferença entre um contrato e o amor: no
começo tudo é perfeito; somente o uso revela se o dia seguinte será de choro ou de alegrias.
Do ponto de vista prático, pode-se dizer que um contrato internacional é a constatação de uma
situação e a definição de um quadro de ação. É a expressão a priori de uma situação que deve evoluir
em um lapso de tempo, em função de decisões voluntárias, ou de causas involuntárias, das quais é
preciso ter nítida consciência. O contrato internacional é, nessas circunstâncias, um elemento dinâmico
e não um monumento jurídico.
Em lugar de, figurativamente, abrigá-lo num cofre-forte depois da assinatura e somente pegá-lo
se houver um litígio, quando não há exata recordação dos termos que contém, é preciso ter o contrato
internacional como instrumento de trabalho, que permite verificar, periodicamente, se possível com os
consignatários, se as circunstâncias nas quais foi concluído continuam as mesmas. Daí decorre a
necessidade de um preâmbulo descrevendo essa circunstância. Se, a despeito de alterações nas
circunstâncias, as partes desejam continuar sua colaboração, um aditivo ou uma complementação no
texto original será suficiente para descrever a nova situação, ou, então, até mesmo, limitar e suspender
a atividade decorrente do ajuste contratual.
Se concebermos essas colocações como pré-tipificadoras poderemos dizer que, no plano
internacional, é possível distinguir, no âmbito do contrato, dois modos: os fundamentais e os
operacionais.
Os primeiros engajam a empresa numa estrutura política. A parte fundamental é uma espécie de
utensílio de trabalho dos dirigentes e faz parte dos elementos de gestão, como ocorre, por exemplo, na
negociação de uma licença de fabricação.
Por seu turno, os modos operacionais inscrevem-se na vida corrente. São mais de caráter
estático, concluídos para e pelos serviços funcionais, no quadro de suas prerrogativas, sujeitando-se a
limitações quanto aos efeitos e aos inconvenientes que possam surgir por ocasião de sua execução,
como, por exemplo, os transportes, operações bancárias etc.
Em excelente trabalho, o eminente jurista húngaro F. Madl, examinando ao seu tempo a questão
pelo ângulo socialista, captação sempre importante para efeito do raciocínio comparativo, assim se
manifesta: "A classificação dos contratos por tipos não é de regra considerada como obrigatória pelos
modernos ordenamentos jurídicos. Nem tampouco pelo Direito húngaro. Ampla gama de contratos,
contudo, pode ser integrada dentro dos parâmetros legais de tipos que foram assumindo os seus
contornos, ao longo do desenvolvimento do Direito estatutário. Aí se incluem transações classificadas
como contratos também no âmbito do comércio internacional, e os tipos concretos desses contratos do
comércio internacional.
As regras gerais básicas que regulam os contratos são aplicáveis parcialmente somente para
algumas questões específicas (autonomia, contratos referentes a bens imóveis, navios etc.), enquanto,
por outro lado, um grande, talvez o maior, número de contratos não se subordina a esta classificação,
como é sabido. Pois as regras gerais só se aplicam às obrigações típicas, e somente para normas
legais suplementares que sejam necessárias, quando, por algum motivo, a lei especial que regula a
transação em pauta não pode ser aplicada, e novamente, isso só se aplica em número relativamente
pequeno de casos.
Similarmente, embora regras gerais regulando a forma dos contratos tenham sido discutidas, sob
outro ângulo, têm de ser enfocadas como amplo grupo, ou mesmo maior volume de litígios aparece
dentro da esfera e os vários tipos contratuais. Em cada ordenamento jurídico, legislador e jurista têm de
se defrontar com a questão de como a regulamentação legal do conflito de leis relativa aos vários tipos
contratuais deve ser abordada. A lei e a jurisprudência indicaram alguns caminhos e meios nesse
sentido".
23.5. Lex validitatis e specific performance
Na prática internacional, a lex validitatis (também chamada favor negotii) é significativa.
Ehrenzweig analisou esse princípio e demonstrou sua grande utilidade. Sem dúvida, a política de
preservar a validade de um contrato vai ao encontro do interesse no bom desempenho de qualquer
transação negocial. O princípio afirma-se igualmente no direito substantivo interno dos vários países,
bem como em dispositivos de direito internacional privado (e.g., a forma das transações), nos quais se
incluem as mais atípicas
transações internacionais sob a égide do direito das obrigações, ou formalidades especiais de tais
transações, assumindo o caráter de um favor contractus estatutário. A prática judicial, mesmo que não
como uma tese de princípios, reforçou particularmente a doutrina da lex validifatis, presença latente,
quase universal. As últimas tendências ou opiniões talvez pudessem ser mais adequadamente
designadas pelo princípio da specific performance.
Historicamente, a idéia tem sua origem nas teorias de Bar e Gierke, às quais podem ser
atribuídas as designações Natur der Sache e Schwergewicht des Rechtsverhãltnisses,
respectivamente. O que é a natureza de um contrato, onde se localiza a sua essência, e qual é o centro
de gravidade na relação jurídica? De forma direta, a teoria da specific performance responde a isso: a
essência da obrigação é a qualidade característica da função e objeto da obrigação no seu todo, ou o
contrato. Com esse reconhecimento, escreve, por exemplo, Schnitzer.. o sfatus pessoal e real
artificialmente inserido, o destaque de um elemento fático, tal como o locus contractus ou o locus
solutionis em vista de fator a priori conectante, a aplicação de uma presumida intenção das partes, que
provará tudo, e que por esse motivo nada prova, ficam suplantadas (com a idéia de specific
performance) por um fator que se acha na mesma linha das características das diversas obrigações.
O que deveria ser o direito da specific performance, quando contingências tais como a
nacionalidade, o locus contractus, ou a eleição de foro acham-se fora de questão? Esse direito é o do
lugar da execução do contrato, onde a obrigação desempenha sua finalidade específica. "Die obligation
ist vielmehr dort innerlich verankert, wo sie eine Funktion eine Daisein der Menschheit ausübt. " Isso, na
concepção jurídica dos países de livre mercado, é, no âmbito do direito comercial, o direito do lugar
onde a sede de negócios (Niederlassung) está situada e, como tal, é designada pelas partes. As
atividades e as funções de um médico, de um advogado e de um engenheiro materializam-se no local
de seu exercício profissional. No caso de artesãos, o local da execução é representado pelo local de
trabalho onde tais funções são normalmente desempenhadas. Para as atividades coletivas de
trabalhadores, a tarefa a ser cumprida, nos termos do contrato de trabalho, torna-se a specific
performance, e o local onde esse serviço é prestado é também o lugar de execução da obra. Quando
não existem elementos de conexão específicos, então, para
qualquer outra transação regida pelo direito civil, o domicílio da pessoa a quem compete a execução da
obrigação torna-se o lugar da execução.
Esse é o ponto-chave da teoria da specific performance. Certamente, e antes de tudo, trata-se de
direito dispositivo, e essa teoria não pode, nem tampouco tenciona, oferecer provisão específica para
cada problema dentro dos limites de um simples contrato (p. ex., o problema da aceitação qualitativa),
e, enquanto concerne a obrigações não típicas, essa regra geral acarretaria grande número de
dificuldades construtivas, finalmente admitindo que em certo número de casos a prática poderia
encontrar a lei de regências das transações (p. ex., a venda de um navio, ou vendas realizadas em
feiras ou bolsas de mercadorias) com base em outros elementos de conexão. Apesar de tudo, não pode
ser negado que, para bom número de codificadores modernos, o princípio da specific performance
mostrou-se importante e útil como princípio de codificação. Dispositivos reguladores dos diversos tipos
contratuais evidenciam, em larga medida, a elevação desse princípio para a condição de medida
impositiva.
O novo Código tcheco, bem como o Código polonês, estipulam que dispositivos reguladores dos
diversos tipos contratuais são introduzidos por declaração expressa de que o direito aplicável deve
alcançar regulamentação adequada do vínculo em questão. Regras cuja eficácia proviria desse
princípio prevêem, no mais das vezes, a aplicação da lei do domicílio (lugar de atuação, sede) das
pessoas a quem compete a execução. Szászy fundamenta-se em princípio muito semelhante.
Esse enfoque também prevalece nos ordenamentos onde, via de regra, incluem-se a venda de
objetos móveis e que declaram a aplicabilidade do direito do país do vendedor para esses tipos de
transações. Tal direito foi transferido, na prática, em certo número de países, também para outros tipos
negociais. A lei do vendedor foi aceita pelas Convenções da Haia, regulando as regras aplicáveis à
venda de objetos mobiliários. Como é sabido, à lei do vendedor foram atribuídas funções
suplementares e de caráter geral, tais como nas condições gerais de entrega. Esse direito se manifesta
no vasto grupo das Condições Gerais formuladas no âmbito da Comissão Econômica da Europa. O
princípio da definição do direito, com base na specific performance, implícita ou explicitamente
colocado, encontrou resposta também na litera-
tura socialista. Considerando todos os aspectos, os comentários seguintes podem ser feitos a respeito
do princípio da specific performance, ou qualquer outro princípio geral que regula a definição do direito
aplicável.
~Em primeiro lugar, o princípio da specific performance não pode ser aceito como princípio
exclusivo para toda a esfera do direito das obrigações. Parcialmente, a prática legislativa e judiciária,
sob, muitos aspectos, leva em consideração outras soluções razoáveis e adequadas (aplicação
exagerada do princípio da specific performance é limitada pela autonomia da vontade, e também, em
muitos outros aspectos, a escolha de outros caminhos e meios pareceu mais conveniente, como na
aceitação de residência comum, da sede, do locus contractus etc.). Parcialmente, como já foi
esclarecido, em muitos casos o locus contractus supera em importância o lugar da specific
performance, ou seja, a lei do devedor aparece indistintamente, e só indistintamente, por trás da lex locf
contractus.
Em segundo lugar, definindo as regras especiais dos vários tipos contratuais, o direito também
pode utilizar esse princípio, e terá de utilizá-lo extensivamente (mesmo que não o faça em sentido
absoluto), ao definir dispositivos de direito internacional privado aplicáveis ao dia-a-dia, isto é, para as
transações implícitas em um contrato de comércio internacional. De acordo, inicialmente, com o
enfoque analítico, todos os tipos contratuais de maior importância devem ser destacados, e, para cada
contrato, pesquisa deveria ser feita para caracterizar a assim chamada natureza das coisas, ou a
specific performance, e, com base nisso, para a regra que está em conformidade com o espírito do
moderno direito internacional privado, e os princípios do direito, resultando benefício para a atividade do
comércio exterior.
Embora seja verdade que grande número de dispositivos legais, apesar de correto para os fins
da atividade legislativa futura, pode ser expresso em regra generalizada, com relação à qual somente
desvios ou exceções serão individualmente definidos, e muito embora tais regras gerais não
representem de forma generalizada a multifária realidade, poderia ajudar a prática somente no nível de
abstrações, mas com menor eficiência. Para os fins da legislação futura, em nenhuma circunstância
poderia a doutrina ser dispensada de sua tarefa de estudar os vários tipos contratuais um a um, como
imperativo inerente ao ávido processo dialético da contratualística internacional.
23.6. Princípio da autonomia da vontade
Na sucinta e expressiva conceituação de Sanfi Romano, deve-se entender por autonomia, em
sentido subjetivo, o poder de dar a si próprio ordenamento que as pessoas para si mesmas constituem
e que se distingue e contrapõe aos ordenamentos constituídos para elas, mas por outrem.
O reconhecimento do valor da vontade jurídica, seja qual for a flexão teórica, resultaria sempre
na exaltação do valor do indivíduo, porquanto, no entender acertado de Vicente Ráo, criticando a
rigidez das teorias que somente vêem ou a vontade psicológica ou a declaração da vontade como
geradoras dos efeitos jurídicos, quando vemos, na vontade autônoma, que na ordem privada se exerce
um elemento essencial dos atos produtores de efeitos jurídicos, não se exclui o valor nem a
necessidade da declaração, nem se deixa de considerar que, em princípio, a força produtora de tais
efeitos se encontra na vontade real efetivamente corporificada na declaração, pois é esta que torna a
vontade eficaz e atuante, de conformidade com o ordenamento jurídico.
Em que pese o empenho das correntes objetantes do valor e da possibilidade do prevalecimento
do princípio da autonomia da vontade por força da infiltração do Estado nos negócios privados, bem
justifica Vicente Ráo ao observar que o problema não pode ser colocado em termos simplistas, visto
que a autonomia da vontade não se exerce, apenas, no campo delimitado pela lei, nem se aplica tão-só
aos contratos nominados ou inominados, pois melhor se qualifica como expressão de um poder criador
que atua de conformidade com o ordenamento jurídico, ou sob as sanções por esse ordenamento
estabelecidas, padecendo maiores ou menores limitações, mais graves ou menos graves cominações,
segundo a relação de que se trate.
Para contestar a concepção extremadamente publicista, valese da opinião de Betti, segundo a
qual a autonomia de um ente ou sujeito subordinado pode ser concebida através de duas funções
distintas: a) como fonte de normas destinadas a formar parte integrante da própria ordem jurídica que a
reconhece como tal e por meio dela realiza uma espécie de descentralização da função nomogenética,
fonte esta que poderia ser qualificada como regulamentar, por ser subordinada à lei; e b) como
pressuposto à
hipótese de fato gerador de relações jurídicas já disciplinadas, em abstrato e geral, pelas normas de
ordem jurídica, revelando semelhante distinção um dado fenomenológico que não pode ser
desconhecido, bastando, para compreender o problema, comparar as regras resultantes de um acordo
normativo entre entes dotados de autonomia, v.g., as produzidas pelo contrato coletivo de trabalho
celebrado entre associações profissionais titulares dessa faculdade, com as decorrentes do contrato
concluído entre particulares. E finaliza: a autonomia privada verdadeira e própria consiste no poder que
os sujeitos privados possuem de ditar as regras de seus interesses particulares, em suas relações
recíprocas.
De acordo com Orlando Gomes em seu recente e bem elaborado trabalho sobre as
Transformações Gerais do Direito das Obrigações, alguns publicistas, como Wieacker, por exemplo,
têm demonstrado que, de algumas décadas para cá, certas figuras jurídicas devem perder o tratamento
tradicional, especialmente porque a autonomia da vontade nada mais seria do que a manifestação de
um individualismo superado, e os direitos subjetivos já não constituem limites inflanqueáveis ao poder
do Estado.
Entretanto, apesar de desenvolver as teorias mais inflexíveis e outras menos obstinadas na
apreciação do papel do princípio da autonomia da vontade, ressalva Orlando Gomes com louvável
precisão o fato de que as limitações que se devem reconhecer ao seu exercício não impedem que os
juristas contemporâneos dêem atenção mais profunda à questão, pois marcadamente importante é o
trabalho pandectista nesse sentido, e, portanto, insuscetível de fáceis substituições doutrinárias, por
mais que prevaleçam as teses opostas da nova realidade jurídico-social, que a ninguém é lícito negar.
A autonomia da vontade como princípio deve ser sustentada não só como elemento da liberdade
em geral, mas como suporte também da liberdade jurídica, que é esse poder insuprimível no homem de
criar por um ato de vontade uma situação jurídica, desde que esse ato tenha objeto lícito.
Não se pode deixar de reconhecer a procedência das explicações que apontam as mudanças de
critérios apreciativos impostos pela expansão do contrato em massa, que Orlando Gomes, com
indiscutível autoridade, mostra "que substitui, em diversos setores do campo negociai, o negócio
jurídico bilateral dantes concluído individualmente. Nos transportes, nos seguros, nas ope-
rações bancárias, no trabalho realizado nas empresas, e em tantos outros departamentos a atividade
social dos indivíduos, esse elemento, sem constituir uma comunidade jurídica, influiu decisivamente na
sua própria dogmática".
Em geral, porém, o pluralismo contemporãneo concebe direitos relativos e objetivos, que
permitem adiantar uma distinção entre direitos individuais e sociais. Os primeiros teoricamente
pertenceriam aos indivíduos isolados, aos quais se deve reconhecer uma esfera própria e bem
delimitada. E o aspecto mais característico de oposição entre o direito social e o individual é que este
último se apóia sobretudo no contrato, ao passo que o direito social coloca em primeiro plano a
instituição.
Ora, o contrato, seja de que natureza for, constitui-se num meio pelo qual os particulares regulam
seus interesses de acordo com determinada vontade, mesmo admitidas as limitações ao seu exercício,
apresentando-se num quadro abstrato que, segundo nossa visualização, pode configurar em seus
conteúdos as instituições correspondentes, essencialmente as relativas a quaisquer dados concretos da
vida social, expressos na lei ou num ordenamento jurídico. Tais elementos não devem ser vistos
somente pelo ângulo da técnica jurídica, porque exatamente o direito que se apóia sobre o contrato,
como símbolo do direito individual, alicerça-se nos princípios da igualdade e da liberdade, ao passo que
o direito que se apóia nas instituições tem apenas como suporte a autoridade.
Assim, deixar de reconhecer o papel da vontade, em qualquer alternativa teórica, contraria a
irrefutável concepção pluralista da sociedade onde os ideais morais e jurídicos se cristalizam por força
de um comando que se origina na natureza humana.
Por outro lado, o processo jurígeno não se exaure na norma jurídica, porquanto, como diz Miguel
Reale, ela mesma suscita, no seio do ordenamento e no meio social, um complexo de reações
estimativas, de novas exigências fáticas e axiológicas, e o homem constitui o centro do direito, e o fim
principal do direito é servir a seus legítimos interesses
Somos, portanto, novamente levados à controvérsia central, cujos termos principais procuramos
desenvolver, e chegamos à convicção de que o princípio da autonomia da vontade sobrevive a despeito
das tentativas demolidoras, tendo toda razão Coviello quando sustenta que a vontade deve ter por
escopo um fim prá-
tico que não precisa ser necessariamente de ordem patrimonial ou econômica, bastando que seja
tutelado pelo direito. As conseqüências que o direito lhe atribui não são sempre coincidentes com a
vontade subjetiva do agente: podem, mesmo, ser-lhes disformes e, até, contrária - mas sempre
correspondem a um intento prático e neste sentido podem ser ditas conformes, apenas, à vontade geral
das pessoas.
23.7. Direito subjetivo
Fábio Konder Comparato, em precioso ensaio analítico sobre os elementos e a estrutura das
obrigações, concentrando seu esforço interpretativo no confronto entre as teorias voluntaristas e a
doutrina de Brinz, faz prévio e minucioso estudo dos "direitos subjetivos e das situações jurídicas
passivas", onde esclarece que, apesar de ultrapassado o interesse pelo exame do conceito geral de
direito subjetivo, subsiste ainda o propósito de classificação e estudo dos elementos constitutivos desse
direito, como ocorre, presentemente, com a noção de poder jurídico, que leva nessa ordem de
cogitações à concepção de que toda pessoa, tendo um interesse reconhecido pela lei, possui, ao
mesmo tempo, o poder de fazê-lo valer, produzindo efeitos jurídicos em relação a terceiros. E, nos
casos de incapacidade, esse poder de agir que é retirado do incapaz se transfere ao seu representante
legal sem transfigurar a natureza de ambos os poderes. Caracterizando o poder em geral como a
faculdade de produzir efeitos jurídicos em relação a terceiros, assinala o eminente jurista pátrio que
entre os poderes jurídicos é preciso assinalar aquele que consiste na criação, modificação ou
supressão de uma relação de direito, por uma simples manifestação unilateral da vontade...
A dedução forçosa de quanto ficou dito é que não se pode evitar que a manifestação da vontade
entre no mundo jurídico como ato ou como negócio jurídico. O princípio de que se parte é sempre da
autonomia da vontade ou auto-regramento da vontade, como diria Pontes de Miranda, naturalmente
sob a compulsão das regras jurídicas cogentes, dispositivas e interpretativas, que, entretanto, nunca
são suficientes para justificar a ineficácia daquela categoria jurídica.
Fenômeno idêntico observa-se na representação, por meio da qual se supre a carência da
vontade própria de uma pessoa na sua vida jurídica. E, modernamente, a representação não desdota
o homem do poder jurídico de fazer a sua lei. Não se pode dizer que a pessoa fique sufocada na sua
capacidade volitiva diante das novas figuras jurídicas, visto que o seu alargamento não é suficiente a
garantir-lhe um reinado antivoluntarista.
Impossível e incompatível com a experiência jurídica levar-se, como pretendem alguns, às
conseqüências extremas a doutrina que nega a autonomia da vontade que pode converter-se numa
regulamentação tirânica e resultar na destruição da prosperidade que produz a livre atividade, como,
aliás, comprovou-se recentemente na Rússia, que depois de vários anos de experiências e diversas
alternativas fez restaurar certa liberdade na contratação privada.
Como advertem Planiol e Ripert, falar na decadência da soberania do contrato na época
moderna é esquecer que o desenvolvimento do comércio proporcionou ao contrato um campo que
jamais havia tido anteriormente e, ainda, que as restrições de índole moral à liberdade contratual,
desaparecendo, provocam com maior intensidade o aparecimento de novas forças da vontade
individual.
Apesar de poder-se afirmar em resumo que o Estado moderno se caracteriza por uma tendência
socializadora para realizar maior justiça social, intervindo, inclusive, nos contratos celebrados por
particulares em matéria que antes era do estrito domínio privado, apesar de alguns publicistas
sustentarem a tese de que na época contemporânea a autonomia da vontade tem valor apenas
acadêmico e que a maioria dos contratantes terá de submeter-se às leis que o Estado lhes impõe, tudo
isso não significa que a autonomia da vontade tenha desaparecido ou tenda a desaparecer. Haverá, por
certo, a extensão de certas limitações impostas pela ordem pública, mas impõe-se reconhecer que a
história do direito revela não haver sido aplicada tal doutrina, segundo seus termos extremos, em
momento algum pelos diversos sistemas legislativos.
A autonomia da vontade assumiu, em verdade, o sentido específico, que jamais perderá, de
poder de regulamentação das próprias relações, ou dos próprios interesses dentro das limitações
maiores ou menores ditadas pela equação do bem individual com o bem comum.
A força da autonomia da vontade, praticamente, concentra-se no contrato, que, sendo uma
relação entre sujeitos de direito, é, em conseqüência, o campo mais abrangido por essa categoria
jurídica, notadamente porque a relação obrigacional se estabelece entre pessoas.
Embora o problema não esteja jungido a uma tipificação, há certos institutos jurídicos,
evidentemente, que expressam com maior fidelidade as hipóteses em que pode ser considerada a
vontade como elemento de relevância conceitual, ou mesmo gerador de direito.
De modo geral, poucos sistemas jurídicos podem ser meditados com abstração de suas raízes
romanas, cuja evolução reflete a influência nunca expungível de seus ensinamentos e, se quisermos
raciocinar exemplificativamente, verificaremos que é nos chamados contratos consensuais - de quatro
tipos no direito romano: venda, locação, sociedade e mandato - que encontramos hipóteses onde a
vontade é criadora de situações jurídicas.
Teoricamente, tanto no direito antigo como no atual a norma dá nascimento a sua situação
jurídica, regulada por suas disposições, de maneira geral e uniforme para todos, mas entre os deveres
jurídicos alguns são fixados por regras de direito como conseqüência obrigatória dos fatos jurídicos e
outros são prescritos ou recebem predominante incidência da vontade humana.
O fenômeno moderno não invalida o pensamento supra, como é dedutível das equilibradas
considerações de Orlando Gomes ao assinalar que a delimitação do campo da autonomia privada não
deve obstar a indagação de seu fundamento prático, pois essa função, segundo suas próprias palavras,
"encontra-se, para alguns, no reconhecimento da propriedade privada, porque unicamente nos regimes
que a admitem ocorrem a circulação de bens e a prestação de serviços entre os indivíduos... De fato,
onde não existem esferas particulares de interesses, a autonomia privada está ausente... Onde, porém,
se reconhece ao indivíduo o poder de manifestar interesses particulares, esse exercício constitui dado
incomovível da realidade social. Tem a ordem jurídica, no reconhecimento da autonomia privada, sua
pedra angular. Outra não é a razão por que o negócio jurídico, principal instrumento dessa autonomia,
se coloca no centro do sistema do Direito Privado".
Acrescenta, ainda, o emérito privatista que esse reconhecimento, embora não signifique
contestação da conveniência de restringi-lo com o objetivo de submeter ao interesse coletivo os
interesses individuais, deve admitir que, apesar das limitações impos-
tas pelo Estado e pela concentração de capitais, o princípio da autonomia privada conserva-se
incólume. E conclui: "As limitações sempre existiram, apenas se apertaram na atualidade, apanhando o
campo econômico e se tornando tanto mais numerosas quanto mais se compenetra o Estado da
necessidade de intervir com o objetivo de realizar superior justiça social... Do ponto de vista técnico,
ocorrem limitações precisamente como efeito da multiplicação de normas cogentes. Não se permite a
formação do conteúdo de alguns negócios, obrigando-se os interessados a adotarem a forma típica; a
exclusão de certos efeitos jurídicos não é válida em certos negócios; difunde-se o princípio da inserção
automática de comando legal no conteúdo de determinados contratos, e assim por diante. Predominam,
entretanto, as normas de caráter supletivo, que podem ser indiferentemente afastadas pelas partes
contratantes. Prevalece, por outro lado, a liberdade de criar negócios atípicos".
Tem sentido lógico e fundamento concreto a preocupação revelada por Orlando Gomes em
diferenciar a "declaração da vontade" do "ato de autonomia privada", este como empenho do sujeito ao
regulamento e aquela como uma abertura para fugas estritamente subjetivas que incapacitam a
compreensão dos intentos, mas na raiz dessas considerações a vontade permanece sobreviva, visto
que a aliança da vontade e da legalidade é geradora da noção jurídica e técnica de autonomia.
Fazer abstração da legalidade é desconhecer o sentido do princípio de autonomia, pois ela não
se vincula aos indivíduos senão pela lei que lhe dá uma habilitação ad hoc. Exatamente a vontade
socializada e legalizada é que devemos entender por autonomia. A sociedade e o legislador soberano
que a representa diante do indivíduo formam a confiança deste a fim de que ele possa exercer sua
vontade jurídica pelo bem comum.
Pontes de Miranda, que prefere substituir a expressão "autonomia da vontade" por "auto-
regramento", também concorda que é no direito das obrigações que se verifica com maior latitude tal
problemática, porquanto entende que "as categorias jurídicas do direito das obrigações deixam margem
a negócios jurídicos que não entram nos tipos fixados pela lei".
Preleciona ainda o grande mestre que o "auto-regramento" sofre as limitações do direito cogente
que se opera impositiva ou despositivamente, inibindo a pessoa de qualquer escolha, mesmo que a
regra cogente contenha alternativa, mas não conteste o
pleno vigor do "auto-regramento" quando se trata de jus dispositivum. E explica: "A forma de tais regras
é: Se não foi dito não-a, entende-se a, ou Se nada se disse quanto a, entende-se a,. Porém a cada
momento tem o jurista, diante de regras jurídicas que podem ser cogentes ou dispositivas, de levantar
ou de responder à questão. Para isso tem de examiná-las em sua função e alcance, se não cabem,
desde logo, por serem cogentes, outras que como tais foram apontadas, o argumento a contrario. Às
vezes, a regra jurídica, em lugar de aludir à manifestação da vontade, alude à possibilidade de se
excluírem efeitos; ou de alguns serem incluídos; ou de serem tais e tais, se não se dispôs
diferentemente. As maiores dificuldades de interpretação surgem quando o legislador usou de
expressões que mais serviriam ao direito cogente, ou ao direito interpretativo, ou são próprias do direito
cogente, ou do direito interpretativo".
Por outro lado, Pontes de Miranda avança em sua tese para admitir que as regras interpretativas,
também, em nada limitam o "auto-regramento" da vontade. E diz: "Supõem-no. A vontade lá está...
Assim, `a dúvida entre a interpretação da vontade que se prefere na regra interpretativa, e outra
interpretação da vontade resolve-se pelos métodos de interpretação dos atos jurídicos, porque vontade
houve"'.
Em direito privado interno, portanto, a autonomia da vontade, como preferimos denominar essa
categoria jurídica, dinamiza-se numa compreensão mais ampla de correlação dinâmica ou dialética com
a experiência jurídica sob a égide de uma soberania única, ou seja, a vontade individual é criadora de
situações jurídicas, porque, ao mesmo tempo em que ela age, preenche missão social. Sejam as regras
impositivas, dispositivas ou interpretativas, não há nenhum critério a priori que possa justificar a
classificação de uma regra ou de uma relação de direito numa ou noutra categoria, porquanto compete
ao juiz descobrir as razões contigentes que fazem entrar uma regra no domínio da autonomia ou da lei
imperativa.
Acreditamos que essa maneira de ver a questão encontra eco positivo, ainda, no pensamento de
Pontes de Miranda quando alude ao princípio da liberdade de contratar, definindo-o como o poder de
livremente assumir deveres e obrigações, ou de "se adquirirem, livremente, direitos, pretensões, ações
e exceções oriundos de contrato; e princípio da autonomia da vontade, o da
escolha, o líbito, das clausulas contratuais". E explica: "No fundo, os dois princípios prendem-se à
liberdade de declarar ou manifestar a vontade com eficácia vinculante e de se tirar proveito das
declarações ou manifestações de vontade alheias, receptícias ou não". O direito longe está de adotar
esses princípios como absolutos: sofrem eles, sempre sofreram, limitações. A própria existência de
tipos de negócios jurídicos limita-os. Limita-os, também, a natureza cogente de certas regras. Quanto
aos tipos, se bem que, em geral, se pense poderem ser criados tipos novos, sem se criarem novas
regras jurídicas, a verdade está com A. Manigk (Das Anwendungsgebiet der Vorschriften für die
Rechtsgeschüfte, 82, nota 2): só se constituem novas espécies, e não tipos. Acrescentamos: salvo se
há lei-costume que os crie. Mais uma vez aparece a distinção entre costume-regra jurídica e costume-
série de negócios jurídicos. Às vezes, na vida aparecem figuras contratuais, que formam tipos, mas
estranhos aos da lei e dos costumes. Esses tipos são apenas negociais, e somente se podem levar em
conta para se receberem como disposições onde, se eles não existissem, caberiam regras dispositivas
das leis. Quer dizer: no que não entram na tipicidade legal, somente se alojam no espaço deixado à
autonomia da vontade.
23.8. Autonomia da vontade no plano conflitivo
O terreno sobre o qual domina tematicamente o princípio da autonomia da vontade em direito
privado, evidentemente, não sofre estruturalmente mudanças radicais quando se transfere para a área
do direito internacional privado, porquanto, conceitualmente, o problema insere-se nos mesmos
institutos já mencionados como receptivos de tais indagações.
Marcel Caleb, todavia, em magistral obra sobre o assunto, assinala que o princípio da autonomia
da vontade em direito internacional tem menor amplitude, significando que as partes apenas têm
liberdade de exercer sua vontade tendo em vista a escolha da legislação à qual querem submeter sua
convenção, sob reserva de respeitarem a ordem pública.
De acordo com esse notável internacionalista, o que essencialmente deve preocupar é o
estabelecimento dos limites dentro dos quais a autonomia da vontade vai movimentar-se. Para esse fim
impõe adotar um critério metódico, que variará segundo se considere o direito internacional privado
como um ramo do direito
privado ou público, ou se a sua filiação é de índole nacional ou internacional. Tendendo a aproximar-se
do sistema de Pillet, embora com soluções pessoais, Caleb tem principalmente a preocupação de
conservar como objeto primordial os indivíduos como os sujeitos de direitos e obrigações. Com certo
ecletismo, admite, porém, que o direito internacional privado contém duas espécies de regras, algumas
internacionais e outras internas.
Assim, consistindo o direito internacional privado numa disciplina jurídica que visa resolver
conflitos de leis, o princípio da autonomia da vontade desempenha um papel generalizador, no sentido
de ultrapassar as fronteiras do direito privado para selecionar nas ordens jurídicas existentes a lei
aplicável a uma determinada relação de direito, apresentando caracteres internacionais. A escolha de
uma lei competente constitui, pois, o objetivo essencial em razão do qual se exerce a vontade
individual. Explica que a questão de direito positivo aplicável é acessória, pelo menos teoricamente,
porquanto ela se reduz a uma simples interpretação do direito local ou do direito estrangeiro, segundo a
lei escolhida pelas partes, e que em virtude de sua autonomia será a lei local ou a lei estrangeira.
A verdade inegável é que a teoria da autonomia da vontade nasceu a propósito dos contratos e
até o momento atual é o âmbito onde ela se aloja.
O sistema de Niboyet, por exemplo, focaliza a questão buscando analisar os contratos numa
classificação tipológica, propondo soluções de acordo com o direito mais próximo ou mais compatível
com a sua natureza, e nega que a autonomia da vontade como poder de escolha por si mesma da lei
competente possa existir ou será teoricamente defendida; sustentando a tese, faz incisiva afirmação:
"Não existe teoria da autonomia da vontade, porque a autonomia da vontade não existe, porquanto se
faz confusão entre duas concepções em matéria de contratos".
Como se verifica, para Niboyet, residindo, como admite, o princípio da autonomia da vontade nos
contratos e estando as partes sujeitas às leis imperativas de direito interno, sob pena de nulidade de
seus atos, não existe diferença nas conseqüências, passando-se para a ordem internacional, porquanto
não pode a lei imperativa em face dessa circunstância tornar-se facultativa sem degradar-se nessa
passagem.
Entre nós, Amílcar de Castro acolhe a tese, tecendo considerações interessantes, cuja
transcrição literal dará juízo mais fiel da questão:
"Para abordar o famoso sistema da autonomia da vontade, será conveniente esta advertência in
limine: é preciso não perder de vista que, a respeito de contratos, funcionam disposições de três
espécies, imperativas, facultativas e supletivas. Imperativas, aquelas a cujo rigor não poderão fugir as
partes, como, por exemplo, a imposição do regime de separação de bens ao maior de sessenta anos
(art. 258, n. II, a do Código Civil). Facultativas, aquelas que, até certo momento, facultam aos
particulares a liberdade de convencionar, como, por exemplo, a regra de que é lícito aos nubentes,
antes de celebrado o casamento, estipular, quanto aos seus bens, o que lhes aprouver (art. 256 do
Código Civil). Supletivas, as que se impõem quando a manifestação de vontade das partes seja
deficiente, nula ou inexistente, como, por exemplo, a regra de que, não havendo convenção, ou sendo
nula, vigorará, quanto aos bens, entre os cônjuges, o regime da comunhão universal (art. 258 do
Código Civil), ou melhor, se até o momento do casamento os nubentes não usarem da liberdade de
convencionar regime de bens, ou então se for nula ou deficiente sua manifestação supletiva, o regime
de comunhão universal".
"Acontece que os contratos, em geral, são essencialmente dominados pela liberdade das
convenções, isto é, dentro de certos limites, mais ou menos amplos, as disposições facultativas deixam
à vontade dos particulares a regulamentação contratual de seus interesses privados. A regra é a
liberdade das convenções; mas há exceções a essa regra, porque a respeito de contratos vigoram
também disposições imperativas, convindo aqui ficar bem claro que as disposições supletivas são
imperativas, já que necessariamente são aplicadas, se não forem afastadas pela vontade das partes, e
uma vez aplicadas não podem mais ser removidas por essa vontade. Além disso, é preciso ver bem
que a liberdade de convencionar não é absoluta, e sim é sempre condicionada, tanto pelo tempo,
porque a manifestação da vontade deve ser feita até o momento de ser redigido o ato, como pela
própria natureza das estipulações, que devem ser lícitas e adequadas ao tipo de contrato fornecido em
branco aos contratantes."
"Isto posto, convém salientar que, em direito internacional privado podem, ou não, ser
encontradas disposições facultativas, mas isto de nenhum modo importa autonomia da vontade neste
ramo do direito. Às vezes, disposições imperativas são escalonadas, por exemplo, a que manda
observar o direito do domicílio, em falta do direito nacional, e o da residência, em falta de domicílio
conhecido; podem, também, encontrar-se disposições facultativas acompanhadas, ou não, de
correspondentes disposições supletivas, assim, por exemplo: `É lícito estipular que os contratos sejam
regidos em tudo e por tudo pelo direito de um país determinado, podendo a vontade das partes, quando
não expressa, ser deduzida do contexto das cláusulas, da nacionalidade dos contratantes, ou das
diferentes circunstâncias atinentes ao assunto' ou, então, `Em falta dessa estipulação, será aplicado o
direito do país em que a obrigação se constituir"'.
Como é normal, no campo doutrinário do direito internacional privado, as conjecturas
representadas pela corrente que acompanha o ponto de vista de Niboyet não encontram plena
receptividade entre os autores. É o caso de Batiffol, assumindo posição menos rígida e, ao nosso ver,
mais compatível com a verdade científica nesse plano de cogitações,-2
Para Batfffol, a vontade individual desempenha papel relevante no direito internacional privado.
Considerou os diversos sistemas jurídicos existentes, assinalando a distinção verificável na submissão
maior ou menor das relações dada a cada um desses sistemas, determinada por fatores resultantes da
definição de conflito de leis que cada país adote.
Esses fatores - diz o famoso mestre - em si se apresentam como objetivos, independentes da
vontade individual, caráter não contestável para a situação de um imóvel, porquanto podemos abster-
nos de comprá-lo, mas, aí, a questão é outra, porque a vontade não tem por objeto a aplicabilidade de
uma determinada lei, o mesmo podendo-se dizer de um móvel, que pode mudar de situação, mas que o
será normalmente, por razões outras que não a competência da lei real, ressalvando-se a fraude, como
será, também, nos casos de mudanças de domicílio e de nacionalidade.
Solução paralela examina Batiffol no caso dos contratos, tendo em vista as interpretações
jurisprudenciais: "A lei de conflito dá como elemento de conexão a vontade das partes, mas esta fixa
somente as circunstâncias de fato que localizam o contrato, da mesma forma como se deduz a lei real
da localização de um imóvel. A complexidade da operação contratual permite somente às partes
sublinhar que, na concepção que elas fazem da opera-
ção, os elementos de conexão a tal ou qual país se revestem aos seus olhos de uma importância
primordial".
Estamos convencidos de que a autonomia da vontade reassume no direito internacional toda
aquela vitalidade que singularizou as fases mais tolerantes do voluntarismo jurídico da esfera do direito
privado interno, exatamente porque a matéria num e noutro plano tem finalidades metódicas
completamente diversas, sem significar que as leis imperativas perdem o seu caráter no direito
internacional privado, porquanto Haroldo Valladão mostra com exuberância que o princípio tradicional
das obrigações em direito internacional privado é o da autonomia da vontade, que impõe o
reconhecimento aos interessados de escolher o direito, expressa ou tacitamente, como lei reguladora
dos contratos, explicando, acertadamente, "que a norma de direito internacional privado do foro pode e
deve em certas matérias, como, por exemplo, substância e efeitos das obrigações, regime matrimonial
dos bens, etc., determinar, como tem determinado, que a vontade individual é, qual a nacionalidade ou
o domicílio, etc., noutros assuntos, um elemento de conexão, que indique a lei competente. Assim o fez
o art. 13 da Introdução ao Código Civil Brasileiro, permitindo às partes escolher a lei competente para
reger a substância e os efeitos (não a capacidade contratual) dos contratos. Nesse e noutros casos a lei
que o direito internacional do foro permite seja indicada pela vontade, ou pela nacionalidade, ou pelo
domicílio, ou pelo lugar do contrato ou da execução, tal lei é aplicada na íntegra, em suas disposições
imperativas ou facultativas, salvo, evidentemente, abuso de direito e a ofensa à ordem pública do foro".
Não seria procedente nem sustentável desenvolver a noção de autonomia da vontade sem
considerar o elemento de legalidade que se alia à ação volitiva individual, visto que indiscutível a força
das leis imperativas na limitação e condicionamento do domínio da autonomia. Esses obstáculos se
estendem ao terreno do direito internacional privado no tocante às exceções à aplicação do sistema
estrangeiro, compreendendo a ordem pública, a soberania nacional e os bons costumes, de acordo
com o nosso direito positivo, bem assim a fraude no plano da intencionalidade individual.
Há, realmente, excelentes razões a desenvolver para justificar em numerosos casos a benigna
intervenção legislativa em matéria contratual, desde que não se ultrapassem os limites de modera-
ção imprescindíveis à preservação de certos princípios de liberdade individual invioláveis pela própria
natureza.
Se tomamos o contrato como símbolo expressivo desse tratamento, devemos admitir que suas
regras resultam tanto da vontade da lei quanto da vontade do indivíduo, porquanto a estrutura orgânica
e homogênea do homem em sociedade não dissocia o domínio da lei do domínio da liberdade, mas se
integram ambos na vida social para que a verdadeira liberdade possa ser alcançada.
A liberdade e a vontade jurídica podem aparecer algumas vezes, como sendo coisa fictícia do
ponto de vista da realidade natural, como puras construções .racionais, mas apesar de tudo elas não
deixam de ser autênticas realidades jurídicas.
O que importa, porém, frisar é que toda atividade, seja de que ordem for, está dirigida para um
fim que a determina e define. Querer essa atividade é querê-la para realizar um fim estabelecido.
Querer é colocar através de uma atividade o fim de uma outra atividade, aquilo que em direito lhering
chamaria interesse. A vontade é, por conseguinte, uma relação entre as atividades e, em conseqüência,
uma relação de fins. Toda atividade, como já tivemos oportunidade de acentuar, implica finalidade, do
mesmo modo que toda finalidade implica atividade. Agir é colocar um objetivo à investigação e pensar é
procurar aquilo que se procura encontrar.
Chegamos, assim, sempre à mesma compreensão do fenômeno volitivo, ou seja, que a vontade
jurídica deve ser livre e ao mesmo tempo conformar-se ao direito.
Como diz Gropali, a vontade transformada de um fim interior num ato exterior e afirmando-se
objetivamente por intermédio de uma declaração ou de uma manifestação é o que constitui o ponto
central e culminante ao qual o ordenamento jurídico concede sua proteção, atribuindo-lhe efeitos
particulares.
Paul Roubier coloca a questão em termos precisos ao analisar os caracteres que se devem
reconhecer numa situação jurídica subjetiva, explicando que ela pode ter por finalidade criar
prerrogativas ou vantagens, pois as responsabilidades ou deveres que podem acompanhá-las não
criam, necessariamente, um paralelo com o proveito que daí deve resultar. E essa é a razão pela qual
essas situações são procuradas e desejadas pelos particulares, proporcionando-lhes o prazer e a
felicidade, falando delas, de
poder dizer: meu direito. Essa é a razão profunda pela qual a vontade privada é um elemento que
anima as situações jurídicas, e, mesmo nas situações subjetivas que encontram sua fonte na lei, a
vontade privada pode declinar desse modo de aquisição, porquanto ela pode desistir de seu direito,
seja pela via da transferência, seja num caso normal, seja mesmo quando a transferência é impossível
por motivo de abandono.
Daí por que, principalmente, Roubier define as situações jurídicas subjetivas como "situações
regularmente estabelecidas", seja pelo ato voluntário, seja pela lei, das quais decorrem, especialmente,
prerrogativas em proveito de seus beneficiários e aos quais eles podem em princípio renunciar.
Mais adiante serão examinadas algumas teorias principais sobre a autonomia da vontade em
direito internacional privado, para uma melhor compreensão do problema na esfera dessa disciplina
jurídica. Entretanto, criticamente, no sentido filosófico do termo, chegamos desde logo à afirmação de
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  • 1. DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO IRINEU STRENGER 22. Dos Bens 22.1. Facetas históricas. 22.2. Imóveis e móveis: localização. 22.3. Móveis e imóveis como termos técnicos. 22.4. Direitos relativos aos bens. 22.5. Jurisdição territorial. 22.6. Classificação dos bens. 22.7. Posse. 22.8. Propriedade. 22.9. Usufruto. 22.10. Hipoteca. 22.11. Obra literária. 22.12. Direito da personalidade e privacidade. 22.1. Facetas históricas Os bens podem ser vistos sob duplo aspecto. Cada valor, com efeito, é passível de consideração individual ou como fazendo parte de conjunto que forma o patrimônio de certa pessoa em íntima relação consigo própria. Dessa intimidade resultam numerosas combinações, das quais as mais importantes são o regime das sucessões e o regime de bens entre marido e mulher. Deixando de lado, porém, o estatuto dos bens enquanto constituem património de uma pessoa, conduziremos nossa análise no sentido do que dispõe o Código Civil brasileiro a respeito, com as devidas extensões e visão internacional. No direito antigo fazia-se distinção entre imóveis e móveis. Enquanto aos primeiros se aplicava a lei do lugar da situação (lex rei sitae), os segundos eram regidos pela lei do domicílio de seu proprietário, seja assinando-Lhes uma situação ficta na determinação do lugar ou fazendo depender do estatuto real, seja considerando-os como acessórios das pessoas, devendo assim obedecer à mesma lei que patrocinava o estatuto pessoal (mobilia sequuntur personam). Em numerosas hipóteses, porém, aplicava-se tanto aos imóveis como aos móveis a lei do lugar de sua situação efetiva. Tomemos do Prof. Haroldo Valladão algumas importantes facetas históricas do instituto, que no nosso Código Civil está disciplinado no Livro li, intitulado "Dos Bens". "Na história doutrinária do direito internacional privado é conhecida a frase de Waechter de que o princípio da lei da situa ção, da lex rei sitae para os bens, era o mais seguro e o mais corrente, porém, com uma restritiva: 'tratando-se de imóveis'. Veremos que essa restritiva está desaparecendo...
  • 2. Nas escolas estatutárias, Bartolo IV aplicava aos bens imóveis (a uma casa) a lei do lugar da respectiva situação, lex rei sitae, nada dizendo sobre os móveis, que Baldo, todavia, submetia à lei do domicílio da pessoa, do proprietário, mobília personam sequuntur unindo-a à primeira: 'immobilia concernent territoria'. O princípio era intuitivo para os imóveis, e acerca dos móveis a lei da pessoa se impunha porque, segundo Dumoulin, eles estavam situados no domicílio do proprietário. Já a escola francesa, com WArgentré, seguida pela escola holandesa, via na lex rei sitae para os imóveis uma expressão da soberania territorial e quanto aos móveis a lei do domicílio do proprietário decorria da variação de sua situação e confusão final com a própria pessoa (D'Argentre) ou da ficção legal (Rodemburgus) de estarem situados naquele domicílio. Mas segundo ressaltou Anzilotti também para os móveis se aplicava em certos casos a lex rei sitae e Lainé referia que se visava mais os móveis numa universalidade (sucessão). Nas doutrinas modernas, Story, seguindo os estatutários, levou a lex rei sitae para os imóveis a um extremo rigor, na diretriz de D'Argentré, até à capacidade, à forma e ao fundo dos contratos sobre os mesmos e aos direitos transmitidos, e admitia para os móveis a lei do domicílio do proprietário, mas com a larga exceção de disposição contrária do lugar da situação dos mesmos móveis. Sua doutrina dominou o direito angloamericano e na Europa ocidental, através das obras de Rocco, na Itália, e de Foelix, com muitas exceções, na França, Espanha, etc. Já Savigny afastou-se imperativamente da tradição estatutária pluralista, para adotar o regime unitário, da moderna doutrina alemã, com Muffienbuch, Meizner e Waechter, pois a sede quer dos bens imóveis quer dos bens móveis é sempre o lugar da respectiva situação, regulados, assim, uns aos outros, pela lex rei sitae; fazia, porém, a justa exceção dos móveis que ocupam no espaço um lugar indeterminado e variável, que será indicado pela vontade do proprietário ou coincidirá com o respectivo domicílio, assim a bagagem do viajante ou as mercadorias expedidas pelo negociante para um país longínquo. Justificou a lex rei sitae pelas idéias da moda, pela autonomia da vontade, afirmando: 'quem deseja adquirir ou exercer um direito sobre uma coisa transporta-se para onde está situada, submetendo-se, assim, voluntariamente ao direito do lugar'. Finalmente, para Mancini e a escola ítalo-franco-belga, a tendência lógica seria considerar o direito dos bens como pertencente ao direito privado necessário e, pois, regido pela lei nacional do proprietário e assim dois dos seus grandes seguidores, Laurent (Bélgica) no seu projeto de Cód. Civil, art. 13, e WeiSS (França), em sua obra, aplicaram aos bens a lei nacional do proprietário. Mas o Cód. ital., 1865, art. 7°-, só a aplicou aos bens móveis e com a larga exceção de Story, antes referida, e muitos autores italianos justificaram a lex rei sitae para os imóveis por uma exigência de ordem pública, tendo Bartin, na França, visto na regra um princípio de 'sécurité', que impõe a absoluta generalidade dos preceitos sobre os bens".
  • 3. Na doutrina coletiva, o lnstitut de Droit Internacional aprovou a Resolução de Madrid, de 19 de abril de 1911, acerca dos conflitos de leis em matéria de direitos reais, em geral estabelecendo o regime unitário, lex rei sitae, sem distinção entre bens imóveis e móveis (art. 3°-), e sem excessos, pois a capacidade e forma extrínseca relativas seguiriam as respectivas regras gerais, com algumas variantes. "A posição original, necessária para dar eficácia ao princípio unitarista, no caso difícil da mudança de situação dos bens móveis, em trânsito, sem situação permanente, foi a proposta pelo insigne brasileiro Freitas, 1860, no art. 411 do Esboço do Cód. Civ. do Império do Brasil." Suprimiu ele as exceções de Savigny para a bagagem do viajante e as mercadorias em trânsito, para os bens móveis em movimento, por uma fórmula feliz e prática, localizando-os no tempo, fixando temporalmente a respectiva lex rei sitae. Eis o seu texto, na íntegra, sobre a matéria: "Art. 411. O lugar da existência das coisas imóveis no Império, ou fora dele, será o de sua situação; e o das coisas móveis, aquele em que se achavam no dia da aquisição dos direitos reais que sobre elas se alegar, ou no dia da aquisição da posse, ou em que se acharem no dia em que sobre elas se intentar alguma ação ou procedimento judicial", sublinhada a novidade. E, em nota justificativa, declarava ser "falsa a distinção que se tem feito entre as coisas móveis e imóveis, reconhecendo que ela deriva de uma ficção e que a ficção deve cessar com o fato real da existência das coisas em um lugar dado", citando as muitas exceções de Foelix e Savigny. Teixeira de Freitas, com a sábia solução acima, tornou desnecessárias quaisquer exceções, estabelecendo para os móveis a lei da sua situação no dia (fixação local temporal) da aquisição dos direitos reais que sobre eles se alegarem ou do dia da aquisição de sua posse, ou do dia em que se acharem, em que sobre eles se intentar procedimento judicial. Completando o texto de Freitas, para localizar também os imóveis no tempo e lhes dar ainda situação local temporal (pois eles podem, também, mudar de situação, fisicamente: acessão, avulsão; ou juridicamente: permuta ou anexação de territórios) dispôs Haroldo Valladão no Anteprojeto de seu Código de Aplicação das Normas Jurídicas, art. 45: "A aquisição da posse e dos direitos reais se rege segundo a lei da situação do bem no dia em que se integraram as respectivas condições, e os direitos
  • 4. alegados nas ações reais segundo a mesma lei no dia em que se iniciou o processo judicial". É fórmula genérica que fixa, no tempo, a lex rei sitae para quaisquer bens. O direito internacional privado brasileiro recebeu a influência de Savigny em relação ao critério unitário da regra lex rei sitae. Dizia o art. 10 da Introdução ao Código Civil (1916), em sua primeira parte: "Os bens, móveis ou imóveis, estão sob a lei do lugar onde situados...". 22.2. Imóveis e móveis: localização A aplicação dessa regra, em verdade, não cria dificuldade para os imóveis. No que concerne à conexão propriamente dita, os imóveis que estiverem situados aqui ou acolá de uma fronteira podem ter aplicação distributiva de duas leis interessadas. Contudo, as coisas transportadas, como mercadorias, bem assim os meios de transporte eles próprios, oferecem dificuldades de localização. Como é sabido no que concerne a aeronaves e navios, ou sofrem qualificação legal, considerando-se-os imóveis, ou têm a tutela do lugar da matrícula ou de pavilhão. Quando a hipótese é de transporte terrestre, a localização do bem envolve problema de prova, e para considerar resolvida a situação do bem no momento preciso em que o estatuto pode ser posto em causa, não constitui elemento de conexão significativo, em razão de sua precariedade. Melhor do que aplicar a lei da situação efetiva dos bens, supostamente determinada, deve-se submeter as mercadorias à lei do lugar de destinação ou, se este for desconhecido, a do lugar da expedição. Freqüentemente a venda de mercadorias exige transferência de documentos, sendo, então de maior conveniência considerá-los como representativos das mercadorias, sem consulta à lei da situação efetiva; em conseqüência, a lei do lugar da remessa será reconhecida apta a apelar a transferência da propriedade. É preciso, porém, admitir que os direitos de um adquirente a non domino cedem diante daqueles do possuidor segundo a lei da situação efetiva do bem. Analisando a questão do conflito móvel, Bemard Audit adverte que o deslocamento de móvel de um país para outro acarreta sua submissão sucessiva a duas leis, sem reconhecer necessariamente os mesmos direitos sobre ele, quer dizer, um conflito imóvel. A teoria dos direitos adquiridos desejaria que os direitos do qual o móvel é objeto no país de origem fossem reconhecidos, nos países onde viesse a ser introduzido. Essa solução faz prevalecer a segurança dos terceiros de boa-fé, assim obrigados a respeitar direitos sobre os quais não poderiam praticamente conhecer a existência. Em compensação, a
  • 5. transposição de princípios recebidos em matéria de conflitos de leis no tempo conduz a não aplicar a lei antiga senão pelos modos de aquisição dos direitos sobre o bem e os efeitos correspondentes, ao passo que o conteúdo dos direitos e seus efeitos vindouros serão imediatamente submetidos à lei da situação atual. Em todos os casos em que se aceitará reconhecer os direitos adquiridos sob o império de uma lei estrangeira, pode tornarse necessária a transposição dos direitos em questão, por não serem exatamente equivalentes àqueles previstos pela lei local. A lei do lugar da situação dos bens móveis e imóveis determina o conjunto de seu regime, compreendido como disposição das relações entre a pessoa e a coisa. O princípio faz respeitar a soberania do Estado sobre os bens situados sobre seu território. Do ponto de vista do direito privado, ele tende a preservar os terceiros da surpresa que constituiria a revelação de direitos desconhecidos da lei local ou oponíveis, nas condições não previstas por esta. A lei local define, assim, em primeiro lugar, as coisas objeto de imóvel, de onde se deduz seu regime. Essa regra está ligada ao fato de que a lex rei sitae é aplicável tanto aos imóveis como aos móveis. 22.3. Móveis e imóveis como termos técnicos Contudo, como explica Amilcar de Castro móvel ou imóvel não são em direito o mesmo que vulgarmente significam essas palavras. Bens móveis e imóveis são apenas termos técnicos. Juridicamente considera-se conveniente tratar os valores de certas coisas como bens móveis e os valores de outras como bens imóveis, independentemente da mobilidade natural das coisas cujos valores são tomados em consideração. Por outro lado, acrescenta o insigne mestre, o jurista só se refere à qualificação dos bens em si mesmos considerados como pressupostos de validade das apreciações jurídicas. O jurista toma em consideração as relações humanas a respeito dos valores que possam determinar coisas do mundo exterior, e para esse efeito é que cuida de qualificar os bens (valores das coisas) como pressupostos de validade daquelas apreciações. Atualmente, a palavra e, "bens" compreende valores de toda espécie, como, por exemplo, de casas, terras, móveis, créditos, rendas, direitos de autor, patentes de invenção, nome e clientela do comerciante. Os bens, acentua Amilcar de Castro, podem, portanto, ser valores de coisas corpóreas, de
  • 6. existência verificável pelos sentidos, principalmente o do tato (quae tangi possuno, e podem ser também valores de coisas incorpóreas, de existência não reconhecível pela vista, ou por apalpação (quae tangi non possunn, não podendo ser apanhados senão pela inteligência (solo juris intellectu consistunl). 22.4. Direitos relativos aos bens Conseqüentemente, a respeito dos bens, em si mesmos considerados ou como objeto de relações juridicamente apreciáveis, vários direitos podem ser contemplados: o da situação para o jus in re; o do lugar da constituição do contrato para o jus ad rem; o do domicílio para a capacidade das partes; o do lugar do ato para a forma respectiva; o do domicílio do de cujus para a sucessão; o do domicílio conjugal para o regime matrimonial; e o do lugar do principal estabelecimento para a falência. 22.5. Jurisdição territorial Em razão do princípio inconteste segundo o qual cada país exerce seu poder exclusivo de império e de jurisdição sobre toda a extensão do território, deve-se admitir que não somente o território mas, ainda, as coisas ali contidas devem ser submetidos ao imperium, à auctoritas e à jurisdição do soberano territorial, de onde o axioma quidquid est in territorio est etiam de territorio. Desse princípio resulta que a qualificação das coisas diante de sua condição jurídica depende absolutamente da lei territorial, porque na realidade o legislador, assim dispondo, não se preocupa em saber se elas pertencem a tal ou qual pessoa, a um cidadão nacional ou estrangeiro, mas, considerando essas coisas como objetos do direito, determina-lhes a qualidade das condições jurídicas de que são dotadas. A primeira vista, pode parecer que não existe nenhuma dúvida razoável a esse respeito. Contudo, as dificuldades surgem, porque certos objetos, móveis por sua natureza, podem ser declarados imóveis por uma disposição de lei, como é o caso dos navios entre nós. Em direito comparado, verifica-se que inúmeros legisladores, com efeito, declaravam imobiliários certos bens mobiliários, dependendo de sua destinação, tais como, por exemplo, os animais atrelados a uma exploração agrícola, os instrumentos de agricultura, os aparelhos necessários às fábricas. Outros legisladores declaravam certas coisas imóveis tendo em consideração o objeto ao qual se relacionam: tal ~ é o fato, por exemplo, do legislador italiano, que considera imóvel o direito de enfiteuse sobre bens de raiz submetidos a esse direito, as ações que se destinam à garantia de imóveis ou direitos relativos
  • 7. aos imóveis, ou, ainda, como ocorre no Brasil, os títulos da dívida pública gravados de cláusula de inalienabilidade. 22.6. Classificação dos bens As classificações dos bens são bastante diversificadas nos diferentes sistemas. A título de exemplo vejamos a disposição do Código Civil francês, cujo art. 524 é do seguinte teor: "Art. 524. Les objets que le proprietaire d'un fonds y a piacés pour le service et I'exploitation de ce fonds, sont immeubles par destination. Ainsi, sont immeubles para destination, quand ils ont été piacés para le propriétaire pour le service et I'exploitation du fonds: Les animaux attachés à Ia culture; Les ustensiles aratoires; Les semences données aux fermiers ou colons partiaires; Les pigeons des colombiers; Les Japins des garennes; Les ruches à miei; Les poissons des étongs; Les pressoirs, chaudières, alambies, cuves et tonnes; Les restensiles necessaires à I'exploitation des forges, papeteries et autres usines; Les pailles et engrais.
  • 8. Sont aussi immeubles par destination tous effets mobiliers que le proprietaire a attachés au fonds à perpétuelle demeure". O princípio consagrado no art. 300 do Código Civil austríaco, que submete os imóveis à lei do lugar onde estiverem situados e segundo o qual todos os outros bens, ao contrário, devem submeter-se às leis às quais está subordinada a pessoa de proprietário, está em conformidade com a regra tradicional consagrada pela doutrina e jurisprudência de todos os países que, admitindo a máxima mobília personam sequuntur, mobilia ossibus personae inhaerent, constantamente reconheceram que os bens mobiliários, do ponto de vista da lei aplicável para regular os direitos que lhes são concernentes, devem ser regidos pela lei pessoal daquele ao qual eles pertencem, e que sua situação real deve ser considerada irrelevante. Essa é a orientação legal do direito internacional privado brasileiro, que, no art. 8°- da Lei de Introdução ao Código Civil, assim dispõe: "Art. 8° Para qualificar os bens e regular as relações a eles concernentes, aplicar-se-á a lei do país em que estiverem situados. § 1°- Aplicar-se-á a lei do país em que for domiciliado o proprietário, quanto aos bens móveis que ele trouxer ou se destinarem a transporte para outros lugares. § 2°- O penhor regula-se pela lei do domicílio que tiver a pessoa, em cuja posse se encontre a coisa apenhada". Considerando esse princípio pergunta-se se a lei pessoal do proprietário, segundo a qual dada coisa é considerada como imobiliária, pode assim considerá-la em toda parte, e, em conseqüência, mesmo na hipótese onde, de acordo com a lei territorial, ela fosse declarada imóvel, seja por destinação, seja em razão do objeto ao qual ela se refere. A solução dessa questão no sentido da afirmativa ou da negativa pode gerar conseqüências jurídicas importantes na prática, pois a capacidade das pessoas de praticar certos atos depende em alguns casos da condição jurídica dos bens. Assim, por exemplo, a alienação de bens pertencentes à mulher casada não pode ser feita sem autorização do marido (art. 242 do Código Civil), mas, ao contrário, é valida se se tratar de coisas mobiliárias. Essa circunstância serve para demonstrar que, quanto aos atos sujeitos a certas formalidades substanciais, quer se trate de bens imobiliários ou mobiliários, é natural que tudo deva depender da qualificação jurídica das coisas. Contudo, é preciso
  • 9. salientar que nessa matéria não se admite a autoridade do estatuto pessoal, porque a lei que determina a condição jurídica dos bens ou coisas dispõe a esse respeito sem se preocupar com as relações entre a pessoa e a coisa e a pessoa à qual essa coisa pertence. 22.7. Posse A posse pode ser considerada segundo duplo ponto de vista: a) como um fato puro e simples, independente da aquisição ou do exercício de um direito. Tal é a posse natural, que os romanos qualificavam muda defentio, esse in possessione; b) como um fato jurídico, que, com abstração de todo direito preexistente, produz por si mesmo certas conseqüências legais. É a posse no sentido técnico, ou posse jurídica: ela resulta dos atos sensíveis exercidos por qualquer um sobre determinado objeto ex- terior de modo a manifestar a intenção de submeter esse objeto ao exercício de um direito. Considerada desse ponto de vista, a posse produz conseqüências jurídicas importantes, sobretudo quando tende a afirmar um direito de propriedade ou um direito real, por meio da vontade de possuir a coisa animo domini e de tê-la à sua disposição física, para adquirir, assim, abstração feita ao direito preexistente, o direito de propriedade ou direito real. A posse pode também ser considerada como fato jurídico, com a ajuda da qual se manifesta e se exerce o direito de propriedade. Assim entendida, porém, torna-se antes exercício de direito preexistente, constituindo o que se intitula o jus possidendi. É evidente que a posse considerada como fato jurídico, realizada segundo condições estabelecidas pela lei territorial, produz todas as conseqüências que esta atribui a tal fato. Resulta, portanto, desse princípio que o possuidor, seja cidadão nacional ou estrangeiro, pode prevalecer-se de todos os meios jurídicos permitidos pela lei do lugar da posse, quer para fazer cessar turbações e para manter-se no seu exercício, quer para reintegrar-se se despojado da coisa. Deve-se admitir, destarte, em princípio, que o jus possessionis deve ser regido pela lex rei sitae; o mesmo ocorrendo em relação às ações possessórias.
  • 10. 22.8. Propriedade A propriedade, em geral, é o direito de gozar e dispor das coisas de modo absoluto, desde que não se faça uso proibido pelas leis e pelos regulamentos. Considerada em face da pessoa que a detém, deve a propriedade ser regida pela lei da qual ela possa resultar. Segundo as circunstâncias, pode ser tutelada pela lei do lugar onde a coisa que a constitui está situada, mas não é valido assegurar que a lex rei sitae é o único princípio sustentável, porque não se pode, de acordo com essa indicação territorial, determinar se a pessoa deve ou não ser a legítima proprietária da coisa imobiliá- ria. Genericamente, os modos de aquisição da propriedade dependem da lex rei sitae, seja ela a título universal ou a título particular. 22.9. Usufruto Em matéria de bens imóveis, podem ocorrer delicados problemas de direito real de usufruto, em suas duas modalidades: voluntário ou legal. No primeiro aspecto, nosso direito concede certa margem de autonomia da vontade, posto que, de acordo com o que resulta expresso nos arts. 713 e seguintes do Código Civil, o usufruto se rege em primeiro lugar por seu título constitutivo e subsidiariamente pelas disposições legais. Não obstante, na regulação do usufruto em todos os países existem disposições imperativas que não podem ser descartadas por pacto em contrário ou por aparecer o usufruto regulado por lei estrangeira, tais como as que estabelecem a esse direito real um limite máximo de duração ao constituir-se a favor de uma pessoa jurídica ou durante a vida de vários indivíduos. É o caso do Brasil, onde o usufruto se extingue com a pessoa jurídica, ou, se esta perdurar, aos cem anos da data em que se começou a exercê-lo (art. 744). Nos usufrutos legais podem entrar em colisão a lex rei sitae e a que regula a instituição dentro da qual se concede a um de seus sujeitos o usufruto de certos bens. E em nosso Código existem três possibilidades de usufruto legal: o do pai ou mãe sobre os bens dos filhos sujeitos ao pátrio poder, o do marido que estiver na posse de bens particulares da mulher, se o rendimento for comum, ou de dote de capitais e rendas, e o do cônjuge sobrevivente, casado sob o regime da comunhão universal. Em todas essas hipóteses, o título legal constitutivo do usufruto é pessoal e não territorial. Claro é que a efetividade dos direitos usufrutuários sobre bens imóveis estará também em função de seu
  • 11. reconhecimento no país da situação dos bens, e do cumprimento das medidas que a legislação desse país exija para sua oponibilidade diante de terceiros. Reciprocamente, no Brasil, por exemplo, será suscetível de reconhecimento o usufruto legal imposto sobre bens situados em nosso território pela legislação pessoal que rege o pátrio poder, o dote, a sucessão de estrangeiros etc., segundo a regra geral de nosso direito. 22.10. Hipoteca Quanto à hipoteca aplicar-se-á a lex rei sitae para determinar seu conteúdo e exercício; relativamente à sua base contratual, ter-se-á em conta a autonomia da vontade dos contratantes, até o limite em que não se oponha à ordem pública local. Sendo a hipótese um direito limitativo do domínio, e, portanto, manifestação do regime de propriedade, reger-se-á o gravame pela lei da situação do imóvel que presidirá sua constituição; a retenção ou exame dos bens suscetíveis de ser hipotecados; as formalidades de inscrição e publicidade. Modernamente, concedese aos estrangeiros o gozo dos chamados direitos preferenciais sempre que a causa da preferência invocada seja reconhecida pela lei do país onde se pretende invocá-la. Importante e significativo o posicionamento do Prof. Haroldo Valladão, que passamos a transcrever: "Acerca dos direitos de garantia, especialmente da hipoteca, discutiu-se nos tribunais brasileiros se a dívida por ela garantida, o contrato de empréstimo, se rege pela lei brasileira, aqui estando o imóvel hipotecado. Sustentamos em dois estudos, longamente desenvolvidos, sobre dívidas em moeda estrangeira simples e sua distinção da 'cláusula ouro'. Fica afastada desde logo qualquer influência da lei reguladora da garantia, da lei da situação dos imóveis hipotecados. Não há em foco qualquer problema de direito real, não se questiona sobre direito hipotecário, a respeito da validade da garantia dada pela devedora. E se não se discute a respeito de 'atos relativos ao regime hipotecário brasileiro' não é possível a aplicação da lei brasileira com fundamento no parágrafo único, n. IV, do art. 13 da Introdução do Código Civil. Muito mais descabido
  • 12. seria pleitear, num debate exclusivamente feito sobre o modo de cumprimento da obrigação, de pagamento da importância mutuada, a aplicação da lei da garantia, pretender que a lei do acessório disciplinasse o principal, que a lei da hipoteca fosse a reguladora da dívida". E ainda mais: "Mas é corrente, até elementar, que a lei que rege a garantia, no caso a lei disciplinadora do direito real da hipoteca, não é a mesma que regula a dívida, na espécie, o mútuo. Num contrato de empréstimo por obrigações ao portador, com garantia especial hipotecária, há dois negócios, um, o principal, o emprés- timo, e outro, o acessório, a hipoteca. O primeiro, direito de crédito, círculo do direito das obrigações, o segundo, direito real, círculo do direito das coisas; cada um com suas regras próprias no campo do direito internacional privado". O assunto foi largamente discutido, em dois casos mandando-se aplicar a lei brasileira, mas por se entender que o lugar da execução era o Brasil. Em um, da Cia. Tecidos Paulista e do British Bank of South America Ltd., no Tribunal de Pernambuco (primeiro acórdão in Rev. Forense 92/179 e ss., não prosseguindo por ter havido acordo) e noutro, da Cia. América Fabril S.A. e The City Bank Farmer Trust Co. Ltd., no Tribunal do antigo Distrito Federal (Rev. Forense, 95/334) e no Supremo Tribunal Federal (primeiro acórdão, 111 Turma, 15.6.44, Rev. Forense 99/652, não tendo prosseguido ex vi do D. L. n. 6.650, de 29.6.44, excetuando o caso de obrigação contratual no estrangeiro e exeqüível no Brasil, e aplicável à espécie por não existir ainda decisão judicial transitada em julgado). É de se destacar, ainda, no debate geral, notável voto vencido do eminente e saudoso Min. Philadelpho Azevedo (Rec. Extr. 6.728, Rev. Forense 99/354, em "Um Triênio de Judicatura", I, 115), concordando com a opinião acima transcrita do eminente mestre Haroldo Valladão. 22.11. Obra literária As prerrogativas jurídicas consistentes na exploração dos benefícios produzidos por uma obra literária, científica ou industrial se encontram tratadas como propriedades especiais, em leis próprias, denominadas propriedades intelectual e industrial. A índole especial desses direitos reais de caráter material reclama extraterritorialidade em sua proteção, que se conseguiu mediante tratados internacionais. Em razão da importância do direito convencional, resultante notadamente de duas Convenções multilaterais, o direito interno adquire significação mais restrita. São elas: a Convenção de Berna de 1886, várias vezes revisada, e a Convenção de Genebra de 1952, igualmente revisada, chamada "Convenção Universal", de aplicação mais extensa, mas menos protecionista. As diferentes convenções colocam o princípio da assimilação do estrangeiro ao nacional, isto é, os autores estrangeiros devem beneficiar-se da mesma proteção
  • 13. pelas suas obras que os autores nacionais, mas segundo modalidades diferentes. De acordo com a Convenção de Berna, beneficiam-se da proteção nacional, de um lado, os autores súditos dos países da União ou tendo sua residência habitual em um desses países por suas obras publicadas ou não, e daqueles de países não pertencentes à União por suas obras publicadas em um desses países (art. 3.1. e 2). A Convenção de Genebra beneficia com proteção nacional os súditos de todo Estado contratante por suas obras publicadas pela primeira vez no território de um Estado contratante; um Estado contratante pode, além disso, por sua legislação interna, assimilar aos seus nacionais qualquer pessoa domiciliada em seu território (art. II). Segundo Bernard Audit em boa análise, essas disposições visam a proteção dos estrangeiros e deixam teoricamente aberta a questão de saber segundo qual lei os direitos são exercidos; chega-se assim a uma combinação de leis do Estado de origem e do Estado receptor. Contudo, algumas vezes eles são compreendidos como se um impusesse a aplicação integral da lei ao outro. Anote-se, também, a existência da Convenção de Roma de 1961 sobre a proteção dos artistas, intérpretes ou executantes, dos produtores de fonogramas e de organismos de radiodifusão. 22.12. Direito da personalidade e privacidade O direito internacional privado contemporâneo impôs-se a tarefa de incorporar ao seu campo de ação não só questões relativas à proteção da personalidade como à vida privada, na qual se inclui o direito à imagem e suas conseqüências. Soma-se a esse cabedal o regime do dados informatizados. O conceito de direito da personalidade é relativamente recente em direito interno, tanto no Brasil como no estrangeiro. É, igualmente, heterogêneo, pois abrange aspectos muito diversificados, como o direito à imagem, o respeito à privacidade, a integridade física, a honra, e, ainda, como abordado, o direito moral do autor e do artista a sua criação. Esses direitos adquirem particular relevo com o desenvolvimento da sociedade tecnocientífica com as telecomunicações, informática, pesquisas genéticas etc., que multiplicam as possibilidades de violação dos objetivos, notadamente através de suas aplicações mercantis. Pela mesma razão essas violações cada vez mais adquirem caráter internacional, bastando pensar no papel que desempenha a mídia, e em particular a televisão. A sanção de uma violação em dado país coloca preliminarmente a questão do gozo de direitos pelos estrangeiros. Este é, entretanto, muito teórico, tendo-se em vista o caráter fundamental da
  • 14. maioria dos direitos em tela, que constituem freqüentemente o postigo privatista dos direitos do homem ou liberdades públicas. François Rigaux examinou essa problemática com muita acuidade ao estudar "a lei aplicável à proteção dos individuos em face do tratamento automatizado dos dados de caráter pessoal' j Esses elementos foram colhidos pelo autor na Convenção do Conselho da Europa, ainda em projeto em 1980. Assim, a matéria dos "dados de caráter pessoal" significa toda informação concernente a uma pessoa física identificada ou identificável. E "tratamento informatizado" é compreendido como operações subseqüentes efetuadas na totalidade, ou em parte, com a ajuda de procedimentos automatizados: registro de dados, aplicação a esses dados de operações lógicas e/ou aritméticas, sua modificação, apagamento, extração ou difusão. Segundo o art. "2b" do projeto supra-aludido, "fichário automatizado" significa "todo conjunto de informações tendo como objeto um tratamento automatizado", contendo o seguinte comentário: "A expressão fichário automatizado substitui aquela de banco de dados eletrônico, utilizada anteriormente, assim como em certas leis nacionais. Em nossos dias, banco de dados é utilizado em sentido mais especializado, notadamente um fundo comum de dados acessível a diversos utilizadores". A advertência de Rigaux é de que não mais é permitido ignorar a concentração de informações pessoais, nos "fichários automatizados", capazes de subverter o equilíbrio atual dos poderes societários e ameaçar a intimidade da vida privada de cada cidadão. Para o inventário das principais questões de direito internacional privado suscitadas para a proteção dos indivíduos em face do tratamento automatizado de dados de caráter pessoal, deve-se ter conta: - da diferença de estatuto entre um fichário automático gerado por administração pública e tal fichário pertencente ao setor privado. - da diversidade de métodos de proteção postos em prática, a principal distinção separando os controles exercidos por autoridade administrativa das ações civis pertencentes à pessoa em cujo nome
  • 15. os dados foram registrados, sendo essas ações dirigidas seja contra o dono do fichário, seja contra um terceiro utilizando esses dados produzidos ou adquiridos de modo ilícito. Amplamente considerada a temática, verifica-se que, no domínio das violações contra a pessoa, os demandantes se colocam geralmente no terreno da responsabilidade civil. Em termos de jurisprudência internacional, a qualificação tem-se orientado no sentido de considerar as conseqüências dos atentados contra a vida privada de uma pessoa ou da violação do direito que ela possui sobre sua imagem ligadas à lei do lugar onde esses atos foram cometidos. Essa concepção, entretanto, leva ao afrontamento de uma dificuldade importante: a da localização dos fatos visados e daqueles que devem ser retidos em face da grande dispersão possível. Quanto ao caso típico de transgressão da vida privada por publicação de fotografias indiscretas em "magazine", por exemplo, o fato gerador é constituído por uma cadeia de acontecimentos, indo da observação dos fatos e gestos do interessado à tomada de clichês e posteriormente sua impressão e difusão, cada um podendo situar-se em um país diferente. No que tange à localização do dano, pode-se hesitar, notadamente, entre o lugar da difusão, na maior parte das vezes múltiplos, e o domicílio da vítima ou a sede de sua atividade principal. Se fizermos preponderar o dano sobre o fato gerador, o domicílio do demandante deve prevalecer enquanto lugar onde se concentra o prejuízo. É, igualmente, concebível admitir ao interessado opção em favor da lei do estabelecimento do autor do delito, sob o argumento de que este deve respeitar as regras de comportamento que ali estiverem vigorando. Contudo, parece mais conforme à realidade considerar que, nos casos das violações por meio da imprensa, a difusão realiza um dano distinto em cada país onde ocorre, e, assim, aplicar distributivamente a lei dos diferentes países em que o efeito se produziu; isso levará a adotar o critério da difusão local e a avaliar distintamente o dano sofrido em cada território. Como se vê, nesse campo a matéria se torna cada vez mais importante, dado que a facilidade das comunicações propicia com maior intensidade a ocorrência de tais fatos, e ao direito internacional privado incumbe proporcionar os meios de solução de tais problemas. Todo esse contigente fático se inclui no quadro amplíssimo da propriedade intelectual, no qual encontra esteio metodológico o direito da personalidade, compondo essas duas áreas fértil manancial técnico-conflitual para o direito internacional privado na extensão e abrangência da problemática dos bens. 23. Das Obrigações
  • 16. 23.1. Matéria polêmica. 23.2. Evolução cronológica. 23.3. Direito comum de nossos dias. 23.4. Elementos caracterizadores. 23.5. Lex validitatis e specific performance. 23.6. Princípio da autonomia da vontade. 23.7. Direito subjetivo. 23.8. Autonomia da vontade no plano conflitivo. 23.9. Designação de lei e contrato sem lei. 23.10. Regra obrigacional brasileira. 23.11. Obrigações não convencionais. 23.12. Aplicação do direito. 23.13. Substância do contrato. 23.1. Matéria polêmica A obrigação voluntária e a obrigação convencional, isto é, as obrigações que nascem do contrato ou do fato contratual, implicam a presença de tão complexos elementos integrantes que suscitam sempre árdua questão quando se trata de regulá-las no tráfico internacional privado. A dificuldade de localizar o contrato, a concorrência aderida aos elementos pessoais, reais e formais e a participação dos interesses públicos e privados internos e internacionais converteram as obrigações voluntárias em uma das matérias mais polêmicas em direito internacional privado. No mesmo sentido a afirmação de Amílcar de Castro: "Tem sido penoso e interminável o problema da prevalência desta ou daquela circunstância de conexão em matéria de obrigações: até agora doutrinariamente insolúvel, e positivamente mal resolvida pela legislação e pela jurisprudência, na opinião de Arminjon 'é sem dúvida a mais difícil das questões de direito internacional privado'. Numerosos autores modernos têm pelejado por submeter as obrigações a um só direito, pretendendo manter a unidade do contrato e o espírito do direito por que há de ser apreciado, mas o resultado do esforço tem sido nulo, podendo-se dizer que cada autor tem seu sistema. Entendem vários tratadistas que a desconjunção do contrato não só o desfigura, como importa desnaturação dos direitos aplicados em pequenas porções. Ensi- nam que o direito perde sua significação e sua eficácia quando mutilado, parcialmente aplicado, ou combinado com direito estranho, pois falta unidade e coesão lógica à composição de vários direitos, enquanto o contrato forma um todo, cujos elementos não podem ser convenientemente articulados senão apreciados por critérios fornecidos por uma única ordem jurídica". Os comentários assim encaminhados, entretanto, não desconstituem o rico acervo das questões que envolvem o direito das obrigações no direito internacional privado, recheado de incidentes doutrinários e práticos, mas nunca enfraquecendo o papel que, em decorrência, desempenham os
  • 17. contratos como instrumentos indispensáveis de sua efetivação nos inúmeros campos jurídicos delimitados pela natureza das coisas. Ao enfrentar o estado das obrigações é indispensável distinguir duas modalidades fáticas: aquelas que têm sua origem no contrato e aquelas com fonte diversa, denominadas obrigações extracontratuais. Tanto na primeira hipótese como na segunda, a pesquisa do elemento de conexão é o objeto principal, sendo desde logo assinalável que nas obrigações contratuais essa tarefa é particularmente difícil. Ao contrário das relações de família, cujo elemento de conexão é singelamente determinado pelo princípio do estatuto pessoal (lei nacional ou domiciliar), ou, então, nos direitos reais, a lei do lugar da situação, não ocorre o mesmo com a individuação, mais apropriada para regular os contratos. A essência de um contrato, como diz Edoardo Vitta, consiste, de fato, no surgimento de um vínculo obrigatório entre as partes, e isso, por si só, não apresenta características tais que permitam agilmente determinar a conexão a uma ou outra lei. 23.2. Evolução cronológica Em épocas remotas, os autores que cuidaram da questão propuseram a respeito da solução as mais diversificadas, como explicam alguns historiadores do direito internacional privado, entre os quais Lainé (Introduction au droit intemational privé; contenant une étude historique et critique de Ia theorie des statuts, 2 vols., Paris, 1892), Gutzwiller (Le dévelopement historique du droit international privé, RC, 29, 1929) e Meijers (L'histoire des principes fondamentaux du droit intemational privé, à partir du Moyen Age, speciallement daus I'Europe occidentale, RC, 49, 1934). Edoardo Vitta, colocando em ordem cronológica essa evolução, distingue teorias que individuam a lei reguladora dos contratos, estabelecendo uma conexão de caráter territorial entre contrato e lugar de sua conclusão, ou, então, entre contrato e lugar de sua execução. Nesse sentido já se orientavam autores dos séculos XII e XIII e, posteriormente o estatutário Bártolo de Sassoferrato (1314-1357), o qual, referindo-se à lei Si fundus, afirmava a natural dependência do contrato ao lugar de sua conclusão. Entre os sequazes de Bártolo, menciona-se Paolo di Castro que, comentando também a lei Si fundus, acentuava que o contrato é regulado pela lei do lugar de sua conclusão, in verbis: "guia talis contractus dicitur ibi nasci ubi nascitur, et sicut persona ratione originis ligatur a statutis loci originis ita et
  • 18. actus", ou, em vernáculo: Porque do contrato se diz que é nascido onde nasceu, como uma pessoa que é ligada por motivo de sua origem às leis de seu lugar de origem. Saltando no tempo encontramos Savigny, que, também referindo-se às fontes romanas, sustentou que o contrato deve ser regulado pela lei do lugar no qual é destinado a ser executado (lex loci solutionis), isto é, os contraentes estabelecem onde as obrigações recíprocas devem ser cumpridas. Para Savigny, a execução é o verdadeiro escopo em vista do qual o contrato se conclui, e constitui, portanto, o momento essencial na vida da relação obrigacional. Outras teorias, desenvolvidas por Windscheid, von Bar e Zitelmann, já não se fundam em uma conexão territorial, mas, sobretudo naquela que deflui das pessoas dos contraentes, e, em especial do devedor, afirmando que se deve recorrer às leis pessoais destes. No que respeita às motivações, Zitelmann assevera que a obrigação exprime um poder jurídico de uma pessoa, poder que, portanto, poderia ser conferido somente pela lei à qual a pessoa estivesse sujeita, isto é, a sua lei pessoal. Na mesma linha, outros autores dessa teoria proclamavam que é lógico submeter o devedor à lei que melhor conhece, ou seja, sua lei pessoal. Ulteriormente o pensamento se orientou no sentido de tomar os contraentes como ponto de partida, mas marginalizou as leis pessoais, fixando-se, prevalentemente, na vontade, de modo que o contrato se submetesse à lei objeto da escolha das partes. Adotou-se nessa fase o princípio da autonomia da vontade, cuja origem é muito antiga, como se sabe, remontando aos estatutários do século XVI. No common law alei reguladora do contrato não pode ser prefixada de modo absoluto, nem mesmo pelos próprios contraentes, mas deve ser individuada em cada caso pelo juiz, tendo em vista os elementos relevantes, entre os quais a vontade das partes. O juiz, no momento do litígio sobre um contrato, deverá pesquisar a lei mais apropriada, isto é, a proper law do contrato, na base da qual proferirá sua decisão. Todas as teorias supra-referidas, em medida maior ou menor, influenciaram os atuais sistemas de direito internacional privado, podendo-se afirmar que boa parte das legislações vigentes toma como ponto de partida o principio da autonomia da vontade, na pior das hipóteses integrando-o com outros princípios vigentes. 23.3. Direito comum de nossos dias
  • 19. Em nossos dias, o direito comum foi praticamente substituído pela Convenção de Roma de 19 de junho de 1980, sobre a lei aplicável às obrigações contratuais, destinada a unificar as regras do conflito no seio dos Estados-membros da CEE e que entrou em vigor no dia 1°- de abril de 1991. Como nos ensina Bemard Audit, o direito francês, como a quase, totalidade dos sistemas (o Brasil entra nas exceções), consagrou o princípio da lei da autonomia da vontade, isto é, a faculdade para as partes de designar a lei aplicável ao contrato. Na ausência de escolha, a jurisprudência se pronuncia, em geral, em função da localização do contrato. Contudo, adverte o mesmo autor, a Corte de Cassação não tomava nitidamente partido da teoria subjetiva, segundo a qual a determinação da lei aplicável resulta diretamente da vontade expressa ou implícita das partes, e da teoria da localização, misturando objetivismo e subjetivismo, segundo a qual o objeto da vontade das partes não é senão colocar o contrato sob o império de determinada lei. A teoria da localização consagra a possibilidade de escolha direta, uma vez que a vontade das partes seja exprimida sem equívoco. 23.4. Elementos caracterizadores As passagens doutrinárias e algumas fixações teóricas de efeitos determinadores dos contratos internacionais levam, naturalmente, à enunciação das características identificadoras das formalizações do comércio internacional, por meio das diversas modalidades de ajustes negociais. Antes de se chegar a um esboço de classificação, pertine esclarecer que o vocábulo características é adotado com o sentido de entrever, nos contratos internacionais, certas notas distintivas, não só de estrutura como de sistema. Ao estudar esse assunto, verificamos que nos contratos internacionais ocorre um processo inexoravelmente desenvolvimentista, que, continuamente, gera a eclosão de novas cláusulas, sempre destinadas a satisfazer as exigências do comércio internacional, sempre desempenhando papel de extrema singularidade quanto às diferentes instituições que abrange. Sem dúvida, existem regras nascidas das práticas internacionais, compostas pelos usos profissionais, e princípios gerais do direito, com encaminhamentos inevitáveis de adaptação à vida própria do comércio internacional, e, mesmo que se admita a forma normativa dos direitos estatais, verifica-se que no plano internacional, em matéria de lei aplicável ao contrato, interferem disposições supletivas e imperativas, sendo de notar-se que as primeiras periodicamente revigoram-se, por meio de
  • 20. regulamentações associativas, e mesmo através da criatividade individualizada pelas especializações do comércio. Fenômeno que deve ser especialmente realçado é o da força crescente do princípio da autonomia da vontade, cuja extensão já avança inclusive para a área dos países de economia planificada, e hoje parece incontestável que a noção de contrato, estimulada por essa influência, sofreu notáveis evoluções. Henri Batiffol, ao prefaciar o magnífico livro de Annie Toubiana, confirma essa perspectiva, com o seguinte pensamento: "O regime dos contratos em Direito Internacional Privado aparece dividido entre duas tendências antagônicas. De um lado, o procedimento geral da designação de uma lei aplicável ao contrato é visto como inadequado: são contratos que não se conectam efetivamente a nenhum sistema jurídico estatal determinado, e esses sistemas foram concebidos por relações internas, ao passo que o comércio internacional tem suas exigências próprias bem melhor conhecidas por aqueles que nele estão enganjados e que se exprimem por seus próprios acordos livremente negociados, sem referência a qualquer lei. De outro lado, e em sentido diametralmente oposto, a ênfase é colocada na intervenção crescente do Estado em matéria de contratos, e no dirigismo econômico e social, que reduz inexoravelmente a liberdade contratual: como recusar, a tal legislação, a aplicabilidade que reclama a título imperativo, não obstante a designação pelas partes da lei que governa os contratos segundo o método bem assentado dos conflitos de leis?". Com efeito, os contratos do comércio internacional ainda se debatem entre essas duas direções, mas o elasticismo dessa dupla tendência tem sofrido grandes distensões, com visível vantagem para as solicitações do comércio internacional. Essas ponderações permitem chegar, como primeira conclusão, ao convencimento de que o principio da submissão de um contrato a uma lei determinada, no plano internacional, é quase abstração teórica, com a evidente ressalva da ordem pública, pois interferiria, em caso contrário, na operação contratual um elemento de estraneidade, bloqueador de sua eficácia; isso porque não se podem deixar de considerar os efeitos de ordem técnica e as diferentes finalidades que orientam a atividade internacional do comércio. Em verdade, a prática jurídica internacional repousa grandemente, e até com certa obstinação, na lex voluntatis, pois, perdendo esse princípio, aquele caráter tradicional de ajuste de vontades dos
  • 21. indivíduos transformou-se numa expressão de natureza comunitária, através dos regulamentos e das leis-tipo, quase sempre emanadas de órgãos e entidades não governamentais. Se tomarmos o conceito de contrato segundo os cânones tradicionais, veremos que os juristas distinguem entre os contratos clássicos - aqueles a título oneroso ou gratuito, desinteressados, sinalagmáticos, unilaterais, consensuais, reais, solenes etc. - e procuram definir suas condições de formação e de validade por meio do consentimento, objeto, causa, e seus efeitos entre as partes, principalmente as relações causais entre contratantes e terceiros. Essas visões, sedimentadas em certa acomodação doutrinária, não se coadunam com a natureza e as características dos contratos internacionais, que repousam mais na execução do que nos outros elementos formadores do contrato, para o fim de se deduzir sua real contextura jurídica. Um autor já dizia, habitualmente, que quase não há diferença entre um contrato e o amor: no começo tudo é perfeito; somente o uso revela se o dia seguinte será de choro ou de alegrias. Do ponto de vista prático, pode-se dizer que um contrato internacional é a constatação de uma situação e a definição de um quadro de ação. É a expressão a priori de uma situação que deve evoluir em um lapso de tempo, em função de decisões voluntárias, ou de causas involuntárias, das quais é preciso ter nítida consciência. O contrato internacional é, nessas circunstâncias, um elemento dinâmico e não um monumento jurídico. Em lugar de, figurativamente, abrigá-lo num cofre-forte depois da assinatura e somente pegá-lo se houver um litígio, quando não há exata recordação dos termos que contém, é preciso ter o contrato internacional como instrumento de trabalho, que permite verificar, periodicamente, se possível com os consignatários, se as circunstâncias nas quais foi concluído continuam as mesmas. Daí decorre a necessidade de um preâmbulo descrevendo essa circunstância. Se, a despeito de alterações nas circunstâncias, as partes desejam continuar sua colaboração, um aditivo ou uma complementação no texto original será suficiente para descrever a nova situação, ou, então, até mesmo, limitar e suspender a atividade decorrente do ajuste contratual.
  • 22. Se concebermos essas colocações como pré-tipificadoras poderemos dizer que, no plano internacional, é possível distinguir, no âmbito do contrato, dois modos: os fundamentais e os operacionais. Os primeiros engajam a empresa numa estrutura política. A parte fundamental é uma espécie de utensílio de trabalho dos dirigentes e faz parte dos elementos de gestão, como ocorre, por exemplo, na negociação de uma licença de fabricação. Por seu turno, os modos operacionais inscrevem-se na vida corrente. São mais de caráter estático, concluídos para e pelos serviços funcionais, no quadro de suas prerrogativas, sujeitando-se a limitações quanto aos efeitos e aos inconvenientes que possam surgir por ocasião de sua execução, como, por exemplo, os transportes, operações bancárias etc. Em excelente trabalho, o eminente jurista húngaro F. Madl, examinando ao seu tempo a questão pelo ângulo socialista, captação sempre importante para efeito do raciocínio comparativo, assim se manifesta: "A classificação dos contratos por tipos não é de regra considerada como obrigatória pelos modernos ordenamentos jurídicos. Nem tampouco pelo Direito húngaro. Ampla gama de contratos, contudo, pode ser integrada dentro dos parâmetros legais de tipos que foram assumindo os seus contornos, ao longo do desenvolvimento do Direito estatutário. Aí se incluem transações classificadas como contratos também no âmbito do comércio internacional, e os tipos concretos desses contratos do comércio internacional. As regras gerais básicas que regulam os contratos são aplicáveis parcialmente somente para algumas questões específicas (autonomia, contratos referentes a bens imóveis, navios etc.), enquanto, por outro lado, um grande, talvez o maior, número de contratos não se subordina a esta classificação, como é sabido. Pois as regras gerais só se aplicam às obrigações típicas, e somente para normas legais suplementares que sejam necessárias, quando, por algum motivo, a lei especial que regula a transação em pauta não pode ser aplicada, e novamente, isso só se aplica em número relativamente pequeno de casos. Similarmente, embora regras gerais regulando a forma dos contratos tenham sido discutidas, sob outro ângulo, têm de ser enfocadas como amplo grupo, ou mesmo maior volume de litígios aparece dentro da esfera e os vários tipos contratuais. Em cada ordenamento jurídico, legislador e jurista têm de se defrontar com a questão de como a regulamentação legal do conflito de leis relativa aos vários tipos contratuais deve ser abordada. A lei e a jurisprudência indicaram alguns caminhos e meios nesse sentido".
  • 23. 23.5. Lex validitatis e specific performance Na prática internacional, a lex validitatis (também chamada favor negotii) é significativa. Ehrenzweig analisou esse princípio e demonstrou sua grande utilidade. Sem dúvida, a política de preservar a validade de um contrato vai ao encontro do interesse no bom desempenho de qualquer transação negocial. O princípio afirma-se igualmente no direito substantivo interno dos vários países, bem como em dispositivos de direito internacional privado (e.g., a forma das transações), nos quais se incluem as mais atípicas transações internacionais sob a égide do direito das obrigações, ou formalidades especiais de tais transações, assumindo o caráter de um favor contractus estatutário. A prática judicial, mesmo que não como uma tese de princípios, reforçou particularmente a doutrina da lex validifatis, presença latente, quase universal. As últimas tendências ou opiniões talvez pudessem ser mais adequadamente designadas pelo princípio da specific performance. Historicamente, a idéia tem sua origem nas teorias de Bar e Gierke, às quais podem ser atribuídas as designações Natur der Sache e Schwergewicht des Rechtsverhãltnisses, respectivamente. O que é a natureza de um contrato, onde se localiza a sua essência, e qual é o centro de gravidade na relação jurídica? De forma direta, a teoria da specific performance responde a isso: a essência da obrigação é a qualidade característica da função e objeto da obrigação no seu todo, ou o contrato. Com esse reconhecimento, escreve, por exemplo, Schnitzer.. o sfatus pessoal e real artificialmente inserido, o destaque de um elemento fático, tal como o locus contractus ou o locus solutionis em vista de fator a priori conectante, a aplicação de uma presumida intenção das partes, que provará tudo, e que por esse motivo nada prova, ficam suplantadas (com a idéia de specific performance) por um fator que se acha na mesma linha das características das diversas obrigações. O que deveria ser o direito da specific performance, quando contingências tais como a nacionalidade, o locus contractus, ou a eleição de foro acham-se fora de questão? Esse direito é o do lugar da execução do contrato, onde a obrigação desempenha sua finalidade específica. "Die obligation ist vielmehr dort innerlich verankert, wo sie eine Funktion eine Daisein der Menschheit ausübt. " Isso, na concepção jurídica dos países de livre mercado, é, no âmbito do direito comercial, o direito do lugar onde a sede de negócios (Niederlassung) está situada e, como tal, é designada pelas partes. As atividades e as funções de um médico, de um advogado e de um engenheiro materializam-se no local de seu exercício profissional. No caso de artesãos, o local da execução é representado pelo local de
  • 24. trabalho onde tais funções são normalmente desempenhadas. Para as atividades coletivas de trabalhadores, a tarefa a ser cumprida, nos termos do contrato de trabalho, torna-se a specific performance, e o local onde esse serviço é prestado é também o lugar de execução da obra. Quando não existem elementos de conexão específicos, então, para qualquer outra transação regida pelo direito civil, o domicílio da pessoa a quem compete a execução da obrigação torna-se o lugar da execução. Esse é o ponto-chave da teoria da specific performance. Certamente, e antes de tudo, trata-se de direito dispositivo, e essa teoria não pode, nem tampouco tenciona, oferecer provisão específica para cada problema dentro dos limites de um simples contrato (p. ex., o problema da aceitação qualitativa), e, enquanto concerne a obrigações não típicas, essa regra geral acarretaria grande número de dificuldades construtivas, finalmente admitindo que em certo número de casos a prática poderia encontrar a lei de regências das transações (p. ex., a venda de um navio, ou vendas realizadas em feiras ou bolsas de mercadorias) com base em outros elementos de conexão. Apesar de tudo, não pode ser negado que, para bom número de codificadores modernos, o princípio da specific performance mostrou-se importante e útil como princípio de codificação. Dispositivos reguladores dos diversos tipos contratuais evidenciam, em larga medida, a elevação desse princípio para a condição de medida impositiva. O novo Código tcheco, bem como o Código polonês, estipulam que dispositivos reguladores dos diversos tipos contratuais são introduzidos por declaração expressa de que o direito aplicável deve alcançar regulamentação adequada do vínculo em questão. Regras cuja eficácia proviria desse princípio prevêem, no mais das vezes, a aplicação da lei do domicílio (lugar de atuação, sede) das pessoas a quem compete a execução. Szászy fundamenta-se em princípio muito semelhante. Esse enfoque também prevalece nos ordenamentos onde, via de regra, incluem-se a venda de objetos móveis e que declaram a aplicabilidade do direito do país do vendedor para esses tipos de transações. Tal direito foi transferido, na prática, em certo número de países, também para outros tipos negociais. A lei do vendedor foi aceita pelas Convenções da Haia, regulando as regras aplicáveis à venda de objetos mobiliários. Como é sabido, à lei do vendedor foram atribuídas funções suplementares e de caráter geral, tais como nas condições gerais de entrega. Esse direito se manifesta no vasto grupo das Condições Gerais formuladas no âmbito da Comissão Econômica da Europa. O princípio da definição do direito, com base na specific performance, implícita ou explicitamente colocado, encontrou resposta também na litera-
  • 25. tura socialista. Considerando todos os aspectos, os comentários seguintes podem ser feitos a respeito do princípio da specific performance, ou qualquer outro princípio geral que regula a definição do direito aplicável. ~Em primeiro lugar, o princípio da specific performance não pode ser aceito como princípio exclusivo para toda a esfera do direito das obrigações. Parcialmente, a prática legislativa e judiciária, sob, muitos aspectos, leva em consideração outras soluções razoáveis e adequadas (aplicação exagerada do princípio da specific performance é limitada pela autonomia da vontade, e também, em muitos outros aspectos, a escolha de outros caminhos e meios pareceu mais conveniente, como na aceitação de residência comum, da sede, do locus contractus etc.). Parcialmente, como já foi esclarecido, em muitos casos o locus contractus supera em importância o lugar da specific performance, ou seja, a lei do devedor aparece indistintamente, e só indistintamente, por trás da lex locf contractus. Em segundo lugar, definindo as regras especiais dos vários tipos contratuais, o direito também pode utilizar esse princípio, e terá de utilizá-lo extensivamente (mesmo que não o faça em sentido absoluto), ao definir dispositivos de direito internacional privado aplicáveis ao dia-a-dia, isto é, para as transações implícitas em um contrato de comércio internacional. De acordo, inicialmente, com o enfoque analítico, todos os tipos contratuais de maior importância devem ser destacados, e, para cada contrato, pesquisa deveria ser feita para caracterizar a assim chamada natureza das coisas, ou a specific performance, e, com base nisso, para a regra que está em conformidade com o espírito do moderno direito internacional privado, e os princípios do direito, resultando benefício para a atividade do comércio exterior. Embora seja verdade que grande número de dispositivos legais, apesar de correto para os fins da atividade legislativa futura, pode ser expresso em regra generalizada, com relação à qual somente desvios ou exceções serão individualmente definidos, e muito embora tais regras gerais não representem de forma generalizada a multifária realidade, poderia ajudar a prática somente no nível de abstrações, mas com menor eficiência. Para os fins da legislação futura, em nenhuma circunstância poderia a doutrina ser dispensada de sua tarefa de estudar os vários tipos contratuais um a um, como imperativo inerente ao ávido processo dialético da contratualística internacional. 23.6. Princípio da autonomia da vontade
  • 26. Na sucinta e expressiva conceituação de Sanfi Romano, deve-se entender por autonomia, em sentido subjetivo, o poder de dar a si próprio ordenamento que as pessoas para si mesmas constituem e que se distingue e contrapõe aos ordenamentos constituídos para elas, mas por outrem. O reconhecimento do valor da vontade jurídica, seja qual for a flexão teórica, resultaria sempre na exaltação do valor do indivíduo, porquanto, no entender acertado de Vicente Ráo, criticando a rigidez das teorias que somente vêem ou a vontade psicológica ou a declaração da vontade como geradoras dos efeitos jurídicos, quando vemos, na vontade autônoma, que na ordem privada se exerce um elemento essencial dos atos produtores de efeitos jurídicos, não se exclui o valor nem a necessidade da declaração, nem se deixa de considerar que, em princípio, a força produtora de tais efeitos se encontra na vontade real efetivamente corporificada na declaração, pois é esta que torna a vontade eficaz e atuante, de conformidade com o ordenamento jurídico. Em que pese o empenho das correntes objetantes do valor e da possibilidade do prevalecimento do princípio da autonomia da vontade por força da infiltração do Estado nos negócios privados, bem justifica Vicente Ráo ao observar que o problema não pode ser colocado em termos simplistas, visto que a autonomia da vontade não se exerce, apenas, no campo delimitado pela lei, nem se aplica tão-só aos contratos nominados ou inominados, pois melhor se qualifica como expressão de um poder criador que atua de conformidade com o ordenamento jurídico, ou sob as sanções por esse ordenamento estabelecidas, padecendo maiores ou menores limitações, mais graves ou menos graves cominações, segundo a relação de que se trate. Para contestar a concepção extremadamente publicista, valese da opinião de Betti, segundo a qual a autonomia de um ente ou sujeito subordinado pode ser concebida através de duas funções distintas: a) como fonte de normas destinadas a formar parte integrante da própria ordem jurídica que a reconhece como tal e por meio dela realiza uma espécie de descentralização da função nomogenética, fonte esta que poderia ser qualificada como regulamentar, por ser subordinada à lei; e b) como pressuposto à hipótese de fato gerador de relações jurídicas já disciplinadas, em abstrato e geral, pelas normas de ordem jurídica, revelando semelhante distinção um dado fenomenológico que não pode ser desconhecido, bastando, para compreender o problema, comparar as regras resultantes de um acordo normativo entre entes dotados de autonomia, v.g., as produzidas pelo contrato coletivo de trabalho celebrado entre associações profissionais titulares dessa faculdade, com as decorrentes do contrato concluído entre particulares. E finaliza: a autonomia privada verdadeira e própria consiste no poder que
  • 27. os sujeitos privados possuem de ditar as regras de seus interesses particulares, em suas relações recíprocas. De acordo com Orlando Gomes em seu recente e bem elaborado trabalho sobre as Transformações Gerais do Direito das Obrigações, alguns publicistas, como Wieacker, por exemplo, têm demonstrado que, de algumas décadas para cá, certas figuras jurídicas devem perder o tratamento tradicional, especialmente porque a autonomia da vontade nada mais seria do que a manifestação de um individualismo superado, e os direitos subjetivos já não constituem limites inflanqueáveis ao poder do Estado. Entretanto, apesar de desenvolver as teorias mais inflexíveis e outras menos obstinadas na apreciação do papel do princípio da autonomia da vontade, ressalva Orlando Gomes com louvável precisão o fato de que as limitações que se devem reconhecer ao seu exercício não impedem que os juristas contemporâneos dêem atenção mais profunda à questão, pois marcadamente importante é o trabalho pandectista nesse sentido, e, portanto, insuscetível de fáceis substituições doutrinárias, por mais que prevaleçam as teses opostas da nova realidade jurídico-social, que a ninguém é lícito negar. A autonomia da vontade como princípio deve ser sustentada não só como elemento da liberdade em geral, mas como suporte também da liberdade jurídica, que é esse poder insuprimível no homem de criar por um ato de vontade uma situação jurídica, desde que esse ato tenha objeto lícito. Não se pode deixar de reconhecer a procedência das explicações que apontam as mudanças de critérios apreciativos impostos pela expansão do contrato em massa, que Orlando Gomes, com indiscutível autoridade, mostra "que substitui, em diversos setores do campo negociai, o negócio jurídico bilateral dantes concluído individualmente. Nos transportes, nos seguros, nas ope- rações bancárias, no trabalho realizado nas empresas, e em tantos outros departamentos a atividade social dos indivíduos, esse elemento, sem constituir uma comunidade jurídica, influiu decisivamente na sua própria dogmática". Em geral, porém, o pluralismo contemporãneo concebe direitos relativos e objetivos, que permitem adiantar uma distinção entre direitos individuais e sociais. Os primeiros teoricamente pertenceriam aos indivíduos isolados, aos quais se deve reconhecer uma esfera própria e bem delimitada. E o aspecto mais característico de oposição entre o direito social e o individual é que este último se apóia sobretudo no contrato, ao passo que o direito social coloca em primeiro plano a instituição.
  • 28. Ora, o contrato, seja de que natureza for, constitui-se num meio pelo qual os particulares regulam seus interesses de acordo com determinada vontade, mesmo admitidas as limitações ao seu exercício, apresentando-se num quadro abstrato que, segundo nossa visualização, pode configurar em seus conteúdos as instituições correspondentes, essencialmente as relativas a quaisquer dados concretos da vida social, expressos na lei ou num ordenamento jurídico. Tais elementos não devem ser vistos somente pelo ângulo da técnica jurídica, porque exatamente o direito que se apóia sobre o contrato, como símbolo do direito individual, alicerça-se nos princípios da igualdade e da liberdade, ao passo que o direito que se apóia nas instituições tem apenas como suporte a autoridade. Assim, deixar de reconhecer o papel da vontade, em qualquer alternativa teórica, contraria a irrefutável concepção pluralista da sociedade onde os ideais morais e jurídicos se cristalizam por força de um comando que se origina na natureza humana. Por outro lado, o processo jurígeno não se exaure na norma jurídica, porquanto, como diz Miguel Reale, ela mesma suscita, no seio do ordenamento e no meio social, um complexo de reações estimativas, de novas exigências fáticas e axiológicas, e o homem constitui o centro do direito, e o fim principal do direito é servir a seus legítimos interesses Somos, portanto, novamente levados à controvérsia central, cujos termos principais procuramos desenvolver, e chegamos à convicção de que o princípio da autonomia da vontade sobrevive a despeito das tentativas demolidoras, tendo toda razão Coviello quando sustenta que a vontade deve ter por escopo um fim prá- tico que não precisa ser necessariamente de ordem patrimonial ou econômica, bastando que seja tutelado pelo direito. As conseqüências que o direito lhe atribui não são sempre coincidentes com a vontade subjetiva do agente: podem, mesmo, ser-lhes disformes e, até, contrária - mas sempre correspondem a um intento prático e neste sentido podem ser ditas conformes, apenas, à vontade geral das pessoas. 23.7. Direito subjetivo Fábio Konder Comparato, em precioso ensaio analítico sobre os elementos e a estrutura das obrigações, concentrando seu esforço interpretativo no confronto entre as teorias voluntaristas e a doutrina de Brinz, faz prévio e minucioso estudo dos "direitos subjetivos e das situações jurídicas
  • 29. passivas", onde esclarece que, apesar de ultrapassado o interesse pelo exame do conceito geral de direito subjetivo, subsiste ainda o propósito de classificação e estudo dos elementos constitutivos desse direito, como ocorre, presentemente, com a noção de poder jurídico, que leva nessa ordem de cogitações à concepção de que toda pessoa, tendo um interesse reconhecido pela lei, possui, ao mesmo tempo, o poder de fazê-lo valer, produzindo efeitos jurídicos em relação a terceiros. E, nos casos de incapacidade, esse poder de agir que é retirado do incapaz se transfere ao seu representante legal sem transfigurar a natureza de ambos os poderes. Caracterizando o poder em geral como a faculdade de produzir efeitos jurídicos em relação a terceiros, assinala o eminente jurista pátrio que entre os poderes jurídicos é preciso assinalar aquele que consiste na criação, modificação ou supressão de uma relação de direito, por uma simples manifestação unilateral da vontade... A dedução forçosa de quanto ficou dito é que não se pode evitar que a manifestação da vontade entre no mundo jurídico como ato ou como negócio jurídico. O princípio de que se parte é sempre da autonomia da vontade ou auto-regramento da vontade, como diria Pontes de Miranda, naturalmente sob a compulsão das regras jurídicas cogentes, dispositivas e interpretativas, que, entretanto, nunca são suficientes para justificar a ineficácia daquela categoria jurídica. Fenômeno idêntico observa-se na representação, por meio da qual se supre a carência da vontade própria de uma pessoa na sua vida jurídica. E, modernamente, a representação não desdota o homem do poder jurídico de fazer a sua lei. Não se pode dizer que a pessoa fique sufocada na sua capacidade volitiva diante das novas figuras jurídicas, visto que o seu alargamento não é suficiente a garantir-lhe um reinado antivoluntarista. Impossível e incompatível com a experiência jurídica levar-se, como pretendem alguns, às conseqüências extremas a doutrina que nega a autonomia da vontade que pode converter-se numa regulamentação tirânica e resultar na destruição da prosperidade que produz a livre atividade, como, aliás, comprovou-se recentemente na Rússia, que depois de vários anos de experiências e diversas alternativas fez restaurar certa liberdade na contratação privada. Como advertem Planiol e Ripert, falar na decadência da soberania do contrato na época moderna é esquecer que o desenvolvimento do comércio proporcionou ao contrato um campo que jamais havia tido anteriormente e, ainda, que as restrições de índole moral à liberdade contratual, desaparecendo, provocam com maior intensidade o aparecimento de novas forças da vontade individual.
  • 30. Apesar de poder-se afirmar em resumo que o Estado moderno se caracteriza por uma tendência socializadora para realizar maior justiça social, intervindo, inclusive, nos contratos celebrados por particulares em matéria que antes era do estrito domínio privado, apesar de alguns publicistas sustentarem a tese de que na época contemporânea a autonomia da vontade tem valor apenas acadêmico e que a maioria dos contratantes terá de submeter-se às leis que o Estado lhes impõe, tudo isso não significa que a autonomia da vontade tenha desaparecido ou tenda a desaparecer. Haverá, por certo, a extensão de certas limitações impostas pela ordem pública, mas impõe-se reconhecer que a história do direito revela não haver sido aplicada tal doutrina, segundo seus termos extremos, em momento algum pelos diversos sistemas legislativos. A autonomia da vontade assumiu, em verdade, o sentido específico, que jamais perderá, de poder de regulamentação das próprias relações, ou dos próprios interesses dentro das limitações maiores ou menores ditadas pela equação do bem individual com o bem comum. A força da autonomia da vontade, praticamente, concentra-se no contrato, que, sendo uma relação entre sujeitos de direito, é, em conseqüência, o campo mais abrangido por essa categoria jurídica, notadamente porque a relação obrigacional se estabelece entre pessoas. Embora o problema não esteja jungido a uma tipificação, há certos institutos jurídicos, evidentemente, que expressam com maior fidelidade as hipóteses em que pode ser considerada a vontade como elemento de relevância conceitual, ou mesmo gerador de direito. De modo geral, poucos sistemas jurídicos podem ser meditados com abstração de suas raízes romanas, cuja evolução reflete a influência nunca expungível de seus ensinamentos e, se quisermos raciocinar exemplificativamente, verificaremos que é nos chamados contratos consensuais - de quatro tipos no direito romano: venda, locação, sociedade e mandato - que encontramos hipóteses onde a vontade é criadora de situações jurídicas. Teoricamente, tanto no direito antigo como no atual a norma dá nascimento a sua situação jurídica, regulada por suas disposições, de maneira geral e uniforme para todos, mas entre os deveres jurídicos alguns são fixados por regras de direito como conseqüência obrigatória dos fatos jurídicos e outros são prescritos ou recebem predominante incidência da vontade humana.
  • 31. O fenômeno moderno não invalida o pensamento supra, como é dedutível das equilibradas considerações de Orlando Gomes ao assinalar que a delimitação do campo da autonomia privada não deve obstar a indagação de seu fundamento prático, pois essa função, segundo suas próprias palavras, "encontra-se, para alguns, no reconhecimento da propriedade privada, porque unicamente nos regimes que a admitem ocorrem a circulação de bens e a prestação de serviços entre os indivíduos... De fato, onde não existem esferas particulares de interesses, a autonomia privada está ausente... Onde, porém, se reconhece ao indivíduo o poder de manifestar interesses particulares, esse exercício constitui dado incomovível da realidade social. Tem a ordem jurídica, no reconhecimento da autonomia privada, sua pedra angular. Outra não é a razão por que o negócio jurídico, principal instrumento dessa autonomia, se coloca no centro do sistema do Direito Privado". Acrescenta, ainda, o emérito privatista que esse reconhecimento, embora não signifique contestação da conveniência de restringi-lo com o objetivo de submeter ao interesse coletivo os interesses individuais, deve admitir que, apesar das limitações impos- tas pelo Estado e pela concentração de capitais, o princípio da autonomia privada conserva-se incólume. E conclui: "As limitações sempre existiram, apenas se apertaram na atualidade, apanhando o campo econômico e se tornando tanto mais numerosas quanto mais se compenetra o Estado da necessidade de intervir com o objetivo de realizar superior justiça social... Do ponto de vista técnico, ocorrem limitações precisamente como efeito da multiplicação de normas cogentes. Não se permite a formação do conteúdo de alguns negócios, obrigando-se os interessados a adotarem a forma típica; a exclusão de certos efeitos jurídicos não é válida em certos negócios; difunde-se o princípio da inserção automática de comando legal no conteúdo de determinados contratos, e assim por diante. Predominam, entretanto, as normas de caráter supletivo, que podem ser indiferentemente afastadas pelas partes contratantes. Prevalece, por outro lado, a liberdade de criar negócios atípicos". Tem sentido lógico e fundamento concreto a preocupação revelada por Orlando Gomes em diferenciar a "declaração da vontade" do "ato de autonomia privada", este como empenho do sujeito ao regulamento e aquela como uma abertura para fugas estritamente subjetivas que incapacitam a compreensão dos intentos, mas na raiz dessas considerações a vontade permanece sobreviva, visto que a aliança da vontade e da legalidade é geradora da noção jurídica e técnica de autonomia. Fazer abstração da legalidade é desconhecer o sentido do princípio de autonomia, pois ela não se vincula aos indivíduos senão pela lei que lhe dá uma habilitação ad hoc. Exatamente a vontade socializada e legalizada é que devemos entender por autonomia. A sociedade e o legislador soberano
  • 32. que a representa diante do indivíduo formam a confiança deste a fim de que ele possa exercer sua vontade jurídica pelo bem comum. Pontes de Miranda, que prefere substituir a expressão "autonomia da vontade" por "auto- regramento", também concorda que é no direito das obrigações que se verifica com maior latitude tal problemática, porquanto entende que "as categorias jurídicas do direito das obrigações deixam margem a negócios jurídicos que não entram nos tipos fixados pela lei". Preleciona ainda o grande mestre que o "auto-regramento" sofre as limitações do direito cogente que se opera impositiva ou despositivamente, inibindo a pessoa de qualquer escolha, mesmo que a regra cogente contenha alternativa, mas não conteste o pleno vigor do "auto-regramento" quando se trata de jus dispositivum. E explica: "A forma de tais regras é: Se não foi dito não-a, entende-se a, ou Se nada se disse quanto a, entende-se a,. Porém a cada momento tem o jurista, diante de regras jurídicas que podem ser cogentes ou dispositivas, de levantar ou de responder à questão. Para isso tem de examiná-las em sua função e alcance, se não cabem, desde logo, por serem cogentes, outras que como tais foram apontadas, o argumento a contrario. Às vezes, a regra jurídica, em lugar de aludir à manifestação da vontade, alude à possibilidade de se excluírem efeitos; ou de alguns serem incluídos; ou de serem tais e tais, se não se dispôs diferentemente. As maiores dificuldades de interpretação surgem quando o legislador usou de expressões que mais serviriam ao direito cogente, ou ao direito interpretativo, ou são próprias do direito cogente, ou do direito interpretativo". Por outro lado, Pontes de Miranda avança em sua tese para admitir que as regras interpretativas, também, em nada limitam o "auto-regramento" da vontade. E diz: "Supõem-no. A vontade lá está... Assim, `a dúvida entre a interpretação da vontade que se prefere na regra interpretativa, e outra interpretação da vontade resolve-se pelos métodos de interpretação dos atos jurídicos, porque vontade houve"'. Em direito privado interno, portanto, a autonomia da vontade, como preferimos denominar essa categoria jurídica, dinamiza-se numa compreensão mais ampla de correlação dinâmica ou dialética com a experiência jurídica sob a égide de uma soberania única, ou seja, a vontade individual é criadora de situações jurídicas, porque, ao mesmo tempo em que ela age, preenche missão social. Sejam as regras impositivas, dispositivas ou interpretativas, não há nenhum critério a priori que possa justificar a classificação de uma regra ou de uma relação de direito numa ou noutra categoria, porquanto compete
  • 33. ao juiz descobrir as razões contigentes que fazem entrar uma regra no domínio da autonomia ou da lei imperativa. Acreditamos que essa maneira de ver a questão encontra eco positivo, ainda, no pensamento de Pontes de Miranda quando alude ao princípio da liberdade de contratar, definindo-o como o poder de livremente assumir deveres e obrigações, ou de "se adquirirem, livremente, direitos, pretensões, ações e exceções oriundos de contrato; e princípio da autonomia da vontade, o da escolha, o líbito, das clausulas contratuais". E explica: "No fundo, os dois princípios prendem-se à liberdade de declarar ou manifestar a vontade com eficácia vinculante e de se tirar proveito das declarações ou manifestações de vontade alheias, receptícias ou não". O direito longe está de adotar esses princípios como absolutos: sofrem eles, sempre sofreram, limitações. A própria existência de tipos de negócios jurídicos limita-os. Limita-os, também, a natureza cogente de certas regras. Quanto aos tipos, se bem que, em geral, se pense poderem ser criados tipos novos, sem se criarem novas regras jurídicas, a verdade está com A. Manigk (Das Anwendungsgebiet der Vorschriften für die Rechtsgeschüfte, 82, nota 2): só se constituem novas espécies, e não tipos. Acrescentamos: salvo se há lei-costume que os crie. Mais uma vez aparece a distinção entre costume-regra jurídica e costume- série de negócios jurídicos. Às vezes, na vida aparecem figuras contratuais, que formam tipos, mas estranhos aos da lei e dos costumes. Esses tipos são apenas negociais, e somente se podem levar em conta para se receberem como disposições onde, se eles não existissem, caberiam regras dispositivas das leis. Quer dizer: no que não entram na tipicidade legal, somente se alojam no espaço deixado à autonomia da vontade. 23.8. Autonomia da vontade no plano conflitivo O terreno sobre o qual domina tematicamente o princípio da autonomia da vontade em direito privado, evidentemente, não sofre estruturalmente mudanças radicais quando se transfere para a área do direito internacional privado, porquanto, conceitualmente, o problema insere-se nos mesmos institutos já mencionados como receptivos de tais indagações. Marcel Caleb, todavia, em magistral obra sobre o assunto, assinala que o princípio da autonomia da vontade em direito internacional tem menor amplitude, significando que as partes apenas têm liberdade de exercer sua vontade tendo em vista a escolha da legislação à qual querem submeter sua convenção, sob reserva de respeitarem a ordem pública.
  • 34. De acordo com esse notável internacionalista, o que essencialmente deve preocupar é o estabelecimento dos limites dentro dos quais a autonomia da vontade vai movimentar-se. Para esse fim impõe adotar um critério metódico, que variará segundo se considere o direito internacional privado como um ramo do direito privado ou público, ou se a sua filiação é de índole nacional ou internacional. Tendendo a aproximar-se do sistema de Pillet, embora com soluções pessoais, Caleb tem principalmente a preocupação de conservar como objeto primordial os indivíduos como os sujeitos de direitos e obrigações. Com certo ecletismo, admite, porém, que o direito internacional privado contém duas espécies de regras, algumas internacionais e outras internas. Assim, consistindo o direito internacional privado numa disciplina jurídica que visa resolver conflitos de leis, o princípio da autonomia da vontade desempenha um papel generalizador, no sentido de ultrapassar as fronteiras do direito privado para selecionar nas ordens jurídicas existentes a lei aplicável a uma determinada relação de direito, apresentando caracteres internacionais. A escolha de uma lei competente constitui, pois, o objetivo essencial em razão do qual se exerce a vontade individual. Explica que a questão de direito positivo aplicável é acessória, pelo menos teoricamente, porquanto ela se reduz a uma simples interpretação do direito local ou do direito estrangeiro, segundo a lei escolhida pelas partes, e que em virtude de sua autonomia será a lei local ou a lei estrangeira. A verdade inegável é que a teoria da autonomia da vontade nasceu a propósito dos contratos e até o momento atual é o âmbito onde ela se aloja. O sistema de Niboyet, por exemplo, focaliza a questão buscando analisar os contratos numa classificação tipológica, propondo soluções de acordo com o direito mais próximo ou mais compatível com a sua natureza, e nega que a autonomia da vontade como poder de escolha por si mesma da lei competente possa existir ou será teoricamente defendida; sustentando a tese, faz incisiva afirmação: "Não existe teoria da autonomia da vontade, porque a autonomia da vontade não existe, porquanto se faz confusão entre duas concepções em matéria de contratos". Como se verifica, para Niboyet, residindo, como admite, o princípio da autonomia da vontade nos contratos e estando as partes sujeitas às leis imperativas de direito interno, sob pena de nulidade de seus atos, não existe diferença nas conseqüências, passando-se para a ordem internacional, porquanto não pode a lei imperativa em face dessa circunstância tornar-se facultativa sem degradar-se nessa passagem.
  • 35. Entre nós, Amílcar de Castro acolhe a tese, tecendo considerações interessantes, cuja transcrição literal dará juízo mais fiel da questão: "Para abordar o famoso sistema da autonomia da vontade, será conveniente esta advertência in limine: é preciso não perder de vista que, a respeito de contratos, funcionam disposições de três espécies, imperativas, facultativas e supletivas. Imperativas, aquelas a cujo rigor não poderão fugir as partes, como, por exemplo, a imposição do regime de separação de bens ao maior de sessenta anos (art. 258, n. II, a do Código Civil). Facultativas, aquelas que, até certo momento, facultam aos particulares a liberdade de convencionar, como, por exemplo, a regra de que é lícito aos nubentes, antes de celebrado o casamento, estipular, quanto aos seus bens, o que lhes aprouver (art. 256 do Código Civil). Supletivas, as que se impõem quando a manifestação de vontade das partes seja deficiente, nula ou inexistente, como, por exemplo, a regra de que, não havendo convenção, ou sendo nula, vigorará, quanto aos bens, entre os cônjuges, o regime da comunhão universal (art. 258 do Código Civil), ou melhor, se até o momento do casamento os nubentes não usarem da liberdade de convencionar regime de bens, ou então se for nula ou deficiente sua manifestação supletiva, o regime de comunhão universal". "Acontece que os contratos, em geral, são essencialmente dominados pela liberdade das convenções, isto é, dentro de certos limites, mais ou menos amplos, as disposições facultativas deixam à vontade dos particulares a regulamentação contratual de seus interesses privados. A regra é a liberdade das convenções; mas há exceções a essa regra, porque a respeito de contratos vigoram também disposições imperativas, convindo aqui ficar bem claro que as disposições supletivas são imperativas, já que necessariamente são aplicadas, se não forem afastadas pela vontade das partes, e uma vez aplicadas não podem mais ser removidas por essa vontade. Além disso, é preciso ver bem que a liberdade de convencionar não é absoluta, e sim é sempre condicionada, tanto pelo tempo, porque a manifestação da vontade deve ser feita até o momento de ser redigido o ato, como pela própria natureza das estipulações, que devem ser lícitas e adequadas ao tipo de contrato fornecido em branco aos contratantes." "Isto posto, convém salientar que, em direito internacional privado podem, ou não, ser encontradas disposições facultativas, mas isto de nenhum modo importa autonomia da vontade neste ramo do direito. Às vezes, disposições imperativas são escalonadas, por exemplo, a que manda observar o direito do domicílio, em falta do direito nacional, e o da residência, em falta de domicílio conhecido; podem, também, encontrar-se disposições facultativas acompanhadas, ou não, de
  • 36. correspondentes disposições supletivas, assim, por exemplo: `É lícito estipular que os contratos sejam regidos em tudo e por tudo pelo direito de um país determinado, podendo a vontade das partes, quando não expressa, ser deduzida do contexto das cláusulas, da nacionalidade dos contratantes, ou das diferentes circunstâncias atinentes ao assunto' ou, então, `Em falta dessa estipulação, será aplicado o direito do país em que a obrigação se constituir"'. Como é normal, no campo doutrinário do direito internacional privado, as conjecturas representadas pela corrente que acompanha o ponto de vista de Niboyet não encontram plena receptividade entre os autores. É o caso de Batiffol, assumindo posição menos rígida e, ao nosso ver, mais compatível com a verdade científica nesse plano de cogitações,-2 Para Batfffol, a vontade individual desempenha papel relevante no direito internacional privado. Considerou os diversos sistemas jurídicos existentes, assinalando a distinção verificável na submissão maior ou menor das relações dada a cada um desses sistemas, determinada por fatores resultantes da definição de conflito de leis que cada país adote. Esses fatores - diz o famoso mestre - em si se apresentam como objetivos, independentes da vontade individual, caráter não contestável para a situação de um imóvel, porquanto podemos abster- nos de comprá-lo, mas, aí, a questão é outra, porque a vontade não tem por objeto a aplicabilidade de uma determinada lei, o mesmo podendo-se dizer de um móvel, que pode mudar de situação, mas que o será normalmente, por razões outras que não a competência da lei real, ressalvando-se a fraude, como será, também, nos casos de mudanças de domicílio e de nacionalidade. Solução paralela examina Batiffol no caso dos contratos, tendo em vista as interpretações jurisprudenciais: "A lei de conflito dá como elemento de conexão a vontade das partes, mas esta fixa somente as circunstâncias de fato que localizam o contrato, da mesma forma como se deduz a lei real da localização de um imóvel. A complexidade da operação contratual permite somente às partes sublinhar que, na concepção que elas fazem da opera- ção, os elementos de conexão a tal ou qual país se revestem aos seus olhos de uma importância primordial". Estamos convencidos de que a autonomia da vontade reassume no direito internacional toda aquela vitalidade que singularizou as fases mais tolerantes do voluntarismo jurídico da esfera do direito privado interno, exatamente porque a matéria num e noutro plano tem finalidades metódicas completamente diversas, sem significar que as leis imperativas perdem o seu caráter no direito
  • 37. internacional privado, porquanto Haroldo Valladão mostra com exuberância que o princípio tradicional das obrigações em direito internacional privado é o da autonomia da vontade, que impõe o reconhecimento aos interessados de escolher o direito, expressa ou tacitamente, como lei reguladora dos contratos, explicando, acertadamente, "que a norma de direito internacional privado do foro pode e deve em certas matérias, como, por exemplo, substância e efeitos das obrigações, regime matrimonial dos bens, etc., determinar, como tem determinado, que a vontade individual é, qual a nacionalidade ou o domicílio, etc., noutros assuntos, um elemento de conexão, que indique a lei competente. Assim o fez o art. 13 da Introdução ao Código Civil Brasileiro, permitindo às partes escolher a lei competente para reger a substância e os efeitos (não a capacidade contratual) dos contratos. Nesse e noutros casos a lei que o direito internacional do foro permite seja indicada pela vontade, ou pela nacionalidade, ou pelo domicílio, ou pelo lugar do contrato ou da execução, tal lei é aplicada na íntegra, em suas disposições imperativas ou facultativas, salvo, evidentemente, abuso de direito e a ofensa à ordem pública do foro". Não seria procedente nem sustentável desenvolver a noção de autonomia da vontade sem considerar o elemento de legalidade que se alia à ação volitiva individual, visto que indiscutível a força das leis imperativas na limitação e condicionamento do domínio da autonomia. Esses obstáculos se estendem ao terreno do direito internacional privado no tocante às exceções à aplicação do sistema estrangeiro, compreendendo a ordem pública, a soberania nacional e os bons costumes, de acordo com o nosso direito positivo, bem assim a fraude no plano da intencionalidade individual. Há, realmente, excelentes razões a desenvolver para justificar em numerosos casos a benigna intervenção legislativa em matéria contratual, desde que não se ultrapassem os limites de modera- ção imprescindíveis à preservação de certos princípios de liberdade individual invioláveis pela própria natureza. Se tomamos o contrato como símbolo expressivo desse tratamento, devemos admitir que suas regras resultam tanto da vontade da lei quanto da vontade do indivíduo, porquanto a estrutura orgânica e homogênea do homem em sociedade não dissocia o domínio da lei do domínio da liberdade, mas se integram ambos na vida social para que a verdadeira liberdade possa ser alcançada. A liberdade e a vontade jurídica podem aparecer algumas vezes, como sendo coisa fictícia do ponto de vista da realidade natural, como puras construções .racionais, mas apesar de tudo elas não deixam de ser autênticas realidades jurídicas.
  • 38. O que importa, porém, frisar é que toda atividade, seja de que ordem for, está dirigida para um fim que a determina e define. Querer essa atividade é querê-la para realizar um fim estabelecido. Querer é colocar através de uma atividade o fim de uma outra atividade, aquilo que em direito lhering chamaria interesse. A vontade é, por conseguinte, uma relação entre as atividades e, em conseqüência, uma relação de fins. Toda atividade, como já tivemos oportunidade de acentuar, implica finalidade, do mesmo modo que toda finalidade implica atividade. Agir é colocar um objetivo à investigação e pensar é procurar aquilo que se procura encontrar. Chegamos, assim, sempre à mesma compreensão do fenômeno volitivo, ou seja, que a vontade jurídica deve ser livre e ao mesmo tempo conformar-se ao direito. Como diz Gropali, a vontade transformada de um fim interior num ato exterior e afirmando-se objetivamente por intermédio de uma declaração ou de uma manifestação é o que constitui o ponto central e culminante ao qual o ordenamento jurídico concede sua proteção, atribuindo-lhe efeitos particulares. Paul Roubier coloca a questão em termos precisos ao analisar os caracteres que se devem reconhecer numa situação jurídica subjetiva, explicando que ela pode ter por finalidade criar prerrogativas ou vantagens, pois as responsabilidades ou deveres que podem acompanhá-las não criam, necessariamente, um paralelo com o proveito que daí deve resultar. E essa é a razão pela qual essas situações são procuradas e desejadas pelos particulares, proporcionando-lhes o prazer e a felicidade, falando delas, de poder dizer: meu direito. Essa é a razão profunda pela qual a vontade privada é um elemento que anima as situações jurídicas, e, mesmo nas situações subjetivas que encontram sua fonte na lei, a vontade privada pode declinar desse modo de aquisição, porquanto ela pode desistir de seu direito, seja pela via da transferência, seja num caso normal, seja mesmo quando a transferência é impossível por motivo de abandono. Daí por que, principalmente, Roubier define as situações jurídicas subjetivas como "situações regularmente estabelecidas", seja pelo ato voluntário, seja pela lei, das quais decorrem, especialmente, prerrogativas em proveito de seus beneficiários e aos quais eles podem em princípio renunciar. Mais adiante serão examinadas algumas teorias principais sobre a autonomia da vontade em direito internacional privado, para uma melhor compreensão do problema na esfera dessa disciplina jurídica. Entretanto, criticamente, no sentido filosófico do termo, chegamos desde logo à afirmação de