Este documento discute duas vertentes historiográficas sobre o crescimento urbano de Foz do Iguaçu entre 1970-1990. A primeira visão, oficial, atribui o crescimento ao "Efeito Itaipu", enquanto a segunda, acadêmica, é mais crítica e aponta para problemas sociais. O autor argumenta que essas visões simplificam demais as motivações para a migração, já que muitos migraram por razões políticas ou em períodos anteriores a 1970.
A problemática dos marcos historiográficos sobre o crescimento
1. Texto integrante dos Anais do XVII Encontro Regional de História – O lugar da História. ANPUH/SP-
UNICAMP. Campinas, 6 a 10 de setembro de 2004. Cd-rom.
A problemática dos marcos historiográficos sobre o crescimento
urbano de Foz do Iguaçu - PR (décadas de 1970 - 1990)*
Emilio Gonzalez
PUC-SP
Boa parte dos estudos que tematizam o crescimento urbano da cidade de Foz
do Iguaçu têm apresentado resultados similares no que tange à explicação do agente
motor do processo de migração / imigração ocorrida na cidade após a década de
1970. Esses estudos, invariavelmente, apresentam o "Efeito Itaipu" como o elemento
causador desse crescimento urbano e demográfico. O início das obras dessa
barragem, em 1974, teria ocasionado uma nova dinâmica na história desse
município.1 Uma vez desencadeado esse crescimento não cessaria com a finalização
das obras em 1991, mas teria continuado até nossos dias devido a emergência de
uma nova fase econômica vivida no município após a década de 1980. Essa fase é
marcada pelo florescimento do comércio de importados no vizinho Paraguai, e o
desenvolvimento da indústria turística na tríplice fronteira. Esses dois últimos
elementos são apresentados pela historiografia como desdobramentos daquele
impulso inicial dado pelo "Efeito Itaipu" na cidade.
A presente pesquisa busca problematizar algumas dessas explicações que
associam mecanicamente todo um complexo processo de crescimento urbano, seus
efeitos e desdobramentos, bem como a migração/imigração2 e suas variadas
motivações àqueles marcos historiográficos assim encadeados. Buscamos apontar
para novas possibilidades de investigação e compreensão desse processo, e para
uma ruptura com essas formas de abordagem histórica.
Ao tratar do processo de crescimento urbano da cidade de Foz do Iguaçu entre
as décadas de 1970 e 1990, foram construídas duas vertentes historiográficas
*
Esse artigo resulta da pesquisa intitulada "Experiências sociais na constituição urbana de Foz do Iguaçu", que vem
sendo desenvolvida desde julho / 2003 no programa de Pós-Graduação - Mestrado da Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo - PUC / SP.
1
Edson Belo de Souza, por exemplo, adota a noção de "antes" e "depois" da Usina de Itaipu para indicar a ruptura que
esse marco assinala na história da cidade. Para o autor: ""A nova dinâmica que Foz do Iguaçu conheceu foi com a
Itaipu. Doravante um empreendimento que marcou a história recente do município, dividindo-se em dois períodos:
antes e depois da obra". SOUZA, Edson Belo C. A Região do lago de Itaipu: as políticas públicas a partir dos governos
militares e a busca da construção de um espaço regional. Florianópolis/SC: UFSC, 1998 (Dissertação de Mestrado em
Geografia) p.27, grifos meus.
2
Nesse texto, adotarei a utilização de ambas nomenclaturas (migração / imigração) pelo fato de que Foz do Iguaçu foi
alvo tanto de fluxos nacionais (migrantes), como fluxos oriundo de outros países (imigrantes).
2. Texto integrante dos Anais do XVII Encontro Regional de História – O lugar da História. ANPUH/SP-
UNICAMP. Campinas, 6 a 10 de setembro de 2004. Cd-rom.
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antagônicas entre si. A primeira — oficial — constituída por uma aliança entre o poder
público e o empresariado local; e a segunda, acadêmica, constituída por um esforço
conjunto entre jornalistas, estudantes e intelectuais da cidade. Nesse quadro, a leitura
do processo aparece polarizada entre o elogio e a crítica aos efeitos e conseqüências
do acelerado crescimento urbano sofrido pela cidade. Na produção de suas versões,
ambos autores concordam que esse crescimento urbano e demográfico tem em sua
base o início da construção da barragem de Itaipu. Diferenciam em sua avaliação, já
que enquanto a visão oficial associa e traduz esse crescimento como evolução —
também apresentada como desenvolvimento urbano — do município, para os autores
engajados numa visão crítica, esse mesmo crescimento aparece como sinônimo de
pauperização social, favelização, criminalização dos trabalhadores (migrantes/
imigrantes), o que teria resultado na criação de uma reserva de mão-de-obra para a
exploração capitalista, a especulação imobiliária, marginalização e aumento da
repressão policial.3
De fato, observa-se que após a década de 1970 a cidade de Foz do Iguaçu
passou a experimentar um intenso crescimento urbano, e que se estendeu até a
década de 1990. Segundo dados do IBGE, a população de Foz do Iguaçu, que na
década de 1960 contabilizava pouco mais de 28.000 habitantes,4 apresentava em
2001 uma população superior a 270 mil habitantes. Esse número, se multiplicado e
comparado à cifra existente em 1960, demonstra um crescimento em torno de 1000%
em apenas quatro décadas, algo em torno de 25% ao ano ininterruptamente.
Ocorre que mesmo após o final das obras da barragem de Itaipu, em1991, a
cidade de Foz do Iguaçu não apenas continuou inchando demograficamente, como
também experimentou uma nova fase de crescimento econômico, agora levado a cabo
pelo florescimento do comércio de importados e pela indústria do Turismo. Assim, para
explicar fatores da continuidade desse crescimento urbano, a historiografia, tanto
oficial quanto acadêmica, passa a vinculá-lo à nova fase econômica do município.
Argumenta-se que a cidade passaria a experimentar, já ao final da década de
1980, seu segundo e terceiro ciclo desenvolvimentista, mas agora não mais vinculado
3
Em um artigo ainda inédito, resultado de pesquisas anteriores, recupero parte dessa discussão, buscando inclusive
apontar avanços da historiografia produzida no interior da academia no sentido de desmistificar a memória oficial
edênica construída sobre a cidade. O problema é que ao produzir a crítica, a academia acabou produzindo uma leitura
muito limitada ao adotar uma linha excessivamente estruturalista para explicar tal processo, uma vez que a
preocupação desses trabalhos foi a de focar os "macro-sujeitos" da transformação urbana de Foz do Iguaçu, em
detrimento as experiências dos moradores dessa cidade. Entre esses trabalhos, destaco os seguintes: CATTA, Luis
Eduardo. O Cotidiano de uma Fronteira: a Perversidade da Modernidade. Florianópolis/SC: UFSC, Dissertação de
Mestrado em História, 1994; FOLMANN, Orestes. Pobreza em Foz do Iguaçu. Marechal Cândido Rondon / Unioeste:
Monografia de Graduação em História, 1996; e SOUZA, Edson Belo, op. cit.
4
Dados do FOZTUR - Secretaria Municipal de Turismo, 1997, citados por FOLLMAN, Orestes, op. cit., p.19.
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à execução de outro mega-empreendimento governamental, e sim ao
desenvolvimento do comércio de importados do Paraguai (Ciudad del Este) e da
exploração turística da tríplice fronteira.
Esses três elementos — Itaipu, Turismo e Comércio de importados — são
assim encadeados em um mesmo esquema explicativo, cada qual respondendo
diretamente a um período específico do desenvolvimento e crescimento urbano dessa
cidade entre as décadas de 1970, 80 e 90. Nessa leitura, a ocorrência dos fluxos
migratórios para a cidade teriam sido conseqüências desse crescimento, e não seus
fatores. Logo, quem tivesse migrado para a cidade durante a década de 1970, o teria
feito por que esperava trabalhar na construção da Usina de Itaipu; e quem tivesse
migrado após o final da década de 1980, o teria feito por que esperava empregar-se
no comércio de importados de Ciudad del Este ou no rentável mercado turístico que se
constituiu na cidade nesse período. Assim, além do marco da Itaipu, dois outros
elementos são incorporados ao campo memorialístico nessa discussão historiográfica
sobre Foz do Iguaçu, deixando "completa" e cronologicamente ordenada a narrativa
sobre seu processo constitutivo.
Aqui chama-se a atenção para o tratamento que essa leitura tem reservado à
discussão sobre o processo migratório que se assistiu na cidade nessas últimas
décadas. Visto dessa maneira, enquadrados e restritos às limitações temporais dos
marcos historiográficos acima discutidos, as heterogêneas categorias de migrantes
que vieram para esta cidade nessas últimas décadas parecem estar necessariamente
encaixadas em uma destas duas grandes explicações.
Pensar tal crescimento urbano dessa maneira acaba nos levando a
homogeneizar e simplificar uma complexa rede de relações e motivações histórico-
culturais. De fato, muito pouco se sabe ou se escreveu sobre os migrantes e
imigrantes que vieram para a cidade de Foz do Iguaçu. Um olhar mais atento sobre
esse período levaria a perceber que a heterogeneidade e a diversidade constituída no
tecido urbano dessa cidade não foi simplesmente resultado — ou, melhor dito,
"reflexo"— daqueles macro-projetos constituídos após 1970, como o "Efeito Itaipu".
Isso significa dizer que até mesmo os movimentos migratórios anteriores à década de
1970 não foram algo tão insignificantes assim, conforme assinalado especialmente
pela memória histórica oficial desse município, para a qual a noção de "crescimento
urbano" aparece associada à outra noção, muito perigosa, que é a de
"desenvolvimento (no sentido de evolução) urbano" ou, em uma versão mais
difundida, "progresso".5 O perigo do enquadramento de diversas e heterogêneas
5
Essa noção aparece literalmente expressa no livro de memórias organizado por CAMPANA & ALENCAR. Para esses
autores: "Uma divisão simplificada da história de Foz do Iguaçu tem dois períodos: antes e depois de Itaipu. Terminou
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experiências e trajetórias a unicamente esses grandes marcos explicativos é o ponto
ao qual chamamos a atenção aqui.
Dados para uma revisão historiográfica: trajetórias e memórias de (i)migrantes
de Foz do Iguaçu
A cidade de Foz do Iguaçu, por conta da característica de seu crescimento
demográfico e de sua recente constituição urbana, é formada em sua maioria por
imigrantes e migrantes e descendentes. A cidade foi heterogeneamente constituída
por enormes contingentes de pessoas (estrangeiros, descendentes ou brasileiros) que
vieram em grandes levas para essa cidade nas últimas décadas.
É sabido que a cidade de Foz do Iguaçu não foi constituída a partir de um único
fluxo migratório, como ocorreu em outras cidades da região, principalmente aquelas
que se formaram a partir de projetos de colonização coordenados por empresas
privadas. Apenas para mencionar a heterogeneidade do tecido social de Foz do
Iguaçu, destaca-se que residem nessa cidade mais de 20 diferentes nacionalidades de
migrantes estrangeiros, além dos migrantes nacionais. Entre os migrantes nacionais, é
possível encontrar pessoas que vieram de várias partes do Brasil, especialmente dos
estados da região Sul, inclusive do Estado do Paraná. E entre os imigrantes
estrangeiros, encontra-se paraguaios, argentinos, bolivianos, uruguaios, chilenos,
europeus e asiáticos diversos, como chineses e coreanos, destacando também a forte
presença de árabes, com cerca de 15 mil pessoas entre imigrantes e descendentes,
constituindo assim a segunda maior colônias de árabes do Brasil, menor apenas do
que a colônia de árabes da cidade de São Paulo.
Cabe ressaltar que boa parte das pessoas que migraram para esta cidade não
vieram para Foz do Iguaçu apenas por aqueles motivos apontados, que é a
construção da barragem de Itaipu e o desenvolvimento econômico da fronteira. Pelo
menos, não diretamente. Alguns casos conhecidos reforçam essa idéia. Por exemplo,
ao final dos anos 1980, com o processo de abertura política ocorrida em vários países
da América, como o Paraguai, Chile e Argentina, vieram à tona elementos importantes
sobre a origem de muitos migrantes que viviam nesta cidade. Especificamente com
relação ao Paraguai, quando, em 1989, a longa ditadura de Alfredo Stroesner chegou
ao fim, soube-se de muitos paraguaios que haviam vivido clandestinamente na tríplice
fronteira, inclusive nomes conhecidos como o músico e compositor Teodoro S.
a era da evolução lenta e penosa, com surtos de progressos esparsos, e deu-se ingresso numa era de abrupta e
profunda transformação" CAMPANA, Silvio & ALENCAR, Chico (orgs.). Foz do Iguaçu: Retratos. Foz do Iguaçu:
Prefeitura Municipal; Secretaria Municipal de Comunicação Social, 1997, p.28.
5. Texto integrante dos Anais do XVII Encontro Regional de História – O lugar da História. ANPUH/SP-
UNICAMP. Campinas, 6 a 10 de setembro de 2004. Cd-rom.
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Mongelos, falecido em Foz do Iguaçu em 1966 e transladado para Asunción em
1994.6 A "fuga política" é narrada também paraguaio Aníbal Abbate Soley.7
Uma outra situação conhecida diz respeito aos muitos migrantes árabes que
vivem na cidade desde a década de 1950 e 60.Seria no mínimo um anacronismo
grosseiro afirmar que estes migrantes árabes teriam vindo para Foz do Iguaçu porque,
desde aqueles idos (1950 - 60), já viam na triplice fronteira um grande "mercado" onde
enriqueceriam. .As trajetórias desses migrantes mostra o quanto é perigoso enquadrar
suas experiências em marcos historiográficos preestabelecidos.8
Alguns depoimentos realizados com moradores de areas periféricas dessa
cidade também são reveladores no que tange ao mapeamento das "origens" e das
"causas" apontadas para processos migratórios. Em nossa pesquisa, realizamos
entrevistas em forma de "Histórias de vida" com imigrantes e descendentes de
imigrantes brasileiros oriundos de diversos lugares do país, e que atualmente vivem
em áreas periféricas da cidade. Os motivos da migração apresentados por esses
depoentes são muito diversos daqueles construídos pela historiografia da cidade Adão
Pereira da Luz, por exemplo, agricultor, natural do Rio Grande do Sul, mas que já vivia
no Paraná desde a década de 1960, narra que a necessidade de migrar para Foz do
Iguaçu surgiu em face aos conflitos de terra que estava vivenciando. Ele migrou para a
cidade em 1978, período assinalado pela historiografia como sendo o "auge" da
migração de trabalhadores que chegavam à Foz do Iguaçu para trabalhar na Usina de
Itaipu. Em seu depoimento, ao falar sobre sua vinda para a cidade, narra o seguinte:
Quando eu comprei a terra, e comecei a plantar, plantar. E fui desfrutando da
terra. E depois, chegou um dia que apareceu o dono, de todas aquelas terras,
aonde pegou a minha junto. (...) sobrou só uma tira de três metro... de largura.
E o comprimento de dois alqueire (...)Ninguém sabia porque achava que tava
tudo OK. Aí... de repente apareceu... inclusive o dono dessas terras era um tal
de "Gago", um tal de gago(...). Esse era o dono e chefe da jagunçada... que
comandava tudo. E aí então, depois daí, eu fiquei morando lá com a minha
sogra, e, a gente não tinha... não... poder aquisitivo, por exemplo, da gente
poder plantar bastante, porque as condições financeiras era precária. Então a
gente tinha que trabalhar, pra se manter. Então a gente não tinha condições de
6
Informações obtidas em: 13 Creadores Nacionales: "Campaña Nacional: Ñemomarandu". Asunción (Py): Dirección de
Cultura de la Municipalidad de Asunción, s/d, pp. 44 — 48.
7
Aníbal Abbate Soley. depoimento publicado por CAMPANA, Silvio & ALENCAR, Chico (org.). Foz do Iguaçu: Retratos,
op. cit., p. 35, grifos meus.
8
Abdul Said Rahal, idem, p. 35, grifos meus.
6. Texto integrante dos Anais do XVII Encontro Regional de História – O lugar da História. ANPUH/SP-
UNICAMP. Campinas, 6 a 10 de setembro de 2004. Cd-rom.
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plantar bastante, e aí, fazer um futuro pra gente, plantava pouco, porque,
pessoa pobre, não tem condições, não tem uma condição financeira, um
custeio por exemplo, não tem condições. Aí depois eu peguei e... aí resolvi vir
pra Foz do Iguaçu. Cheguei aqui em Foz do Iguaçú em 78. Aí passei a
trabalhar numa pedreira, aí já fui melhorando, melhorando mais... aí as
condições financeiras foi melhorando mais bastante. A gente passou a
trabalhar numa firma que pagava certinho, e tal" 9
Em outro depoimento, Edna Maria Cardoso narra que sua família migrou para a
cidade em 1976. Neste período, a Itaipu ainda estava constituindo seu batalhão de
operários. Portanto, não parece descabido afirmar que todas as migrações ocorridas
nesse período estavam relacionadas à construção dessa barragem, conforme já
discutimos na primeira parte desse texto. No entanto, atentemos para os "motivos"
narrados pela depoente sobe a imigração. Seu argumento demonstra o perigo dessa
noção determinista que amarra todas essas a um motivo comum. Edna Cardoso
remonta o processo migratório de sua família lembrando que:
Quando a gente veio pra Foz, a gente veio, o meu falecido pai, ele veio com o
emprego garantido. Porque através de conhecidos... porque a gente não tinha
mais nada, a gente não tinha nem o que comer mais dentro de casa. A gente já
não tinha mais nada. Tava no sítio dos outros, não tava valendo a pena
trabalhar, nessas altura já. Então, através de amigos, arrumou esse emprego
pro meu pai nessa madereira, aqui no Agnelo (Antiga Madeireira localizada nas
margens do Rio Paraná, na região do Porto Meira). Meu pai e meu irmão mais
velho. (...) Aí depois, essas casinha ali do Profilurb I na época que foi
construída, eu cozinhava pra firma, que daí meu pai trabalhava lá, na
madereira, e minha mãe lavava roupa pros peão que construía as casinha, e
eu cozinhava praquela firma. Eu que fazia comida praquele pessoal ali no
começo.(grifos meu) 10
Os "motivos" aqui apresentados são muito diversos da explicação estabelecida
sobre o marco da construção de Itaipu, que teria atraído esses imigrantes para a
cidade. No depoimento acima destacado, a impressão que se tem é que,
independente da construção dessa barragem na cidade, a migração de sua família
ocorreria de qualquer modo. A construção da Itaipu pode ter aberto perspectivas para
9
Adão Pereira da Luz, morador do Morenitas I. Depoimento gravado em 23/06/2001.
10
Edna Maria Cardoso, moradora do Morenitas II. Depoimento gravado em 24/06/2001.
7. Texto integrante dos Anais do XVII Encontro Regional de História – O lugar da História. ANPUH/SP-
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esses migrantes, e isso não se pode negar. Mas colocar-se como horizonte,
"possibilidade", é muito diferente de colocar-se como "alvo", objetivo único. Portanto,
uma coisa é afirmar que a construção dessa usina despertou esperanças entre
aqueles trabalhadores que abandonavam seus lugares de origem, e optavam vir para
essa cidade. Mas isso não permite afirmar que ela foi a responsável — leia-se
"causadora" — desse processo migratório, que tem origens que fogem à nossa
compreensão caso não busquemos suas razões também no lugar de saída.
Para reforçar essa perspectiva, podemos citar o depoimento de Lúcia Maria
Jardim, que chegou na cidade em 1989, oriunda do estado de Santa Catarina. Desse
depoimento, destacamos a parte em que a entrevistada narra os motivos que a teriam
obrigado a vir para Foz do Iguaçu:
(...) quando eu separei, eu separei sem nada porque ... através da minha
separação que surgiu assim, foi porque o pai do meus filho, além de me judiá
muito de mim, me agredi que nem ele me agredia, daí começó maltratá os filho
dele. Até machucou um filho, tive que levá pro Hospital. Aí eu cheguei, fiquei
muito nervosa, aí foi onde eu separei dele. Saí assim sem nada. Saí
desesperada, peguei minha roupa e saí... daí, não tinha onde ficar com meus
filho, aí eu fui pra beira do asfalto, fiquei debaixo de uma toça de taquaruçú, na
beira do asfalto.
(...) Até incrusivemente na hora que eu ia indo pro trabalho, onde que ele tava
localizado lá (em Santa Catarina), o homem que ele tava lá na casa dele
chegou, e como ele me considerava muito, que sabia que eu era uma mãe
sofridera, que eu era uma mãe que sempre trabalhava, me chamou, e falou pra
mim: “o que que você tá fazendo aí, muié...some daí, o teu marido taí, e qué te
matá...!” Ai, como essa minha amiga tava alí... já tinha me convidado pra vir
pra cá...eu cheguei correndo de volta, falei pra ela, aí incrusivemente que ele
viu de noite, ele veio no meu barraco. Veio no meu barraco, tive que pousá no
mato, e no outro dia vim pra cá. 11
Aqui, se fôssemos abordar a trajetória dessa moradora simplesmente
buscando enquadrá-la em qualquer um daqueles marcos historiográficos
preestabelecidos — desenvolvimento turístico e comercial da fronteira — bastaria
identificar com qual dos dois elementos ela se relacionava (turismo ou comércio), e
concluir que mais uma imigrante infeliz havia sido enganada pela propaganda oficial
11
Lúcia Maria Jardim, moradora do Jardim Morenitas I. Depoimento gravado em 23/06/2001.
8. Texto integrante dos Anais do XVII Encontro Regional de História – O lugar da História. ANPUH/SP-
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de prosperidade e riqueza da fronteira, e que agora restava a ela amargar uma vida
marginal em uma das muitas favelas dessa cidade. O restante de sua trajetória
poderia se descartado, sem qualquer prejuízo à interpretação historiográfica, já que o
que interessava aqui — confirmar a relação dessa trajetória com o marco
preeestabelecido — havia sido realizado com sucesso. O "resto" —seu problema
conjugal, o medo da agressão, a vida no barraco de taquara, etc — seriam apenas
elementos secundários. O importante era saber se ela confirmava a tese da migração
massiva em função do desenvolvimento comercial e turístico pós - 1990.
Percebe-se que esses marcos historiográficos assim preestabelecidos vem
reduzindo o complexo e gigantesco crescimento histórico de Foz do Iguaçu, bem como
o atual formato urbano e seu heterogêneo tecido social, explicando-os muitas vezes a
partir de causas externas à sua dinâmica. O perigo é atribuir o papel de agente social
transformador e construtor do processo histórico à Hidrelétrica de Itaipu, e ao mercado
turístico e comercial, restando aos trabalhadores e imigrantes um papel secundário no
processo, como meros coadjuvantes, determinados pela estrutura social e política
elaborada por aquelas instituições.
Não se pode negar a grande importância que a construção da Itaipu teve na
definição do formato urbano da cidade de Foz do Iguaçu. Contudo, da forma como
está narrada essa relação, os indivíduos inseridos nessa cidade deixam de ter sua
própria trajetória, pois passam a ser considerados simples objetos determinados pelos
projetos da Itaipu Binacional e de outros "macro-sujeitos" da cidade, como o Turismo e
o Comércio de importados.
É problemático ainda dividir rigidamente a trajetória histórica de Foz do Iguaçu
entre "antes e depois" de qualquer um desses marcos, porque corre-se o risco de se
perder de vista a historicidade das relações construídas em meio a este processo.
Nesse caso, o foco da história volta-se exclusivamente para os grandes marcos
historiográficos, como a construção da usina de Itaipu, no qual suas "rupturas" e sua
"trajetória" são interpretadas como o próprio processo histórico, relegando aos sujeitos
"de carne e osso" apenas um papel secundário na História.
Fontes e Bibliografias
CAMPANA, Silvio & ALENCAR, Chico (orgs.). Foz do Iguaçu: Retratos. Foz do Iguaçu:
Prefeitura Municipal; Secretaria Municipal de Comunicação Social, 1997
CATTA, Luis Eduardo. O Cotidiano de uma Fronteira: a Perversidade da Modernidade.
Florianópolis/SC: UFSC, Dissertação de Mestrado em História, 1994
FOLMANN, Orestes. Pobreza em Foz do Iguaçu. Marechal Cândido Rondon /
Unioeste: Monografia de Graduação em História, 1996.
9. Texto integrante dos Anais do XVII Encontro Regional de História – O lugar da História. ANPUH/SP-
UNICAMP. Campinas, 6 a 10 de setembro de 2004. Cd-rom.
9
AMADO, F. & FERREIRA, Marieta (orgs.) Usos e Abusos da História Oral. Rio de
Janeiro: F.G.V., 1998.
SAMUEL, Raphael. “Teatros de Memória”. In Projeto História 14: Cultura e
Representação. São Paulo: PUC, 1997. pp. 41-81.
SOUZA, Edson Belo. C. A Região do lago de Itaipu: as políticas públicas a partir dos
governos militares e a busca da construção de um espaço regional. Florianópolis/SC:
UFSC, Dissertação de Mestrado em Geografia, 1998
SOUZA, João Carlos. Na luta por habitação: a construção de novos valores. São
Paulo: EDUC, 1995.
THOMPSON, E. P. A miséria da teoria ou um planetário de erros. Rio de Janeiro:
Zahar editores, 1981.
WILLIAMS, Raymond. O Campo e a Cidade na História e na Literatura. São Paulo: Cia
das Letras, 1989.
13 Creadores Nacionales: "Campaña Nacional: Ñemomarandu". Asunción (Py):
Dirección de Cultura de la Municipalidad de Asunción, s/d.
Adão Pereira da Luz, morador do Morenitas I. Depoimento concedido a Emilio
Gonzalez em 23/06/2001.
Edna Maria Cardoso, moradora do Morenitas II. Depoimento concedido a Emilio
Gonzalez em 24/06/2001.
Lúcia Maria Jardim, moradora do Jardim Morenitas I. Depoimento concedido a Emilio
Gonzalez em 23/06/2001.
2 - ANEXOS QUE DEVEM CONSTAR
O TEMA DO TRABALHO (MÁXIMO DE 20 LINHAS)
Neste trabalho busca-se discutir a intervenção e a construção dos sujeitos históricos
no processo de transformação urbana da cidade de Foz do Iguaçu / PR, a partir da
década de 1970. A proposta central do trabalho é pensar de que forma os moradores
das áreas periféricas de ocupação territorial urbana (invasões) interpretam suas
experiências, reivindicando sua participação no processo histórico de construção
dessa cidade. Utilizando-se de fontes orais, buscamos partir das próprias narrativas
desses moradores para identificar como eles construíram e foram construídos nesse
processo, e quais as (novas) relações que estabeleceram com essa cidade, e a forma
como eles percebem e interpretam seus respectivos papéis no processo histórico. O
trabalho também desenvolve uma discussão acerca de alguns problemas e limitações
encontradas nas análises produzidas sobre a cidade de Foz do Iguaçu e seus
moradores priorizando apenas aspectos econômicos e quantitativos.
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Objeto de Pesquisa (máximo 3 linhas)
O foco central da pesquisa consiste no estudo de duas áreas ocupadas na periferia da
cidade de Foz do Iguaçu entre 1993 e 1995, conhecidas como Jardim Morenitas I
(legalizada em 1995) e Jardim Morenitas II.
Fonte/Corpo Documental (máximo 3 linhas)
O trabalho desenvolve-se sobretudo a partir do diálogo com documentos produzidos
pelo poder público (Prefeitura Municipal), textos historiográficos, e depoimentos orais
concedidos por moradores das áreas em estudo.
Abordagem da problemática / Metodologia do Trabalho (máximo 5 linhas)
A partir de uma leitura da produção historiográfica (oficial e acadêmica) sobre o
crescimento urbano da cidade após a década de 1970, vem se buscando apontar
algumas limitações existentes nesses trabalhos. Tomando como base desse diálogo a
História Oral, interrogamos tal processo incorporando à interpretação o olhar dos
moradores da cidade, construído a partir de sua própria experiência social na cidade.
Estágio Atual da Pesquisa (máximo 5 linhas)
a pesquisa vem sendo desenvolvida desde agosto de 2003 no programa de pós-
graduação / Mestrado da PUC / SP. O trabalho já produziu o levantamento e diálogo
com a produção acadêmica (bibliografia específica) sobre o tema. Alguns depoimentos
de moradores da área em estudo (seis no total) já foram arrolados. Atualmente, a
pesquisa tem se desenvolvido sobretudo no âmbito teórico.
resumo expandido da pesquisa
Na pesquisa que venho desenvolvendo no programa de mestrado da PUC / SP,
busco interrogar o processo de crescimento urbano experimentado em Foz do Iguaçu /
Paraná nas últimas três décadas (1970 - 2000), tomando como ponto de partida o
diálogo com experiências de moradores que viveram esse processo de crescimento e
reordenamento urbano na condição de ocupantes de áreas periféricas da cidade. As
chamadas invasões constituem portanto meu objeto de estudo.
Para elaborar esse trabalho, venho estabelecendo um diálogo com a historiografia
já produzida na cidade sobre esse processo. Para boa parte dessa literatura, o
crescimento urbano de Foz do Iguaçu pode ser explicado e entendido como reflexo
das políticas de urbanização e agenciamento de mão-de-obra desencadeados pela
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empresa Itaipu a partir da década de 1970. A construção dessa usina hidrelétrica,
iniciada em 1974, teria mobilizado um enorme contingente de trabalhadores que
teriam migrado de todos os lugares do Brasil e do Paraguai para o parque de obras
que ali se instalara. Esse monstruoso crescimento urbano teria se seguido em função
do desenvolvimento comercial e turístico da tríplice fronteira na década de 1980 e no
decorrer da década de 1990. Nessas narrativas, os sujeitos do crescimento e
desenvolvimento urbano de Foz do Iguaçu são, respectivamente Itaipu, Ciudad del
Este, Cataratas do Iguaçu, Mercosul, etc.
Com esse trabalho, busco pensar o surgimento dessas áreas de ocupação pela
cidade invertendo a perspectiva acima apresentada. Entendemos ser equivocado
explicar a cidade construída ao longo desses anos, especialmente as ações de seus
moradores, tomando-os como meros reflexos dos macro-projetos econômicos e
políticos levados a cabo na cidade durante esses anos. Aqui, chamamos a atenção
para o fato de que essa forma de abordagem esvazia os sujeitos (homens, de carne e
osso) de sua experiência, negando seu papel como ator e interventor na construção
da cidade.
Por isso, busco interrogar as trajetórias desses moradores — muitos dos quais
imigrantes — buscando perceber as diversas memórias que povoam o tecido urbano
dessa cidade, presentes no cotidiano, construídas nessa luta pela sobrevivência legal,
ilegal ou marginal nessa fronteira. Aqui, busca-se recuperar faces de uma cidade que
não vive apenas em função das Cataratas do Iguaçu, da Usina de Itaipu ou de outros
elementos apresentados como "sujeitos" do desenvolvimento da cidade. Interrogar
como esse processo foi construído, vivido e interpretado por esses sujeitos na luta
pela moradia e pelo direito a cidade consiste portanto no maior desafio da pesquisa.