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Anais do I Seminário de História e Cultura: Historiografia e Teoria da História
25 a 27 de junho de 2013
Universidade Federal de Uberlândia

A EMANCIPAÇÃO DE QUEIMADOS - RJ NAS NARRATIVAS ORAIS:
enquadramento das memórias e escrita da história
Claudia Patrícia de Oliveira Costa1
RESUMO: O município de Queimados, na Baixada Fluminense, foi um dos últimos
distritos de Nova Iguaçu a conquistar sua autonomia política, no bojo das emancipações
ocorridas entre as décadas de 1980 e 1990. Esse boom de emancipações, ocorridas não
só no estado do Rio de Janeiro, se inscreve em um contexto mais amplo, de âmbito
nacional: o processo de reabertura política brasileira. Observamos que, dado o caráter
recente desses acontecimentos, a produção historiográfica sobre a Baixada Fluminense,
os processos de emancipações municipais e, especificamente, o processo de
emancipação de Queimados são, ainda, um terreno pouco explorado. Assim, apostando
na temporalidade disjuntiva que permeia a construção das memórias, acreditamos que
os atos de ouvir e analisar as narrativas das lideranças do movimento emancipacionista,
ancorando-nos no suporte teórico oferecido por Michael Pollak, se constitua em uma
instigante experiência rumo à compreensão da historicidade desse jovem município da
Baixada Fluminense.
Introdução
Em novembro deste ano, o município de Queimados, na Baixada Fluminense,
completa vinte e três anos da conquista de sua autonomia política frente à Nova Iguaçu,
obtida por meio de consulta plebiscitária. Transcorria o ano de 1990 e o país ainda dava
cautelosos passos no processo de implantação e consolidação de um ideal democrático,
após mais de duas décadas de regime ditatorial. Nesse mesmo período, outros distritos
que integravam o território iguaçuano, como Belford Roxo e Japeri, também
protestavam suas emancipações. Mesmo Queimados, já havia tentado, sem sucesso,
uma consulta plebiscitária anterior, no ano de 1988, fracassada por falta do quórum
mínimo necessário para garantir seu desmembramento da matriz iguaçuana. Analisar
esse processo, em seu desenvolvimento local, sem perder de vista o contexto nacional,
tem se constituído em instigante desafio, que nos propomos enfrentar, por meio de
contínua pesquisa.

Essa pesquisa visa, em um primeiro objetivo, suprir lacunas

concernentes à História do Tempo Presente, principalmente no âmbito da Baixada
Fluminense.
Assim, ao buscarmos referências para o presente estudo, constatamos a
existência de diversos aspectos e questões ainda pouco investigados, que remetem à
escassa produção historiografica. De acordo com o geógrafo Rafael Oliveira, destacam1

Mestranda do Programa de Pós Graduação em História da Universidade do Estado do Rio de Janeiro,
sob a orientação da Profª Drª Márcia de Almeida Gonçalves. E-mail: cliouerj@yahoo.it
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se, dentre essas problemáticas, a visão predominantemente geográfica da Baixada
Fluminense, voltada para a análise de seus municípios, com ênfase em questões como:
os antigos problemas de saneamento, focos de violência e pobreza, sendo localidades
para onde se direcionava a população de baixa renda, em busca de opções de moradias
de baixo custo.2 Sem desprezar o valor das análises geográficas para o estudo da
Baixada Fluminense, consideramos que as referidas questões não se constituem no
único viés analítico para os estudos locais. Problematizar questões políticas e culturais,
além daquelas econômicas e sociais, nos parece um instigante e, ainda pouco explorado,
campo de pesquisa.

Com o objetivo de buscar uma alternativa aos modelos

interpretativos pautados somente em aspectos socioeconômicos, Rafael Oliveira propõe,
em lugar da Baixada Geográfica, a utilização do conceito de Baixada Política,
englobando municípios que outrora fizeram parte dos antigos municípios de Nova
Iguaçu, Magé e Itaguaí (OLIVEIRA, 2004, p. 29). Embora o próprio autor reconheça
que tal delimitação pode ser algo reducionista, sua perspectiva é adotada por outros
geógrafos, como Manoel Ricardo Simões, que cunha o conceito de Baixada
Geopolítica, abrangendo os municípios originados da grande matriz iguaçuana e do
antigo município de Estrela. Para Simões,
Esta região tem em comum um passado histórico ligado aos portos
fluviais e caminhos que ligavam o Rio de Janeiro ao interior do país e
uma ocupação recente baseada nos loteamentos populares próximos
aos ramais ferroviários e suas estações (SIMÕES, 2006, p. 2-3).

A partir de tais argumentos, esse autor procura estabelecer os limites para a
definição da identidade da Baixada Fluminense, que será fundamental na sua
compreensão acerca da fragmentação espacial experimentada por essa região.
Percebemos, assim, que a abordagem geopolítica tem sido uma das tendências,
verificadas em algumas obras recentes, preocupadas em estabelecer análises integradas
e, assim, empreender pesquisas mais abrangentes dessa parte do estado do Rio de
Janeiro. Entretanto, conforme Simões nos permite entrever em seu trabalho, ainda que
não desenvolva o tema, acreditamos que a identidade territorial não é a única passível
de ser pensada e analisada nesse contexto.
De tal modo, no que concerne o presente trabalho, concordamos em orientar a
análise da emancipação de Queimados pelo enfoque geopolítico, entendendo a Baixada
2

Como exemplo de obras que apresentam essa perspectiva de análise, citamos SOARES, 1955 e
PEREIRA, 1977.
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Fluminense como o território limítrofe com o Rio de Janeiro, cujos municípios
apresentam um conjunto de características sociais, políticas, culturais e também de
desenvolvimento econômico, afins. Porém, a partir dessa ancoragem, a proposta é
estabelecer uma possibilidade para a escrita da história de Queimados, apoiando-nos na
documentação oferecida, a partir do registro audiovisual de depoimentos cedidos pelas
lideranças que integraram a Associação de Amigos para o Progresso de Queimados
(AAPQ), entidade que administrou o movimento pela emancipação desse município. A
opção por essa abordagem pretende investigar os complexos trabalhos de
enquadramento das memórias3, levando em conta as tensões e disputas, ainda abertas.
Assim, objetiva-se apontar uma possibilidade interpretativa pra compreender a
historicidade de Queimados.
A opção pela História Oral
As questões, esboçadas pela pesquisa, nos instigaram a repensá-las e identificar
nessa discussão, um terreno profícuo para um debate mais amplo sobre a emancipação
desse município da Baixada Fluminense e as vozes que a defenderam. Nos baseamos
nos argumentos tecidos pelos pesquisadores Maria Cecília Minayo e Odécio Sanches,
que sugerem a complementaridade entre análises quantitativas e qualitativas, no que
tange às abordagens metodológicas de pesquisa (1993). Esses autores, valendo-se da
concepção de habitus, em Bourdieu, consideram que:
A fala torna-se reveladora de condições estruturais, de sistemas de
valores, normas e símbolos (sendo ela mesma um deles), e, ao mesmo
tempo, possui a magia de transmitir, através de um porta-voz (o
entrevistado), representações de grupos determinados em condições
históricas, sócio-econômicas e culturais específicas. (...) Daí a
possibilidade de se exercer, na análise da prática social, o efeito da
universalização e da particularização4 (MINAYO e SANCHES,
1993, p. 245-246).

Considerando, pois, que os discursos sustentados e, agora evocados, pelas
lideranças da Associação de Amigos para o Progresso de Queimados, tiveram
3

“O trabalho de enquadramento da memória se alimenta do material fornecido pela história. Esse
material pode sem dúvida ser interpretado e combinado a um sem-número de referências associadas;
guiado pela preocupação não apenas de manter as fronteiras sociais, mas também de modificá-las, esse
trabalho reinterpreta incessantemente o passado em função dos combates do presente e do futuro."
(POLLAK, 1989, p. 9)
4
Grifos dos autores.
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importância fundamental para a elaboração das “memórias da emancipação,”
empreendemos o trabalho de transcrição das entrevistas, levando em conta aspectos
objetivos e subjetivos das falas dos depoentes. Para isso, recorremos à abordagem
desenvolvida por Leonor Arfuch, que sugere o trabalho com entrevistas, transformandoas em documento para as Ciências Sociais. Segundo Arfuch, tais entrevistas, que ela
denomina “científicas”, sempre pressuporão um estágio inicial “em direção à
elaboração de um produto-outro” (ARFUCH, 2010, p. 242).

No presente caso, as

entrevistas representam o ponto de partida para a publicização dessas memórias, ensejo
presente no campo da subjetividade da maioria dos depoentes. Com isso, fomenta-se
um debate que deve desembocar em uma possibilidade de escrita da história de
Queimados, a partir da análise crítica das disputas políticas reveladas no seio do grupo
emancipacionista. Acreditamos, baseando-nos em Arfuch, que as entrevistas trazem a
marca da chamada “autoria conjunta”, isto é, da relação subjetiva estabelecida entre
entrevistador e entrevistado. Da mesma forma, as entrevistas estão situadas no bojo da
aceleração e da expansão massiva de meios de comunicação, do crescimento das
cidades, em suma: na contemporaneidade.
Assim, Arfuch aposta na Análise do Discurso, levando em conta as seguintes
questões: a produção dialógica do sentido do dizer; as dificuldades da construção de um
relato de vida; a análise das modalidades enunciativas, de forma que não as reduzam,
nem tampouco as desestruturem; a polifonia ou confrontação de vozes e relatos
simultâneos, bem como a sensibilidade para perceber, nos hiatos, esquecimentos e
silêncios, indícios relevantes para acessar as memórias do entrevistado (IDEM, p. 267).
Posto isso, parece-nos pertinente reiterar que a opção pela História Oral nos coloca em
contato com múltiplas biografias, mobilizadas aqui no intuito de esboçar possíveis
caminhos e forças atuantes para a construção de memórias coletivas. Sob tal aspecto,
destacamos a emergência de um espaço biográfico5, na medida em que são analisadas
essas histórias de vida. Nos limites oferecidos por esse espaço biográfico, se inscrevem
as memórias que buscamos analisar.

5

Ao esboçar o conceito de espaço biográfico, Leonor Arfuch, afirma que sua preocupação é “não tanto a
‘verdade’ do ocorrido, mas sua construção narrativa, os modos de (se) nomear no relato, o vaivém da
vivência ou da lembrança, o ponto do olhar, o que se deixa na sombra; em última instância, que história
(qual delas) alguém conta de si mesmo ou de outro eu.” Dito de outra forma, a autora deixa claro que, ao
propor uma definição para o conceito de espaço biográfico, pretende levar em conta variadas
possibilidades de articulação entre o individual e o coletivo, o momento e a totalidade, em múltiplas
dimensões, considerada, portanto, pertinente a esse trabalho, inscrito no campo do político. (ARFUCH,
2010, p. 73)
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Enquadramento das memórias: um processo em curso
Ao propormos uma discussão acerca dos argumentos postulados pelos grupos
sociais que defenderam a emancipação de Queimados no contexto do processo de
reabertura política dos anos de 1980, consideramos que o espaço social é palco de
tensões. Isto posto, acreditamos que é no espaço social que se desenham lugares que
tendem a se constituir simbolicamente como espaços dos estilos de vida, ou seja, de
grupos distintos que interagem com a comunidade a qual estão inseridos, revelando
relações, por vezes tensas. Debruçando-nos sobre tal perspectiva, identificamos, nas
disputas pela memória, o instigante caminho a ser percorrido por essa pesquisa.
Porém, cabe-nos ressaltar que as concepções acerca das tensões entre memória e
história se modificaram, expressivamente, ao longo das últimas décadas do século
passado. Tais modificações introduzem o debate, que adentrou o presente século e que
dialoga, em grande parte, com a renovação da História Política, e agrega novas
perspectivas teóricas e metodológicas, que buscam a interação entre aspectos políticos e
culturais ou políticos e sociais. Dessa forma, as relações possíveis entre memória e
história e a História Política Renovada pressupõem, ainda, uma relação bastante
produtiva com o que se convencionou chamar, “giro linguístico”6 ou ainda, sua outra
face, a “guinada subjetiva.”7 Esses movimentos, ocorridos nos meios acadêmicos a
partir da década de 1970, se manifestaram pela retomada de fôlego das narrativas e, com
elas, a investigação das subjetividades. Cumpre-nos, portanto, destacar que a postura
interpretativa que tomamos, para a análise dos trabalhos da memória, se insere no
âmbito de debates atuais, que consideram a memória em sua dimensão política. Tal
postura implica na análise do contexto em que se deu a emancipação de Queimados,

6

Segundo Javier Gil Pujol, o chamado “retorno linguistico” (linguistic turn) se insere no contexto da
reabilitação da História Política, em face ao “fracasso ou esgotamento da prática historiográfica seguida
pelos Annales e pela história marxista...” Destacamos, todavia, que esse retorno à narrativa introduziu
questionamentos e críticas, distanciando daquela perspectiva antiga, na qual a narrativa visava o mero
relato, tido como forma de revivificar o fato. (PUJOL, 1983, p. 68-69).
7
“A ideia de entender o passado a partir de sua lógica (uma utopia que moveu a história) emaranha-se
com a certeza de que isso, em primeiro lugar, é absolutamente possível, o que ameniza a complexidade do
que se deseja reconstituir; e, em segundo lugar, de que isso se alcança quando nos colocamos na
perspectiva de um sujeito e reconhecemos que a subjetividade tem um lugar, apresentado com recursos
que, em muitos casos, vêm daquilo que, desde meados do século XIX, a literatura experimentou como
primeira pessoa do relato e discurso indireto livre: modos de subjetivação do narrado. (...) São passos de
um programa que se torna explícito, porque há condições ideológicas que o sustentam. Contemporânea do
que se chamou, nos anos 1970 e 1980 de ‘guinada linguística’ ou muitas vezes acompanhando-a como
sua sombra, impôs-se a guinada subjetiva.” (SARLO, 2007, p. 18)
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qual seja aquele da abertura, pós Regime Militar e as possíveis mobilizações do
passado, feitas pelos depoentes.
Assim, constatamos que o cenário político nacional do período, que punha em
confronto culturas políticas autoritárias e culturas políticas democráticas8, se constitui
em pano de fundo instigante para a elaboração dessas memórias. O quadro de crise, que
se fez intrínseco a esse contexto, segundo Michael Pollak, é propício para o afloramento
das chamadas memórias subterrâneas, que mantidas por grupos excluídos ou
marginalizados, principalmente por meio da tradição oral, esperam a "hora da verdade e
da redistribuição das cartas políticas e ideológicas" (POLLAK, 1989, p. 5). No caso de
Queimados, essas memórias se ancoram na evocação de um passado ideal, no qual
Queimados sempre esteve orientada ao desenvolvimento desde a implantação da
ferrovia, em 1958, na época do apogeu da citricultura, na década de 1930, ou da
implantação do Parque Industrial, em 1978.

Essa ancoragem foi patente na

fundamentação dos protestos pela emancipação e no esboço de construção da oposição
identitária frente ao outro, representado por Nova Iguaçu.

Portanto, ao definir

Queimados, em relação ao outro, a ênfase dos depoentes recai sobre os poucos
investimentos públicos locais. Expressões como pobreza absoluta, nenhum aspecto de
progresso ou desenvolvimento, muito atrasado, precário, totalmente abandonado,
desleixo e largado, são utilizadas para caracterizar Queimados, a partir de suas
lembranças, quando lá chegaram9. Esse ressentimento teve ocasião para vir à tona,
depois de mais de duas décadas de silenciamento, imposto pela repressão intrínseca ao
regime autoritário.

Por outro lado, identificamos também, o uso de signos da

modernização e progresso postulados pela ordem instituída, apropriados como forma de
adicionar argumentos que sustentassem os discursos emancipacionistas.
À construção negociada da identidade queimadense em oposição àquela
iguaçuana, destacamos o argumento da arrecadação fiscal obtida com a instalação do
citado Parque Industrial, ao final da década de 1970. As falas de Josias Mattos e Luiz
Gonzaga de Macedo, duas lideranças da Associação dos Amigos para o Progresso de
Queimados, nos parecem emblemáticas para a construção desse discurso:
8

“O que haveria no Brasil pós-85 seria, precisamente, um conflito entre as forças societárias, que
entendem a sociedade como autônoma e procuram limitar as forças do Estado e do mercado, e as forças
sistêmicas, que resistem a qualquer forma real de limitação de seu poder. A democratização, no caso
brasileiro, significou o surgimento de duas culturas políticas: uma, democrática e vinculada aos
movimentos sociais e civis democratizadores; e uma outra, a predominante no nosso processo de
modernização, que persiste com as suas práticas tradicionais.” (AVRITZER, 1995, p. 7).
9
Essas expressões foram verificadas nas falas de Maria de Fátima Barragán, Luiz Alonso Sanz, Valtecir
Gomes Leal, Josias de Souza Mattos e Carlos de França Vilela.
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Queimados, rapaz, tinha uma renda muito grande, o Parque Industrial
tinha vinte e tantas indústrias de médio e grande porte em Queimados.
Lá. Lá. Hoje eu não sei como está. Queimados tinha uma renda muito
grande. Então, eu tenho até, eu tenho o Diário Oficial que foi
publicado. Por isso que digo pra vocês que eu fiz trabalho junto com a
Secretaria de Governo do Estado de, de Finanças, eu tenho, eu tenho,
em algum lugar aqui em casa a cópia do Diário Oficial que diz isso
aqui, que faz que se nos tivesse mais quinze décimos de rendimento
não passaria, porque abalaria o, as finanças do município mãe
(MATTOS, 2012).
Só foi possível a independência de Queimados, motivada pela
estrutura que se criou dentro do distrito, Segundo Distrito que era
Queimados, e foi o Distrito Industrial e essas duas fábricas ali, que
potencializou de tal ordem, trouxe o mercado financeiro pra cá
(MACEDO, 2009).

Dessa forma, os protestos emancipacionistas se alimentavam de argumentos que
relacionavam Queimados ao desenvolvimento e progresso, na medida em que essa
expressiva arrecadação não se revertia em melhorias locais. Segundo outra liderança, o
senhor Carlos Vilela, os recursos financeiros eram, primeiramente, aplicados na sede do
município, restando muito pouco ou quase nada para os distritos mais afastados,10 em
um mecanismo local de reprodução da lógica que, como visto, vigorava ao nível
estadual e federal. Ao evocar e difundir tal premissa, as lideranças davam o primeiro
passo no sentido de construção de uma identidade queimadense: delimitavam sua
alteridade frente à Nova Iguaçu.

Essa é uma das chaves para a compreensão do

movimento emancipacionista queimadense, bem como as memórias elaboradas por suas
lideranças, mais de duas décadas depois da emancipação. Entretanto, está longe de ser a
única.
De fato, a derrota nas urnas, por falta de quórum, no primeiro plebiscito,
realizado em 1988, tinha sido responsável pela própria criação da Associação dos
Amigos para o Progresso de Queimados, com o intuito de rearticular o movimento próemancipação. Essa derrota também desencadeou a mobilização das memórias, em torno
10

“Então ficava muito difícil, as coisas ficavam tudo em Nova Iguaçu, a gente tem que desenvolver Nova
Iguaçu primeiro, para depois ir para periferia. É o que tá acontecendo em Queimados: nós estamos
desenvolvendo o centro e estamos andando para o interior. E lá era assim, até chegar aqui você já tava
morto e, e, não ia acontecer nada. Você, que é mais novo, eu já era, que já sou mais velho. Então isso que
fomentou o abandono, o desleixo da cidade: a gente aqui largado de tudo quanto é maneira, gente
morrendo aí sem saúde, sem nada. Que mal ou bem, hoje, você tem uma saúde que você pode dizer que tá
100% em relação aquela época. Você não tinha nada, você tinha que levar para Nova Iguaçu ou lá para
baixo e as vezes morria aqui mesmo. Não tinha uma casa de saúde, não tinha nada. Nós temos aí a Bom
Pastor, hoje, nós queimadense podemos até não dar valor, mas ela é de grande valia para Queimados...”
(VILELA, 2012, grifos nossos)
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do esforço de recortar e redefinir a espacialidade queimadense. A questão da identidade
territorial é apontada pelas lideranças emancipacionistas como um dos fatores que
justificaram o fracasso do plebiscito de 1988. Ao atribuir a falta de quórum mínimo
para que esse plebiscito fosse validado, às localidades de Japeri e Cabuçu, os
entrevistados justificam tal situação pelo viés identitário.

Entendendo que, como

preconiza Pollak, “a memória e a identidade são valores disputados em conflitos sociais
e intergrupais, e particularmente em conflitos que opõem grupos políticos diversos”
(1992, p. 205), interpretamos os argumentos de que Cabuçu e Japeri não desejavam
integrar Queimados11 como indícios fundamentais do esforço de construção de
identidades, a partir da demarcação do outro, que não é queimadense.
Entretanto, questões econômicas e/ou sociais não são os únicos elementos que
influenciam esses trabalhos de memória. O terreno sensível das divergências pessoais
e/ou político-partidárias são aspectos que podem ser determinantes para operar os
recortes, exclusões ou idealizações do passado, característicos do processo de
enquadramento das memórias. Com pouco mais de duas décadas decorridas desde a
emancipação, tais aspectos tornam ainda mais complexo o trabalho de análise dessas
memórias, posto que percebemos um empenho coletivo da população queimadense em
compartilhar suas memórias. Ainda de acordo com as vozes, registradas por meio
dessas entrevistas, há um crescente interesse em remexer as memórias e buscar "uma
resposta ou reação, diante das mudanças rápidas e de uma vida sem âncoras ou raízes"12
(JELIN, 2002, p. 9). De acordo com a perspectiva da socióloga argentina, Elizabeth
Jelin, a "vida sem âncoras ou raízes" se insere na perspectiva da aceleração da vida
contemporânea, incômodo expresso na maioria das entrevistas concedidas a nós, por
antigos queimadenses. A chegada da contemporaneidade, segundo definição de Jelin, é
um argumento muito presente nos recentes discursos sobre Queimados (2002, p. 9-10).
Entendida, através da fala de alguns entrevistados, como um movimento inexorável e
avassalador de modernização, a contemporaneidade traz em si uma gama de
questionamentos acerca da extensão desse fenômeno e de seus impactos positivos e
negativos sobre a cidade. Nesse contexto, torna-se importante fazer-se ouvir, registrar
“a sua versão da história,” mostrando que as relações entre memória e história são um

11

Cabuçu se mantém como Unidade Regional de Governo de Nova Iguaçu até o presente momento.
Japeri conquistou sua emancipação em 1991, um ano depois de Queimados.
12
Tradução nossa.
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desafio às diversas dimensões da subjetividade, tanto dos sujeitos-objetos dessa
pesquisa, como dos historiadores.
Considerações finais
Ao trabalharmos com a história da emancipação do município de Queimados,
apostamos na possibilidade da escrita de uma História Local, no contexto da noção de
Baixada Fluminense como região periférica do estado do Rio de Janeiro em fins do
século XX. Tal recorte também nos permite inscrever essa pesquisa no âmbito da
História do Tempo Presente. Por meio dos depoimentos coletados, a população mais
antiga da cidade, por meio das narrativas de suas histórias de vida, nos permite acessar
às múltiplas vozes que atuaram na defesa do ideal emancipacionista. Cientes de que a
narrativa jamais revivificará o fato, podemos, ao menos, entrever possibilidades
interpretativas para abordar os dois momentos significativos da emancipação
queimadense: o plebiscito frustrado, em 1988 e o plebiscito vitorioso, em 1990.
Assim, verificamos que, para garantir a validade dos argumentos que
sustentavam os anseios emancipacionistas de Queimados frente à Nova Iguaçu, as
lideranças da Associação dos Amigos para o Progresso de Queimados se concentraram
em construir relatos de si que os diferenciassem do município sede.

O trabalho

incessante das memórias, ouvidas para essa pesquisa, nos aponta outro argumento
mobilizado para sustentar a necessidade de emancipação: a evocação de aspectos
econômicos, representados, principalmente, pelo Parque Industrial e pelo comércio. A
combinação de desenvolvimento, expressa pela indústria e o comércio, contraposta ao
quadro de “descaso e abandono” forneceram a base para que se começasse a esboçar
uma identidade queimadense em oposição ao outro, tirânico, representado por Nova
Iguaçu. Essa constatação nos instiga, agora, a pensar outros caminhos para a construção
da identidade queimadense. De tal modo, refletindo ainda sobre a proposta teórica de
Pollak, verificamos que esses depoentes, cuja trajetória de vida está intrinsecamente
ligada ao movimento emancipacionista, tendem a mobilizar suas memórias em torno de
recortes do passado bastante variáveis. Outros argumentos, para além dos recortes do
passado, revelam disputas pessoais e/ou político-partidárias, que também afloram nas
falas de membros desse grupo.
Dar conta dessas questões, certamente, faz parte das nossas indagações e se
constitui no grande desafio dessa pesquisa. Ao analisarmos esses registros, com base na
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metodologia da História Oral e sustentados no arcabouço teórico desenvolvido por
Michael Pollak,13 propomos uma possibilidade interpretativa para a emancipação do
município de Queimados, na Baixada Fluminense. Cientes das dificuldades inerentes à
escrita da história de uma cidade, cuja existência política é relativamente recente,
acreditamos que a opção pelas entrevistas, no campo de investigação das memórias da
população local, nos aponta um instigante e profícuo caminho de pesquisa.
Entrevistas:
BARRAGÁN, Maria de Fátima de Oliveira. Entrevista concedida a Nilson Henrique de
Araújo Filho. Nilópolis, 13 nov. 2009.14
LEAL, Valtecir Gomes. Entrevista concedida a Nilson Henrique de Araujo Filho.
Queimados, 07 nov. 2009.
LIMA, José Methódio. Entrevista concedida a Nilson Henrique de Araujo Filho.
Queimados, 04 nov. 2009.
MACEDO, Luiz Gonzaga de. Entrevista concedida a Nilson Henrique de Araujo Filho.
Queimados, 31 out. 2009.
MATTOS, Josias de Souza. Entrevista concedida a Claudia Patrícia de Oliveira Costa e
Nilson Henrique de Araujo Filho. Queimados, 07 abr. 2012.
OLIVEIRA, Ismael Lopes de. Entrevista concedida a Claudia Patrícia de Oliveira
Costa e Nilson Henrique de Araujo Filho. Queimados, 16 mai. 2013.
SANZ, Luiz Alonso. Entrevista concedida a Claudia Patrícia de Oliveira Costa e Nilson
Henrique de Araujo Filho. Queimados, 21 abr. 2012.
VILELA, Carlos. Entrevista concedida a Nilson Henrique de Araújo Filho. Queimados,
15 abr. 2012.
Referências bibliográficas:
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ensaio. Monografia de Especialização: Lato Sensu em História do Rio de Janeiro/UFF,
2010.
ARFUCH, Leonor. O Espaço Biográfico: dilemas da subjetividade contemporânea.
Trad.: Paloma Vidal. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2010.
JELIN, Elizabeth. Los trabajos de la memoria. Colección Memorias de la Represión.
Buenos Aires: Siglo XXI Editores, 2002.
OLIVEIRA, Rafael da Silva. “Distintas noções de Baixada Fluminense: a busca do
entendimento da constituição política da região – apresentação otimista sobre o seu
13

Particularmente, os conceitos de Memória Oficial e Memórias Subterrâneas, Enquadramento da
Memória, Testemunhas Autorizadas, Esquecimento e Silêncio e Identidade Social.
14

A depoente assinava Maria de Fátima de Oliveira Cordeiro à época do movimento emancipacionista,
tendo mudado seu nome, posteriormente, por ocasião de seu casamento com Jorge Barragán.
(BARRAGÁN, 2009)
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SARLO, Beatriz. Tempo Passado: cultura da memória e guinada subjetiva. Belo
Horizonte: UFMG/Companhia das Letras, 2007.
SIMÕES, Manoel Ricardo. A cidade estilhaçada: Reestruturação Econômica e
Emancipações Municipais na Baixada Fluminense. Tese de Doutorado. PPGG/UFF.
Niterói: 2006.
SOARES, Marcus Rosa. Ordens, desordens e contra ordens territoriais em
Queimados – RJ. Dissertação de Mestrado. Niterói: UFF/PPG, 2000.
SOARES, M. T. S. “Nova Iguaçu. Absorção de uma Célula Urbana pelo Grande Rio.”
In: Revista Brasileira de Geografia, n° 2, ano XVII, Rio de Janeiro: IBGE, 1955.

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  • 1. Anais do I Seminário de História e Cultura: Historiografia e Teoria da História 25 a 27 de junho de 2013 Universidade Federal de Uberlândia A EMANCIPAÇÃO DE QUEIMADOS - RJ NAS NARRATIVAS ORAIS: enquadramento das memórias e escrita da história Claudia Patrícia de Oliveira Costa1 RESUMO: O município de Queimados, na Baixada Fluminense, foi um dos últimos distritos de Nova Iguaçu a conquistar sua autonomia política, no bojo das emancipações ocorridas entre as décadas de 1980 e 1990. Esse boom de emancipações, ocorridas não só no estado do Rio de Janeiro, se inscreve em um contexto mais amplo, de âmbito nacional: o processo de reabertura política brasileira. Observamos que, dado o caráter recente desses acontecimentos, a produção historiográfica sobre a Baixada Fluminense, os processos de emancipações municipais e, especificamente, o processo de emancipação de Queimados são, ainda, um terreno pouco explorado. Assim, apostando na temporalidade disjuntiva que permeia a construção das memórias, acreditamos que os atos de ouvir e analisar as narrativas das lideranças do movimento emancipacionista, ancorando-nos no suporte teórico oferecido por Michael Pollak, se constitua em uma instigante experiência rumo à compreensão da historicidade desse jovem município da Baixada Fluminense. Introdução Em novembro deste ano, o município de Queimados, na Baixada Fluminense, completa vinte e três anos da conquista de sua autonomia política frente à Nova Iguaçu, obtida por meio de consulta plebiscitária. Transcorria o ano de 1990 e o país ainda dava cautelosos passos no processo de implantação e consolidação de um ideal democrático, após mais de duas décadas de regime ditatorial. Nesse mesmo período, outros distritos que integravam o território iguaçuano, como Belford Roxo e Japeri, também protestavam suas emancipações. Mesmo Queimados, já havia tentado, sem sucesso, uma consulta plebiscitária anterior, no ano de 1988, fracassada por falta do quórum mínimo necessário para garantir seu desmembramento da matriz iguaçuana. Analisar esse processo, em seu desenvolvimento local, sem perder de vista o contexto nacional, tem se constituído em instigante desafio, que nos propomos enfrentar, por meio de contínua pesquisa. Essa pesquisa visa, em um primeiro objetivo, suprir lacunas concernentes à História do Tempo Presente, principalmente no âmbito da Baixada Fluminense. Assim, ao buscarmos referências para o presente estudo, constatamos a existência de diversos aspectos e questões ainda pouco investigados, que remetem à escassa produção historiografica. De acordo com o geógrafo Rafael Oliveira, destacam1 Mestranda do Programa de Pós Graduação em História da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, sob a orientação da Profª Drª Márcia de Almeida Gonçalves. E-mail: cliouerj@yahoo.it
  • 2. Anais do I Seminário de História e Cultura: Historiografia e Teoria da História 25 a 27 de junho de 2013 Universidade Federal de Uberlândia se, dentre essas problemáticas, a visão predominantemente geográfica da Baixada Fluminense, voltada para a análise de seus municípios, com ênfase em questões como: os antigos problemas de saneamento, focos de violência e pobreza, sendo localidades para onde se direcionava a população de baixa renda, em busca de opções de moradias de baixo custo.2 Sem desprezar o valor das análises geográficas para o estudo da Baixada Fluminense, consideramos que as referidas questões não se constituem no único viés analítico para os estudos locais. Problematizar questões políticas e culturais, além daquelas econômicas e sociais, nos parece um instigante e, ainda pouco explorado, campo de pesquisa. Com o objetivo de buscar uma alternativa aos modelos interpretativos pautados somente em aspectos socioeconômicos, Rafael Oliveira propõe, em lugar da Baixada Geográfica, a utilização do conceito de Baixada Política, englobando municípios que outrora fizeram parte dos antigos municípios de Nova Iguaçu, Magé e Itaguaí (OLIVEIRA, 2004, p. 29). Embora o próprio autor reconheça que tal delimitação pode ser algo reducionista, sua perspectiva é adotada por outros geógrafos, como Manoel Ricardo Simões, que cunha o conceito de Baixada Geopolítica, abrangendo os municípios originados da grande matriz iguaçuana e do antigo município de Estrela. Para Simões, Esta região tem em comum um passado histórico ligado aos portos fluviais e caminhos que ligavam o Rio de Janeiro ao interior do país e uma ocupação recente baseada nos loteamentos populares próximos aos ramais ferroviários e suas estações (SIMÕES, 2006, p. 2-3). A partir de tais argumentos, esse autor procura estabelecer os limites para a definição da identidade da Baixada Fluminense, que será fundamental na sua compreensão acerca da fragmentação espacial experimentada por essa região. Percebemos, assim, que a abordagem geopolítica tem sido uma das tendências, verificadas em algumas obras recentes, preocupadas em estabelecer análises integradas e, assim, empreender pesquisas mais abrangentes dessa parte do estado do Rio de Janeiro. Entretanto, conforme Simões nos permite entrever em seu trabalho, ainda que não desenvolva o tema, acreditamos que a identidade territorial não é a única passível de ser pensada e analisada nesse contexto. De tal modo, no que concerne o presente trabalho, concordamos em orientar a análise da emancipação de Queimados pelo enfoque geopolítico, entendendo a Baixada 2 Como exemplo de obras que apresentam essa perspectiva de análise, citamos SOARES, 1955 e PEREIRA, 1977.
  • 3. Anais do I Seminário de História e Cultura: Historiografia e Teoria da História 25 a 27 de junho de 2013 Universidade Federal de Uberlândia Fluminense como o território limítrofe com o Rio de Janeiro, cujos municípios apresentam um conjunto de características sociais, políticas, culturais e também de desenvolvimento econômico, afins. Porém, a partir dessa ancoragem, a proposta é estabelecer uma possibilidade para a escrita da história de Queimados, apoiando-nos na documentação oferecida, a partir do registro audiovisual de depoimentos cedidos pelas lideranças que integraram a Associação de Amigos para o Progresso de Queimados (AAPQ), entidade que administrou o movimento pela emancipação desse município. A opção por essa abordagem pretende investigar os complexos trabalhos de enquadramento das memórias3, levando em conta as tensões e disputas, ainda abertas. Assim, objetiva-se apontar uma possibilidade interpretativa pra compreender a historicidade de Queimados. A opção pela História Oral As questões, esboçadas pela pesquisa, nos instigaram a repensá-las e identificar nessa discussão, um terreno profícuo para um debate mais amplo sobre a emancipação desse município da Baixada Fluminense e as vozes que a defenderam. Nos baseamos nos argumentos tecidos pelos pesquisadores Maria Cecília Minayo e Odécio Sanches, que sugerem a complementaridade entre análises quantitativas e qualitativas, no que tange às abordagens metodológicas de pesquisa (1993). Esses autores, valendo-se da concepção de habitus, em Bourdieu, consideram que: A fala torna-se reveladora de condições estruturais, de sistemas de valores, normas e símbolos (sendo ela mesma um deles), e, ao mesmo tempo, possui a magia de transmitir, através de um porta-voz (o entrevistado), representações de grupos determinados em condições históricas, sócio-econômicas e culturais específicas. (...) Daí a possibilidade de se exercer, na análise da prática social, o efeito da universalização e da particularização4 (MINAYO e SANCHES, 1993, p. 245-246). Considerando, pois, que os discursos sustentados e, agora evocados, pelas lideranças da Associação de Amigos para o Progresso de Queimados, tiveram 3 “O trabalho de enquadramento da memória se alimenta do material fornecido pela história. Esse material pode sem dúvida ser interpretado e combinado a um sem-número de referências associadas; guiado pela preocupação não apenas de manter as fronteiras sociais, mas também de modificá-las, esse trabalho reinterpreta incessantemente o passado em função dos combates do presente e do futuro." (POLLAK, 1989, p. 9) 4 Grifos dos autores.
  • 4. Anais do I Seminário de História e Cultura: Historiografia e Teoria da História 25 a 27 de junho de 2013 Universidade Federal de Uberlândia importância fundamental para a elaboração das “memórias da emancipação,” empreendemos o trabalho de transcrição das entrevistas, levando em conta aspectos objetivos e subjetivos das falas dos depoentes. Para isso, recorremos à abordagem desenvolvida por Leonor Arfuch, que sugere o trabalho com entrevistas, transformandoas em documento para as Ciências Sociais. Segundo Arfuch, tais entrevistas, que ela denomina “científicas”, sempre pressuporão um estágio inicial “em direção à elaboração de um produto-outro” (ARFUCH, 2010, p. 242). No presente caso, as entrevistas representam o ponto de partida para a publicização dessas memórias, ensejo presente no campo da subjetividade da maioria dos depoentes. Com isso, fomenta-se um debate que deve desembocar em uma possibilidade de escrita da história de Queimados, a partir da análise crítica das disputas políticas reveladas no seio do grupo emancipacionista. Acreditamos, baseando-nos em Arfuch, que as entrevistas trazem a marca da chamada “autoria conjunta”, isto é, da relação subjetiva estabelecida entre entrevistador e entrevistado. Da mesma forma, as entrevistas estão situadas no bojo da aceleração e da expansão massiva de meios de comunicação, do crescimento das cidades, em suma: na contemporaneidade. Assim, Arfuch aposta na Análise do Discurso, levando em conta as seguintes questões: a produção dialógica do sentido do dizer; as dificuldades da construção de um relato de vida; a análise das modalidades enunciativas, de forma que não as reduzam, nem tampouco as desestruturem; a polifonia ou confrontação de vozes e relatos simultâneos, bem como a sensibilidade para perceber, nos hiatos, esquecimentos e silêncios, indícios relevantes para acessar as memórias do entrevistado (IDEM, p. 267). Posto isso, parece-nos pertinente reiterar que a opção pela História Oral nos coloca em contato com múltiplas biografias, mobilizadas aqui no intuito de esboçar possíveis caminhos e forças atuantes para a construção de memórias coletivas. Sob tal aspecto, destacamos a emergência de um espaço biográfico5, na medida em que são analisadas essas histórias de vida. Nos limites oferecidos por esse espaço biográfico, se inscrevem as memórias que buscamos analisar. 5 Ao esboçar o conceito de espaço biográfico, Leonor Arfuch, afirma que sua preocupação é “não tanto a ‘verdade’ do ocorrido, mas sua construção narrativa, os modos de (se) nomear no relato, o vaivém da vivência ou da lembrança, o ponto do olhar, o que se deixa na sombra; em última instância, que história (qual delas) alguém conta de si mesmo ou de outro eu.” Dito de outra forma, a autora deixa claro que, ao propor uma definição para o conceito de espaço biográfico, pretende levar em conta variadas possibilidades de articulação entre o individual e o coletivo, o momento e a totalidade, em múltiplas dimensões, considerada, portanto, pertinente a esse trabalho, inscrito no campo do político. (ARFUCH, 2010, p. 73)
  • 5. Anais do I Seminário de História e Cultura: Historiografia e Teoria da História 25 a 27 de junho de 2013 Universidade Federal de Uberlândia Enquadramento das memórias: um processo em curso Ao propormos uma discussão acerca dos argumentos postulados pelos grupos sociais que defenderam a emancipação de Queimados no contexto do processo de reabertura política dos anos de 1980, consideramos que o espaço social é palco de tensões. Isto posto, acreditamos que é no espaço social que se desenham lugares que tendem a se constituir simbolicamente como espaços dos estilos de vida, ou seja, de grupos distintos que interagem com a comunidade a qual estão inseridos, revelando relações, por vezes tensas. Debruçando-nos sobre tal perspectiva, identificamos, nas disputas pela memória, o instigante caminho a ser percorrido por essa pesquisa. Porém, cabe-nos ressaltar que as concepções acerca das tensões entre memória e história se modificaram, expressivamente, ao longo das últimas décadas do século passado. Tais modificações introduzem o debate, que adentrou o presente século e que dialoga, em grande parte, com a renovação da História Política, e agrega novas perspectivas teóricas e metodológicas, que buscam a interação entre aspectos políticos e culturais ou políticos e sociais. Dessa forma, as relações possíveis entre memória e história e a História Política Renovada pressupõem, ainda, uma relação bastante produtiva com o que se convencionou chamar, “giro linguístico”6 ou ainda, sua outra face, a “guinada subjetiva.”7 Esses movimentos, ocorridos nos meios acadêmicos a partir da década de 1970, se manifestaram pela retomada de fôlego das narrativas e, com elas, a investigação das subjetividades. Cumpre-nos, portanto, destacar que a postura interpretativa que tomamos, para a análise dos trabalhos da memória, se insere no âmbito de debates atuais, que consideram a memória em sua dimensão política. Tal postura implica na análise do contexto em que se deu a emancipação de Queimados, 6 Segundo Javier Gil Pujol, o chamado “retorno linguistico” (linguistic turn) se insere no contexto da reabilitação da História Política, em face ao “fracasso ou esgotamento da prática historiográfica seguida pelos Annales e pela história marxista...” Destacamos, todavia, que esse retorno à narrativa introduziu questionamentos e críticas, distanciando daquela perspectiva antiga, na qual a narrativa visava o mero relato, tido como forma de revivificar o fato. (PUJOL, 1983, p. 68-69). 7 “A ideia de entender o passado a partir de sua lógica (uma utopia que moveu a história) emaranha-se com a certeza de que isso, em primeiro lugar, é absolutamente possível, o que ameniza a complexidade do que se deseja reconstituir; e, em segundo lugar, de que isso se alcança quando nos colocamos na perspectiva de um sujeito e reconhecemos que a subjetividade tem um lugar, apresentado com recursos que, em muitos casos, vêm daquilo que, desde meados do século XIX, a literatura experimentou como primeira pessoa do relato e discurso indireto livre: modos de subjetivação do narrado. (...) São passos de um programa que se torna explícito, porque há condições ideológicas que o sustentam. Contemporânea do que se chamou, nos anos 1970 e 1980 de ‘guinada linguística’ ou muitas vezes acompanhando-a como sua sombra, impôs-se a guinada subjetiva.” (SARLO, 2007, p. 18)
  • 6. Anais do I Seminário de História e Cultura: Historiografia e Teoria da História 25 a 27 de junho de 2013 Universidade Federal de Uberlândia qual seja aquele da abertura, pós Regime Militar e as possíveis mobilizações do passado, feitas pelos depoentes. Assim, constatamos que o cenário político nacional do período, que punha em confronto culturas políticas autoritárias e culturas políticas democráticas8, se constitui em pano de fundo instigante para a elaboração dessas memórias. O quadro de crise, que se fez intrínseco a esse contexto, segundo Michael Pollak, é propício para o afloramento das chamadas memórias subterrâneas, que mantidas por grupos excluídos ou marginalizados, principalmente por meio da tradição oral, esperam a "hora da verdade e da redistribuição das cartas políticas e ideológicas" (POLLAK, 1989, p. 5). No caso de Queimados, essas memórias se ancoram na evocação de um passado ideal, no qual Queimados sempre esteve orientada ao desenvolvimento desde a implantação da ferrovia, em 1958, na época do apogeu da citricultura, na década de 1930, ou da implantação do Parque Industrial, em 1978. Essa ancoragem foi patente na fundamentação dos protestos pela emancipação e no esboço de construção da oposição identitária frente ao outro, representado por Nova Iguaçu. Portanto, ao definir Queimados, em relação ao outro, a ênfase dos depoentes recai sobre os poucos investimentos públicos locais. Expressões como pobreza absoluta, nenhum aspecto de progresso ou desenvolvimento, muito atrasado, precário, totalmente abandonado, desleixo e largado, são utilizadas para caracterizar Queimados, a partir de suas lembranças, quando lá chegaram9. Esse ressentimento teve ocasião para vir à tona, depois de mais de duas décadas de silenciamento, imposto pela repressão intrínseca ao regime autoritário. Por outro lado, identificamos também, o uso de signos da modernização e progresso postulados pela ordem instituída, apropriados como forma de adicionar argumentos que sustentassem os discursos emancipacionistas. À construção negociada da identidade queimadense em oposição àquela iguaçuana, destacamos o argumento da arrecadação fiscal obtida com a instalação do citado Parque Industrial, ao final da década de 1970. As falas de Josias Mattos e Luiz Gonzaga de Macedo, duas lideranças da Associação dos Amigos para o Progresso de Queimados, nos parecem emblemáticas para a construção desse discurso: 8 “O que haveria no Brasil pós-85 seria, precisamente, um conflito entre as forças societárias, que entendem a sociedade como autônoma e procuram limitar as forças do Estado e do mercado, e as forças sistêmicas, que resistem a qualquer forma real de limitação de seu poder. A democratização, no caso brasileiro, significou o surgimento de duas culturas políticas: uma, democrática e vinculada aos movimentos sociais e civis democratizadores; e uma outra, a predominante no nosso processo de modernização, que persiste com as suas práticas tradicionais.” (AVRITZER, 1995, p. 7). 9 Essas expressões foram verificadas nas falas de Maria de Fátima Barragán, Luiz Alonso Sanz, Valtecir Gomes Leal, Josias de Souza Mattos e Carlos de França Vilela.
  • 7. Anais do I Seminário de História e Cultura: Historiografia e Teoria da História 25 a 27 de junho de 2013 Universidade Federal de Uberlândia Queimados, rapaz, tinha uma renda muito grande, o Parque Industrial tinha vinte e tantas indústrias de médio e grande porte em Queimados. Lá. Lá. Hoje eu não sei como está. Queimados tinha uma renda muito grande. Então, eu tenho até, eu tenho o Diário Oficial que foi publicado. Por isso que digo pra vocês que eu fiz trabalho junto com a Secretaria de Governo do Estado de, de Finanças, eu tenho, eu tenho, em algum lugar aqui em casa a cópia do Diário Oficial que diz isso aqui, que faz que se nos tivesse mais quinze décimos de rendimento não passaria, porque abalaria o, as finanças do município mãe (MATTOS, 2012). Só foi possível a independência de Queimados, motivada pela estrutura que se criou dentro do distrito, Segundo Distrito que era Queimados, e foi o Distrito Industrial e essas duas fábricas ali, que potencializou de tal ordem, trouxe o mercado financeiro pra cá (MACEDO, 2009). Dessa forma, os protestos emancipacionistas se alimentavam de argumentos que relacionavam Queimados ao desenvolvimento e progresso, na medida em que essa expressiva arrecadação não se revertia em melhorias locais. Segundo outra liderança, o senhor Carlos Vilela, os recursos financeiros eram, primeiramente, aplicados na sede do município, restando muito pouco ou quase nada para os distritos mais afastados,10 em um mecanismo local de reprodução da lógica que, como visto, vigorava ao nível estadual e federal. Ao evocar e difundir tal premissa, as lideranças davam o primeiro passo no sentido de construção de uma identidade queimadense: delimitavam sua alteridade frente à Nova Iguaçu. Essa é uma das chaves para a compreensão do movimento emancipacionista queimadense, bem como as memórias elaboradas por suas lideranças, mais de duas décadas depois da emancipação. Entretanto, está longe de ser a única. De fato, a derrota nas urnas, por falta de quórum, no primeiro plebiscito, realizado em 1988, tinha sido responsável pela própria criação da Associação dos Amigos para o Progresso de Queimados, com o intuito de rearticular o movimento próemancipação. Essa derrota também desencadeou a mobilização das memórias, em torno 10 “Então ficava muito difícil, as coisas ficavam tudo em Nova Iguaçu, a gente tem que desenvolver Nova Iguaçu primeiro, para depois ir para periferia. É o que tá acontecendo em Queimados: nós estamos desenvolvendo o centro e estamos andando para o interior. E lá era assim, até chegar aqui você já tava morto e, e, não ia acontecer nada. Você, que é mais novo, eu já era, que já sou mais velho. Então isso que fomentou o abandono, o desleixo da cidade: a gente aqui largado de tudo quanto é maneira, gente morrendo aí sem saúde, sem nada. Que mal ou bem, hoje, você tem uma saúde que você pode dizer que tá 100% em relação aquela época. Você não tinha nada, você tinha que levar para Nova Iguaçu ou lá para baixo e as vezes morria aqui mesmo. Não tinha uma casa de saúde, não tinha nada. Nós temos aí a Bom Pastor, hoje, nós queimadense podemos até não dar valor, mas ela é de grande valia para Queimados...” (VILELA, 2012, grifos nossos)
  • 8. Anais do I Seminário de História e Cultura: Historiografia e Teoria da História 25 a 27 de junho de 2013 Universidade Federal de Uberlândia do esforço de recortar e redefinir a espacialidade queimadense. A questão da identidade territorial é apontada pelas lideranças emancipacionistas como um dos fatores que justificaram o fracasso do plebiscito de 1988. Ao atribuir a falta de quórum mínimo para que esse plebiscito fosse validado, às localidades de Japeri e Cabuçu, os entrevistados justificam tal situação pelo viés identitário. Entendendo que, como preconiza Pollak, “a memória e a identidade são valores disputados em conflitos sociais e intergrupais, e particularmente em conflitos que opõem grupos políticos diversos” (1992, p. 205), interpretamos os argumentos de que Cabuçu e Japeri não desejavam integrar Queimados11 como indícios fundamentais do esforço de construção de identidades, a partir da demarcação do outro, que não é queimadense. Entretanto, questões econômicas e/ou sociais não são os únicos elementos que influenciam esses trabalhos de memória. O terreno sensível das divergências pessoais e/ou político-partidárias são aspectos que podem ser determinantes para operar os recortes, exclusões ou idealizações do passado, característicos do processo de enquadramento das memórias. Com pouco mais de duas décadas decorridas desde a emancipação, tais aspectos tornam ainda mais complexo o trabalho de análise dessas memórias, posto que percebemos um empenho coletivo da população queimadense em compartilhar suas memórias. Ainda de acordo com as vozes, registradas por meio dessas entrevistas, há um crescente interesse em remexer as memórias e buscar "uma resposta ou reação, diante das mudanças rápidas e de uma vida sem âncoras ou raízes"12 (JELIN, 2002, p. 9). De acordo com a perspectiva da socióloga argentina, Elizabeth Jelin, a "vida sem âncoras ou raízes" se insere na perspectiva da aceleração da vida contemporânea, incômodo expresso na maioria das entrevistas concedidas a nós, por antigos queimadenses. A chegada da contemporaneidade, segundo definição de Jelin, é um argumento muito presente nos recentes discursos sobre Queimados (2002, p. 9-10). Entendida, através da fala de alguns entrevistados, como um movimento inexorável e avassalador de modernização, a contemporaneidade traz em si uma gama de questionamentos acerca da extensão desse fenômeno e de seus impactos positivos e negativos sobre a cidade. Nesse contexto, torna-se importante fazer-se ouvir, registrar “a sua versão da história,” mostrando que as relações entre memória e história são um 11 Cabuçu se mantém como Unidade Regional de Governo de Nova Iguaçu até o presente momento. Japeri conquistou sua emancipação em 1991, um ano depois de Queimados. 12 Tradução nossa.
  • 9. Anais do I Seminário de História e Cultura: Historiografia e Teoria da História 25 a 27 de junho de 2013 Universidade Federal de Uberlândia desafio às diversas dimensões da subjetividade, tanto dos sujeitos-objetos dessa pesquisa, como dos historiadores. Considerações finais Ao trabalharmos com a história da emancipação do município de Queimados, apostamos na possibilidade da escrita de uma História Local, no contexto da noção de Baixada Fluminense como região periférica do estado do Rio de Janeiro em fins do século XX. Tal recorte também nos permite inscrever essa pesquisa no âmbito da História do Tempo Presente. Por meio dos depoimentos coletados, a população mais antiga da cidade, por meio das narrativas de suas histórias de vida, nos permite acessar às múltiplas vozes que atuaram na defesa do ideal emancipacionista. Cientes de que a narrativa jamais revivificará o fato, podemos, ao menos, entrever possibilidades interpretativas para abordar os dois momentos significativos da emancipação queimadense: o plebiscito frustrado, em 1988 e o plebiscito vitorioso, em 1990. Assim, verificamos que, para garantir a validade dos argumentos que sustentavam os anseios emancipacionistas de Queimados frente à Nova Iguaçu, as lideranças da Associação dos Amigos para o Progresso de Queimados se concentraram em construir relatos de si que os diferenciassem do município sede. O trabalho incessante das memórias, ouvidas para essa pesquisa, nos aponta outro argumento mobilizado para sustentar a necessidade de emancipação: a evocação de aspectos econômicos, representados, principalmente, pelo Parque Industrial e pelo comércio. A combinação de desenvolvimento, expressa pela indústria e o comércio, contraposta ao quadro de “descaso e abandono” forneceram a base para que se começasse a esboçar uma identidade queimadense em oposição ao outro, tirânico, representado por Nova Iguaçu. Essa constatação nos instiga, agora, a pensar outros caminhos para a construção da identidade queimadense. De tal modo, refletindo ainda sobre a proposta teórica de Pollak, verificamos que esses depoentes, cuja trajetória de vida está intrinsecamente ligada ao movimento emancipacionista, tendem a mobilizar suas memórias em torno de recortes do passado bastante variáveis. Outros argumentos, para além dos recortes do passado, revelam disputas pessoais e/ou político-partidárias, que também afloram nas falas de membros desse grupo. Dar conta dessas questões, certamente, faz parte das nossas indagações e se constitui no grande desafio dessa pesquisa. Ao analisarmos esses registros, com base na
  • 10. Anais do I Seminário de História e Cultura: Historiografia e Teoria da História 25 a 27 de junho de 2013 Universidade Federal de Uberlândia metodologia da História Oral e sustentados no arcabouço teórico desenvolvido por Michael Pollak,13 propomos uma possibilidade interpretativa para a emancipação do município de Queimados, na Baixada Fluminense. Cientes das dificuldades inerentes à escrita da história de uma cidade, cuja existência política é relativamente recente, acreditamos que a opção pelas entrevistas, no campo de investigação das memórias da população local, nos aponta um instigante e profícuo caminho de pesquisa. Entrevistas: BARRAGÁN, Maria de Fátima de Oliveira. Entrevista concedida a Nilson Henrique de Araújo Filho. Nilópolis, 13 nov. 2009.14 LEAL, Valtecir Gomes. Entrevista concedida a Nilson Henrique de Araujo Filho. Queimados, 07 nov. 2009. LIMA, José Methódio. Entrevista concedida a Nilson Henrique de Araujo Filho. Queimados, 04 nov. 2009. MACEDO, Luiz Gonzaga de. Entrevista concedida a Nilson Henrique de Araujo Filho. Queimados, 31 out. 2009. MATTOS, Josias de Souza. Entrevista concedida a Claudia Patrícia de Oliveira Costa e Nilson Henrique de Araujo Filho. Queimados, 07 abr. 2012. OLIVEIRA, Ismael Lopes de. Entrevista concedida a Claudia Patrícia de Oliveira Costa e Nilson Henrique de Araujo Filho. Queimados, 16 mai. 2013. SANZ, Luiz Alonso. Entrevista concedida a Claudia Patrícia de Oliveira Costa e Nilson Henrique de Araujo Filho. Queimados, 21 abr. 2012. VILELA, Carlos. Entrevista concedida a Nilson Henrique de Araújo Filho. Queimados, 15 abr. 2012. Referências bibliográficas: ARAÚJO FILHO, Nilson H. de. Emancipação do município de Queimados: breve ensaio. Monografia de Especialização: Lato Sensu em História do Rio de Janeiro/UFF, 2010. ARFUCH, Leonor. O Espaço Biográfico: dilemas da subjetividade contemporânea. Trad.: Paloma Vidal. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2010. JELIN, Elizabeth. Los trabajos de la memoria. Colección Memorias de la Represión. Buenos Aires: Siglo XXI Editores, 2002. OLIVEIRA, Rafael da Silva. “Distintas noções de Baixada Fluminense: a busca do entendimento da constituição política da região – apresentação otimista sobre o seu 13 Particularmente, os conceitos de Memória Oficial e Memórias Subterrâneas, Enquadramento da Memória, Testemunhas Autorizadas, Esquecimento e Silêncio e Identidade Social. 14 A depoente assinava Maria de Fátima de Oliveira Cordeiro à época do movimento emancipacionista, tendo mudado seu nome, posteriormente, por ocasião de seu casamento com Jorge Barragán. (BARRAGÁN, 2009)
  • 11. Anais do I Seminário de História e Cultura: Historiografia e Teoria da História 25 a 27 de junho de 2013 Universidade Federal de Uberlândia crescimento latente”. In: _______________(org.). Baixada Fluminense: novos estudos e desafios. Rio de Janeiro: Ed. Paradigma, 2004. MINAYO, M. C. de S. e SANCHES, O.. “Quantitativo-Qualitativo: Oposição ou Complementaridade?” Cadernos Saúde Pública. Rio de Janeiro, 9 (3), jul/sep, 1993. p.p.: 239-248. PEREIRA, Waldick. Cana, café & laranja: história econômica de Nova Iguaçu. Rio de Janeiro: FGV/SEEC, 1977. POLLAK, Michael. “Memória, esquecimento, silêncio.” In: Estudos Históricos. Rio de Janeiro, Vol.: 2, nº.: 3: 1989. – p.p.: 3-15. ________________. “Memória e identidade social.” In: Estudos Históricos. Rio de Janeiro, Vol.: 5, nº.: 10: 1992. – p.p.: 200-212. PRADO, Walter. História Social da Baixada Fluminense: das sesmarias a foros de cidade. Rio de Janeiro: Ecomuseu Fluminense, 2000. PUJOL, Javier Gil. “Notas sobre el estudio del poder como nueva valoración de la historia política.” In: Pedralbes, nº 3, Barcelona: 1983. – p.p.: 61-88. SARLO, Beatriz. Tempo Passado: cultura da memória e guinada subjetiva. Belo Horizonte: UFMG/Companhia das Letras, 2007. SIMÕES, Manoel Ricardo. A cidade estilhaçada: Reestruturação Econômica e Emancipações Municipais na Baixada Fluminense. Tese de Doutorado. PPGG/UFF. Niterói: 2006. SOARES, Marcus Rosa. Ordens, desordens e contra ordens territoriais em Queimados – RJ. Dissertação de Mestrado. Niterói: UFF/PPG, 2000. SOARES, M. T. S. “Nova Iguaçu. Absorção de uma Célula Urbana pelo Grande Rio.” In: Revista Brasileira de Geografia, n° 2, ano XVII, Rio de Janeiro: IBGE, 1955.