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                                                                                                                                                                                                          Editor: Leonardo Cavalcanti




Brasil
                                                                                                                                                                                                                brasil.df@dabr.com.br
                                                                                                                                                                                                  3214-1104/ 1186/ 1293 • 3214-1155




8/9 • CORREIO BRAZILIENSE • Brasília, sexta-feira, 10 de agosto de 2012




                          QUANDO A INFÂNCIA
                            PERDE O JOGO
     Em série de reportagens, Correio denuncia o crime escondido por trás de promessas de uma carreira de sucesso no futebol. Abusos,
      pedofilia e redes de exploração sexual envolvem crianças e adolescentes que, para ficarem nos gramados, acabaram violentados

           a várzea ou no gramado,


N          de pé no chão ou sobre
           chuteiras, meninos do
           país inteiro querem vestir
a camisa de grandes clubes e se tor-
nar estrelas como Neymar, Zico ou
Pelé. Sonhos comprometidos não
só por disputas acirradas, dificul-
dades financeiras e até pela falta de
sorte. No caminho de muitos, está
um drama tão invisível quanto de-
vastador: o abuso e a exploração
sexual. O cenário pode ser as esco-
linhas improvisadas de bairro ou
vestiários de times renomados.
Mas o roteiro da violação é o mes-
mo.Treinadores, técnicos, assisten-
tes se insinuam, assediam e violen-
tam os garotos, que silenciam por
vergonha e medo de perderem a
chance de serem revelados.
   Não há dados, notificações ou
qualquer tipo de pesquisa que
aponte o real tamanho do proble-
ma no país que se prepara para
receber a próxima Copa do Mun-
do. As histórias reveladas pelo
Correio a partir de hoje, porém,
mostram que o tema não se resu-
me a casos isolados. Depois de
percorrer 11,5 mil km em cinco
estados de três regiões do país, a           Torcedor do Santos e fã de Neymar, Pedro colocou nas aulas da escolinha as expectativas de um sonho. Hoje, o uniforme foi destruído e a vontade é esquecer o trauma vivido
reportagem traz — com base em
inquéritos, processos e relatos de                                                                            » JULIANA BRAGA E RENATA MARIZ (TEXTOS)
vítimas — a magnitude dessa tra-                                                                                      » IANO ANDRADE (FOTOS)
gédia. Em respeito ao Estatuto da
                                                 Campo Grande — Podia ser de glória, alegria, de gol.    aos outros dois treinadores, Paulo César da Costa, in-         olheiros, era o sonho dele, não entendia o desânimo. Aí
Criança e do Adolescente, todos              Mas o grito preso na garganta de Francisco tem a ver        diciado, e Antonio Alves de Oliveira, foragido. “A partir      apertei tanto que ele acabou contando”, lembra.
os nomes de crianças, adolescen-             com medo e vergonha. “Sinto muita raiva deles”, desa-       de uma prisão, acabamos descobrindo uma rede de                    Torcedor do Santos, o menino de cabelo a la Ney-
                                             bafa o garoto de topete no cabelo. Aos 12 anos, quando      abuso sexual, que agia nos bairros distantes e carentes        mar, brinco na orelha esquerda e cabeça quase sempre
tes e respectivos parentes citados           foi levado por um vizinho da família para jogar em uma      da capital, utilizando o expediente do futebol para            baixa explica que não queria abandonar as aulas. “Sa-
na série Quando a infância perde             escolinha de futebol próxima de casa, na periferia de       atrair esses garotos, prometendo que os levariam para          bia que se eu falasse, ela (a mãe) ia me tirar da escoli-
o jogo são fictícios.                        Campo Grande, sentiu pela primeira vez a chance real        grandes clubes”, afirma Regina.                                nha”, afirma Pedro, que joga no ataque. A justificativa é
                                             de se tornar um ídolo dos gramados, como sonhara.               A prisão de José Martins trouxe alívio para Francisco.     a mesma apresentada por todos para explicar o silên-
                                                 O homem que alimentava as esperanças do garoto          “Fiquei pensando que errei por não ter denunciado an-          cio. Segredo rompido, os pais ficaram sabendo que
                                             — com elogios, presentes e promessas — era o mesmo          tes. Ele fez mal para tanta gente, meninos até mais novos      quem não participava diretamente das relações sexuais
                                             que, vez por outra, ajudava os pais dele com algum so-      do que eu”, lamenta o rapaz, que diz ter encontrado na         assumia o papel de espectador.
                                             corro financeiro. Ficava difícil compreender por que o      igreja apoio para falar sobre o assunto e se livrar do vício       Neusa diz sentir calafrios quando se lembra do que o
                                             “professor” tão generoso o despia, manipulava seu cor-      em maconha e pasta-base de cocaína. Vergonha, medo,            menino passou uma semana, em julho de 2010, na casa
                                             po, pedia que ele retribuísse os carinhos, por mais que     falta de maturidade para compreender a gravidade dos           do professor, no centro da cidade, para a concentração do
                                             Francisco tentasse demonstrar que não gostava daque-        abusos impediram Francisco de agir mais cedo contra            time na véspera da Copa Mercosul de escolinhas. “Sentia
                                             la situação. Os abusos pioraram depois que o treinador      Martins e os outros dois treinadores que o violentavam.        uma coisa ruim de vez em quando, então ligava e ele dizia
                                             chamou mais dois amigos, também instrutores de fute-            Um deles, o professor Oliveira, pouco antes da pri-        queestavatudobem”,diz.Sentindo-seculpada,elaafirma
                                             bol, para participar das “brincadeiras”.                    são de Martins, já havia sido denunciado. Pais de garo-        que não queria tirar de Pedro a oportunidade de conhecer
                                                 “Já fiz sexo oral com os três juntos. Não entendia      tos do Canguru, um bairro pobre na saída da capital            lugares inatingíveis para a família de quatro filhos que so-
                                             porque eles queriam aquilo, me sentia muito mal”, diz       sul-mato-grossense, onde o homem de 49 anos tinha              brevive com um salário mínimo. “A gente não pode pagar
                                             Francisco. A violência durou quase dois anos, até que       uma escolinha mantida por convênio com a prefeitura,           para ele ir a uma pizzaria, em um clube. Como o Oliveira
        A série Quando a infância
                                             o menino, já aos 15, mudou de endereço com a famí-          revoltaram-se quando um dos meninos relatou o com-             parecia uma pessoa direita, eu permitia os passeios.”
        perde o jogo foi vencedora
                                             lia. Longe do problema, o rapaz preferiu manter a his-      portamento do técnico.                                             Nenhum dos seis garotos ouvidos pela reportagem
        da Categoria Impresso do
                                             tória em sigilo para, um dia, se esquecer de tudo, da           Sabendo que esse aluno não viajaria para um cam-           tinha mais o uniforme da Escolinha de Futebol Olivei-
        VI Concurso Tim Lopes de
                                             mesma forma que já nem se lembrava mais da vonta-           peonato em Paranhos, cidade a quase 500km de Campo             ra, na cor laranja e com o brasão do time baianoVitória,
        Jornalismo Investigativo,
                                             de de ser um craque. No ano passado, porém, depois          Grande, por falta de dinheiro para pagar as despesas, ele      sinalizando a procedência da roupa de segunda mão
        realizado pela Agência de
                                             de ser preso em flagrante por abusar de duas crianças,      fez a proposta. “Se você deixar eu te chupar, eu te levo       pela qual o professor chegava a cobrar R$ 35. “Depois
       Notícias da Infância (Andi) e
                                             José Martins de Santana, o “prestativo” professor de        para viajar”, contou o garoto de 13 anos, acrescentando        que fizemos a denúncia, os meninos aguentaram mui-
         Childhood Brasil, com o
                                             49 anos, listou para a polícia nomes de outras vítimas,     já ter visto Oliveira praticar sexo oral em vários jogado-     ta tiração de sarro, fica o comentário na vila. Então eles
        apoio do Unicef, da OIT, da
                                             recentes e antigas, algumas de apenas 5 anos.               res.Todas as mães começaram a questionar os filhos. Na         detonaram as roupas”, contaVanda, referindo-se aos fi-
             Fenaj e da Abraji.
                                                 Pelo menos 10 garotos confirmaram as violações, en-     cabeça de Neusa surgia a explicação para o comporta-           lhos, Cleber e Guilherme. Ela espera que os garotos
                                             tre eles Francisco, hoje com 19 anos. Os relatos levaram    mento de Pedro nos últimos meses. “Ele estava estra-           consigam apagar as lembranças deixadas pelo “profes-
                                             a delegada responsável pelo caso, Regina Rodrigues,         nho, calado. Se ir para os campeonatos, onde tinha os          sor”, que continua foragido.




                                                                          CMYK

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Quando a infância perde o jogo: série denuncia abusos e exploração sexual de crianças em escolinhas de futebol

  • 1. CMYK Editor: Leonardo Cavalcanti Brasil brasil.df@dabr.com.br 3214-1104/ 1186/ 1293 • 3214-1155 8/9 • CORREIO BRAZILIENSE • Brasília, sexta-feira, 10 de agosto de 2012 QUANDO A INFÂNCIA PERDE O JOGO Em série de reportagens, Correio denuncia o crime escondido por trás de promessas de uma carreira de sucesso no futebol. Abusos, pedofilia e redes de exploração sexual envolvem crianças e adolescentes que, para ficarem nos gramados, acabaram violentados a várzea ou no gramado, N de pé no chão ou sobre chuteiras, meninos do país inteiro querem vestir a camisa de grandes clubes e se tor- nar estrelas como Neymar, Zico ou Pelé. Sonhos comprometidos não só por disputas acirradas, dificul- dades financeiras e até pela falta de sorte. No caminho de muitos, está um drama tão invisível quanto de- vastador: o abuso e a exploração sexual. O cenário pode ser as esco- linhas improvisadas de bairro ou vestiários de times renomados. Mas o roteiro da violação é o mes- mo.Treinadores, técnicos, assisten- tes se insinuam, assediam e violen- tam os garotos, que silenciam por vergonha e medo de perderem a chance de serem revelados. Não há dados, notificações ou qualquer tipo de pesquisa que aponte o real tamanho do proble- ma no país que se prepara para receber a próxima Copa do Mun- do. As histórias reveladas pelo Correio a partir de hoje, porém, mostram que o tema não se resu- me a casos isolados. Depois de percorrer 11,5 mil km em cinco estados de três regiões do país, a Torcedor do Santos e fã de Neymar, Pedro colocou nas aulas da escolinha as expectativas de um sonho. Hoje, o uniforme foi destruído e a vontade é esquecer o trauma vivido reportagem traz — com base em inquéritos, processos e relatos de » JULIANA BRAGA E RENATA MARIZ (TEXTOS) vítimas — a magnitude dessa tra- » IANO ANDRADE (FOTOS) gédia. Em respeito ao Estatuto da Campo Grande — Podia ser de glória, alegria, de gol. aos outros dois treinadores, Paulo César da Costa, in- olheiros, era o sonho dele, não entendia o desânimo. Aí Criança e do Adolescente, todos Mas o grito preso na garganta de Francisco tem a ver diciado, e Antonio Alves de Oliveira, foragido. “A partir apertei tanto que ele acabou contando”, lembra. os nomes de crianças, adolescen- com medo e vergonha. “Sinto muita raiva deles”, desa- de uma prisão, acabamos descobrindo uma rede de Torcedor do Santos, o menino de cabelo a la Ney- bafa o garoto de topete no cabelo. Aos 12 anos, quando abuso sexual, que agia nos bairros distantes e carentes mar, brinco na orelha esquerda e cabeça quase sempre tes e respectivos parentes citados foi levado por um vizinho da família para jogar em uma da capital, utilizando o expediente do futebol para baixa explica que não queria abandonar as aulas. “Sa- na série Quando a infância perde escolinha de futebol próxima de casa, na periferia de atrair esses garotos, prometendo que os levariam para bia que se eu falasse, ela (a mãe) ia me tirar da escoli- o jogo são fictícios. Campo Grande, sentiu pela primeira vez a chance real grandes clubes”, afirma Regina. nha”, afirma Pedro, que joga no ataque. A justificativa é de se tornar um ídolo dos gramados, como sonhara. A prisão de José Martins trouxe alívio para Francisco. a mesma apresentada por todos para explicar o silên- O homem que alimentava as esperanças do garoto “Fiquei pensando que errei por não ter denunciado an- cio. Segredo rompido, os pais ficaram sabendo que — com elogios, presentes e promessas — era o mesmo tes. Ele fez mal para tanta gente, meninos até mais novos quem não participava diretamente das relações sexuais que, vez por outra, ajudava os pais dele com algum so- do que eu”, lamenta o rapaz, que diz ter encontrado na assumia o papel de espectador. corro financeiro. Ficava difícil compreender por que o igreja apoio para falar sobre o assunto e se livrar do vício Neusa diz sentir calafrios quando se lembra do que o “professor” tão generoso o despia, manipulava seu cor- em maconha e pasta-base de cocaína. Vergonha, medo, menino passou uma semana, em julho de 2010, na casa po, pedia que ele retribuísse os carinhos, por mais que falta de maturidade para compreender a gravidade dos do professor, no centro da cidade, para a concentração do Francisco tentasse demonstrar que não gostava daque- abusos impediram Francisco de agir mais cedo contra time na véspera da Copa Mercosul de escolinhas. “Sentia la situação. Os abusos pioraram depois que o treinador Martins e os outros dois treinadores que o violentavam. uma coisa ruim de vez em quando, então ligava e ele dizia chamou mais dois amigos, também instrutores de fute- Um deles, o professor Oliveira, pouco antes da pri- queestavatudobem”,diz.Sentindo-seculpada,elaafirma bol, para participar das “brincadeiras”. são de Martins, já havia sido denunciado. Pais de garo- que não queria tirar de Pedro a oportunidade de conhecer “Já fiz sexo oral com os três juntos. Não entendia tos do Canguru, um bairro pobre na saída da capital lugares inatingíveis para a família de quatro filhos que so- porque eles queriam aquilo, me sentia muito mal”, diz sul-mato-grossense, onde o homem de 49 anos tinha brevive com um salário mínimo. “A gente não pode pagar Francisco. A violência durou quase dois anos, até que uma escolinha mantida por convênio com a prefeitura, para ele ir a uma pizzaria, em um clube. Como o Oliveira A série Quando a infância o menino, já aos 15, mudou de endereço com a famí- revoltaram-se quando um dos meninos relatou o com- parecia uma pessoa direita, eu permitia os passeios.” perde o jogo foi vencedora lia. Longe do problema, o rapaz preferiu manter a his- portamento do técnico. Nenhum dos seis garotos ouvidos pela reportagem da Categoria Impresso do tória em sigilo para, um dia, se esquecer de tudo, da Sabendo que esse aluno não viajaria para um cam- tinha mais o uniforme da Escolinha de Futebol Olivei- VI Concurso Tim Lopes de mesma forma que já nem se lembrava mais da vonta- peonato em Paranhos, cidade a quase 500km de Campo ra, na cor laranja e com o brasão do time baianoVitória, Jornalismo Investigativo, de de ser um craque. No ano passado, porém, depois Grande, por falta de dinheiro para pagar as despesas, ele sinalizando a procedência da roupa de segunda mão realizado pela Agência de de ser preso em flagrante por abusar de duas crianças, fez a proposta. “Se você deixar eu te chupar, eu te levo pela qual o professor chegava a cobrar R$ 35. “Depois Notícias da Infância (Andi) e José Martins de Santana, o “prestativo” professor de para viajar”, contou o garoto de 13 anos, acrescentando que fizemos a denúncia, os meninos aguentaram mui- Childhood Brasil, com o 49 anos, listou para a polícia nomes de outras vítimas, já ter visto Oliveira praticar sexo oral em vários jogado- ta tiração de sarro, fica o comentário na vila. Então eles apoio do Unicef, da OIT, da recentes e antigas, algumas de apenas 5 anos. res.Todas as mães começaram a questionar os filhos. Na detonaram as roupas”, contaVanda, referindo-se aos fi- Fenaj e da Abraji. Pelo menos 10 garotos confirmaram as violações, en- cabeça de Neusa surgia a explicação para o comporta- lhos, Cleber e Guilherme. Ela espera que os garotos tre eles Francisco, hoje com 19 anos. Os relatos levaram mento de Pedro nos últimos meses. “Ele estava estra- consigam apagar as lembranças deixadas pelo “profes- a delegada responsável pelo caso, Regina Rodrigues, nho, calado. Se ir para os campeonatos, onde tinha os sor”, que continua foragido. CMYK