Treinadores de futebol abusam sexualmente de crianças pobres, explorando seus sonhos de se tornarem jogadores profissionais. Eles ganham a confiança das famílias com presentes e promessas de sucesso, mas acabam violando a inocência das vítimas. A polícia prende alguns desses abusadores, mas a prática continua devido à falta de fiscalização e aos tabus em relação ao assunto.
Abusadores se aproveitam da confiança em promessas de sucesso no esporte
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Editor: Leonardo Cavalcanti
Brasil
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14 • CORREIO BRAZILIENSE • Brasília, domingo, 12 de agosto de 2012
A abordagem é a
mesma: eles se
aproximam e prometem
JOGADABASEADA aniversário dos meninos, estava sempre
na vizinhança”, conta Joana, 32 anos.
“Comecei a entender o motivo de tantos
presentes, até uma bicicleta ele deu para
NACONFIANÇA
o Henrique. Eu achava que fosse porque
ele era sozinho e gostava da gente.”
um futuro de sucesso. Questionado pela mãe, o filho mais
velho negou qualquer abuso. O mais no-
Famílias acreditam e vo, Henrique, que conviveu com o pedó-
filo dos 7 aos 8 anos, quis chorar quando
entregam seus filhos a Joana perguntou se o professor já havia
tocado em suas partes íntimas. Nervosa,
abusadores. Para a criança respondeu: “Eu também vou
especialistas, o medo de ser preso?”. Depois que Joana explicou
que nada aconteceria com ele, Henrique
não concretizar o sonho confirmou os abusos. “Ele entrou na mi-
nha casa, ganhou minha confiança para
faz o silêncio predominar fazer uma coisa dessas”, revolta-se.
Assim como Joana, outros pais do Co-
libri, bairro de Campo Grande afastado
do centro, acreditaram nas boas inten-
»JULIANABRAGAERENATAMARIZ(TEXTOS) ções do professor, preso em flagrante.
» IANO ANDRADE (FOTO) “Ele vinha a nossa casa para convidar os
meninos. Pegava fotos, tinha ficha de ins-
les se aproximam com promessas. crição, tudo direitinho. A gente nunca ia
E Geralmente, procuram filhos de
famílias humildes, garotos que
veem na carreira desportiva não só
o sonho de viver de futebol, mas tam-
imaginar uma coisa dessas”, afirma Mara,
mãe de outro garoto que treinava com
Martins. A impressão de seriedade da es-
colinha modesta, que cobrava pequenos
bém de ascensão social. Vêm com pre- valores e funcionava em um campinho
sentes, alimentam a expectativa de o público, compensava a falta de grandes
menino se tornar um ídolo e, depois de craques revelados pelo treinador.
conquistada a cumplicidade das crian- Além do mais, Martins estava sempre
ças e o respeito da família, a violência co- pronto a ajudar as famílias, inclusive fi-
meça. Em todo o país, os abusadores nanceiramente. “Teve um mês que ele
que atuam no esporte agem da mesma pagou meu aluguel”, diz Joana. A relação
maneira. Aproveitam-se dos sonhos, das próxima inibe os garotos de denuncia-
fragilidades e do medo de um estigma. rem a violência. Principalmente quando
Favores financeiros são uma das for- têm pouca idade, explica a psicóloga Mô-
mas que os pedófilos usam para garantir nica Café, especialista no tema, as víti-
a confiança da família. Esmeralda estra- mas não conseguem compreender a di-
nhou quando o vizinho Osvaldo Guides mensão do abuso.“Isso causa muita con-
Camargo, o Bozó, se ofereceu para levar fusão na cabeça das crianças, porque
o filho de 11 anos, Guilherme, para trei- embora ela possa se sentir invadida e im-
nar na escolinha onde lecionava em So- potente, as zonas erógenas do corpo
rocaba (SP). “Disse que não tinha di- quando manipuladas dão prazer. E aí a
nheiro para pagar as aulas, mas ele disse personalidade pode ficar muito mexida.”
que levaria de graça”, conta Esmeralda.
Surpreendeu-se quando o menino co- Em respeito ao ECA, os nomes dos
meçou a aparecer com pequenas quan- personagens citados são fictícios
tias em casa — entre R$ 5 e R$ 10. “Fui
perguntar pro Bozó que dinheiro era
aquele e ele disse que era porque meu fi-
Carlos Moura/CB/D.A Press - 31/5/12
lho tinha ajudado a lavar o carro. Eu
mandei o Guilherme devolver. Quem
tem que dar dinheiro para ele sou eu.”
Ainda assim, não desconfiava de abusos.
O alerta veio de um sobrinho de Es-
meralda que havia treinado na escolinha
e não gostava de Bozó. Depois de per-
guntar e insistir, o garoto relatou os abu-
sos. Os encontros eram no haras em que
ocorriam as aulas e na casa do professor.
Participavam, além de Guilherme, outros
dois meninos da mesma idade. Bozó se
“
tocava enquanto mandava as crianças
fazerem sexo oral uma nas outras. Além
da prática, o treinador também obrigava Alguns jovens
os meninos a darem banho nele.
Essa forma de abuso, além de cruel, infelizmente se prestam a
não deixa marcas físicas. Os exames rea- algumas coisas para
lizados pelo Instituto Médico Legal não
encontraram sinais de violência sexual, poder jogar no time,
mas, para a titular da Delegacia da Mu- receber um pouco de
lher de Sorocaba, Ana Luiza Salomone, dinheiro e treinar.
não há dúvidas a respeito do crime.“Hoje Joana não acreditou quando o homem que frequentava a casa e dava aulas para seus filhos foi preso por abuso sexual
os juízes já entendem que a ausência de O responsável, o
lesões não significa que não houve o treinador, estão
abuso. Até porque algumas denúncias só do abuso em si, mas também as circuns- Nesse contexto, existe ainda a posição Descrença
são feitas depois de um tempo”, explica. tâncias de construção da masculinida- de autoridade dos professores. “É tudo totalmente errados e têm
Esse tempo é ganho, principalmente, de”, pontua. Quando os jovens atletas muito cruel, muito vil. Ele cresce na auto- A incredulidade tomou conta de Joa- que ir pra cadeia
pelo medo de os garotos admitirem a precisam sair de casa atrás da carreira, ridade para cima dessas crianças que, de na quando um homem preso por pedo-
”
agressão. A ministra da Secretaria de Di- tornam-se presas indefesas. “A ida para alguma maneira são indefesas e acredi- filia, ano passado, apareceu em um pro-
reitos Humanos, Maria do Rosário, expli- outras cidades, sob a responsabilidade tam que ele é capaz de realizar um so- grama da televisão sul-mato-grossense.
ca que, no caso de meninos, o relato pas- de outros adultos, é preocupante. Não nho”, explica a delegada Ana Luiza. “A “Não consegui acreditar”, lembra a ma- Romário,
sa ainda por tabus relacionados à sexuali- deixa de ser uma forma de agenciamento ameaça de não viabilizar suas carreiras nicure de cabelos oxigenados. O rosto deputado federal e ex-jogador
dade.“Estamos lidando com uma dimen- a busca do menino na periferia de uma serve como garantia de silêncio. Que me- era de José Martins, professor de futebol
são cultural perversa, em que o que está grande cidade ou no interior, para dizer nino não quer ser jogador de futebol de seus dois filhos, também considera-
colocado em questão não é só a situação que ele vai ser um craque em um time.” num clube grande?” do um amigo. “Fazíamos churrasco no
A série Quando a
infância perde o jogo foi
vencedora da Categoria
Impresso do Leia amanhã sobre a falta de
Fernando Lopes/CB/D.A Press
VI Concurso Tim Lopes
de Jornalismo
fiscalização nos clubes e escolinhas
Investigativo, realizado Visite o hotsite especial sobre a série de reportagens em
pela Agência de Notícias
da Infância (Andi) e www.correiobraziliense.com.br
Childhood Brasil, com o
apoio do Unicef, da OIT,
da Fenaj e da Abraji.
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