2. -2-
O direito público pós-moderno e a saudade de Deus1
Ricardo Dip2
―O que há com vocês? Vocês não se
agarram a nada, nada existe para vocês! (…)
Então quer dizer que é isso aí, que o diabo
não existe?‖3
1
Palestra para o Seminário Internacional de Investigação de
Filosofia do Direito e Ética que, dirigido por Félix Adolfo LAMAS,
se realizou na Universidade Federal do Rio Grande, em setembro
de 2010, tendo por tema ―Deus como Fundamento da Moral e do
Direito‖. A organização do seminário esteve a cargo de Maria de
Fátima Prado GAUTERIO, e seu comitê científico integrou-se por
Mauro RONCO (da Itália), Raúl MADRID (do Chile) e um terceiro, do
Brasil.
2
O autor é Desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo,
acadêmico de honra da Real de Jurisprudencia y Legislación de
Madri e membro do Instituto Jurídico Interdisciplinar da Faculdade
de Direito da Universidade do Porto.
3
Expressões da personagem Ivan Nikoláievitch, no romance de
BULGÁKOV, Mikhail. O mestre e Margarida, p. 51.
3. -3-
UMA HEGEMONIA LIBERAL
O termo ―direito público pós-moderno‖ com que se
intitula esta pequena meditação remete, logo à partida, a
algumas questões controversas.
O primeiro problema que se avista —e que não é nada
cômodo— diz respeito a uma possível acusação de o uso do
termo ―direito público pós-moderno‖, implicitando um padrão
jurídico globalizado, constituir um abuso da sinédoque.
De fato, a escolha referencial de um núcleo mais ou
menos fixo nas instituições do direito público de nossos
tempos ladeia não apenas a diversidade aparente, em ponto s
relevantes, das Constituições políticas de muitos Estados
contemporâneos —bastaria pensar, por brevidade de causa,
nos países islâmicos—, senão, ainda mais que isso, passa ao
largo de as fórmulas comuns de um demarcado núcleo duro do
direito público pós-moderno terem uma aplicação real muito
variada, conformando-se a peculiaridades dos países a que
correspondam4
.
A eleição de um modelo contemporâneo de direito
público aflige-se, pois, de algum (parece que) inevitável
etnocentrismo. Isso talvez tenha de ser assim, ainda que à
força de resignação, porque, ao revés, seria iniludível curvar-
se à dispersão dos ordenamentos jurídicos, o que, em rigor,
4
Cf. CHEVALLIER, Jacques. L’Etat post-moderne, p. 9.
4. -4-
inviabilizando a adoção de possível parâmetro constitucional
dominante em nossos tempos, concluiria num dissolvente
nominalismo.
A atual reconhecida hegemonia de um paradigma
político liberal —atrativo de notas recolhidas dos escombros
do socialismo real e acomodado ao espírito volátil da pós-
modernidade5
—, embora não se constitua no fim da História
proclamado por Fukuyama e, até mesmo, diversamente, não
exclua a possibilidade de que se produza, de futuro, uma
predominante heterogeneização dos modelos constitucionais,
não impede, entretanto, que se justifique, por agora, seu
recrutamento na condição de modelo referencial de vigência
política.
Objetar-se-á que se trata de um excesso de sinédoque
europeizante e, além disso, que, em alguma parte, já se tem
anunciado a morte da constituição política6
. Todavia, o
eurocentrismo possui aqui uma plausível justificativa de fato,
ao menos no que se refere aos povos do Ocidente extra-
europeu, já porque frequentemente esses povos estão
sujeitos, em todo o plano cultural e, nomeadamente, no da
5
Essa modelação do liberalismo diz respeito à adição indistinta
dos opostos, própria do mundo pós-moderno. Nesse sentido, Miguel
AYUSO, comentando um livro de Thomas Molnar —exatamente
intitulado L´hégémonie libérale (1992)— observou que, sob esse
regime hegemônico do liberalismo, no universo ―sometido por
entero a las leyes mercantiles dictadas por la sociedad civil
reinante, la tolerancia pregonada no es si no la imposición de un
consenso en el que todas las opiniones valen y se anulan a un
tiempo‖ (―La Hegemonia Liberal‖, in Verbo nº 307-308, p. 853).
6
―We have bad news for both sets of critics: the Constitution is
already dead. It died a long time ago‖ (WOODS, Thomas E. e
GUTZMAN, Kevin R.C. Who killed the Constitution?, p. 1).
5. -5-
política, ao espelhismo das experiências européias. Também
porque o processo vigente de globalização, impondo amplas
interações, tende a difundir o modelo político-jurídico que
prevalece nos Estados europeus, já por sua reconhecida
modelação política e econômica7
na prática impositiva da
globalização8
. E, se não fosse bastante, ainda caberia
apontar o notório e persistente caráter expansivo das
instituições da Europa9
, sua extraterritorialidade —ou talvez
melhor, sua metaterritorialidade— essencial10
, esse seu
caráter que bem se pode cogitar adquirido com a experiência
da vocação missionária de seus tempos áureos das Cruzadas e
das Descobertas.
Não é só: parte das características que se recolhem no
direito público atual está longe de configurar uma novidade e
também se reconhece no direito privado pós-moderno.
Com efeito, o divórcio entre a constituição legal da
sociedade e sua constituição real, divórcio que é uma das
7
Diz, a propósito, Cristina QUEIROZ: ―Os sistemas internacionais e
os sistemas internos não constituem unidades separadas, mas
integradas. Na verdade, o processo de ‗globalização‘ e
‗universalização‘ do Direito e, particularmente do direito
constitucional, criou, por cima da rede tradicional de Estados, um
‗sistema político integrado a vários níveis‘, que obedece a uma
regulação jurídica própria‖ (Direito Constitucional, p. 408).
8
Cf. GRASSO, Pietro Giuseppe. El Problema del Constitucionalismo
después del Estado Moderno, p. 111.
9
Abdico de referir, neste passo, causa brevitatis, as corretas
distinções entre a Europa cultural e a Europa geográfica.
10
Lê-se em Zygmunt BAUMAN: ―O caráter irritantemente etéreo e a
obstinada extraterritorialidade da ‗essência‘ solapam e corroem a
territorialidade sólida das realidades européias‖ (Europa, p. 13).
6. -6-
notas do direito público pós-moderno, já se achava nos
tempos modernos11
, e a instabilidade do direito público atual
é também encontrada no direito privado. Ainda que, de algum
modo, divisões jurídicas ambas influídas da cultura pós-
moderna participem de sinais comuns, e que algumas
características do direito público atual já se anuncia ssem na
época moderna, parece justificável o reconhecimento de uma
intensificação do influxo pós-modernista na órbita do direito
público de nossos tempos, seja em relação a seu antecessor
moderno, seja perante o direito privado12
. E se é assim, o
título desta meditação pode salvar-se.
11
Assim, a propósito, considerado, a título de exemplo, o caso do
Brasil, Alberto TORRES depois de dizer que uma das modernas
Constituições brasileiras era obra que ajeitava idéias estrangeiras
(de Locke, Montesquieu e Burke), observava , criticamente, que ―os
regimes não se podem dizer bons senão quando adequados à terra
e ao povo que regem, e apropriados aos seus problemas, interesses
e necessidades‖ (apud GENTIL, Alcides. As Idéias de Alberto
Torres, p. 224-5). No mesmo sentido, OLIVEIRA VIANNA, referindo-
se à história política brasileira desde o marco da Constituição
liberal de 1822, descrevia essa história como ―uma ronda contínua
e infatigável‖ em torno das teses do idealismo utópico, ―ideais
estranhos à nossa índole e ao nosso meio e —o que é mais— nem
sempre adaptáveis ao nosso povo e à nossa índole…‖ (O Idealismo
na Constituição, p. 19).
12
Deixando-se aqui de lado a incômoda tarefa de distinguir as
esferas do direito público e do direito privado, pode admitir-se
que o segmento privado do direito esteve, historicamente, mais a
salvo das instabilidades e dos novidadismos (a título de exemplo,
para a situação brasileira, cf. GALVÃO DE SOUSA, José Pedro.
Introdução à História do Direito Político Brasileiro, p. 87).
7. -7-
O NOME DA SAUDADE
Um outro problema inicial, para este nosso breve
estudo, diz respeito ao termo saudade13
.
É frequente a asserção de a palavra portuguesa
saudade não possuir equivalência vocabular em outros
idiomas. Esse registro já provinha de Dom Duarte, no Leal
Conselheiro:
―…porem me parece este nome de
ssuydade tam proprio, que o latym14
nem outro
linguagem que eu saibha non he pera tal
sentido semelhante‖15
.
13
Para logo, também se mostraria necessário explicar —e aqui o
faço com palavras de Jesué PINHARANDA GOMES— que ―a expressão
‗saudade de Deus‘ carece de um sujeito subentendido, que é
necessariamente a criatura, possivelmente a criatura humana,
porque só o homem sente saudade de Deus. E porquê? Porque Deus
é o verdadeiro Outro, perante o qual a saudade do homem se
afirma. Haver saudades de Deus é declarar ato de fé na realeza
divina‖ (―Saudade ou do Mesmo e do Outro‖, apud BOTELHO,
Afonso e TEIXEIRA, António Braz. Filosofia da Saudade, p. 394).
14
O que não exclui se calque a palavra lusitana saudade em um
nome latino (solitas, solitatis: CUNHA, Antônio Geraldo da.
Dicionário Etimológico Nova Fronteira, p. 708; ou ainda:
solitate(m) > suidade > soidade > soedade: FONTINHA, Rodrigo.
Novo Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, p. 1604; é o
que se lê em CAROLINA MICHAËLLIS de Vasconcellos: ―Todos os
que, entre nacionais e estrangeiros, dissertaram a respeito das
saudades, reconheceram como étimo evidentíssimo o plural latino
e feminino solitates‖ —A Saudade Portuguesa, p. 55).
15
Cf. BOTELHO, Afonso. D.Duarte, p. 89.
8. -8-
Dom Francisco Manuel de Melo e também Duarte Nunes
de Leão, no mesmo sentido, disseram que a saudade é uma
paixão de que só os portugueses sabem o nome16
e que, além
da portuguesa, não há língua em que esse sentimento se
possa explicar17
:
―Nós somos, na verdade, o único Povo
que pode dizer que na sua língua existe uma
palavra intraduzível nos outros idiomas, a qual
encerra todo o sentido da sua alma coletiva‖18
.
Contra isso, no entanto, já se erguera, a seu tempo a
autorizada voz de Carolina Michaëllis de Vasconcellos:
―Ilusória é a afirmação (já quase quatro
vezes secular), que mesmo o vocábulo Saudade
(…) não seja sabido dos Bárbaros estrangeiros
(estrangeiro e bárbaro são sinônimos), não
tenha equivalente em língua alguma do globo
terráqueo e distinga unicamente a faixa
atlântica, faltando mesmo na Galícia de além-
Minho‖19
.
16
MELO, Francisco Manuel de. ―Epanáforas de Vária História
Portuguesa‖, apud BOTELHO, Afonso e TEIXEIRA, António Braz.
Filosofia da Saudade, p. 19.
17
LEÃO, Duarte Nunes de. ―Origem da Língua Portuguesa‖, apud
BOTELHO, Afonso e TEIXEIRA, António Braz. Filosofia da Saudade,
p. 18.
18
PASCOAES, Teixeira de, apud BOTELHO, Afonso e TEIXEIRA,
António Braz. Filosofia da Saudade, p. 30.
19
VASCONCELLOS, Carolina Michaëlis de. A Saudade Portuguesa, p.
37.
9. -9-
Essa mesma filóloga que, nascida em Berlim, fez de
Portugal sua Pátria adotiva20
, alistou quatro vocábulos que,
nos povos habitantes da Península Ibérica, eram palavras já,
ainda que com alguma imperfeição21
, sinônimas da lusíada
saudade: o castelhano soledad, o asturiano senhardade, o
galego morrinha e o catalão anyoransa.22
Plenamente
concorde, porém, ao menos a palavra Sehnsucth23
dos alemães
punha bastante à mostra o equívoco da afirmação de muitos
no sentido de ser intraduzível o vocábulo saudade:
―Várias nações a representam —disse
António Sérgio— por um termo especial: o
galego tem soledades, soedades, saudades; o
catalão, anyoransa, anyoramento; o italiano,
desio, disio; o romeno, doru, ou dor; o sueco,
20
São de CAROLINA MICHAËLIS estas palavras, no discurso com que
agradeceu, em 19 de janeiro de 1912, sua recepção na
Universidade de Coimbra: ―…luto com o idioma, tão delicado e tão
difícil, desta minha muito querida pátria adotiva…‖. Esse texto
pode ler-se na página inaugural de suas Lições de Filologia
Portuguesa.
21
Há uma expressa reserva quanto a essa sinonímia. CAROLINA
MICHAËLIS observou que a palavra portuguesa saudade ganha sobre
seus sinônimos peninsulares em importância e em uso, mantendo,
além disso, a peculiaridade de um quid misterioso (A Saudade
Portuguesa, p. 38).
22
VASCONCELLOS, Carolina Michaëlis de. A Saudade Portuguesa, p.
38.
23
VASCONCELLOS, Carolina Michaëlis de. A Saudade Portuguesa, p.
38-9.
10. -10-
saknad; o dinamarquês, savn, e o islandês,
saknaor…‖24
.
Como quer que seja, uma coisa é sustentar o mito da
exclusividade expressiva desse vocábulo português saudade;
outra é, entretanto, que se suponha sem possível tradução o
seu conceito25
. O próprio Teixeira de Pascoaes, tão cioso da
singularidade lusitana da expressão, reconhecia que
―Os outros povos europeus sentem
naturalmente uma espécie de saudade que em
francês é souvenir, em espanhol recuerdo,
etc.‖,
embora ressalve que a saudade, ―nesses Povos, não toma a
alma e o corpo que adquire no sentir português‖ 26
, até porque
24
SÉRGIO, António, apud BOTELHO, Afonso e TEIXEIRA, António
Braz. Filosofia da Saudade, p. 61.
25
Diz, a esse respeito, Afonso BOTELHO: ―Depois do que Carolina
Michëllis disse, com a sua autoridade de filóloga eminente, a
respeito da suposta natureza intraduzível da saudade, já não se
pode partir do princípio que é um tesoiro único, entregue por
capricho da fortuna à rara sensibilidade dos portugueses‖ ( Da
Saudade ao Saudosismo, p. 27). Contrariamente, escrevera
Teixeira de PASCOAES que ―há ainda nos portugueses um
sentimento que é só deles…‖ (apud BOTELHO, Afonso e TEIXEIRA,
António Braz. Filosofia da Saudade, p. 25).
26
PASCOAES, Teixeira de, apud BOTELHO, Afonso e TEIXEIRA,
António Braz. Filosofia da Saudade, p. 30. Prossegue Pascoaes:
―Souvenir ou recuerdo são apenas um elemento da Saudade, cujo
perfil é inconfundível. E por isso, ela se exteriorizou numa palavra
portuguesa que não tem equivalente nas outras línguas‖ (p. 26).
Não diversamente: ―Todas as línguas têm as suas palavras
intraduzíveis. São elas que mostram o que há de original e
característico na alma dum Povo. (…) Para Garret, existe,
portanto, na Saudade qualquer coisa que só pertence aos
Portugueses‖ (p. 69).
11. -11-
a saudade, na ideologia de Pascoaes, constituiria uma nova e
só portuguesa religião, um misto lusíada de paganismo e
cristianismo, formador de uma apontada ―igreja lusitana‖,
própria do espírito ―naturalista e místico‖ do povo de
Portugal que esse autor opinava ―não foi, não é, nem poderá
ser católico‖27
.
Pode acaso entender-se que a palavra portuguesa
saudade não corresponda, exatamente, aos termos verbais
com que, em outros idiomas, se trate de vertê-la28
. Mas já
será questão de todo diversa negar29
, à margem da discussão
27
PASCOAES, Teixeira de, apud BOTELHO, Afonso e TEIXEIRA,
António Braz. Filosofia da Saudade, p. 34. Lê-se ainda em Teixeira
de PASCOAES: ―Eu só quero o que, por natureza, nos pertence. As
velhas tradições religiosas da nossa Raça não são católicas. A
primeira igreja lusitana viveu independentemente de Roma
durante muitos séculos. (…) O Catolicismo é verdadeiramente
espanhol. De resto, eu não odeio o Catolicismo, como não odeio
nenhuma religião. Todas representam formas, mais ou menos
imperfeitas, duma viva tendência eterna e superior da alma
humana‖ (p. 101).
28
Traduções, quase sempre, referidas ao vocábulo nostalgia, que,
realçando a nota de memória triste, expressa apenas alguma
equivalência tangente, no limite, com a idéia mais rica de saudade
(cf., por muitos, SPITZER, Carlos. Dicionário Analógico, p. 278),
deixando, à margem, não raro, a nota do saudoso desejo de
regresso.
29
ANTÓNIO SÉRGIO parece ver nessa negativa um espírito
xenófobo: ―Como poderia um lusitano do século XX conceber que
se pudesse ser estrangeiro e sentir saudades? Creio mesmo que
somos demasiados generosos em conceber que se possa ser
estrangeiro. Como é que diabo se pode ser estrangeiro? Como é
que diabo se pode ser, já não digo persa, mas francês, inglês ou
12. -12-
sobre os vocábulos com o que possam a saudade traduzir os
variados idiomas, que o movimento regressivo saudoso30
não
seja um sentimento universal.
A circunstância de a saudade admitir-se tão bom
hóspede da alma lusitana31
e, além disso, de ser mesmo ela
―quase um lugar comum na sensibilidade portuguesa‖ 32
, não é
obstáculo a sua compreensão universal. António Sardinha,
opondo-se embora ao movimento saudosista português33
de
seu tempo, deixou registro, em alguns poemas, de uma
compreensão extralusitana do sentimento saudoso:
lusitano?‖ (apud BOTELHO, Afonso e TEIXEIRA, António Braz.
Filosofia da Saudade, p. 60).
30
A saudade não é vontade reversiva (mero retorno), mas dinâmica
de regresso: implica ―o movimento de busca de um começo, o qual
pode até ser o começo dos começos, a origem ou princípio
cosmogônico‖ (BOTELHO, Afonso. Teoria do Amor e da Morte, p.
139).
31
―A saudade é um conhecimento especifico português, ‗de
experiência feito‘‖ (COSTA, Dalila Pereira da. ―Saudade, Unidade
Perdida, Unidade Reencontrada‖, apud BOTELHO, Afonso e
TEIXEIRA, António Braz. Filosofia da Saudade, p. 351).
32
BOTELHO, Afonso. Da Saudade ao Saudosismo, p. 28. Refere esse
autor, porém, o caráter pouco sistemático e problemático da
reflexão lusíada sobre a saudade.
33
Não se perca de vista o registro do jesuíta António de
MAGALHÃES acerca da oportuna oposição de António Sardinha ao
movimento saudosista liderado por Teixeira de Pascoaes, cujo
subjetivismo denunciou, ao par de identificar a ideologia
sentimentalista da saudade a uma conjura doentia de racionalismo
e imaginação (apud BOTELHO, Afonso e TEIXEIRA, António Braz.
Filosofia da Saudade, p. 250-1).
13. -13-
―Essa palavra ‗saudade‘,
se um português a inventou,
foi em Toledo, —jurava!—
que ele a chorar a soltou!‖
(…)
―Mora a Saudade em Toledo,
—onde eu a fui encontrar?!
Fez a viagem do Tejo,
—custou-lhe pouco a chegar!‖ 34
.
E ainda:
―Ó corte do Silêncio e da Tristeza,
solar da Dona-Infanta adormecida,
—seja a Saudade embora portuguesa,
quem sabe lá se foi aqui nascida?!‖35
.
34
SARDINHA, António. ―Canção de Toledo‖, in Na Corte da
Saudade, p. 21, 22 e 26. Averbe-se que a Corte da Saudade é a
própria cidade espanhola de Toledo (―Na Corte da Saudade, que é
Toledo…‖: p. 18).
35
SARDINHA, António. ―Na glória da tarde‖, in Na Corte da
Saudade, p. 81.
14. -14-
O ENVELHECIDO BON SAUVAGE
Não é fácil apreender, sobretudo em nossos
contemporâneos ares brumosos, a realidade volátil do direito
público pós-moderno. Parte-se, é claro, da evidência de que
a pós-modernidade jurídica é uma parcela especializada da
totalidade da cultura pós-moderna; e dessa cultura, pode
dizer-se ser algo que veio, é certo, num tempo depois da
modernidade, mas que, por outro lado, longe de ser sua
negação, parece, em tantos aspectos, uma sua radicalização
consequencial, um hiper-modernismo que, ao mesmo tempo,
descortina paradoxais traços de anti-modernismo36
.
Por isso, não surpreende que, na companhia de que
quem julgue o pós-moderno um regresso ao tempo zero37
, haja
também quem a ele se refira como uma tardomodernidade38
,
com apoio no fato de que a autônoma liberação moderna da
rebeldia redundou no mais extremo direito de rebelar-se até
mesmo contra a própria rebeldia39
. Essa espécie de
36
Cf. AYUSO, Miguel. ¿Después del Leviathan?, p. 72; CHEVALLIER,
Jacques. L’État post-moderne, p. 15.
37
―…essa idéia de uma cronologia linear é perfeitamente
‗moderna‘, pertence tanto ao cristianismo, quanto ao
cartesianismo e ao jacobinismo: porque inauguramos algo
completamente novo devemos voltar ao tempo zero, ainda que
para isso seja necessário atrasar as agulhas do relógio‖ (LYOTARD,
Jean-François. La Posmodernidad, p. 90).
38
P.ex., FORMENT, Eudaldo. Lecciones de Metafísica, p. 37.
39
Cf. GLUSBERG, Jorge. Moderno Post Moderno, p. 124.
15. -15-
normalização da idéia de rebelar-se traduz-se em que o
antigo e recorrente non serviam se resuma, agora, na idéia
de que tudo serve; embora seja verdade que esse celebrizado
anything goes seja também indicativo de que, tudo valendo,
nada vale. Assim, o relativismo atingiu seu ápice: a pós-
modernidade é uma adição indistinta de opostos; é uma
síncrese do bem e do mal, do verdadeiro e do falso, do ser e
do não-ser, sem distinção possível40
. O relativismo agora
ostenta-se por único absoluto com direito de cidadania41
.
A pós-modernidade anuncia-se, pois, como o desprezo
ou fim de todos os fins, o caminho para o nada42
: fim da
razão, fim da história, fim da liberdade, fim dos grandes
relatos43
. Essa agnosia dos fins plasma o direito público pós-
moderno; com ela, tanto a erosão da soberania do Estado44
,
40
Cf. DIP, Ricardo. ―Introdução‖, in Tradição, Revolução e Pós-
Modernidade, p. XIV.
41
Cf. DUQUE, Félix. Postmodernidad y Apocalipsis, p. 51-2.
42
―O pós-modernismo está associado à decadência das grandes
idéias, valores e instituições ocidentais —Deus, Ser, Razão,
Sentido, Verdade, Totalidade, Ciência, Sujeito, Consciência,
Produção, Estado, Revolução, Família. Pela desconstrução, a
filosofia atual é uma reflexão sobre ou uma aceleração dessa
queda no niilismo‖ (SANTOS, Jair Ferreira dos. O que é pós-
moderno. p. 72).
43
Cf. FORMENT, Eudaldo. Lecciones de Metafísica, p. 42-50;
GIDDENS, Anthony. Sociologia, p. 573.
44
Observa Zygmunt BAUMAN que o poder do Estado pós-moderno
tende a um espaço global politicamente descontrolado, ―enquanto
a política [do Estado] —a capacidade de decidir a direção e o
objetivo de uma ação— é incapaz de operar efetivamente na
direção planetária, já que permanece local‖ (Tempos Líquidos, p.
8). Com rigor lógico, diz Patricio RANDLE que todo recorte ou
16. -16-
quanto a incerteza e instabilidade das diretrizes45
e das leis
políticas46
, empurram o direito público atual, chamado a
responder ao hiper-individualismo contemporâneo e a suas
incessantes demandas contraditórias, a dissociar-se da
sociedade a que deve regência e a contribuir, de modo
decisivo, para a destruição das interações sociais47
e das
identidades comunitárias48
(sucedidas por livres escolhas de
identidade49
).
erosão da soberania política é, estritamente, inaceitável, porque
―los Estados son soberanos o no lo son, serán colonias, serán
factorías, serán títeres pero no serán verdaderos Estados‖
(Soberanía Global, p. 85).
45
Consequente com a erosão da soberania estatal e fruto remoto
da perseverante incerteza do direito público pós -moderno, tem-se
à vista, em muitos lugares, o caso de um direito fundamental (das
crianças) à vida repudiar-se, de súbito, pela fundamentalização do
direito à liberdade de matar crianças não-nascidas. Surpreende
que, nesse quadro, pouco ou nada se ouça da tópica da vedação do
retrocesso em matéria de direitos fundamentais.
46
Ainda uma vez o caso brasileiro, em gráfico exemplo, neste
passo, da incerteza e instabilidade de seu direito público: data de
outubro 1988 a mais recente das Constituições do Brasil; pouco
tempo depois de completar 21 anos de existência, esse Código
Político teve aprovada sua Emenda nº 62.
47
Tendência essa agravada pelos simulacros virtuais: cf. BAUMAN,
Zygmunt. Identidade, p. 31.
48
CHEVALLIER, Jacques. L’État post-moderne, p. 15.
49
―Se reconoce así la idea de identidad electiva, se acepta que la
voluntad crea la minoría aún contra la historia, la biología o la
cultura‖ (SEGOVIA, Juan Fernando. ―El Difuso Personalismo‖, p.
239). ―A construção da identidade assumiu a forma de uma
experimentação infindável. Os experimentos jamais terminam.
Você assume uma identidade num momento, mas muitas outras
17. -17-
O resultado é que o bon sauvage, envelhecido, não
sabe mais, por agora, em que tribo se formou: o homem sem
fim se tornou essencialmente não-social; esse homem
dessocializado se converteu num indivíduo sem rosto, porque
é um indivíduo sem passado, e num indivíduo sem alma,
porque é um indivíduo sem futuro50
. A ética e o direito do
homem moderno, imaginando um contrato social, supunham
ao menos uma história, fictícia, imaginária, mas história;
agora, a ética e o direito de indivíduos absolutos e dissociais
são imposições de ocasião, são prescrições de um cotidiano
perpétuo, alheio de todo passado possível51
: daí que os
direitos políticos tendam a oscilar com as variações dos
mercados, e os direitos sociais inclinem-se a reduzir-se à
mera garantia de oportunidades disponíveis e vantagens de
uns sobre outros52
.
ainda não testadas estão na esquina esperando que você as
escolha‖ (BAUMAN, Zygmunt. Identidade, p. 91). Cf. ainda HALL,
Stuart. A Identidade Cultural na Pós-Modernidade, p. 86-8.
50
E quem não tem esperança de futuro, suposto o acerto de Dante,
já se acha no inferno: ―Lasciate ogni speranza voi ch‘entrate‖.
51
Cf. BAUMAN, Zygmunt. Ética Pós-Moderna, p. 97 et sqq.;
CONNOR, Steven. Cultura Pós-Moderna, p. 42-7.
52
BAUMAN, Zygmunt. Identidade, p. 34-5; Tempos Líquidos, p. 10.
18. -18-
A MEMÓRIA SOBREVIVA
A recusa da história e a negação de todos os fins
humanos —individuais e sociais, terrenos e sobrenaturais—
renegam a identidade dos povos e dos indivíduos53
. Ignoram-
lhes o passado, quando não os atacam, recusam-lhes o futuro.
A negação dos significados implica o menosprezo de suas
fontes e metas54
: o homem típico da sociedade pós-moderna é
nascido no presente e persevera como presente; é o homem
fulmíneo, sem ontem, nem amanhã: é o homem que se gloria
na desesperança do futuro55
. E, por isso mesmo, seu direito
não pode ser mais do que uma imposição hic et nunc, sem
metas possíveis, imperações performativas tragicamente
apoiadas na labilidade das circunstâncias: os Códigos
políticos estão em crise56
: oscilam de tempos em tempos, sem
poder referir-se a fim nenhum e sem reconhecer âncora
alguma numa história que não existe:
―…la tipicità di questo momento post-
moderno plasmato da forze nate oggi per
53
CHEVALLIER, Jacques. L’État post-moderne, p. 13 e 15. BAUMAN,
Zygmunt. Identidade, passim. DE MATTEI, Robert. De l’utopie du
progrès au règne du chaos, p. 124.
54
Cf. CASTELLS, Manuel. O Poder da Identidade, p. 22-8.
55
―O sujeito pós-moderno é a glorificação do ego no instante, sem
esperança alguma no futuro‖ (SANTOS, Jair Ferreira dos. O que é
pós-moderno?, p. 105).
56
Cf., brevitatis causa, CASTELLANO, Danilo. Orden Ético y
Derecho, p. 97-110.
19. -19-
ordinare l‘oggi secondo le esigenze
dell‘oggi‖57
.
O direito público pós-moderno da Europa de nossos
dias58
, divorciado da sociedade civil, desembocou, à força de
rigorosa lógica, não, propriamente, na indiferença com a
história e as crenças milenares de sua gente, mas na
militante aversão à Cristandade de seu passado —o que aflige
a identidade cultural tanto de crentes, quanto de não-
crentes59
.
Não há termo médio possível entre a imanência e a
transcendência: aquela é já, por definição, uma contra-
transcendência. A idéia do homem ut imago Dei —ordenado de
maneira teonômica e teotrópica—, essencialmente decisiva na
Cristandade medieval, é incompatível em gradação máxima
com a liberdade autista do imanentismo60
a dissolver regras
de agir numa egótica arbitrariedade humana; o laicismo não
é, porque não pode ser, uma espécie de neutralidade 61
; é,
antes, uma direta negação da transcendência, é uma teofobia
que, no mundo ocidental, faz-se cristofobia, valendo-se de
ativa marginalização, praticante descrédito e combatente
57
GROSSI, Paolo. L’Europa del Diritto, p. 255.
58
Cf. DE GOMIS, Francisco. ―Las verdaderas raíces de Europa y la
Constitución europea‖, passim.
59
Cf. WEIGEL, George. Política sin Dios, p. 101.
60
Cf. SAYÉS, José Antonio. Antropología y Moral, p. 224.
61
Cf. CASTELLANO, Danilo. Orden Ético y Derecho, p. 39-58;
NEGRO, Dalmacio. ―Iglesia, Estado: Génesis de la Europa
Contemporánea‖, passim.
20. -20-
desqualificação62
de tudo quanto seja o cristianismo autêntico
e de todos quantos sejam os genuínos cristãos63
.
Mas, o repúdio do sentido histórico64
—a repulsa do
caráter do povo65
— tem agora à sua volta algo que se tem dito
um mal-estar da pós-modernidade. A amnésia coletiva que se
esperaria ser fruto bem semeado para um mundo sem história
já não parece uma falta irreversível de lembranças: ao
anúncio da morte definitiva do absoluto, sucedeu um
crescente desmentido dos fatos.
62
Cf. DE JAEGHERE, Michel. Enquête sur la christianophobie, p.
18-84.
63
―…nossos jovens são massacrados nas escolas com uma
sistemática pregação anticatólica, cega, incoerente, violenta e
totalitária, que se nega até a examinar tudo de bem que a Igreja
deixou à Humanidade, e continua a executar‖ (AQUINO, Felipe.
Uma História que não é contada, p. 252).
64
―Entende-se por identidade a fonte de significado e experiência
de um povo‖ (CASTELLS, Manuel. O Poder da Identidade, p. 22).
65
Cf. GIDDENS, Anthony. Sociologia, p. 568.
21. -21-
A SAUDADE DE DEUS
O ―regresso do absoluto‖ é uma nota dissonante na
ideologia cultural pós-moderna, um acontecimento que, assim
se diz, causa embaraço a muitos militantes da pós-
modernidade66
, que haviam acreditado na definitiva morte de
Deus e de todos os megarrelatos fundacionais, medindo-se,
então, vagamente o mundo pelo desmedido amor próprio de
cada indivíduo67
, embora também este posto em perigo de
morte68
e sob o risco de modelar-se como um simulacro da
realidade69
.
66
―…(Josef) Weiler sugere que os filhos de 1968, agora em plena
maturidade e já próximos da aposentadoria, se sentem
contrariados e confusos pelo fato de que, em muitos casos, seus
filhos se fizeram cristãos. Os que cresceram como cristãos, mas,
ao final de sua adolescência ou em sua primeira juventude,
rechaçaram a fé e a prática religiosa, estão perplexos e até
mesmo indignados pelo fato de que seus filhos tenham voltado a
Jesus Cristo e ao Cristianismo para preencher o vazio de suas
vidas‖ (WEIGEL, George. Política sin Dios, p. 86).
67
Um indivíduo ―informatizado, leve e sem conteúdo‖, um
indivíduo ―sincrético‖, diz Jair Ferreira dos SANTOS, cujo lema
pode bem ser este: ―Eu me amo, eu me amo, eu não consigo viver
sem mim‖ (O que é pós-moderno?, p. 101-5).
68
Lia-se, em 1968, em um muro da Universidade de Sorbonne:
―Deus morreu, Marx morreu e eu próprio não me sinto muito bem‖
(D‘ANGELO RODRÍGUEZ, Aníbal. Aproximación a la Posmodernidad,
p. 157).
69
―(…) ‗Que criança linda‘ —disse a amiga à mãe da garota. —‗Isto
é porque você não viu a fotografia dela a cores‘ —respondeu a
mãe‖ (SANTOS, Jair Ferreira dos Santos. O que é pós-moderno?, p.
12).
22. -22-
Achou-se o vazio humano: com a negação da história e
a recusa da esperança, não há mais possível resposta a
nenhuma das questões que se propõem e sempre se
apresentaram, de modo espontâneo, a todos os homens70
. Por
isso, a solidão antropolátrica71
do homem pós-moderno típico,
a quem se inibe dar resposta alguma às interrogações
fundamentais de todos os tempos, é uma crise de identidade
antropológica72
.
70
―¿Qué sabemos de nosotros mismos y cómo lo sabemos? Habiendo
alzado nuestra mirada hasta las últimas alturas, habiendo allí
avistado nuestro fin y nuestro origen, surge hondo e íntimo este
interrogante: ¿qué soy yo? La realidad del mundo, la existencia de
Dios y la inmortalidad del alma, han formado siempre como la
triple dimensión del fundamento de la vida religiosa y moral de
todo pueblo, de toda civilización, en todo tiempo. Las tres
verdades forman la sustancia misma del patrimonio fundame ntal
del conocimiento espontáneo, y dan la medida esencial del vivir y
del obrar humanos‖ (CARDONA, Carlos. Metafísica de la Opción
Intelectual, p. 78). CHEVRIER (em Réflexions sur l’agonie) narrou
sua experiência pessoal com as interrogações fundamentais,
quando, em pleno estado agônico, se indagava: ―… ‗Est-ce que
j‘existe ou non? Suis-je dans un autre monde ou sur la terre?‘. Et
j‘arrivais a cette conclusion: ‗j‘existe parce que je souffre‘. (…)
Quand, par la douleur, je fuis amené à admettre mon existen ce,
j‘entendais tous les bruits qui se passaient autour de moi; je
reconnaissais le timbre des voix —comme dans un rêve —sans
pouvoir manifester en rien mon approbation ou ma réprobation‖
(apud BON, Henri. La mort et ses problèmes, p. 32).
71
Cf. GRASSO, Pietro Giuseppe. El Problema del
Constitucionalismo después del Estado Moderno, p. 29.
72
Cf. BASSO, Domingos M. Los Fundamentos de la Moral, p. 139;
HALL, Stuart. A Identidade Cultural na Pós-Modernidade, p. 9.
23. -23-
Todavia, a estratégia da compulsiva ocupação com o
―agora‖ —o artifício da obsessão com o instante persistente,
para, à força de concertado silêncio, tornar de fato
irrelevantes as questões fundamentais73
— não teve poder nem
perseverou o suficiente para que a natureza humana deixasse
de ser o que ela é: os homens pós-modernos, eles também,
demandam por segurança74
, anseiam pelas respostas que o
presentismo contemporâneo é essencialmente incapaz de
encontrar e fornecer.
Daí a desenvoltura crescente do que se tem designado,
com uma nota comum de desqualificação75
, de integrismo,
zelotismo, fundamentalismo etc.: vale dizer, movimentos de
regresso do absoluto, nem todos alimentados apenas de
verdades e dirigidos, pois, ao absoluto real, porquanto, o que
é manifesto, são movimentos muito variados e, não raro,
opostos entre si. O fato, entretanto, à margem dessas
denominações acompanhadas de carga pejorativa, é que esses
perseverantes e crescentes movimentos de regresso do
absoluto são o grande mal-estar da pós-modernidade76
e
constituem um dos mais eloquentes testemunhos do fracasso
do imanentismo77
.
73
Cf. BAUMAN, Zygmunt. Identidade, p. 79.
74
Cf. LIPOVETSKY, Gilles. Les temps hypermodernes, p. 90.
75
Cf. SÁNCHEZ PARODI, Horacio M. El Fundamentalismo en la
Política, p. 86.
76
Para aqui perfilhar a expressão de BAUMAN, Zygmunt. O Mal-
Estar da Pós-Modernidade, p. 226-30.
77
Lê-se em Anthony GIDDENS: ―A força do fundamentalismo
religioso é mais um sinal de que a secularização não triunfou no
mundo moderno‖ (Sociologia, p. 447).
24. -24-
Com efeito, em uma cultura dominantemente apoiada
na certeza única da indeterminação e da incerteza, o desejo
de que as condutas individuais e as instituições da sociedade
se harmonizem com normas objetivas transcendentes78
põe à
luz o anseio de um regresso do passado e de uma esperança
do futuro, ou, para adotar aqui uma emblemática referência
de Giddens, o anelo de que alguma tradição venha a regressar
de modo tradicional79
.
Talvez esse movimento regressista, o anseio do
absoluto para dar razão de ser — recuperando-lhes a origem e
o fim— às condutas individuais e sociais, possa melhor
entender-se com o subsídio de uma verdadeira filosofia da
saudade80
.
Foi Leonardo Coimbra quem disse que o homem só se
pode compreender como uma saudade de Deus81
, porque se
78
Nesse sentido, Manuel CASTELLS conceitua fundamentalismo ―a
construção da identidade coletiva segundo a identificação do
comportamento individual e das instituições da sociedade com as
normas oriundas da lei de Deus, interpretadas por uma autoridade
definida que atua como intermediária entre Deus e a humanidade‖
(O Poder da Identidade, p. 29).
79
GIDDENS, Anthony. Sociologia, p. 447.
80
Antonio de MAGALHÃES afirmou a inserção da saudade na linha
tradicional do pensamento humano, nomeadamente na trilha de
S.Tomás de Aquino (―Da História à Metafísica da Saudade‖, apud
BOTELHO, Afonso e TEIXEIRA, António Braz. Filosofia da Saudade,
p. 264).
81
COIMBRA, Leonardo, ―O Mistério‖, apud BOTELHO, Afonso e
TEIXEIRA, António Braz. Filosofia da Saudade, p. 166.
25. -25-
sente com ela, na expressão de Pascoaes, um regresso ao
paraíso. Esse regresso saudoso, porém, não é um sentimento
reacionário82
, porque se, com a saudade, o passado se
recupera83
, isso se dá como fator essencial do progresso84
. O
passado, disse Xavier Zubiri, não sobrevive como realidade
subjacente, pois, enquanto realidade, o que já passou se
perdeu de modo inexorável. Todavia, prossegue esse autor,
deixar de ser realidade não é o mesmo que deixar de ser: o
passado é a sobrevivência das possibilidades que definem o
presente85
.
Por isso, a saudade de Deus, enquanto sentimento
regressivo, sendo lembrança da origem divina do homem e do
mundo e aprendizado dos fins inscritos no encanto das
coisas86
, é também a busca de um novo começo sob a reitoria
de Deus: o homem, com a saudade, aspira sempre à
companhia do que lhe é necessário87
; a saudade não é
retorno, porque nela não se trata de mera volta exaustiva à
82
Diversamente, quanto ao fundamentalismo em geral, Manuel
CASTELLS, Manuel (O Poder da Identidade, p. 29) e GIDDENS,
Anthony (Sociologia, p. 568).
83
BOTELHO, Afonso. Da Saudade ao Saudosismo, p. 124.
84
Cf. SANTOS, Delfim, ―Saudade e Regresso‖, apud BOTELHO,
Afonso e TEIXEIRA, António Braz. Filosofia da Saudade, p. 244.
85
ZUBIRI, Xavier. Naturaleza, Historia, Dios, p. 377-8.
86
Sobre a idéia do ser encanto ser, cf. BOTELHO, Afonso. Teoria
do Amor e da Morte, p. 143-8.
87
MAGALHÃES, António. ―Da História à Metafísica da Saudade‖,
apud BOTELHO, Afonso e TEIXEIRA, António Braz. Filosofia da
Saudade, p. 266.
26. -26-
origem88
; é regresso a um passado ―que dá sentido e conteúdo
ao futuro‖89
; é o sentimento da ausência do ser, sentimento
de privação da perfeição devida90
, cuja recuperação se
propõe.
Convergem na saudade um sentido passadista —da
memória do ser e do amor— e um sentido futurante: um apego
à vida, um compromisso moral de busca e resistência91
. Os
homens pós-modernos dessocializados sentem falta da
companhia de um Outro que lhes revele o sentido da
contingência não apenas individual, mas também política. Um
Outro que seja capaz de ensinar-lhes a regulação natural das
instituições sociais, e por isso, sua saudade do Outro só pode
ser um ato de fé na maestria e realeza do Deus verdadeiro92
,
uma realeza magistral que, por sua mesma definição, deve
reinar no indivíduo e na sociedade. A verdadeira saudade de
Deus é, enfim, também a memória e a esperança de que, em
palavras de S.Pio X,
88
―Retornar contempla apenas o movimento de volta… Ao passo
que o ato de regressar (…) mantém o movimento de busca de u m
começo…‖ (BOTELHO, Afonso. Teoria do Amor e da Morte, p. 139).
89
Cf. SANTOS, Delfim, ―Saudade e Regresso‖, apud BOTELHO,
Afonso e TEIXEIRA, António Braz. Filosofia da Saudade, p. 245.
90
Cf. MAGALHÃES, António. ―Metafísica e Saudade‖, apud
BOTELHO, Afonso e TEIXEIRA, António Braz. Filosofia da Saudade,
p. 275.
91
LEÃO, Francisco da Cunha. ―Saudade e Acção‖, apud BOTELHO,
Afonso e TEIXEIRA, António Braz. Filosofia da Saudade, p. 320-1.
92
PINHARANDA GOMES, Jesué. ―Saudade ou do Mesmo e do Outro‖,
apud BOTELHO, Afonso e TEIXEIRA, António Braz. Filosofia da
Saudade, p. 394.
27. -27-
―…a cidade não será construída de outra
forma senão do modo pelo qual Deus a
construiu; a sociedade não será edificada se a
Igreja não lhe lançar as bases e não dirigir os
trabalhos; não, a civilização não mais está para
ser inventada nem a cidade nova para ser
construída nas nuvens. Ela existiu, ela existe;
é a civilização cristã, é a cidade católica‖93
.
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