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Jorge Nunes Barbosa
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A CIDADE
Abril, 2013
Filosofia
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Pela primeira vez,
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naquela cidade, os dentes
Imprevisibilidade e Fatalidade I
de leite destinados a cair
na época das colheitas,
caíram na época das
sementeiras, que era
esse o tempo que
decorria na altura
FRONTEIRAS E
AUTOMATISMOS
OS HIBERNÁRIOS
Os Hiber nários viviam numa cidade
muralhada. No interior da muralha, alguém
tinha colocado uns botões e interruptores de
cores diversas. Sempre que um Hibernário
tocava num desses botões, algo acontecia, ou
acontecia nada. Por outro lado, as muralhas
eram móveis. Quando um grupo de
Hibernários se deslocava para os limites da
cidade, as muralhas afastavam-se para o
exterior, e, quando os Hibernários voltavam a
suas casas, as muralhas retomavam o seu lugar
original. Esta forma de as fronteiras se
definirem, fazia com que os Hibernários
nunca conseguissem sair da sua cidade que, a
cada momento, se redefinia em função dos
movimentos dos cidadãos. Assim era a cidade
dos Hibernários. Estes formavam um povo
inteligente e uma sociedade organizada, mas,
na sua ânsia de mostrar inteligência e
organização, não conseguiam deixar de falar.
Num dia em que a chuva os impedia de sair
de casa, descobriram todos ao mesmo tempo
que falar era uma manifestação de
inteligência. Com medo de perder a
inteligência, como acontecia à expansão da
cidade sempre que voltavam a casa, havia
grupos de Hibernários a falar, de dia e de
noite. Formavam-se mesmo piquetes com essa
missão específica.
Como se verá, não
só Mor continuava a
considerar-se o
único inteligente da
cidade, como era o
único que só falava
no falatório e só
meditava no
meditório.
Curso de Artes Visuais, Filosofia | Jorge Nunes Barbosa | 2013
2. A CIDADE!
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Imprevisibilidade e Fatalidade II
FRONTEIRAS E AUTOMATISMOS
Na cidade dos Hibernários, havia uma
realidade persistente e garantidamente
real: o ruído imparável das vozes que,
nem por um segundo, deixavam de
soar e de ecoar no interior das
muralhas. Completamente esgotados
por aquele vozear permanente, os cães
desistiram de ladrar e os gatos de
miar. Foram os primeiros. Seguiramse-lhes os pardais que deixaram de
piar, as galinhas de cacarejar e os
papagaios de papaguear. Os restantes
animais seguiram, mais tarde, o
exemplo dos cães, dos gatos, dos
pardais, das galinhas e dos papagaios.
O último e o mais teimoso foi o burro
que, finalmente, deixou de zurrar. E
fez-se silêncio nos ouvidos dos
Hibernários. É que eles já não se
ouviam uns aos outros, e não havendo
quem ladrasse, ou miasse, ou piasse,
ou cacarejasse, ou papagueasse, ou
zurrasse, não lhes era dado ouvir o
que quer que fosse.
Concluíram os Hibernários que
esse silêncio de todos os animais tinha
subtraído a toda a bicharada a pouca
inteligência que lhes restava. Certos de
que, se se calassem, o mesmo
aconteceria com eles, aumentaram o
número de cidadãos falantes em cada
piquete e, por conseguinte, o número
de horas de falatório para cada um, de
for ma a manter ininterrupta e
altissonante a já enorme vozearia
humana.
Entretanto, um problema de
g rande magnitude ocupava os
Hibernários, quando não estavam a
trabalhar nos campos, ou na sua hora
de descanso, ou a desempenhar
funções nos piquetes de falatório. E a
pergunta era repetida vezes sem
conta: para que serviriam aqueles
botões e interruptores que ali ficaram
esquecidos, ou ali foram colocados
para os embaraçar?
Um dia, uma criança que
acompanhara o seu pai na tarefa de
contemplar os botões e os
interruptores, inadvertidamente,
pousou a mão num interruptor. Um
segundo não tinha ainda passado e já
a mão direita do pai esbofeteava o
desgraçado. Pela primeira vez,
naquela cidade, os dentes de leite
destinados a cair na época das
colheitas, caíram na época das
sementeiras, que era esse o tempo que
decorria na altura. E uma importante
conclusão foi retirada do fenómeno:
aquele interruptor servia para
antecipar a substituição dos dentes de
leite das crianças. Mais tarde, alguém
haveria de chamar àquilo a fada dos
dentes. Mas ainda havia muito
caminho para percorrer. Antes disso,
ainda seria necessário que o
Hibernário, que sobressaía de todos os
outros no falatório por falar mais alto
e durante mais tempo sem respirar,
ousasse, como ousou, tocar no
interruptor. Não aconteceu nada. Os
Hibernários esperaram mais um
pouco. E nada. Como se aproximava
a hora de os que agora estavam em
contemplação formarem o próximo
piquete de falatório, deixaram o
problema sem solução definitiva para
o dia seguinte. E foram, silenciosos e
pensativos, para o falatório, onde,
mais uma vez, a língua se lhes
libertou.
No dia seguinte, voltaram à zona
da contemplação dos botões e
interruptores. Mor (era assim que se
chamava o Hiber nário com
qualidades falantes acima da média) já
tinha matutado no assunto. A sua
ideia era a de que a criança tinha
ligado o interruptor quando lhe tinha
tocado e os dentes lhe saíram pela
boca fora, e que ele, Mor, quando lhe
tocou, afinal tinha-o desligado. Daí
que nada tivesse acontecido. Estava,
portanto, agora de novo na posição de
poder ser ligado. Com um tremor
nervoso, que lhe percorria o corpo,
pousou a mão no interruptor e fez
força. Clic. Suspendeu a respiração.
Nada. Não aconteceu nada.
O vizinho do lado sussurrou-lhe
ao ouvido: “O que é que queres que
aconteça? Tu já não tens dentes de
leite, e até dos outros já tens poucos,
como queres que isso faça alguma
coisa?” Mor ficou de tal modo
irritado, que se não se desse o caso de
o seu vizinho já estar preparado para
todas as eventualidades, e se não se
tivesse prudentemente afastado de
cena, um novo par de dentes, agora
não de leite, teriam caído no chão. De
longe, a uma distância bem superior
ao comprimento de um braço, gritou:
“Essa coisa só faz cair dentes de leite!”
Curso de Artes Visuais, Filosofia | Jorge Nunes Barbosa | 2013
3. A CIDADE!
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Mor dirigiu-se, então, ao pai da
criança, que tinha ficado sem dentes
de leite antes do tempo, e ordenou:
“Preciso de uma criança para ver
como isto funciona. Traz cá o teu
filho.” O pobre pai, que ainda não
compreendera o que é que o
interruptor tinha a ver com os dentes
do filho, afinal tinha sido o medo de
que algo trágico pudesse acontecer
que tinha dado força à sua mão, e até
já estava arrependido, respondeu com
a voz mais sossegada que pôde
arranjar: “Mas o meu filho já não
tem os dentes de leite. Para que é que
serve ele voltar a tocar nesse
interruptor, se só serve para os fazer
cair?” Mor gritou: “Alguém me traga
uma criança com dentes de leite.
Agora, que depois faz-se tarde.” E
deu um murro no interruptor
Todos os Hibernários do piquete
de Mor, à exceção do pai do filho sem
dentes, se puseram a coçar a cabeça.
Um denso nevoeiro tinha invadido as
suas memórias. “O meu filho tem
dentes de leite, ou não?” Pensavam
quase todos. Outros: “Que idade tem
o meu filho?” Um deles, visivelmente
nervoso, pensava: “Um recémnascido já tem dentes, ou não? E
serão de leite, ou de outra coisa
qualquer?”. Todos coçavam a cabeça,
como se tivessem sido atacados por
um pelotão de piolhos. Finalmente, o
pai do filho sem dentes, o único que
não estava naquele momento a
pensar em nada que importasse, disse
mansamente: “Ó Mor! Afinal esse
interruptor também serve para fazer
com que 99% de pessoas adultas,
com mais de trinta anos de idade, se
ponham a coçar a cabeça. Se calhar,
às crianças, atira-lhes com os dentes
ao chão, e, aos adultos, põe-nos a
coçar a cabeça.” “Justamente, era
mesmo nisso que estava a pensar,
disse Mor, tiraste-me as palavras da
boca, Azulário” (Azulário era o nome
do pai da criança). E Mor
acrescentou: “Não podemos estragar
este interruptor. Já sabemos para que
serve. Não vamos agora esgotá-lo
com trabalho. Mas temos de
continuar a investigar. Amanhã
vamos testar um botão. Entretanto,
voltemos para o falatório. Por hoje, a
meditação acabou.”
Estavam os homens do piquete
de Mor ainda a tentar decifrar o que
o nevoeiro tinha posto fora do
alcance da memória, quando uma
gatinho recém-nascido sentiu uma
necessidade imperativa de chamar
pela mãe, e fê-lo da única forma que
sabia, miando. A mãe gata, aflita,
miou que se calasse. O pai gato, às
voltas com um rato teimoso, ouvindo
as duas, miou que se calassem ambas.
Fez-se um silêncio assustador. A mãe
gata, receosa de que o mundo
pudesse finar-se ali mesmo, deu uma
das suas tetas a mamar ao filhote
para que não morresse com fome. Ao
pai, só lhe ocorreu, pelo mesmo
motivo, a ideia de fazer mais uma
ninhada. O mundo ia acabar. Que
mal podia vir ao mundo? E a ele
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saber-lhe-ia bem. Entretanto, o
tempo passava, o gatinho mamava, a
mãe ronronava, o pai sonhava, e o
mundo não acabava. Um gato jovem,
empoleirado numa árvore, desatou,
então, a miar. Um outro fez o mesmo.
E, poucos minutos depois, toda a
gataria da cidade miava a bom miar.
Os cães deram-se conta da
atrevida iniciativa dos gatos, e,
também eles, desataram a ladrar e a
uivar. De repente, o chefe do canil
pediu silêncio. E colocou uma
pergunta que só ele tinha
legitimidade para fazer. “Com que
direito, tendo sido nós os primeiros a
calar as nossas vozes num momento
difícil para todos os animais à face da
Terra, os gatos se atreveram a ser eles
os primeiros a abrir a boca para
miar?” Em resposta, recebeu um
silêncio agitado e, logo a seguir, uma
grande miadela em uníssono de todos
os gatos. E aqui teve início uma
rivalidade entre cães e gatos que
ainda hoje se mantém, e que só se
esbate quando ambos conseguem
guardar silêncio num eventual
encontro que ocorra entre eles. Um
não bufa nem mia, o outro não rosna
nem ladra. A paz sempre teve um
preço elevado.
Alheios a esta rivalidade, os
pardais começaram também a piar,
as galinhas a cacarejar, os papagaios
a papaguear e os burros a zurrar.
Enfim, os animais recuperaram a voz.
Curso de Artes Visuais, Filosofia | Jorge Nunes Barbosa | 2013
4. A CIDADE!
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A voz que se ouvia agora aos animais
era a mesma que se tinha ouvido
antes. Só os burros, os últimos a
deixar de a usar e os últimos a voltar
a usá-la alteraram a sua forma de
z u r r a r. D e s d e e n t ã o , z u r r a r
transformou-se numa gargalhada de
desprezo pelos Hibernários. E
zurram ainda hoje como quem se ri
desalmadamente do mundo e dos
homens.
O piquete que, na altura, estava
no falatório sentiu algo a entrar-lhe
pelos ouvidos. Pensaram os homens
desse piquete que algo de grave
estaria a acontecer e que talvez fosse
melhor deixar de meditar sobre os
botões e interruptores. Não
percebiam o que estava a acontecer e
menos ainda percebiam como era
possível que coisas estranhas lhes
entrassem pelos ouvidos dentro, sem
que eles conseguissem,
escarafunchando, retirá-las de lá. Um
Hibernário muito idoso, com mais de
cem anos, dispensado do falatório por
ter ultrapassado a idade adequada
para a função, saltou da cadeira de
rodas e começou a correr pela
avenida central da cidade, como se
t i ve s s e t o m a d o u m e l i x i r d a
juventude. Ainda se lembrava
daqueles sons. E, ao piquete do
falatório, gritou: “Calem-se”. A
surpresa, o espetáculo de um velho
que se tinha tornado novo, calaram o
piquete. Os homens abriram a boca,
mas não lhes saiu som nenhum dela.
E o velho continuou: “Ouçam. São
gatos a miar, cães a ladrar, pardais a
piar, galinhas a cacarejar, papagaios a
papaguear… só dos burros é que não
sei o que estão a fazer, mas seja o que
for isso, o certo é que são burros que
o estão a fazer.”
Os homens calados ouviram o
que havia para ouvir e, não sabendo
o que pensar, deixaram de pensar. E
deixaram-se embalar pelo vazio
preenchido pelo miar, pelo ladrar,
pelo cacarejar, pelo papaguear e pelo
gargalhar que nem o velho sabia que
era o novo zurrar do burro.
E Mor falou: “Não podemos
deixar de falar… não podemos
perder a inteligência… não podemos
perder a organização da cidade.
Voltemos ao falatório.” E fez-se mais
uma vez silêncio. Os homens
perceberam tudo o que ele tinha dito,
como se, em vez de estarem no
falatório, estivessem no meditório a
meditar. É que, quando estavam no
meditório, os homens percebiam tudo
o que diziam uns aos outros, porque
não falavam. Só meditavam. E no
falatório não percebiam nada do que
diziam, nem sequer ouviam uma
única palavra, porque só falavam.
Meditório era para meditar. Falatório
era para falar.
De facto, a organização da
cidade já tinha sido profundamente
alterada. Agora, falar no falatório
podia ser como meditar no meditório.
Podiam finalmente conversar. Só Mor
não percebia nada. Nem ouvia coisa
alguma. Para ele, falar era no
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falatório e meditar no meditório.
Nada tinha mudado.
Como se verá, não só Mor
continuava a considerar-se o único
inteligente da cidade, como era o
único que só falava no falatório e só
meditava no meditório. Ele e todos os
seus descendentes ficaram assim
impossibilitados de meditar e falar ao
mesmo tempo. Esta linhagem de Mor
ainda existe, continua a ser Mor,
Professor-Mor, Ministro-Mor, etc.
Em Hibernisboa (a cidade dos
Hibernários) a vida continuou. Mor e
os seus descendentes escravizaram
uns e contrataram outros para
manter o falatório ativo. Os restantes
Hibernários dedicaram-se à conversa
e ao trabalho nos campos. No
meditório conversavam, no falatório
meditavam e nos intervalos
sonhavam.
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5. A CIDADE!
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Imprevisibilidade e Fatalidade III
FRONTEIRAS E AUTOMATISMOS
O tempo foi passando e, em
Hibernisboa, as mudanças não
pararam de acontecer. Os animais,
que entretanto tinham readquirido a
sua voz completamente e que a
usavam criteriosamente, reuniram-se
para deliberar sobre o que fazer dos
humanos. A crise que se abatera
sobre a cidade parecia não ter fim.
Os Hibernários que aprenderam a
c o nve r s a r n ã o c u i d av a m d a s
sementeiras e das colheitas como
deveriam. O desejo de conversa era a
única coisa que os fazia levantar da
cama. E os falantes, comandados
pelos descendentes de Mor, já não
faziam a mais pequena ideia sobre
como semear um feijão.
O chefe cão ladrou em primeiro
lugar: “Isto não pode continuar. Se os
humanos não cuidarem das terras e
de si mesmos, o mais certo é que nós
próprios venhamos a sofrer
consequências devastadoras. É
preciso agir. Proponho que os
ajudemos. O programa de ajuda deve
respeitar os seguintes pontos: 1º agir
como se fossem eles a mandar em
nós; 2º segui-los para todo o lado; 3º
aceitar que nos dêem de comer; 4º
ladrar, ou miar, ou cacarejar, ou
zurrar para os avisar do perigo; 5º
não desistir nunca da nossa tarefa,
mesmo que nos batam.”
Esta proposta provocou um
grande debate que, só muitos anos
depois, foi dado por concluído. Na
verdade, os motivos de desacordo
foram enunciados logo nessa primeira
assembleia. Um grupo de cães
argumentou que a proposta do chefe
correspondia mais a uma submissão
dos animais aos humanos do que a
uma ajuda para que resolvessem os
seus problemas. O chefe cão
contestou: “como todos sabemos,
daqui a muitos séculos, um humano
que ficará célebre, explicará que não
há diferença, que valha o trabalho de
ser esclarecida, entre ser-se senhor ou
ser-se escravo. O escravo é escravo
porque tem um senhor, e o senhor é
escravo do escravo, porque, sem ele,
não seria senhor. Todos nós sabemos
isto. Os humanos ainda não. Mesmo
quando esta regra simples da ordem
das coisas for conhecida por
humanos, isso não significará que a
entendam e que sejam capazes de
agir em conformidade com ela.
Estamos, portanto, em vantagem. Se
quisermos escravizar os Hibernários,
também seremos escravos deles; se
agirmos como se fossem eles os
senhores, seremos nós que os
escravizaremos.”
Esta tese do chefe dos cães e a do
grupo contestatário que defendeu que
os animais deveriam deixar os
Hibernários resolverem sozinhos os
seus problemas, estiveram em debate,
como já foi dito, por muito tempo.
Embora o consenso se tenha
revelado impossível - alguns cães
preferiram abandonar a assembleia e
adotaram o nome de lobos -, a
verdade é que os humanos passaram
a dispor de aliados muito vantajosos.
Os cães, a galinhas, os próprios gatos
e, sobretudo, os burros escravizaram,
à sua maneira, os Hibernários e
passaram a ser a garantia de
progresso da própria humanidade.
Hibernisboa viveu um longo
período de desenvolvimento e de
bem-estar.
Contavam-se histórias sobre os
botões e os interruptores, cuja
localização, entretanto, os
Hibernários deixaram de conhecer.
Dizia-se que um interruptor serviria
para ajudar à mudança dos dentes de
leite nas crianças, mas havia quem
pensasse que era um bom remédio
para carecas que quisessem evitar e
até reverter a queda de cabelo.
Haveria ainda um botão que, quando
acionado, fazia chover, um outro para
fertilizar as terras, um outro para
garantir a vitória aos guerreiros, e por
aí fora. Havia, algures, botões e
interruptores que seriam responsáveis
por tudo o que pudesse acontecer.
Estas histórias eram contadas às
crianças pelos conversadores, e
faziam parte das lengalengas dos
falantes que as recitavam, sem
verdadeiramente as ouvirem. E assim
se foram conservando, alterando e
enriquecendo histórias que
explicavam tudo o que acontecia em
Hibernisboa. Com o tempo, revelouse indispensável distinguir botões de
interruptores. Coisas com nomes
diferentes deveriam servir para coisas
diferentes.
Curso de Artes Visuais, Filosofia | Jorge Nunes Barbosa | 2013
6. A CIDADE!
Deste debate grandioso sobre o que
poderia distinguir os botões dos
interruptores, surgiram explicações
para coisas que nunca tinham
existido, nem existiam, mas que, por
via do debate, passaram a existir.
Descobriram, deste modo, os
Hibernários que, para que uma coisa
ou acontecimento existisse, bastava
que falassem dela ou dele. A questão
que surgiu a seguir foi a de saber
como é que poderiam os humanos
falar de coisas que não existiam, para
que existissem. Falar de coisas que
não são coisas parecia complicado. E
era. As discussões em torno deste
problema não cessavam de gerar
explicações e descrições
pormenorizadas de coisas que nunca
tinham existido, nem existiam e que
passavam automaticamente a existir.
Só que os Hibernários não tinham
consciência deste fenómeno
imparável de gestação e geração de
coisas novas que tinha origem nas
suas conversas mais animadas. O
problema subsistia, portanto. Como é
que podemos criar coisas novas
falando delas? E como é que será
possível falar de coisas que não são
nada, isto é, falar de nada?
A maior parte dos animais
acompanhava os humanos nas suas
reuniões e assembleias. As aves,
embriagadas pela sua recentemente
adquirida capacidade para voar, não
tinham tempo livre para se
preocuparem com o que se passava;
o s r é p t e i s, s u b r e p t i c i a m e n t e,
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aproveitavam a distração dos
humanos para se porem ao sol, sem
correr o risco de serem pisados;
muitos animais achavam piada, mas
não reagiam àquela conversa que não
traria nada de de bom, mas também
nada de mau; os burros zurravam
como quem se ri à gargalhada, e só os
cães estavam dispostos a intervir.
E assim foi. Um Hibernário
conversador, num momento de
profunda reflexão solitária, enunciou
o problema em voz alta, para melhor
o ouvir, na esperança de melhor o
entender: “Como é que se pode falar
de nada?” No segundo exato em que
a primeira palavra da pergunta foi
enunciada, o cão, de voz mais afinada
em toda a matilha, latiu com
estrondo. E um falante, descendente
de Mor, que andava por perto, sentiu
os ouvidos a abrir-se e, como se fosse
um trovão, ouviu a pergunta: “Como
é que se pode falar de nada?”. Pela
primeira vez em toda a história de
Hibernisboa, um falante disse uma
coisa com sentido: “Mas é isso que
nós, os falantes, andamos a fazer
desde que o mundo é mundo.
Fazemo-lo para não perder a
inteligência. Falar de nada é a única
coisa inteligente que se pode fazer”.
O Hibernário conversador abriu
a boca de espanto, e o cão de voz
afinada, a cauda a abanar de
felicidade, dirigiu-se à matilha:
“Missão cumprida. Agora, seja o que
Deus quiser.”
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