Este documento discute três princípios fundamentais para a intervenção precoce: 1) Uma intervenção centrada na família que reconhece o papel ativo da família; 2) Uma intervenção baseada nos recursos da comunidade para apoiar as necessidades da família; 3) Uma intervenção desenvolvida por equipas interdisciplinares para fornecer respostas não fragmentadas.
Orientação Técnico-Pedagógica EMBcae Nº 001, de 16 de abril de 2024
Intervenção precoce centrada na família e comunidade
1. PRESSUPOSTOS DE ACÇÃO EM INTERVENÇÃO PRECOCE
Joaquim Colôa
Ano de 2010
(Texto feito a partir da tese de Mestrado)
A intervenção precoce deve constituir-se, enquanto acção, o mais precoce possível
uma vez que ao longo do desenvolvimento da criança existem períodos mais favoráveis
para que ocorram determinadas interacções. Uma acção assente na cooperação entre
profissionais e família, em relação à qual são identificadas as necessidades e os recursos.
Um processo que se baseia nos recursos de uma comunidade concreta com as suas forças e
fraquezas mas assumindo-se enquanto rede formal e, ou informal de apoio e resolução de
determinados problemas. A intervenção precoce enquanto acção humana, resulta da
interacção entre indivíduos e entre estes e os contextos que os rodeiam (Thurman, 1997).
Uma perspectiva ecosistémica que defende que a acção humana decorre, de entre outros,
dos pressupostos de que é complexa e multidimensional. Assim, as práticas de intervenção
precoce devem ser encaradas como uma intervenção, advinda de um conjunto de sinergias,
construídas num “espaço social” composto por vários componentes ou “áreas sociais” que
se interrelacionam denotando-se interdependentes. Nesta perspectiva, a intervenção dos
profissionais centrada, essencialmente, na criança apresenta inúmeras fragilidades. Alguns
autores defendem que este tipo de práticas são muito reducionista e que embora
apresentem ganhos quanto às competências das crianças também estão mais sujeitas a que
estas se diluam com o tempo, uma vez que os contextos em que as crianças interagem
estão em continua alteração (Dunst, 1998). Assim, intervenção precoce é actualmente
entendida como um serviço que se destina às famílias de crianças em risco ou em situação
de deficiência. Um apoio que, normalmente, contempla crianças dos zero aos três anos e
que pressupõe tenha um impacto directo e indirecto não só na criança como em todos os
sujeitos que com ela interagem (Ruivo & Almeida, 2002).
Thurman (1997) referindo Macdonnell & Hardman (1988) sugere alguns
parâmetros que, actualmente, devem estar subjacentes a qualquer programa de intervenção
precoce: i) integração – contemplando crianças com e sem deficiência; ii) abrangência –
oferta de diversidade de serviços integrados e abrangentes; iii) normalização – oferta de
intervenção em diversos contextos; iv) adaptação – adopção de procedimentos flexíveis;
1
2. v) centrado na família enquanto sistema activo – construção de um currículo directamente
relacionado com a criança, família e comunidade e vi) centrado nos resultados – enfoque
em skills de desenvolvimento funcionais.
Deste modo a intervenção precoce deve ser encarada, actualmente, como um
conjunto de práticas em rede que equacionam respostas para determinada criança enquanto
entidade social. Este paradigma de acção implica que a intervenção precoce seja, cada vez
mais, equacionada tendo em conta a seguinte triangulação: uma intervenção centrada na
família, baseada nos recursos da comunidade e desenvolvida por equipas
interdisciplinares.
Uma intervenção centrada na família
Uma intervenção centrada na família reconhece que é essencial o desempenho, por
parte desta, de um papel activo em todo o processo devendo a sua cooperação ser
reconhecida e respeitada. Segundo Dunst & Deal (1994) este pressuposto implica
determinados procedimentos como: i) identificação das necessidades da família; ii)
localização de suportes e recursos informais e formais, no sentido de responder a essas
necessidades e iii) apoiar as famílias de modo a que (re)conheçam e utilizem as suas forças
e competências, para poderem ser elas próprias a acederem, de modo autónomo, aos
recursos de que necessitam para que “fortaleçam” o seu funcionamento. Estes autores
defendem, ainda, que a conceptualização deste tipo de práticas deve ter em conta as
seguintes características:
• Abrangência e flexibilidade – a intervenção deve ser baseada num processo fluido,
de forma a reunir, trocar e utilizar informação com o propósito de identificar as
necessidades, as forças e os recursos das famílias e assim se obterem respostas que
estejam em consonância com as suas necessidades;
• Individualidade – a intervenção deve ser um processo individualizado de forma a
respeitar os desejos e prioridades das famílias, relativamente aos seus filhos e à
família no seu conjunto;
• Respeito pelas diferenças – a intervenção deve ser um processo que aceite os
valores da família e as suas convicções culturais. Esta constrói-se no sentido de
2
3. respeitar a vontade das famílias em partilhar informação e o desejo das mesmas em
participar ou não no processo de intervenção.
Só a partir da compreensão dos comportamentos específicos de cada elemento da
família bem como dos pressupostos de identidade desta, poderemos entender e respeitar o
seu funcionamento e intervir de modo a facilitar processos de corresponsabilização e
estabelecer entre os vários parceiros implicados uma base de compromissos (Shultz-Krohn,
1997). Esta base de compromisso só é possível se acreditarmos que todas as famílias: i)
possuem factores positivos e que estes são o ponto de partida da intervenção; ii) possuem
sistemas que lhe permitem (re)transformar as práticas e os recursos em competências e que
iii) através do seu envolvimento activo adquirem e transmitem aos profissionais novos
conhecimentos e capacidades no sentido de reforçarem competências, responsabilidades e
o próprio sentido de confiança.
Numa perspectiva de sistemas complexos e multidimencionais, em contínua
interacção, não podemos ignorar a comunidade em que a família se insere enquanto quadro
de referência mais vasto (Gallagher & Tramill, 1998). Uma vez que a família interage com
outros agentes da comunidade, será de toda a conveniência que olhemos para essa
comunidade como a maior base de suporte e fonte de recursos para qualquer tipo de
intervenção.
Uma intervenção baseada nos recursos da comunidade
A comunidade no seu todo mas, sobretudo, as `”áreas sociais” mais imediatas ao
sistema família e em interacção directa com esta, promovem variadas experiências que
constituem a história de vida de cada uma das famílias, sempre vistas como integradas em
grupos sociais diferenciados e concretos. No fundo, é a comunidade envolvente que
permite a partilha de valores e a integração de determinada identidade cultural que
objectiva causas comuns. Nesta perspectiva, a especificidade dos recursos que são
alencados para cada criança e família concretas, só serão efectivos se tivermos em conta os
ambientes, mais ou menos alargados, que envolvem a criança. Assim, uma intervenção
centrada na família fará sentido se esta for baseada nos recursos da comunidade. Uma
perspectiva que encara um variado leque de pessoas e organizações da comunidade como
fonte de apoio, de modo a satisfazer determinadas necessidades da família e
3
4. essencialmente da criança. Recursos que são encarados como um potencial ilimitado e
amplamente disponível, de modo a serem utilizados sempre que necessário. Uma
intervenção baseada nos recursos da comunidade é caracterizada, segundo Trivette; Dunst
& Deal (1997) por:
• Um enfoque na comunidade – as respostas são definidas tendo em conta o
“mapeamento” dos recursos existentes na comunidade, numa perspectiva
abrangente dos serviços;
• Um paradigma sinergético – os recursos devem ser flexíveis, diversificados,
individualizados e adequados às necessidades das famílias;
• Uma teia de suportes formais e informais – os esforços para (re)conhecer as
necessidades das famílias e intervir implicam a mobilização de suportes formais e
informais, de modo a constituir-se na comunidade uma “teia” de suporte e apoio;
• Um reconhecimento das “forças” – a intervenção baseia-se nas “forças”
individuais e colectivas da família;
• Um esforço no sentido das soluções serem equacionadas no interior – Os
recursos são organizados e facilitados de modo a responderem ás necessidades e
desejos específicos de cada família.
Ainda segundo os autores anteriormente referidos as práticas de intervenção
precoce baseadas nos recursos da comunidade envolvem: i) identificar as forças da
comunidade, grupos e subgrupos; ii) identificar quais dessas forças constituem respostas às
necessidades da criança e da família e iii) eliminar barreiras á utilização dos recursos mais
próximos da família bem como de outros, numa perspectiva de contextos cada vez mais
alargados. Estas práticas encorajam, para além da família e dos profissionais, outros
elementos e grupos da comunidade, a interrogarem-se sobre realidades que os envolvem e
sobre a natureza dos próprios serviços que são disponibilizados. Este tipo de intervenção
promove a mobilização de vários profissionais e a confluência de vários saberes
disciplinares. Por este motivo defende-se a criação de estruturas abrangentes,
operacionalizadas em equipas interdisciplinares, de forma a responderem de forma mais
eficaz e eficiente à diversidade das necessidades das crianças e respectivas famílias
(Gallagher & Tramill, 1998), ou seja, à dimensão complexa e multidimensional que
caracteriza a intervenção precoce enquanto acção humana.
4
5. Uma intervenção desenvolvida por equipas interdisciplinares
No âmbito da intervenção precoce quando não existe comunicação efectiva e um
trabalho cooperativo entre os diversos profissionais assiste-se, muitas vezes, a um sucesso
dependente de um sistema de suporte que se desenvolve e organiza (profissionais, serviços
e responsabilidades administrativas) baseado numa aproximação à estrutura categorial.
Sem um compromisso entre cada um dos profissionais e entre estes e a família os serviços
tendem, muitas vezes, a agir de modo fragmentado e inconsistente (Bailey; McWilliam;
Winton & Simeonsson, 1992). Assim, pretende-se que o sucesso tenda a depender da
capacidade de trabalhar e fomentar a intervenção em conjunto (Gallagher; LaMontagne &
Johnson, 1998). A actividade na área da intervenção precoce deve ser assegurada por
equipas que envolvam profissionais diferenciados e promovam serviços abrangentes.
Como refere Hartford (1983) se para resolvermos determinado problema necessitamos da
incorporação do conhecimento, informação e julgamentos que superam o que um único
indivíduo pode possuir, então o produto de uma equipa pode ser superior.
A equipa interdisciplinar é o modelo, actualmente, defendido. Neste tipo de equipa
a comunicação entre os vários profissionais e entre estes e a família é salvaguardado. É
fundamental que todos os profissionais trabalhem em conjunto e de modo colaborativo.
Weston; Ivins; Heffron & Sweet (1997) referem-se a este enfoque nas relações entre os
diversos profissionais, serviços e famílias, numa perspectiva colaborativa, como um novo
construto organizacional no âmbito da intervenção precoce. Um construto que denominam
de abordagem “centrada nas relações”. Uma colaboração que implica a partilha de
objectivos, comunicação aberta e efectiva e a vontade crescente de discutir e resolver
problemas como uma verdadeira equipa (Sandall; McLean; Santos & Smith, 2002). A
intervenção desenvolvida por equipas interdisciplinares e com cariz interserviços
possibilita que: i) sejam rentabilizados recursos; ii) evitem-se sobreposições de respostas,
iii) aproximem-se os serviços das famílias e iv) sejam encontradas respostas não
fragmentadas. Um modelo organizacional que se centre nas interacções humanas e enfatize
a importância da equipa e da interacção dos seus elementos para, entre si, construírem
relações e estratégias de trabalho. Esta opção de intervenção revela-se mais complexa, do
que à priori pode parecer. O pressuposto de que o simples facto dos profissionais agirem
5
6. em equipa transforma cada uma das suas acções, em modos bem diferentes aos que se
verificariam se cada um desses profissionais pensasse, decidisse e agisse isoladamente,
nem sempre é verdadeiro.
Ao formarem-se equipas de pendor colaborativo importa equacionar a tarefa a que
estas se destinam mas, sobretudo, é importante ter-se em conta: i) os critérios com que são
formadas as equipas; ii) o número e tipo de elementos que as compõem; iii) o seu grau de
homogeneidade; iv) a motivação e nível de interesse de cada um dos profissionais em
desenvolver a tarefa; v) a estrutura das próprias equipas e o tipo e meio de partilha de
informação que é desenvolvido intra e interequipas. Estes factores, de entre outros, vão
condicionar directa ou indirectamente a qualidade das relações interpessoais. Uma
dimensão que condicionará toda a realização da tarefa que é acometida a determinada
equipa.
Algumas implicações
Em qualquer área do conhecimento humano a configuração de novas
conceptualizações implica a construção de novas formas de intervenção e, estes dois
pressupostos, constituem uma primeira condição para o necessário reajustamento das
atitudes e práticas dos profissionais e dos serviços que materializam essa intervenção. Para
que na prática existam ganhos é essencial que: i) as políticas preconizadas objectivem
claramente as actuais conceptualizações; ii) os normativos legais além de espelharem essas
políticas contenham indicadores que operacionalizem, de modo geral, as práticas
consonantes; iii) os serviços implicados assumam construtos organizativos ajustados às
práticas preconizadas; iv) os serviços tenham condições objectivas de alencar recursos
humanos e materiais considerados essenciais; v) os serviços facilitem entre técnicos e entre
equipas a circulação da informação tanto na horizontal como na vertical; vi) seja facilitado
aos técnicos formação complementar para que, sem desvirtuar o principio da diferenciação
de papeis, estes possam adquirir novas competências e assumam comportamentos em
consonância com o trabalho cooperativo; vii) a formação facilite aos técnicos a adequação
de papeis e o seu ajustamento a novas funções; viii) a composição das equipas tenha em
conta, não só o factor diferenciação de técnicos mas também a sua motivação e formação
específica.
6
7. Assumindo estes aspectos, estamos convictos que as equipas interdisciplinares são
a forma que garante maior qualidade e eficácia no âmbito da intervenção precoce.
Essencialmente, se a perspectiva dessa intervenção tiver subjacente um apoio centrado na
família enquanto entidade concreta e multidimensional que interage em contextos físicos,
sócio culturais e económicos específicos.
Bibliografia de referência
Bailey, D. B. McWilliam, P. J. ; Winton, P. J. & Simeonsson, R. J. (1992). Implementing
Family-Centered Services in Early Intervention: A Team-Based Model for Change. North
Carolina: Brokline Books
Dunst, C. J. (1998). Apoiar e Capacitar as Famílias em Intervenção Precoce: O que
Aprendemos?. In L. M. correia & A . Serrano (Orgs.), Envolvimento Parental em
Intervenção Precoce - das Práticas na Criança às Práticas Centradas na Família (pp.79-92).
Porto: Porto Editora;
Dusnt, C. J. & Deal, A. G. (1994). A Family-Centered Approach to Developing
Individualized Family Support Plans. In C. Dunst; C. Triviette & A. Deal (Eds.),
Supporting and Strengthening Families-Methods, Strategies and Practices (pp.73-88).
Cambridge: Brookline Books;
Gallagher, R. J. & Tramill, J. L. (1998). Para além da parte H: Implicações da Legislação
de Intervenção Precoce na Organização de Parcerias de colaboração Escola/comunidade.
In L. M. correia & A . Serrano (Orgs.), Envolvimento Parental em Intervenção Precoce -
das Práticas na Criança às Práticas Centradas na Família (pp.33-64). Porto: Porto Editora;
Gallagher, R. J.; LaMontagne, M. J. & Johnson L. J. (1998). Intervenção Precoce : Um
Desafio à colaboração. In L. M. correia & A . Serrano (Orgs.), Envolvimento Parental em
Intervenção Precoce - das Práticas na Criança às Práticas Centradas na Família (pp.65-76).
Porto: Porto Editora;
Hartford, M. E. (1983). Grupos em Serviço Social. São Paulo: Agir Editora;
Ruivo, J. B. & Almeida, I. C. De (2002). Contributos para o Estudo das Práticas de
Intervenção Precoce em Portugal. Lisboa: ME-DEB-NOEEE;
Sandall, S.; McLean, M. E.; Santos R. M. & Smith, B. J. (2002). DEC’s New
Recommended Practices: The Context for change. In
7
8. Schultz-Krohn, W. (1997). Early Intervention: Meeting the Unique Needs of Parent-child
Interaction.InfYoung children, 10 (1), 47-60;
Thurman, A. K. (1997). Systems, Ecologies, and Context of Early Intervention. In S. K.
Thurman; J. R. Cornwell & S. R. Gottald (Eds.), DEC Recommended Practices in Early
Intervention/Early Childhood Special Education (pp. 39-46). Longmont, Denver: Sopris
West & DEC;
Trivette, C. M.; Dusnt, C. J. & Deal, A. G. (1997). Resource-Based Approach to Early
Intervention-Systems and Settings (pp.73-92). New York: Paul H. Brookes Publishing Co.
Inc.;
Wenston, D. R.; Ivins, B.; Heffron, M. C. & Sweet, N. (1997). Formulating the Centrality
of Relationships in Early Intervention: an Organizational Perspective. InfYoung Children,
9 (3), 1-12.
8