1. “Quando digo corrigir, corrigir a História, não é no sentido de corrigir os
factos da História, pois essa nunca poderia ser tarefa do romancista,
mas sim d introduzir nela pequenos cartuchos que f
de d l h façam explodir o que
l d
até então parecia indiscutível: por outras palavras, substituir o que foi
pelo que poderia ter sido”
sido
José Saramago “História e Ficção”, in, JL, 1990
Saramago, História Ficção in JL
2. José Saramago
“Mesmo que a rota da minha vida me leve a
uma estrela, nem por isso fui dispensado de
percorrer os caminhos d mundo”
r rr r i h do d
José de Sousa S
J éd S Saramago nasceu no di 16
dia
de Novembro de 1922, na Azinhaga do Ribatejo,
pequena freguesia do concelho da Golegã. A sua
família de camponeses mudou-se para Lisboa
quando ele tinha somente dois anos; todavia,
Saramago não esqueceu as suas origens e visita
frequentemente a sua terra natal. fig. 1 José Saramago
O Nobel iniciou os estudos no Liceu Gil V
bl d l Vicente, porém, por razões
económicas apenas frequentou este local durante dois anos acabando por
estudar na Escola Industrial Afonso Domingues. Aqui aprendeu o ofício
de serralheiro mecânico. Ao longo da sua vida foi também funcionário
administrativo e desenhador nos Hospitais Civis de Lisboa. A par disto
lia sempre centenas de livros, tendo sido o utilizador mais frequente da
p f q
biblioteca do Palácio Galveias.
Casou com a pintora Ilda Reis em 1924 casamento que se manteve
1924,
durante 26 anos. Foi em 1947 que nasceu a sua filha Violante, no
mesmo ano em que publicou o seu primeiro título, o romance “Terra de
Pecado Esta bra a
P ad ”. E ta obra passou d r bida e f ra necessários mais vi t
despercebida foram ári ai vinte
anos para que o autor de “Memorial do Convento” voltasse a publicar.
Embora os seus trabalhos não fossem reconhecidos como Saramago
desejava, a sua actividade profissional já h i sofrido uma mudança:
d j ti id d fi i l havia f id d
trabalhou doze anos numa editora, onde exerceu funções de direcção
literária e de produção, e colaborou, como crítico literário, na revista
Seara N
S Nova.
3. Já em 1972 e 1973 f parte d prestigiado Diário d Lisboa, onde
fez do d de b d
foi cronista, coordenador do suplemento cultural e comentador politico.
Foi
F i no ano d 1976 que a carreira d N b l português passou a ser
de i do Nobel t ê
estritamente literária. Além de poeta e cronista, Saramago é também
dramaturgo e contista. No entanto, as suas obras de literatura
portuguesa contemporânea são as mais apreciadas.
Por fim, é casado desde 1988 com a jornalista Pilar del Rio,
f , j R ,
vivendo com ela na ilha de Lanzarote, nas Canárias.
Como nasceu o Romance
Memorial do Convento foi
M rial d C v t f i concebido p r bid por
José Saramago no final dos anos setenta.
Segundo o autor, a primeira intenção de criar
g p
esta obra surgiu quando ao olhar o mosteiro
afirmou “Gostava de meter um dia isto dentro de
um romance”. Seguidamente ao ler uma
romance Seguidamente,
passagem de Camilo ficou bastante
impressionado com a referência aos cinquenta mil
homens que sofreram para erguer o convento d
h f de
Mafra.
Todavia,
Todavia a maior das inspirações surgiu
quando o autor percebeu que havia uma
coincidência cronológica entre a construção do
convento e as experiências d Padre Bartolomeu
do d l fig. 3 e 4 Convento de
Lourenço de Gusmão. Mafra e Passarola
4. Contextualização
Memorial do Convento evoca a História portuguesa do reinado do
século XVIII, procurando relaciona-la com as situações políticas de
meados do século XX Nesta época tenta se seguir o fausto da corte
XX. tenta-se
francesa do Rei-Sol Luís XIV.
Em Portugal, D. João V deixa-se influenciar pelos diplomatas que
g x f p p q
o cercam (intelectuais estrangeirados) e pela riqueza vinda do Brasil.
O facto de no Brasil surgirem as grandes jazidas de ouro de
aluvião permite a resolução d alguns problemas fi
l iã it l ã de l bl financeiros e l o rei
i leva i
a investir em luxuosos palácios e igrejas. O rei português manda
construir o convento de Mafra na tentativa de ultrapassar a
f p
magnificência do Escorial de Madrid e do palácio de Versalhes, e
também em acção de graças pelo nascimento do seu filho. No convento
foi incluído uma grandiosa basílica e um extraordinário palácio
palácio.
D. João V foi aclamado rei a 1 de Janeiro de 1707 quando o país
atravessava uma situação económica critica. Portugal estava envolvido
na G
Guerra d S
da Sucessão.
ã
Por outro lado o Rei megalómano tinha uma vida sentimental
marcada pelas traições à rainha D Maria Ana Este envolveu se com
D. Ana. envolveu-se
figuras femininas quer da corte quer do clero. O rei “semeou bastardos”.
Outra característica deste século é a Inquisição que atingiu o seu
auge nesta época. Esta ocupa-se com a ordem religiosa e moral,
ocupa se
estendendo a sua intervenção aos campos sociais, culturais e políticos.
Os perseguidos deixaram de ser apenas cristãos novos e pessoas que
cometem delitos de feitiçaria, superstição, magia e crença sebastianista,
para passarem a ser também os intelectuais.
5. O Santo Tribunal da Inquisição tinha como suposto objectivo
primário o combate das heresias religiosas.. Porém, este desviou-se e
passou a censurar livros práticas de adivinhação e feitiçaria e bigamia
livros, bigamia.
Com o decorrer do tempo, todos os sectores da vida social, cultural e
p
política foram afectados. As torturas eram tão bárbaras que, os
f f A q ,
acusados, muitas vezes confessavam “crimes” que não tinham cometido.
Muitos foram extraditados ou até mesmo queimados na fogueira.
Felizmente, este Tribunal é extinto em 1821.
fig. 4 e 5 Condenações e torturas do Santo Ofício
O que nos diz o título
título…
Por um lado, em relação à palavra memorial, podemos considerar a
definição monumento comemorativo. Mafra comemora uma promessa e
assiste a uma fé religiosa. O romance não homenageia estas
componentes,
componentes mas antes o trabalho dos operários e artistas que
construíram o convento. Por contraste aos homenageados estão os
interesses mesquinhos e egoístas dos que mandaram edificar este
monumento.
Por outro lado, o título faz também referência ao convento ,
sobrepondo se
sobrepondo-se a Basílica e Palácio (também estes presentes no edifício
em causa). Esta foi a palavra que o povo elegeu para denominar as
edificações de Mafra.
Em suma, o título “Memorial do Convento” apresenta uma carga
simbólica quer enquanto sugere as memórias – evocativas do passado – e
pressuposições existenciais quer ao remeter para o mundo místico e
existenciais,
misterioso.
6. Classificação do romance
Memorial do Convento pode ser classificado de várias formas:
• Romance Histórico A obra oferece-nos uma minuciosa descrição
da i d d
d sociedade portuguesa d século XV
do é l XVIII, marcada pela l
d l luxuosa vida d
id da
corte, associada à Inquisição e à exploração dos operários. Todos estes
factos estão historicamente provados Também o facto da Guerra da
provados.
Sucessão ser referenciada na obra, bem como a construção da passarola,
contribuem para esta classificação do romance.
p f
• Li ha neo-r ali ta
Linha neo-realista o autor eleva o povo sofredor e o operariado
t l f d i d
oprimido, por outras palavras, Saramago tenta transmitir a sua
preocupação com a realidade social.
• Romance Social o romance pode ser considerado como uma crónica
dos costumes de uma época.
• Romance de intervenção a obra apresenta a história repressiva
portuguesa da primeira metade do século XX
XX.
•R
Romance d espaço
de em “M
“Memorial d Convento” representa-se
i l do ”
não só uma época, com o seu ambiente histórico, mas também quadros
sociais que decoram a obra
obra.
7. Estrutura
A estrutura do romance assenta na
coexistência de vários conflitos que se
cruzam e através do texto manifestam e
revelam a realidade e os problemas do ser
humano. Nesta obra observa-se ainda uma
reinvenção da História que capta a atenção
do leitor para situações reais perturbantes.
d l b
“Memorial do Convento” possui duas
linhas condutoras: a construção do
Convento de Mafra e as relações entre
Baltasar e Blimunda.
A criação de Saramago está dividida
em 25 partes não nomeadas ou numeradas
mas claramente identificadas
identificadas.
Parte/ Sequências narrativas
Capítulo
I •Relação do Rei e da Rainha e a promessa da construção do Convento;
•Apresentação do propósito da construção do convento;
•Narração irónica destas motivações;
•Sonhos do casal régio com a futura descendência.
II •Milagres conseguidos pelos franciscanos e o seu desejo na construção do Convento;
•Caso da morte de Frei Miguel da Anunciação;
•Gravidez da Rainha;
•O desejo dos Franciscanos desde 1624 de possuírem um convento.
III •Situação socioeconómica: excesso de riqueza/extrema pobreza;
•Excessos do Entrudo e Penitência na Quaresma;
Q
•Falsidade dos penitentes;
•Falsa devoção das mulheres;
•Rainha, grávida continua a sonhar com o cunhado;
•A sátira a “mais uns tantos maridos cucos…”.
8. IV •Baltasar Sete-Sóis regressa da guerra maneta;
•Passado heróico de Baltasar;
•Viagem em que mata o assaltante;
Vi l
•Com João Elvas fala dos crimes cometidos.
V •O auto-de-fé no R i e o conhecimento travado entre B l
O d fé Rossio h i d Baltasar, Bli
Blimunda e o padre
d d
Bartolomeu;
•A rainha, no quinto mês de gravidez não pode assistir ao espectáculo;
q g p p
•A mãe de Blimunda é condenada;
•Encontro entre Sete-Sóis e o padre;
•“Casamento” de Baltasar e Blimunda e sua consumação.
VI •O padre Bartolomeu Lourenço e a passarola;
•Experiências da “máquina de voar” em S. Sebastião da Pedreira, numa quinta do duque
de Aveiro;
•A aceitação de Baltasar para ser ajudante do padre Bartolomeu
A Bartolomeu.
VII •Nascimento da filha de D. João V, Maria Bárbara;
•Apesar de alguma decepção, uma vez que não se trata de um filho varão, o rei mantém a
Apesar
promessa de elevar o convento.
VIII •Os poderes de Blimunda em ver as pessoas por dentro;
•Nascimento do segundo filho de D. João V, o infante D. Pedro.
IX •Instalação de Baltasar e Blimunda junto da passarola;
•Continuação da construção da passarola;
•O padre Bartolomeu parte para a Holanda, enquanto que Baltasar regressa à casa d pais,
d l l d l dos
em Mafra juntamente com Sete-Luas;
•Tourada no Terreiro do Paço.
ç
X •O casal chega a Mafra e é recebido pela mãe de Sete-Sóis;
•A terra que João Francisco, pai d Baltasar tinha na V l f vendida para a construção
de l h Vela foi dd
do convento;
•Morte do infante D. Pedro que é enterrado em S. Vicente de Fora.
f q S
•Baltasar ajuda o pai no campo;
•Nascimento do infante D. José, terceiro filho da rainha;
•Doença do rei, ao passo que D. Francisco, seu irmão, tenta a rainha, revelando assim à
cunhada o interesse em tornar-se seu marido;
•D Maria Ana continua a sonhar com o cunhado
D.Maria cunhado.
9. XI •Regresso do “voador”, que deseja que Blimunda consiga armazenar éter composto de
vontades;
•Em conversa com Blimunda e Baltasar conta lhes que o éter está na “vontade” de
conta-lhes vontade
cada um;
• Bartolomeu Lourenço pede a Blimunda que recolha as vontades com o seu dom.
XII •Blimunda comunga em jejum e, pela primeira vez, vê na hóstia uma nuvem fechada;
•Uma tempestade destruiu a igreja de madeira construída para a cerimónia de
madeira,
inauguração dos alicerces, mas foi reconstruída em dois dias, o que passou a ser visto
como um milagre;
•Inauguração da primeira pedra do convento, com procissão e bênção, a 17 de
Novembro de 1717;
•Regresso de Baltasar e Blimunda a Lisboa onde começam a trabalhar na passarola
Regresso passarola.
XIII •Baltasar e Blimunda constroem a forja;
•O “voador” informa Blimunda que são necessárias pelo menos duas mil vontades;
•A procissão do corpo de Deus – 8 de Junho de 1719
1719.
XIV •O músico Domenico Scarlatti toma conhecimento do projecto da passarola;
•O padre apresenta Scarlatti à trindade terrestre (ele, Baltasar e Blimunda) e revela-lhe o
seu segredo;
•Bartolomeu Lourenço prepara o sermão para a festa do Corpo de Deus questionando os
fundamentos da trindade divina.
XV •Blimunda serve-se da epidemia da cólera e da febre amarela para recolher as vontades;
•Blimunda adoece, recuperando através da música do cravo;
, p ;
•O padre Bartolomeu avisa el-rei de que a passarola está pronta.
XVI •Viagem da passarola devido à perseguição da Inquisição ao padre Bartolomeu;
•Scarlatti, chegando a tempo de ver a máquina voadora subir, senta-se ao cravo e toca.
Seguidamente atira-o para d t d poço;
S id t ti dentro do
•Bartolomeu Lourenço tenta livrar-se da passarola, por emoção ou medo, sendo impedido
p
pelo casal que o acompanha;
q p
•O Voador desaparece e são Baltasar e Blimunda que escondem a sua invenção. Mais
tarde seguem o seu rasto: “Isto aqui é a serra do Barregudo, lhes disse um pastor, e aquele
monte além é Monte Junto ”;
além…é Junto. ;
•Em Mafra faz-se uma procissão ao que se julgou ser a aparição do Espírito Santo.
10. XVII •Baltasar regressa a Mafra com Blimunda e começa a trabalhar nas obras do convento;
•Dois meses mais tarde Sete-Sóis regressa a Monte Junto para ver a passarola;
•Scarlatti anuncia a morte d V d “Vi
S l i i do Voador “Vim-te di dizer, e a B l
Baltasar, que o padre
d
Bartolomeu de Gusmão morreu em Toledo… dizem que louco…”.
XVIII •Visão irónica e trocista de Portugal;
•Caracterização dos gastos reais e dos trabalhadores em Mafra;
•Demonstração dos esforços e vítimas na construção do convento;
•Relatos de histórias pessoais dos trabalhadores
trabalhadores.
XIX •Baltasar torna-se boeiro através da ajuda de José Pequeno;
j q
•Participa no transporte da pedra de Pêro Pinheiro: “Entre Pêro Pinheiro e Mafra
gastaram oito dias completos. Quando entraram no terreiro…toda a gente se admirava
com o tamanho desmedido da pedra tão grande Mas Baltasar murmurou olhando a
pedra, grande.
basílica, tão pequena.”;
•Morreu Francisco Marques sob o peso de um dos muitos carros de bois que
transportavam a enorme pedra.
XX •Sete-Luas e Sete-Sóis vão juntos “cuidar” da passarola.
•De manhã, ainda em jejum Blimunda certifica-se que as duas mil vontades ainda se
encontram dentro das esferas;
•Morre João Francisco, pai de Baltasar.
XXI •D. João V toma a decisão de que a sagração do convento se fará em 22 de Outubro de
1730, data do seu aniversário (ano de 1730 uma vez que seria o único ano em que o seu
aniversário calharia ao domingo);
•O rei megalómano decide ampliar o projecto do convento de 80 para 300 frades;
•São recrutados operários em todo o reino que são escolhidos como tijolos
reino, tijolos.
XXII •Casamentos da infanta Maria Bárbara com o príncipe Fernando VI de Espanha e do
p íncipe
príncipe D. José com a infanta espanhola Maria Vitória;
Ma ia Vitó ia;
•Esta “troca de princesas” une as famílias reais de Portugal e Espanha;
•A cerimónia do casamento é acompanhada pela música de Domenico Scarlatti.
11. XXIII •Baltasar vai ao Monte Junto, sozinho, para verificar o estado da passarola;
•A máquina levanta voo quando, sem intenção, Baltasar rasga os panos que tapavam
as esferas “Baltasar viu os panos arredarem se para o lado com estrondo o sol inundou a
Baltasar arredarem-se estrondo,
máquina, brilharam as bolas de âmbar e as esferas. A máquina rodopiou duas vezes,
despedaçou, rasgou os arbustos que a envolviam, e subiu. Não se via uma nuvem no
céu.”.
é ”
XXIV •Em Mafra há a sagração do convento, em 22 de Outubro de 1730;
•Blimunda inquieta e angustiada procura incessantemente o seu “marido”;
•Usa o espigão de Baltasar para evitar ser violada por um frade.
XXV •Sete-Luas procurou Baltasar por todos os lados “Durante nove anos, Blimunda
procurou Baltasar. Conheceu todos os caminhos do pó e da lama, a branda areia, a pedra
aguda, t t vezes a geada rangente e assassina, d i nevões d que só saiu viva porque
d tantas d t i dois õ de ó i i
ainda não queria morrer”.
•Em 1739, “onze supliciados”, entre eles António José da Silva, o Judeu, estão prestes a
ser queimados na fogueira;
•Baltasar é um dos condenados: “Naquele extremo arde um homem a quem falta a mão
esquerda
esquerda”. Após reconhecer o seu amado Blimunda viu que “uma nuvem fechada está no
uma
centro do seu corpo. Então Blimunda disse, Vem.”.
Acção
Construção do Convento de Mafra
A acção d
ã desenrola-se acerca d vários t
l de á i temas. P é o t
Porém, tema f l l é a
fulcral
construção do convento de Mafra.
Ao longo de toda a narração desta construção estão presentes as relações
construção,
entre a Coroa e a Igreja que detêm o poder sobre o povo. Para além de serem
contados sonhos, eventos e histórias variadas, também são tecidos comentários
, ,
e sentenças do narrador.
São três os momentos fundamentais quando falamos neste Convento: a
escolha do local, o lançamento da primeira pedra e a sagração da Basílica.
O romance inicia-se com a promessa do rei português em mandar edificar
um convento em Mafra se no prazo de um ano a rainha concebesse um filho.
Após o nascimento de uma filha em 1712, D. João V faz cumprir a sua
promessa.
promessa Este lança a primeira pedra do convento a 17 de Novembro de 17171717.
12. Toda a obra é elevada através da exploração do povo.
Primeiramente, os trabalhadores são recrutados à força. Passado alguns
anos dá-se o transporte de uma pedra enorme desde Pêro Pinheiro a
Mafra,
Mafra onde morrem homens e animais
animais.
É também na narração desta acção que o leitor toma conhecimento
do temperamento megalómano do rei Como se já não bastasse mandar
rei.
elevar uma construção por mero capricho, D. João V ainda tenta
convencer o seu arquitecto a construir uma Basílica. Como tal é
impossível, faz com que o convento que inicialmente seria para oitenta
frades passe para trezentos. Como esta decisão não implica que o prazo
de
d construção seja alargado (1730) é necessário um novo recrutamento
ã j l d (1730), ái
de homens.
Toda a narrativa respeitante à construção do Convento de Mafra
termina com a sagração da Basílica no dia do aniversário do rei em
1730, como havia sido previsto. As obras ainda não tinham terminado.
, p A
Construção d passarola (narrativa encaixada)
C ã da l ( i i d )
O sonho do padre Bartolomeu Lourenço é concretizado quando a
p ç q
passarola, no fim de construída, voa. Esta narrativa surge-nos intercalada
com a narrativa principal.
A máquina voadora é construída na quinta d S S b iã d P d i
á i d íd i de S. Sebastião da Pedreira.
Os seus criadores, para além do Voador são Baltasar e Blimunda. Sete-Sóis é
a força ao passo que Sete-Luas é a magia. Só todos estes componentes
f ç p q g p
fizeram elevar a passarola.
O primeiro voo desta máquina é um pouco atribulado uma vez que foi
precipitado. O padre B l
i i d d Bartolomeu d G ã após d b i que o S
de Gusmão, ó descobrir Santo
Ofício o persegue, decide fugir na sua criação. A passarola voa sobre Lisboa,
p
passa por Mafra e cai em Monte Junto.
p f J
Depois de aterrarem, o padre fora de si, tenta destruir a sua invenção.
Como é impedido por Baltasar, desaparece. A sua morte em Toledo é mais
tarde anunciada por D
d i d Domenico S l i
i Scarlatti.
13. O amor verdadeiro de Baltasar e Blimunda (narrativa
(
encaixada)
O encontro entre Baltasar e Blimunda dá-se no auto-de-fé onde a
dá se auto de fé
mãe da segunda é condenada ao degredo em Angola. Nessa noite, após
receberem a bênção do padre Bartolomeu, o casal une-se espiritual e
corporalmente. A i
l intensidade e perfeição d
id d f i ã deste amor são admiráveis.
ã d iá i
Esta é uma relação de cumplicidade e entendimento totais.
. p de Baltasar desaparecer
Depois p
com a passarola, Blimunda,
incessante e incansável procura o seu
complemento d
l durante nove anos.
Acaba por encontrá-lo na fogueira
de um auto-de-fé Juntamente com
auto-de-fé.
ele está também António José da
Silva, o Judeu
fig.7 Destino cruel de Baltasar, a
fogueira
Encaixe de outras narrativas
O encaixe de outras narrativas na narrativa principal trata se de
trata-se
uma técnica que consegue desviar a atenção do leitor da narrativa
principal, para atentar em aspectos paralelos da História, personagens
menos importantes, acontecimentos de segunda ordem, mas que
influenciam a linha diegética primeira.
Este fenómeno surge nos em “Memorial do Convento”,por exemplo
surge-nos Memorial Convento por exemplo,
quando Baltasar num domingo depois da missa decide ir beber com
outros trabalhadores. Neste dia, são sete os narradores intradiegéticos
que, um de cada vez criam pequenas narrativas secundárias encaixadas.
São eles: Francisco Marques, José Pequeno, Joaquim da Rocha, Manuel
Milho,
Milho João Anes Julião Mau-Tempo e o próprio Baltasar Mateus O
Anes, Mau Tempo Mateus.
relato destas sete personagens surge-nos na obra com o intuito de
mostrar a vida miserável e as conversas trocadas entre os vinte mil
homens que ergueram o C
h Convento d M f
de Mafra.
14. Pequenos excertos analisados
q
Página 11 e 12
“D. João, quinto do nome na tabela real…Mas Deus é grande.”
Ao longo deste excerto, José Saramago pretende criticar a relação
conjugal do casal régio. Chega mesmo a afirmar que, a rainha D. Maria Ana
j g g C g f q , M A
Josefa, apenas chegou de Áustria para “dar infantes à coroa portuguesa”.
No entanto, apesar de todas as obrigações conjugais, a rainha “até hoje
p g ç j g j
ainda não emprenhou”. Devido a esta delicada situação, a esposa de D. João V
implora aos céus um filho.
Cabe à mulher implorar aos céus por um herdeiro uma vez que é
“naturalmente suplicante”. Obviamente o problema de infertilidade nunca
poderia ser atrib íd a r i dad q “a esterilidade não é mal d h
d ria r atribuído ao rei dado que a t rilidad ã al dos homens, da
mulher sim” e porque “abundam no reino bastardos da real semente”.
Assim, uma vez que o rei é persistente e a situação já não é nova (“D.
Maria Ana Josefa, que chegou há mais de dois anos da Áustria”), só a
ajuda di i poderá auxiliar a rainha.
j d divina d á ili i h
É ainda visível neste trecho a crença que há em Deus. Crê-se que
aquilo que virá a acontecer acontecerá por intervenção divina (“Mas
acontecer, ( Mas
Deus é grande.”).
Em suma, o autor pretende iniciar o romance com uma acesa crítica
às relações da família real, consequentes traições e também às
expectativas exageradas que toda a população depositava em Deus.
15. Página 13 e 14
“Mas vem agora entrando D. Nuno da
Cunha…a fertilidade dificultosa da rainha”
f f
Este é o excerto onde D. João V prometeu elevar um convento
de franciscanos em Mafra, se Deus lhe desse sucessão.
D. Nuno da Cunha, bispo inquisidor, dá a entender ao rei
megalómano que se der a Deus algo, Ele retribuirá o favor. Aqui é
criticado o interesse que sempre motivou o Clero.
“Prometo, pela minha palavra real, que farei construir um
convento de franciscanos na vila de Mafra se a rainha me der um filho
no prazo de um ano a contar deste dia em que estamos”
Página 15
“Mas el-rei já se anunciou…sem o qual não pode dormir, seja
inverno ou verão”
i ã ”
Este é o primeiro encontro entre D.
João V e a sua esposa, após o primeiro
ter feito a promessa.
Mais uma vez, esta relação é alvo
de uma forte crítica por Saramago. O
autor de Memorial do Convento chega
mesmo a afirmar que “está o quarto uma
está
assembleia”. Toda o acto que deveria ser
de amor e intimidade é descrito aqui
como se d teatro se tratasse, onde os
de d
espectadores vêm e aplaudem. Até o Fig.9 mobiliário do século
comportamento do casal é teatral (“as
p ( XVIII
majestades fazem mutuas vénias, nunca
mais acaba o cerimonial”).
16. D. João V encontra-se d “
de “espírito aceso” para mais uma tentativa
”
de conseguir um herdeiro. O rei possui uma dupla motivação: o “dever
carnal
carnal” e “a promessa que fez a Deus por intermédio e bons ofícios de
a
frei António de S. José”.
Concluindo, mais uma vez José Saramago demonstra a repugna
q
que sente pelo rei absolutista. Desta vez não só crítica a relação de
p ç
obrigação que tem com a sua mulher, mas também a promessa absurda
que fez só por capricho, sem pensar no sofrimento que viria a causar.
Página 16
g
“Vestem a rainha e o rei camisas compridas…sejam segredo do
confessionário”
Neste fragmento do romance de José Saramago são-nos dados
pormenores. A razão pela qual o autor os descreve é apenas para trazer
mais veracidade ao que relata. Assim, a descrição do vestuário do casal,
o facto da camisa da rainha ter um “bom meio palmo mais para que nem
bom mais,
a ponta dos pés se veja, o dedo grande ou os outros” apenas nos
aproxima mais da realidade do século XVIII.
p x
Continua a ser ironizada toda a relação do casal “D. João V
conduz D. Maria Ana ao leito, leva-a pela mão como no baile o
cavaleiro á dama”.
17. Seguidamente, o autor da
obra mostra-nos como o rei
“confia no poder celestial . O rei
fi d l ti l” i
e a rainha “ajoelham-se e dizem
as orações
ç acautelantes
necessárias”. Fig.10 e 11 imagens
Existem duas razões para relacionadas com a
o viril D J ã V o f
i il D. João fazer. E
Em religião.
primeiro lugar, o rei vaidoso tem
p
pavor de “morrer no momento do
acto carnal” e em segundo
espera “confiança em Deus e no
seu próprio vigor” para
vigor
conseguir um descendente.
Página 17
“D. Maria Ana estende ao rei a mãozinha suada e fria… Senhor,
. Ma ia ei f ia… Senho ,
ao menos um filho”
Saramago que, ao longo dos excertos anteriores nos mostrou a
forma teatral como ocorre a relação do casal real, neste trecho pretende
demonstrar ao leitor como termina a relação sexual (“e el rei que já
( e el-rei,
cumpriu o seu dever, e tudo espera do convencimento e criativo esforço
com que o cumpriu, beija-lha como a rainha e futura mãe, se não
presumiu d demasiado f António d S. José”).
d frei de ”)
Na segunda parte deste fragmento, o romancista dá-nos a entender
que sente pena da personagem feminina O facto de ela rezar
feminina.
sistematicamente por um filho (“Senhor, ao menos um filho”), e de
invejar nossa Senhora uma vez que teve um filho sem necessitar de
sacrifício suscita quer no autor quer no l
f leitor uma grande compaixão.
18. Página 54, 55, 56 e 57
54 55
“Frias hão-de ter parecido, a quem perto estivesse, as palavras
p q p p
ditas por Blimunda…Nunca te olharei por dentro”
É neste excerto que Baltasar e Blimunda se encontram pela
l l d l
primeira vez. As personagens encontram-se no auto-de-fé de Sebastiana
Maria de Jesus, mãe de Blimunda.
A filha da condenada, assiste imóvel à condenação da mãe “nem o
nome a salvou, degradada para Angola e lá ficar, quem sabe se
consolada espiritual e corporalmente pelo padre António Teixeira d
l d l l l d de
Sousa, que muita prática leva de cá”. Neste micro trecho, o autor critica
abertamente o clero.
“Que nome é o seu”. É assim que Blimunda trava conhecimento
com o seu futuro homem. Seguidamente, a relação inicia-se da forma
mais simples que se possa imaginar: ao ser deixada aberta uma porta.
A simplicidade desta relação é cativante. Blimunda serve sopa ao padre
Bartolomeu e a Baltasar. Depois, é com a colher de Baltasar que janta. Ao
p q j
fazer isto, Blimunda responde à pergunta “Aceitas para a tua boca a colher
que serviu a boca deste homem, fazendo seu o que era teu, agora tornando a
ser teu o que f i d l e tantas vezes que se perca o sentido d teu e d meu”.
foi dele, id do do ”
Inicia-se assim a relação de complementaridade destes dois seres.
O padre Bart l
adr Bartolomeu L rLourenço ab
abençoa este casal e o q o r d ia “a
a t a al que rodeia: a
comida e a colher” simbolizam o alimento, “o regaço” denota o carinho, “o
lume na lareira” expressa o calor humano, “a candeia” emblema a luz, ou
lareira a candeia
seja, o conhecimento, “a esteira no chão” figura o amor físico e “o punho
cortado de Baltasar” traduz o passado.
Quando o pároco saiu, o recém casal ficou sozinho. Baltasar começa a
debater-se entre ficar e voltar à sua casa em Mafra. Ao contrário do que
seria d esperar, Sete-Luas não o prende “ não quiseres f
de d “Se ficar, vai-te
embora, não te posso obrigar”. Mas, Sete-Sóis já estava enamorado pela sua
amada; supostamente ela já o teria olhado por dentro Todavia ela afirma
dentro.
que tal nunca fará.
19. O amor puro destes dois jovens continua quando ele pergunta “Se eu
ficar, onde durmo?” ao que ela responde “Comigo”. Parece que para eles mais
nada interessava para além d l os d
d l deles dois. Este sim é o amor no seu estado d
original.
Seguidamente Blimunda faz uma jura de sangue “Com as pontas dos
Com
dedos médio e indicador humedecidos nele, Blimunda persignou-se e fez uma
cruz no peito de Baltasar, sobre o coração”. A partir daquele momento, nunca
mais se separaram.
Com t
C este casal, S
l Saramago d demonstra o que é o verdadeiro amor. E t não
t d di Este ã
é o que une o casal régio nem sequer o que une muitos casais da actualidade.
Esta relação baseia-se no amor, na confiança e sobretudo na liberdade.
ç f ç
fig. 12, 13, 14, 15 e 16 objectos relacionados com o casal
Página 202 à página 210
“Agora, sim, podem partir…para seu primeiro milagre aéreo não
esteve nada mal”
Neste
N t excerto a passarola voa pela primeira vez.
t l l i i
O Voador chega à Quinta do Duque de Aveiro apavorado uma vez
que o Santo Ofício o persegue. Sem alternativa vê-se obrigado a voar
vê se
para longe com os seus aliados, na sua construção. (“A máquina
estremeceu, oscilou como se procurasse um equilíbrio subitamente
perdido”, “ i d vezes sobre si própria enquanto subia”).
did ” “girou duas b i ó i t bi ”)
Já no seu, o padre Bartolomeu de Gusmão está completamente em
êxtase, orgulhoso e excitado com a sua criação. Pelo contrário, Blimunda
e Baltasar estão acanhados, com um certo receio de encararem o que os
rodeia (“Blimunda, Baltasar, venham ver, levantem-se daí, não tenha,
medo”).
d ”)
20. O inventor da passarola mal pode acreditar que concretizou o seu
maior sonho: voar. Chega mesmo a acreditar que vê “os frisos das
varandas onde o padre morou, e onde agora estão entrando os t ib i
d d d d tã t d tribunais
do Santo Ofício para o prenderem”. Porém, Bartolomeu não vê o cravo.
Domenico Scarlatti, chegando à quinta vê os seus colegas a
arrancarem na passarola. Esta é a única personagem que tem o privilégio
de ver voar a passarola. E, como que para ajudar neste momento mágico,
o músico senta-se ao cravo e t
úi t toca. D seguida, “
De id “porque muito b sabe
it bem b
ser perigoso deixar ali o cravo” deita-o ao poço.
Enquanto desaparece Scarlatti na terra, no céu, a trindade não
consegue mover-se pela ausência do vento. Mas, percebendo isto, logo é
solucionado o problema.
Contudo, a noite aproxima-se e, com ela o possível fim destes
transgressores (“É demasiado tarde, porém. Para o lado do Oriente já se
avistam sombras, a noite está-se aproximando, não é possível fugir-lhe.”)
está se fugir lhe. )
É neste momento crucial que se invertem os papeis das
q p p
personagens. O padre Bartolomeu Lourenço que, no principio da viagem
estava no comando da máquina voadora, nesta hora desiste por completo
resignando-se
resignando se à sua sorte: a morte Porém é Blimunda que assume a
morte. Porém,
chefia e, sem hesitações se abraça à esfera das vontades, juntando-lhes a
sua (“O padre Bartolomeu Lourenço olha indiferente, está fora do
mundo, para além d própria resignação, espera o f que não vai
d l da fim
tardar. Mas de súbito Blimunda solta-se de Baltasar, a quem convulsa
se agarrara quando a máquina precipitou a descida, e rodeia com os
braços uma das esferas que contêm as nuvens fechadas, as vontades,
duas mil são mas não chegam, cobre-as com o corpo, como se as quisesse
meter d tr d si ou j t r a elas. A máquina dá um salto br
t r dentro de i juntar-se l á i lt brusco,
levanta a cabeça, cavalo a que puxaram o bridão, suspende-se por um
segundo, hesita, depois recomeça a cair, mas menos depressa, e Blimunda
g p p
grita, Baltasar, Baltasar, não precisou chamar três vezes, já ele se
abraçara com a outra esfera, fazia corpo com ela, Sete-Luas e Sete-Sóis
sustentavam com as suas nuvens fechadas a máquina que baixava
agora, devagar.”).
21. A força do sonho é mais uma vez posta à prova aqui. Se não
fossem as vontades do casal os três teriam morrido No entanto
casal, morrido. entanto,
Blimunda não desistiu e, graças à sua força a passarola e os seus
tripulantes sobreviveram.
p
Fig.17 passarola
Personagens
Memorial do Convento possui uma vasta lista de personagens distintas
entre si.
Todas estas personagens estão agrupadas em dois grupos opostos. Em
primeiro lugar encontram se os poderosos do século XVIII onde naturalmente
encontram-se XVIII,
está integrado o monarca D. João V. Estas figuras passeiam-se pelas páginas
da obra cobertas de ridículo, ostentação, falsidade, indiferença pelo sofrimento
humano ou crueldade mal disfarçada de religiosidade.
No grupo oposto encontram-se os heróis esquecidos pela História. Porém,
na obra de Saramago estes “pequenos” ganham relevo desafiam os “grandes” e
Saramago, pequenos relevo, grandes
afirmam a sua rebeldia contra o que os oprime. Dois exemplos desta força são
Baltasar e Blimunda.
É necessário ainda referir que algumas figuras foram recortadas da
História, embora moldadas pelo narrador que lhes dá vida. Todavia, como em
todos os romances existem também personagens ficcionais onde reina o
fantástico.
22. Personagens históricas
D. João V
D. João V é um rei megalómano, egocêntrico, arrogante e poderoso.
Possui concentrado em si todo o poder (absolutismo). É um homem rico e
superficial, infantil e vaidoso. Pensa ser detentor do conhecimento mas o
p f , f
leitor chega à conclusão do oposto.
A relação desta personagem com a sua esposa apenas se baseia na
“obrigação de dar herdeiros à coroa”, ou seja o casal régio apenas
obrigação coroa seja,
cumpre os deveres maritais.
A caracterização do rei é feita predominantemente através da
descrição das
d i ã d suas acções e d seus pensamentos – d modo i di
õ dos de d indirecto.
“No dia seguinte, D. João V mandou chamar o arquitecto de Mafra,
um tal João Frederico Ludovice que é alemão escrito à portuguesa e disse
Ludovice, portuguesa, disse-
lhe sem outros rodeios, É minha vontade que seja construída na corte uma
igreja como a de S. Pedro de Roma, e, tendo assim dito, olhou severamente
g j
o artista.”
“Enfim o rei bate na testa, resplandece-lhe a fronte, rodeia-a o nimbo
da inspiração, E se aumentássemos para duzentos frades o convento de
Mafra, quem diz duzentos, diz quinhentos, diz mil, estou que seria uma
acção de não menor grandeza que a basílica que não pode haver.”
Fig.18
Fi 18 D. João
D Jã V
23. D. Maria Ana de Á
Áustria
Esta personagem é o espelho das mulheres do século
XVIII. É extremamente dedicada, obediente e
respeitadora.
respeitadora O seu único préstimo é o de dar “herdeiros à
herdeiros
coroa”. É uma mulher passiva, apática, devota e piedosa.
É também recalcada sexualmente, assídua de confrarias e
x , f
igrejas paroquiais.
Fig.19 D. Maria Ana Josefa
“Retirados el-rei e os camaristas, d d já as d
“ d l deitadas damas que a servem
e lhe protegem o sono, sempre cuida a rainha que seria sua obrigação
levantar-se
levantar se para as últimas orações mas tendo de guardar o choco por
orações, mas,
conselho dos médicos, contenta-se com murmurá-las infinitamente,
p
passando cada vez mais devagar as contas do rosário, até que adormece
g q
no meio duma ave-maria cheia de graça, ao menos com essa foi tudo tão
fácil, bendito seja o fruto do vosso ventre, e é no do seu ansiado próprio
que está pensando, ao menos um filh Senhor, ao menos um filh ”
á d filho, h filho.”
24. Infanta D. Maria Bárbara
. Ma ia á ba a
É a primeira filha do casal real. Tem “cara
p f
de lua cheia”, é bexigosa e feia, mas “boa
rapariga, musical a quanto pode chegar uma
princesa”. Casa aos 17 anos com o infante D.
” f
Fernando de Espanha, pelo que não chega
sequer a ver o convento que foi elevado em
honra do seu nascimento.
“…e agora vai Maria Bárbara para
Espanha, o convento é para si como um sonho
p , p
sonhado, uma névoa impalpável, não pode Fig.20 D. Maria
sequer representá-lo na imaginação, se a outra Bárbara
lembrança não serviria a memória”
Infante D. Francisco
D
É irmão de D João V Esta é uma personagem sem escrúpulos que cobiça
D. V.
o trono e a esposa do irmão, bem como se diverte a demonstrar a sua boa
pontaria de espingarda nos marinheiros que estão nos barcos ancorados no rio
Tejo.
Tj
“Levantemos agora os nossos próprios olhos que é tempo de ver o infante
Levantemos olhos,
D. Francisco a espingardear, da janela do seu palácio, à beirinha do Tejo, os
marinheiros que estão empoleirados nas vergas dos barcos, só para provar a boa
pontaria que tem, e quando acerta e eles vão cair no convés, sangrando todos,
um que outro morto, e se a bala errou não se livram de um braço partido, dá o
infante palmas de irreprimível júbilo enquanto os criados lhe carregam outra
júbilo,
vez as armas, bem pode acontecer que este criado seja irmão daquele
marinheiro, mas a esta distância nem sequer a voz do sangue é possível ouvir,
outro tiro, outro grito e queda, e o contramestre não se atreve a mandar d
i i d ã d descer
os marujos para não irritar sua alteza.”
25. João Frederico Ludovice
Este é arquitecto alemão, contratado por D. João V para a
edificação do convento de Mafra. É um homem vaidoso mas também
realista.
“Porém, há limites, este rei não sabe o que pede, é tolo, é néscio, se
julga que a simples vontade, mesmo real, faz nascer um Bramante, um
Rafael,
R f l um S Sangallo, um P
ll Peruzzi…se j l que b t vir di
i julga basta i dizer-me, a
mim, Ludwig, ou Ludovisi, ou Ludovice, se é para orelhas portuguesas,
Quero S. Pedro, e S. Pedro aparece feito, quando eu o que sei fazer é só
Mafras, artista sou, é verdade, e muito vaidoso, como todos, mas
conheço a medida do meu pé”
O Herói Colectivo: o Povo
A religião tem um grande efeito sobre esta classe social. Todo o
povo possui uma moral estreita devido a esta influência, ou seja, crê em
milagres, f iti i entre outros.
il feitiçarias t t
Esta faixa da população vive na completa miséria física e moral.
Toda ela sobrevivia aterrorizada pelo Santo Ofício
Ofício.
Por fim, o herói colectivo é humilhado e explorado constantemente
devido aos frequentes caprichos do rei
rei.
26. “Mas o grande (e todavia) inconsciente antagonista da classe
dominante ã
d i t são os i i i l t 10 000 d i 20 000 30 000 e por fi
inicialmente 000, depois 000, fim
40 000 operários abarracados numa imensa “ilha da Madeira” junto aos
canteiros da construção. (…)
Entre estes dois pólos, o de uma corte barroca e o de uma multidão
q
que sofre e dá quanto os seus músculos podem para simplesmente
f q p p p
sobreviver, o narrador desenrola sucessivos painéis e episódios, ora
patéticos ora burlescos, quando não de farsa trágica, que traçam, não
apenas o pitoresco como as tensões e as fugas de humor da época
joanina, mais exactamente de um período de cerca do primeiro terço do
século XVIII
XVIII.
O que neste conjunto de evocações há de mais inovador em relação
ao historicismo romântico é a emergência de caracteres populares
individualizados no seio de uma grande movimentação multitudinária
como que em busca de sentido próprio.”
Óscar Lopes, Os sinais e os Sentidos, ed. Caminho
Domenico Scarlatti
O músico nasceu Nápoles a 26 de Outubro de 1685. Foi um compositor
italiano de música barroca que chegou à corte portuguesa para ensinar os
infantes do século XVIII. Seguiu para Espanha com a infanta D. Maria
Bárbara para Espanha quando esta casou com Fernando VI deste mesmo reino.
p p q
Scarlatti passou a maior parte da sua vida entre Portugal e Espanha.
Através do seu estilo individual, teve uma enorme influência no
desenvolvimento do período clássico da música, embora ele tenha vivido a maior
parte da sua vida dentro do período barroco.
Morreu em Madrid a 23 de Julho de 1757.
Em Memorial do Convento, esta é uma personagem importante quando
falamos d passarola. F
f l da l Forma um quarteto j juntamente com a trindade já
i d d
existente. Aquando da subida da máquina voadora, a música do napolitano
tornou o momento mais mágico ainda sendo ele o único homem com o privilégio
ainda,
de assistir a tal acontecimento.
27. “…indo Domenico Scarlatti à quinta, viu, já chegando perto,
levantar-se de repente a máquina,…, só fica uma pungente melancolia,
esta que f sentar-se D
t faz t Domenico S l tti ao cravo e t
i Scarlatti tocar um pouco,
quase nada, apenas passando os dedos pelas teclas como se estivessem
aflorando um rosto quando já as palavras foram ditas ou são de menos,
e depois, porque muito bem sabe ser perigoso deixar ali o cravo, arrasta-o
para fora…até ao bocal do poço”
Padre Bartolomeu Lourenço de Gusmão
Este homem nasceu em Santos, em 1685. Ficou famoso por ter
inventado o primeiro aerostático operacional Ainda hoje é uma das
operacional.
maiores figuras da história da aeronáutica mundial. Morreu em Toledo a
18 de Novembro de 1724.
Em Memorial do Convento, Bartolomeu de Gusmão é capelão e
orador na corte, sendo um talentoso pregador. Vi atormentado pelas
d d l d Vive d l
dúvidas religiosas e, por isso, não respeita os dogmas da Igreja. É um
homem culto, dado a experiências aerostáticas, apoiado pelo rei nessas
, xp , p p
mesmas experiências. No fundo é um sonhador, que acaba por ser
perseguido pela Inquisição devido às suas “heresias”.
Esta personagem tem um cunho mágico e, por i
h á i isso, atrai Blimunda e
i li d
Baltasar. Forma com eles a trindade da construção da passarola, unindo
assim o real com o ficcionário. O seu maior sonho é um dia conseguir voar
f g
(“O homem primeiro tropeça, depois anda, depois corre, um dia voará”).
28. “É um homem que é mais do que ele: frade oratoriano, doutor em
leis por Coimbra orador da corte funcionário da corte sonha voar Este
Coimbra, corte, corte, voar.
seu sonho não se desenvolve por meios místicos, por entusiasmos da fé,
mas por via de uma razão mecanicista, calculadora, técnica, uma razão
experimental e f
l física, totalmente d
l desconforme com a mentalidade
f ld d
eclesiástica dominicana e jesuítica que imperava então no Terreiro do
Paço. (…) Devido à sua fé na ciência mais do que na inspiração cristã
da fé, P. Bartolomeu de Gusmão tenta unir as teorias antigas da física
medieval do éter como quinta-essência do mundo (para além dos quatro
elementos ar, á
l t água, t
terra e f ) com a electricidade presente no â b e
fogo) l t i id d t âmbar
o electromagnetismo do íman. Para isso, ele que estudara no Brasil e em
Portugal segundo o rígido esquema do ensino escolástico imposto pela
g g g q p p
contra-reforma, sente a necessidade de ir à liberal Holanda, comungar
das novas descobertas cientificas (…). É de lá que traz a nova teoria,
maravilhosa e paradoxal que destrói a antiga tese da existência de uma
paradoxal,
quinta-essência divina. (…) Isto é, o elemento espiritual, divino, que
tudo sustenta no universo, é simplesmente humano, está dentro de cada
homem. ”
h
Miguel Real
“De facto, a vida do “voador” permite, pela imprecisão dos seus
contornos, a entrada na lenda e na derivação semi-simbólica,
semifantástica ( ) O seu t j t entre a religião católica e o
if tá ti (…). trajecto, t li iã tóli
judaísmo, os passos da sua vida como religioso jesuíta, a sua alegada
entrada na bruxaria, as suas actividades alquímicas, o seu interesse
cientifico (sobretudo na aerostática), servem a transformação do seu
interesse individual específico – a construção de uma máquina voadora,
a passarola – em objecto do próprio sonho do homem (da sua “loucura”,
se quisermos), envolvendo a realidade e o desejo, o presente e o futuro.”
Isabel V. Ponce de Leão,
M.ª
M. do Carmo Castelo-Branco
Castelo Branco
Fig.22 Padre
Fi 22 P d
Bartolomeu Lourenço
29. Personagens Ficcionais
Baltasar Sete-Sóis
Sete Sóis
Baltasar Mateus esteve na guerra de sucessão de Espanha,
durante quatro anos. Foi di
d i dispensado d
d desta por ter perdido a mão
did
esquerda em combate. Após regressar, é num auto-de-fé que conhece
Blimunda, a quem se liga amorosa e espiritualmente. Mais tarde é
convidado pelo padre Bartolomeu Lourenço para o ajudar na
d d l d l d
construção da “passarola”, sonho que passa também a ser seu. Passado
algum tempo, começa a trabalhar nas obras do convento de Mafra,
g p f
primeiro como servente e, depois, como boeiro. Depois da morte do padre
Bartolomeu, é Baltasar que zela pela preservação da “máquina
voadora”. Porém, um dia, por descuido, é levado ao acaso pela máquina
, ,p , p q
que ajudou a construir. Acaba por ser condenado à fogueira nove anos
depois.
Esta é uma personagem do povo analfabeta e humilde que aceita
povo, humilde,
a vida tal como esta lhe surge.
Antes de conhecer Blimunda, Sete-Sóis era apenas um trabalhador
rude. Todavia,
rude Todavia o amor transformou-o elevando-o espiritualmente Tal
espiritualmente.
como o padre Bartolomeu de Gusmão é um homem sonhador.
A sua alcunha “Sete-Sóis” tem uma simbologia enorme. O número
sete é um número mágico e o sol é o símbolo da vida e do poder. Até a
g p
sua morte através do fogo simboliza o apagar da luz.
Posso afirmar que esta não é uma personagem heróica, é apenas um
homem que lutou pelos seus objectivos.
30. “A simpatia do narrador por Baltasar e por todos os outros que ele
representa, bem como por aqueles com quem mais directamente se
relaciona, é facilmente perceptível não só a partir da isenção de ironia no
modo como são apresentados. É t bé i di i d pelo f t d
d ã t d É, também, indiciada l facto da
narrativa, invertendo o rumo inicial e o próprio título do romance, se
preocupar em seguir o percurso seguido por Sete-Sóis que, dessa forma,
Sete Sóis
“destrona” o rei e o memorial do “seu” convento do primeiro plano.
Não se pense, contudo, que basta esta troca de privilégios no que
p , ,q p g q
toca a atenção do narrador para que de um soldado maneta se faça um
herói. O processo de heroicização respeitará várias etapas, entre os quais
a voluntária relação com Blimunda, cujos dons fantásticos, aliados ao
facto de ser filha de uma condenada pela Inquisição, embrionariamente
colocam Baltasar em situação de latente conflito com os valores da
sociedade setecencista.
É, todavia, pela relação de amizade com o padre Bartolomeu Lourenço,
e por uma espécie d reacção em cadeia, que a B l
é i de ã di Baltasar é f l d o
facultado
conhecimento de outras verdades bem diferentes daquelas que lhe são
permitidas.
permitidas Dizem estas verdades respeito não apenas ao
questionamento de dogmas religiosos mas também à tomada de
consciência do papel que o homem desempenha no mundo, mas este só
será compreendido depois de Baltasar ter aprendido a (re)conhecer e a
assumir o seu próprio valor. ”
Ana Paula Arnaut, Memorial do Convento, História, Ficção e Ideologia, ed. Fora do
Texto
x
31. Blimunda Sete-Luas
Sete Luas
Blimunda de Jesus é uma mulher do povo, a quem o padre Bartolomeu
Lourenço, b ti
L baptiza d “S t L ”. E t personagem vive um amor
de Sete-Luas Esta i
apaixonado, franco e leal com Baltasar; é o seu complemento. Possui o dom
de, em jejum, ver o interior das pessoas e das coisas, o que lhe permite recolher
as duas mil “vontades” indispensável para o funcionamento da passarola. É
detentora de grande densidade psicológica e de uma perseverança sem limites.
Esta capacidade é evidenciada quando procura “o seu homem” durante nove
anos. Une-se a ele eternamente ao retirar-lhe a vontade quando finalmente o
reencontra num auto de fé em que este está a ser queimado no fogo da
auto-de-fé
Inquisição…
O nome de Blimunda, estranho e raro tal como a personagem que o veste,
limunda, est anho a o pe sonagem
teria surgido ao narrador, talvez pela musicalidade que ele encerra ou pela
magia das suas três sílabas, símbolo da perfeição. Esta mulher representa a
força que permite ao povo a sua sobrevivência, assim como a contestação do
poder e resistência.
“Logo à primeira vista se percebe que as personagens de Saramago
g p p q p g S g
são tudo menos típicas. A sua excentricidade tem um duplo significado.
Por um lado, são personagens geralmente marginalizadas pelos rectos da
história oficial; assim, contribuem para uma nova visão dos
acontecimentos. Ao mesmo tempo, todos são literalmente excêntricos:
invulgares, originais,
invulgares originais diferentes dos outros representantes do seu meio
outros, meio,
como Baltasar, dotados de poderes sobrenaturais, como Blimunda (…)
Blimunda é daquelas figuras femininas que têm no romance de
Saramago uma forte presença, desempenhando o papel de
“desencadeadoras da acção” e cuja importância é, como diz o autor,
“motora”. Blimunda, além de introduzir a perspectiva feminina no
texto, serve também de veículo para os elementos do maravilhoso. É ela
que possuiu os poderes sobrenaturais que consistem na capacidade d
i d b t i it id d de,
quando em jejum, ver “por dentro” das pessoas e objectos.
32. Além disso caracterizam-na um excepcional poder perceptivo, de
intuição e compreensão da complexidade do mundo, qualidades que o
próprio narrador classifica como inverosímeis. Blimunda aprendeu as
coisas sobre a vida e a morte sobre o pecado e o amor “na barriga da
morte, na
mãe”, onde esteve “de olhos abertos”. Esta figura inesquecível constitui
um exemplo perfeito da personagem excêntrica, nela se combinando o
x p p f p g x ,
realismo de uma protagonista popular com o fantástico e o fictício. ”
Helena Kaufman
Sebastiana Maria de Jesus
Esta
E personagem é mãe d Bli de Blimunda. É condena pela Inquisição. A
d d l ii Ao
avistar a filha no meio da multidão que assiste ao auto-de-fé da Inquisição,
interroga se
interroga-se sobre a identidade do homem “tão alto que está perto de
tão alto,
Blimunda”. “Força” então a filha, apenas com o olhar, a perguntar o nome do
homem ao seu lado, nascendo assim a relação entre Sete-Luas e Sete-Sóis.
“Sebastiana Maria de Jesus, nem o nome a salvou, degredada para
Angola
A l e lá fi ficar, quem sabe se consolada espiritual e corporalmente pelo
b l d ii l l l
padre António Teixeira de Sousa, que muita prática leva de cá, e ainda bem,
para não ser tão infeliz o mundo mesmo quando já tem garantida a
mundo,
condenação.”
33. Marta Maria
Esta mulher é a mãe de Baltasar, é quem recebe o “filho pródigo” e
a “esposa” em sua casa quando estes vão pela primeira vez juntos a
esposa casa,
Mafra.
João Francisco
Este é o pai de Baltasar. É um homem do povo, trabalhador, cuja
subsistência reside na agricultura
agricultura.
Inês Antónia
Esta personagem é irmã de Baltasar e mãe de duas crianças. Sofre
imensamente a morte do filho mais novo, com pouco mais de dois anos,
que morre d “b xi ”.
rr de bexigas
Álvaro Diogo
É o marido de Inês Antónia. É um homem do povo e antigo
soldado com quem Baltasar trava amizade ao chegar a Mafra. É uma
importante ajuda quando consegue trabalho para Sete-Sóis na
Sete Sóis
construção do convento de Mafra.
34. Os trabalhadores do convento
Saramago criou uma personagem colectiva, cuja “força bruta” e
esforço desmedido são explorados de forma desumana No livro podem
desumana.
observar-se nomes como: Alcino, Brás, Cristóvão, Daniel, Egas,
Firmino, Geraldo, Horácio, Isidro, Juvino, Luís, Marcolino, Nicanor,
,G , , ,J , , , ,
Onofre, Paulo, Quitério, Rufino, Sebastião, Tadeu, Ubaldo, Valério,
Xavier e Zacarias. O autor escolheu um nome para cada letra do
alfabeto com o intuito de mostrar o numero exorbitante de trabalhadores
lf lh
que foram explorados na construção do convento de Mafra.
As relações amorosas
Casal régio
l
D. João V, rei
D J ã V o r i megalómano não ama a sua esposa D A d
ló ã D. Ana de
Áustria. Assim, a rainha, obediente, é obrigada a ter relações com o
marido com um único intuito: procriar. O casamento das figuras reais é
p fg
um casamento por procuração baseado apenas em interesses políticos.
Não há espaço para o amor nesta relação. Há apenas o cumprimento das
obrigações conjugais (“duas vezes por semana cumpre vigorosamente o
( duas
seu dever real e conjugal”).
O respeito é outro aspecto que não cabe nesta união. O rei absoluto
p p q
é adultero e imoral. Ao ter relações com as freiras do Convento de
Odivelas encontra o amor carnal e sensual que não possui com a rainha
( abundam
(“abundam no reino bastardos da semente real”)
real ).
35. Baltasar e Blimunda
Estas duas personagens são o oposto das figuras reais. Baltasar e
p g p fg
Blimunda são pessoas apaixonadas que vivem um para o outro. Sete-
Sóis é o complemento de Sete-Luas e vice-versa. A união destas
personagens é mágica e, é d notar que, em todo o romance não se
á i de d ã
separam. Quando o homem é levado pela passarola “Durante nove anos,
Blimunda procurou Baltasar ”. Mesmo quando Sete-Sóis ardia na
Baltasar. Sete Sóis
fogueira, Sete-Luas recolheu a sua vontade, ficando com ela sempre.
Este casal representa a utopia do amor, o amor verdadeiro e eterno.
O encontro dos corpos e das almas, o amor espiritual e carnal são
perfeitamente visualizados nestas duas personagens. Eles amam-se
quando querem e onde querem, sendo por isso transgressores para a época
em que viviam. Porém, o que mais marca a relação é a
complementaridade, fidelidade,
complementaridade a fidelidade e a liberdade que cada interveniente
possui.
“Ali se deitaram, numa cama de folhagem, servindo as próprias
roupas despidos de abrigo e enxerga. Em profunda escuridão se
p p g x g p f
procuraram, nus, sôfrego entrou ele nela, ela o recebeu ansiosa, depois a
sofreguidão dela, a ânsia dele, enfim os corpos encontrados, os
movimentos, a voz que vem do ser profundo, aquele que não tem voz, o
grito nascido, prolongado, interrompido, o soluço seco, a lágrima
inesperada,
inesperada e a máquina a tremer a vibrar porventura não está já na
tremer, vibrar,
terra, rasgou a cortina de silvas e enleios, pairou na alta noite, entre as
nuvens, Blimunda, Baltasar, pesa o corpo dele sobre o dela, e ambos
, , ,p p ,
pesam sobre a terra, afinal estão aqui, foram e voltaram.”
36. Espaço
Espaço físico
São abundantes as referências aos espaços físicos neste romance.
Existem espaços exteriores interiores e geográfico É ao longo das ruas e
exteriores, geográfico.
dos caminhos, das igrejas e das casas que as personagens interagem,
dando a conhecer ao leitor a sua história.
No fundo, o espaço físico é o espaço real, onde os acontecimentos
ocorrem. O autor descreve-o para conferir uma maior verosimilhança à
p f
história narrada.
Espaço geográfico
Lisboa e Mafra são os espaços fulcrais do espaço geográfico uma
vez que é l que se movimentam as personagens principais. Dentro
lá
destes espaços, o autor dá a conhecer ao leitor, nomeadamente, o Terreiro
do Paço (local que revela a vida na corte) o Rossio (local muito
corte),
frequentado, onde se realizam, por exemplo, os autos-de-fé), S. Sebastião
da Pedreira (localidade situada nos arredores de Lisboa, onde decorre a
(
construção da “passarola”, na quinta do duque de Aveiro), a “ilha da
Madeira” (vale onde os trabalhadores descansam).
37. Faz-se ainda referência a Évora, Montemor, Pegões, Aldegalega
(locais por onde Sete-Sóis passa, depois de regressar da guerra, no seu
percurso até chegar a Li b ) à serra d B
té h Lisboa); do Barregudo, ao M t J t ao
d Monte Junto,
Monte Achique, a Pinheiro de Loures, a Pêro Pinheiro (local onde os
homens vão buscar a brutesca pedra para o convento), a Cheleiros,
Torres Vedras, Leiria, à região do Algarve, Alentejo e Entre-Douro-e-
Minho.
Fig.23 Lisboa
Espaço exterior
Os espaços exteriores percorrem as
páginas de Memorial do Convento,
fornecendo o local para as personagens se
deslocarem.
deslocarem Na obra surgem-nos como
surgem nos
espaços exteriores as ruas e praças, o Terreiro
do Paço, Remolares, Rossio, o morro das
Taipas, S R
T i S. Roque, V l d o vale d “ilh
Valverde, l da “ilha
da Madeira” e os campos. São inúmeros os
caminhos. Destes são destacadas as imundas
ruas da Lisboa setecentista, o Tejo
(considera-se o caminho aquático para
pessoas e mercadorias) os deslumbrantes e
mercadorias),
temíveis caminhos do ar, todos os itinerários
que convergem em Mafra e, por fim, os
longos e pedregosos trilhos que calejaram os
pés de Blimunda durante nove anos.
38. Espaço interior
Também os espaços interiores abundam nas páginas de Memorial
do Convento. É descrito ao leitor o Palácio Real (Lisboa), a albegoaria
R ( ), g
da quinta do duque de Aveiro (local onde foi construída a passarola), a
casa dos pais de Baltasar (Mafra).
É ainda de referir o magnífico contraste entre o esplendor barroco
das igrejas e palácios, e despojamento das casas e dos barracões onde
vivia a população. T d i algumas h bit õ ganham uma
i i l ã Todavia, l habitações h
importante riqueza simbólica não pelo seu interior, mas sim pelas acções
das personagens nestes mesmos locais. Estes locais simbólicos
transportam-nos para o espaço simbólico.
“Leva a dita igreja uns altos e fortes mastros, dispostos pela
mesma formalidade dos alicerces quer dizer segundo o perímetro que
alicerces, dizer,
terá a basílica definitiva, e o tecto será armado com velas de navios,
f
forradas de pano de brim, planta em cruz, como igreja que se preza ser,
p ,p , g j q p ,
de madeira, sim, e provisória, mas com a dignidade de anunciadora da
que de pedra aqui se construirá”
Fig.25 Interior de uma
g
igreja
39. Espaço simbólico
“Baltasar e Blimunda, com as suas três mãos e um gancho
construíram a sua casa, levantaram, haveria que dizer com mais
exactidão, uma parte e dependurado a outra, que são estas as técnicas de
construção de que sempre se serviu a escassez para estabelecer a sua
casa,
casa erguer um poste crescer um muro içar a lona pendurar uma
poste, muro, lona,
cortina. Marcaram-se os limites de um novo território, seleccionou-se
uma parte para que de facto isso seja uma casa, um lugar onde estaremos
p p q f j , g
sós, uma acomodação, um recinto para descanso, para nos entregarmos
mutuamente e sermos os três, Sete-Sóis, Sete-Luas e a casa, uma única
casa.”
José J
J é Joaquín Parra Bañon
í P B ñ
Este é o espaço da dimensão simbólica. Saramago relaciona-o com o
par amoroso Blimunda e Baltasar.
A casa de Blimunda (Lisboa), a abegoaria (onde foi construída a
passarola), o palheiro de Morelena, a passarola, a barraca da burra
(Mafra)
(M f ) e a natureza são os l i onde S Sói e S L se amaram
ã locais d Sete-Sóis Sete-Luas
sem regras ou preocupações.
Também a dimensão do olhar pode ser enquadrada neste espaço
espaço,
uma vez que foi através dele que tudo começou (“Não tenho forças que
me levem daqui, deitaste-me um encanto…olhaste-me por dentro”).
q , p )
fig.26 olho de Blimunda
40. Espaço psicológico
p ç p g
“São os sonhos que seguram o mundo na sua órbita. Mas são
também os sonhos que lhe fazem uma coroa de luas, por isso o céu é o
resplendor que há dentro da cabeça dos homens o próprio e único céu ”
homens, céu.
Memorial do Convento
O espaço psicológico no qual se integram as vivências íntimas das
personagens, os seus pensamentos, sonhos, estados de espírito, memórias
e reflexões. Todos estes aspectos ajudam a caracterizar o ambiente que
lhe tá
lh está associado.
i d
José Saramago dá ao leitor alguns espaços psicológicos: o sonho, a
imaginação, a memória e a reflexão.
Se o leitor prestar atenção à obra verá que ao longo dela são
p ç q g
descritos os sonhos de várias personagens, onde são revelados os seus
mais íntimos desejos, ansiedades e inquietações. Exemplo disto é a
rainha que sonha com o cunhado, D. Francisco (“
h h h d (“São meandros d
d da
inconsciência real, como aqueles outros sonhos que sempre D. Maria
Ana tem vá lá explicá-los quando el-rei vem ao seu quarto que é ver-se
tem, explicá-los, quarto,
atravessando o Terreiro do Paço para o lado dos açougues… enquanto o
infante D. Francisco, seu cunhado,, cujo antigo quarto agora ocupa,
f j g q g p
alguma assombração lhe ficando, dança em redor dela, empoleirado em
andas, como uma cegonha negra.”).
Fig.27 cegonha negra
41. Por outro lado temos o campo da imaginação. Este aspecto é
frisado por exemplo na procura incessante de Blimunda por Baltasar
(“Quantas vezes imaginou Blimunda que estando sentado na praça de
uma vila, a pedir esmola, um h
il di l homem se aproximaria e em l
i i lugar dde
dinheiro ou pão lhe estenderia um gancho de ferro, e ela meteria a mão
ao alforge e de lá tiraria um espigão da mesma forja, sinal da sua
constância e guarda, Assim te encontro, Blimunda, Assim te encontro,
Baltasar”).
Também a “memória” chega até ao lector através de Baltasar.
Exemplo deste factor é o episódio em que Sete-Sóis relembra como
perdeu a mão esquerda (“…contudo já pensou tudo isto, e mais ainda,
que foi lembrar-se dos seus próprios ossos, brancos entre a carne
rasgada,
rasgada quando o levavam para a retaguarda e depois a mão caída
retaguarda, caída,
arredada para o lado pelo pé do cirurgião”).
Por fim o espaço da reflexão é visível na conversa que a rainha
fim,
tem com a infanta D. Maria Bárbara no dia do casamento da última.
“Então é nada esta infanta que eu sou, nada os homens que vão
além, nada este coche que nos leva, nada aquele oficial que vai à chuva e
olha para mim, nada, A i é minha filh e quanto mais se f
lh i d Assim i h filha, t i for
prolongando a tua vida, melhor verás que o mundo é como uma grande
sombra que vai passando para dentro do nosso coração, por isso o mundo
se torna vazio e o coração não resiste, oh, minha mãe, que é nascer,
Nascer é morrer, Maria Bárbara.”
42. Espaço Social
O espaço social demonstra ambiente social vivido pelas
personagens. O narrador tem preferência por grandes aglomerados de
pessoas que permitem mostrar a realidade social do século XVIII.
Por
P exemplo, o E
l Entrudo, a Q
d Quaresma e a procissão d penitência
i ã de iê i
são narrados com o pretexto de ficarem conhecidos os excessos e a
imoralidade destas épocas Quanto a histórias de milagres e de crimes o
épocas. crimes,
autor pretende transmitir a obtusidade do povo, bem como as crendices e
as superstições do mesmo. Se referenciarmos os autos-de-fé podemos
observar a repressão religiosa e o fanatismo típicos do século XVIII. Por
outro lado, os baptizados e os funerais régios transparecem o luxo e a
ostentação d f íli real; a vida e a morte como um espectáculo.
ã da família l id á l
Também o clero é vitima da crítica de Saramago em relação ao luxo e
sumptuosidade quando o inquisidor D. Nuno da Cunha é elevado a
cardeal.
Igualmente a vida conventual do clero em geral é ironizada, sendo
revelados a sua vida imoral e a corrupção de costumes.
Por outro lado, o povo é criticado, tal como nos autos-de-fé, dado
que vêm o sangue e a morte como um espectáculo. Similarmente à
procissão da penitência, também a procissão do Corpo de Deus é alvo de
ironia devido ao luxo e excessos, principalmente do rei.
Finalmente, o cortejo d casamento d i f
i l j de dos infantes mostra o papel d
l da
mulher no casamento (através da conversa da rainha com a filha), a
ostentação e o luxo da realeza em contraste com as condições miseráveis
em que vive o povo e também o estado deplorável em que se encontravam
os caminhos por que passaram.
p q p
43. Tempo
“(…) entendo o tempo como uma grande tela, uma tela imensa,
onde os acontecimentos se projectam todos, desde os primeiros ao de
agora mesmo. Nessa tela, tudo está ao l d d tudo, numa espécie d
l d lado de d de
caos, como se o tempo fosse comprido e além de comprido espalmado,
sobre essa superfície; e como se os acontecimentos os factos as pessoas
acontecimentos, factos, pessoas,
tudo isso aparecesse ali não diacronicamente arrumado, mas numa outra
“arrumação caótica”, na qual depois seria preciso encontrar um sentido.”
ç q p p
in, Carlos Reis, Diálogos com José Saramago
Tempo histórico
O tempo histórico é o conjunto de referências a acontecimentos e a
personagens reais que transmitem pormenores d é
i i da época, neste caso, d
do
século XVIII, ao texto.
O tempo histórico é visível em Memorial do Convento através dos
factos da História que podem ser comprovados. São alguns os exemplos
tais como, o casamento de D. João V e D. Maria Ana Josefa (1708), o
, J A J f ( ),
início da construção do Convento de Mafra (1717) e o último auto-de-fé
onde é sentenciado António José da Silva, o Judeu (1739).
44. Tempo diegético ou da história
Tempo diegético é o tempo durante o qual a acção se desenrola,
segundo uma ordenação cronológica e em que surgem marcas objectivas
da passagem do tempo (anos, dias, horas, etc.).
As referências temporais não são abundantes, e algumas são mesmo
deduzidas. Sabe-se
deduzidas Sabe se que a narrativa se inicia em 1711 (“D João quinto
( D. João,
do nome na tabela real, irá esta noite ao quarto de sua mulher, D. Maria
Ana Josefa, que chegou há mais de dois anos da Áustria para dar
f q g p
infantes à coroa portuguesa e até hoje ainda não emprenhou”, “Em mil
setecentos e quarenta terei cinquenta e um anos, e acrescentou
lugubremente,
lugubremente Se ainda for vivo”) Também é do conhecimento do leitor
vivo ).
que a construção do convento de Mafra é datada de “dezassete de
novembro deste ano da graça de mil setecentos e dezassete”.
É ta bé dad a conhecer p l r i a data da sagração da ba íli a d
também dado h r pelo rei agra ã basílica de
Mafra (“segundo o Ritual, e então el-rei mandou apurar quando cairia o
dia do seu aniversário, vinte e dois de outubro, a um domingo, tendo os
anive sá io, outub o,
secretários respondido, após cuidadosa verificação do calendário, que tal
coincidência se daria daí a dois anos, em mil setecentos e trinta”.). Por
fim, a última referência temporal é a do auto-de-fé onde Baltasar é
queimado em conjunto com o Judeu, em 1739.
Contudo, o tempo não passa só sobre a hi ó i É visível o
d ó b história. ií l
envelhecer das personagens com o decorrer da obra. Quando se conhecem
Blimunda e Baltasar têm respectivamente 19 e 26 anos Mais tarde
anos. tarde,
quando Sete-Sóis afirma ter estado perto do sol tem 40 anos e a sua
companheira 33. Seguidamente, Baltasar é levado pela passarola no dia
p g p p
21 de Outubro de 1730, aos 45 anos, tendo a sua mulher 38 anos. Por
fim, Blimunda procura o amado durante nove anos. Encontra-o na hora
da
d sua morte tendo ela 47 e ele 54 anos.
d l l
45. Tempo do discurso
O tempo do discurso é o modo como o narrador conta os
discu so na ado
acontecimentos. Este pode elaborar o seu discurso segundo uma
frequência, ordem e ritmo temporais diferentes.
Se tivermos em conta a frequência temporal podemos ter: um
discurso singulativo, se o narrador narrar apenas uma vez o que
aconteceu, um di
discurso repetitivo, se o expositor enumerar várias vezes o
ii i ái
que só ocorreu uma vez e um discurso iterativo se o relatador contar uma
vez o que sucedeu várias vezes
vezes.
Porém, se analisarmos a ordem temporal, obtemos: analepses nas
quais o narrador narra no presente acontecimentos já passados; prolepses
caso o historiador antecipe acontecimentos futuros e ordens lineares se o
expositor seguir a ordem cronológica dos eventos .
Por fim, se tivermos em conta o ritmo temporal teremos anisocronias, ou
seja, não há coincidência entre o t
ja ã i idê ia tr tempo da hi tória e d di r e i r ia
história do discurso, isocronias
em que há concordância entre os dois tempos (discurso directo).
Na sua generalidade o discurso do narrador segue o fluir cronológico da
generalidade,
acção. No entanto são conhecidos algumas anisocronias. Estas podem ser
decorrentes do tratamento do tempo quando nos referimos a analepses
p q f p
(analepse que faz referência à vontade dos franciscanos terem um convento) e
prolepses (morte do sobrinho de Baltasar e de D. Pedro). Podem ainda ser
resultantes d estatuto d um narrador que não quer ocultar a sua
l do de d l
personalidade de homem do século XX. Esta característica está patente no
romance quando o leitor observa comentários juízos críticos e registos de
comentários,
língua (“que se lixam, com perdão da anacrónica voz”) e de acontecimentos
desse tempo (“os capelões de varas levantadas e molhos de cravos nas pontas
p ( p p
delas, ai o destino das flores, um dia as meterão nos canos das espingardas”).
Sabe-se que estes desvios temporais apenas surgem na obra para esbaterem a
barreira
b i entre d i tempos dif
dois diferentes: o presente reflecte-se e revive-se no
fl i
passado, interpretando-se.
46. Tempo psicológico
T i ló i
O tempo psicológico não está relacionado com a problemática
existencial de cada personagem. Se a figura está feliz ou aborrecida
x p g fg f
assim o tempo passa depressa ou devagar.
Este fenómeno é observado no percurso até Espanha, no dia do
casamento de Maria Bárbara. Esta vai observando o que a rodeia
tomando consciência sobre o facto de nunca ter visto o convento
instituído
i tit íd em h honra d seu nascimento (“S h mãe e rainha minha,
do i t (“Senhora ã i h i h
aqui estou eu, indo para Espanha, donde não voltarei, e em Mafra sei
que se constrói um convento por causa de voto em que fui parte, e nunca
ninguém de cá me levou a vê-lo, há nisto muita coisa que não sei
entender”).
Narrador
“Conhecemos o narrador que se comporta de um modo imparcial,
que vai dizendo escrupulosamente o que acontece, conservando sempre a
sua própria subjectividade fora dos conflitos de que é espectador. Mas
há um outro tipo de narrador, mais complexo, que não tem uma voz
única: é um narrador substituível um narrador que o leitor vai
substituível,
reconhecendo como constante ao longo da narrativa, mas que algumas
vezes lhe causará a estranha impressão de ser outro. Digo outro porque
ele se colocou num diferente ponto de vista a partir do qual pode mesmo
vista,
criticar o ponto de vista do primeiro narrador. O narrador será também,
inesperadamente, um narrador que se assume como pessoa colectiva. Será
igualmente uma voz que não se sabe de onde vem e que se recusa a dizer
quem é, ou usa de uma arte maquiavélica que leve o leitor a sentir-se
identificado com ele, a ser, de algum modo, ele. E pode, finalmente, mas
não de um modo explicito ser a voz do próprio autor capaz de fabricar
explicito, autor,
todos os narradores que entender, não está limitado a saber apenas o que
as suas personagens sabem, porquanto ele sabe, e não o esquece nunca,
tudo quanto tiver acontecido depois
t d q a t ti r a t id d i da vida d la ” ida delas.
José Saramago, in, JL, nº400
47. No romance de Saramago o narrador é na maioria das vezes
heterodiegético (não é personagem da trama) quanto à presença e omnisciente
(tudo sabe e tudo vê) relativamente à focalização. É um narrador subjectivo
uma vez que enuncia juízos de valor, comentários e opiniões.
Contudo, i t
C t d existem passagens em que o narrador “ d “empresta a sua voz” à
t ” às
diversas personagens, adoptando assim o seu ponto de vista (focalização
interna): “e esta sou eu, Sebastiana Maria de Jesus”.
O contador pretende também aproximar-se da época retratada através
da reconstrução do ambiente e do vocabulário que utiliza. No entanto, por
vezes há um distanciamento desta intenção quando são utilizadas prolepses,
ç q p p ,
ironias e/ou linguagem actual. Esta última característica está bem patente
na descrição dos encontros sexuais do casal régio. Ao nível do vocabulário, o
autor tanto utiliza vocábulos distanciados da época descrita, como explicita
p , xp
conceitos que ali são descritos e na actualidade sofreram alterações (“passou
a manhã, foi a hora do jantar, que é este o nome da refeição do meio-dia, não
esqueçamos ).
esqueçamos”).
Em suma, o narrador de Memorial do Convento é um relator que se
movimenta no tempo, passado, presente e futuro, com extrema facilidade. É
detentor de um imenso conhecimento o que o torna capaz de controlar a
acção e as personagens.
“O narrador de Memorial do Convento é, porventura, o seu
elemento mais fascinante pela imprevisibilidade de procedimentos
procedimentos,
próximos do tom transgressor que enforma a obra. Assim, apenas se
envolve emocionalmente com as personagens com quem cria uma relação
empática, remetendo para as outras uma toada irónica. Reinterpretando
d d d
a história, controla toda a narrativa, não se privando de posições
judicativas, posto que interprete um passado à luz do presente, ou, se se
preferir, interprete o presente à luz do passado. Contemporâneo do
presumível leitor, opta pela irreverência, génese de todas as
transgressões, parodiando um passado hi tó i que, através d um t
t õ di d d histórico t é de tom
cáustico, subverte. (…)
O narrador transforma-se assim num protagonista sarcástico que se
transforma se
debruça sobre si mesmo procurando agradar; trata da gestão do seu
estatuto optando pelo tom da conversa banal que vai convertendo em
narração para, através d um poder d sedução, reverter o seu “ ” num
ã t é de d de d ã t “eu”
emergente “nós”, por virtude da cumplicidade que pretende alcançar com
o leitor, enquanto crítico de uma época de desconcerto que aguarda o
q p q g
concerto, ontem como hoje. ”
Isabel Ponce de Leão, Maria do Carmo Castelo-Branco
48. Estilo
“Há muito de funcionamento muscular nesse estilo… O que eu
quero di com esta coisa b
dizer i bastante i óli é que o di
insólita discurso, tal qual se
l l
apresenta no meu estilo, tem que mover-se de uma forma que eu diria
“descontraída”, em que tudo o que vai acontecendo resulta do que já foi
, q q q j f
dito, a palavra que vem liga-se à palavra que está, como se eu não
quisesse que houvesse nem roturas nem cortes e que o discurso pudesse
ter uma fluidez tal que ocupasse todo o espaço narrativo Quer dizer:
narrativo.
aquilo a que eu aspiro é traduzir uma simultaneidade, é dizer tudo ao
mesmo tempo.
(…) nós, quando falamos, não usamos sinais de pontuação. É a
velha d l
lh declaração minha: f l
h fala-se como se f música, com sons e com
faz
pausas; toda a música é feita de sons e de pausas e toda a fala é feita de
sons e pausas”
p
José Saramago, in, Carlos Reis, op. cit.
Saramago possui um estilo muito próprio como foi possível
observar ao longo de toda a obra e, também, nas declarações que fez. Ele
não respeita quaisquer regras t di i i U i di i i d
ã it i tradicionais. Usa indiscriminadamente t
letras maiúsculas no interior das frases. As vírgulas são para ele “sinais
de pausa, no sentido musical, quer dizer: aqui o leitor faz uma pausa
breve” e, por isso utiliza-as frequentemente. Já os pontos servem para o
leitor fazer “uma pausa mais longa”.
Para além deste desrespeito completo por regras e pontuação, José
Saramago ainda mistura os discursos directo e indirecto. Introduz
igualmente juízos d valor e comentários que d f l
l de l dificultam a identificação
d f
das personagens, por parte do leitor. Para além de tudo isto, o autor de
Memorial do Convento emprega simultaneamente um tom cómico e
trágico, utilizando apartes, aforismos e ditados populares.
49. Quanto às figuras de estilo, este autor adora brincar com as
palavras.
palavras Os recursos estilísticos que utiliza vão desde o trocadilho
trocadilho,
assíndeto (“o regaço, o lume na lareira, a candeia, a esteira no chão, o
p
punho cortado de Baltasar”), anáfora, antítese, enumeração, hipérbole
) f ç p
(“e a máquina a tremer, a vibrar, porventura não está já na terra, rasgou
a cortina de silvas e enleios, pairou na alta noite, entre as nuvens”),
metáfora (“M esta cidade, mais d que todas, é um b que mastiga
áf (“Mas id d i do d boca i
de sobejo para um lado e de escasso para o outro”) até à tão presente
ironia (“Mas Deus é grande”)
( Mas grande ).
Concluindo, Saramago alia as características do código oral com o
discurso literário, para criar uma cumplicidade com o leitor.
Visão crítica
Mm
Memorial do Convento não é uma mera reconstituição de
d C v um m uç d
acontecimentos históricos; é um testemunho intemporal e universal do
sofrimento de um povo sujeito à tirania de uma sociedade em que só “a
vontade de el-rei prevalece; o resto é nada”.
São vários os factores e grupos sociais criticados ao longo de toda a
obra.
b