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CAPÍTULO 1: A CRÔNICA NAS CRÔNICAS DE A. TITO FILHO
Eu considerei a glória de um pavão ostentando o esplendor de suas cores;
é um luxo imperial. Mas andei lendo livros, e descobri que aquelas cores
todas não existem na pena do pavão. Não há pigmentos. O que há são
minúsculas bolhas d’água em que a luz se fragmenta, como em um prisma.
O pavão é um arco-íris de plumas. Eu considerei que este é o luxo do
grande artista, atingir o máximo de matizes com o mínimo de elementos. De
água e luz ele faz seu esplendor; seu grande mistério é a simplicidade.
Rubem Braga
Com muito farás pouco1
Muitas abordagens diferentes marcam o estudo da crônica, mas algumas
características são mais presentes e alguns aspectos se repetem em diferentes
autores. De certa forma, ela ganha contornos específicos de acordo com o momento
estudado, bem como os objetivos estabelecidos. Para Afrânio Coutinho, a crônica
surge como desdobramento do ensaio, gênero tradicional entre os britânicos.2
É
gênero específico, estritamente ligado ao jornalismo. A crônica pode tornar-se um
poderoso agente de correção dos costumes, ainda que tenha “ares de um
passatempo frívolo”. Numa classificação dos cronistas brasileiros bem como das
temáticas relacionadas ao estudo da crônica no Brasil, aponta dentre outras a
relação entre a crônica e a reportagem: a crônica que não seja meramente noticiosa,
é uma reportagem disfarçada, ou antes, uma reportagem subjetiva e às vezes
mesmo lírica, na qual o fato é visto por um prisma transfigurador. O fato que é para o
repórter em geral um fim, para o cronista é um pretexto: para divagações,
comentários, reflexões do pequeno filósofo que nele exista.
1
Referência a uma passagem de artigo de Carlo Ginzburg presente em A micro-história e outros
ensaios: “Os pombos abriram os olhos: conspiração popular na Itália do século XVII”. No texto,
Ginzburg apresenta um estudo acerca de sujeitos que ele identifica como “mediadores culturais”:
figuras que conseguem fazer a passagem de temas da cultura erudita para a cultura popular e vice-
versa. A frase “com pouco conseguirás muito” é uma espécie de referência que o autor faz a pouca
documentação apresentada no artigo. Penso que trabalhar com crônicas tem a ver com o que ele
aponta: o cronista é uma espécie de mediador cultural, já que está entre o leitor e o cotidiano. Não sei
se isso ficou claro no texto, mas de qualquer forma eu queria explicar o título da seção. Além disso,
como a professora Teresinha Queiroz chamou-me à atenção, no que diz respeito à A. Tito Filho
poderíamos mesmo dizer: “com muito farás pouco!”. Ver: GINZBURG, Carlo. Os pombos abriram os
olhos: conspiração popular na Itália do século XVII. In: A micro-história e outros ensaios. Tradução
de António Narino. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989. p. 131-141.
2
COUTINHO, Afrânio. Ensaio e crônica. In: A Literatura no Brasil: volume 6 – parte 3 – Relações e
Perspectivas (Conclusão). 7. ed. São Paulo: Global, 2004. p. 117-143.
2
Veremos mais a frente, na crônica sobre os jogos de azar em Teresina, como
A. Tito Filho se utiliza do texto jornalístico para trabalhar uma série de elementos
referentes à crônica, para fazer do texto uma abordagem pessoal da realidade onde
o leitor é conduzido “como que pela mão” para uma peregrinação noturna aos
espaços da cidade onde a jogatina era praticada. Além disso, o texto possui um forte
caráter dialógico, onde o autor a todo o momento tenta imprimir a marca de uma
conversação que tem como base a observação direta do que é descrito. Quanto ao
caráter apontado por Afrânio Coutinho acerca da “correção dos costumes”, veremos
também a forma como A. Tito Filho cobra medidas enérgicas das autoridades.
Observaremos também como essa característica é bem mais acentuada nas
crônicas publicadas no jornal O Dia,3
sobretudo ao abordar uma série de temas que
vão do carnaval à política nacional.
Para Jorge de Sá, a crônica torna os fatos efêmeros mais concretos. Essa
concretude lhes assegura a permanência, impedindo que caiam no esquecimento, e
lembra aos leitores que a realidade – conforme a conhecemos ou como é recriada
pela arte – é feita de pequenos lances. Essa estratégia estabelece o principio básico
da crônica: registrar o circunstancial.4
Para ele, o cronista é uma espécie de
narrador-repórter, que relata o fato não mais a um só receptor privilegiado, mas a
muitos leitores que formam um público determinado. Assim como Afrânio Coutinho,
reafirma a relação que a crônica mantém com o jornalismo e a literatura: ela seria
uma soma das duas. A crônica surge primeiramente no jornal, herdando a sua
precariedade, esse seu lado efêmero que nasce no começo de uma leitura e morre
antes que se acabe o dia. O jornal, portanto, nasce, envelhece e morre a cada 24
horas. A crônica também assume essa transitoriedade dirigindo-se, sobretudo, a
leitores apressados. Sua elaboração também assume essa urgência: o cronista
dispõe de pouco tempo para produzir seu texto. Não é a toa que a falta de tempo, ou
mesmo de assunto, é tema recorrente nas crônicas de vários autores. Outra
característica marcante da crônica é o coloquialismo do texto, que marca a intenção
do cronista em elaborar um diálogo com o leitor. Esse dialogismo equilibra o
coloquial e o literário, permitindo que o lado espontâneo e sensível permaneça como
o elemento provocador de outras visões do tema e subtemas tratados nas crônicas.
3
As crônicas estudadas aqui e ao longo da pesquisa estão disponíveis na internet no endereço: <
www.acervoatitofilho.blogspot.com >. Acesso em: 01 abril 2013.
4
SÁ, Jorge de. A crônica. 3. ed. São Paulo: Ática, 1987. p. 06.
3
O cronista busca, assim, o circunstancial. Este é o pequeno acontecimento
cotidiano do dia a dia, que poderia passar despercebido ou relegado a
marginalidade por ser considerado insignificante. Com seu toque de lirismo reflexivo,
o cronista capta esse instante brevíssimo que também faz parte da condição
humana e lhe confere (ou lhe devolve) a dignidade de um núcleo estruturante de
outros núcleos, transformando a simples situação no diálogo sobre a complexidade
das nossas dores e alegrias. A pressa de viver desenvolve no cronista uma
sensibilidade especial, que o predispõe a captar com maior intensidade os sinais da
vida que diariamente deixamos escapar. Sua tarefa, então, consiste em ser nosso
porta-voz, o intérprete aparelhado para nos devolver aquilo que a realidade não-
gratificante sufocou: a consciência de que o lirismo no mundo atual não pode ser a
simples expressão de uma dor de cotovelo, mas acima de tudo um repensar
constante pelas vias da emoção aliada à razão.5
Além disso, o cronista não perde de
vista que a situação particular só conta para o leitor na medida em que funciona
como metáfora de situações universais, o que permite que façamos da leitura uma
forma de catarse e empatia. Recompor a própria história individual é uma forma de o
cronista nos ensinar a compor a nossa história na condição de pessoas ligadas a
tantas e tantas heranças culturais. É importante que o cronista se defina num
determinado tempo e espaço, compondo uma cronologia nunca limitadora, mas
sempre esclarecedora da sua/nossa relação com os seres e com os objetos.
Essas ideias serão importantíssimas para compreendermos, no primeiro
capítulo, de que forma o autor se utilizou da crônica para biografar a vida de autores
e intelectuais piauienses do passado (e alguns do presente). Não as escrevia
apenas com o intuito de prestar homenagens, mas para tornar visíveis figuras o “que
os piauienses desconhecem”,6
ou porque são figuras que “infelizmente, o Piauí
ignora os filhos que o honraram e enalteceram nos domínios da inteligência”.7
A
crônica, dotada daquela concretude que assegura a permanência, ajudava o autor a
assegurar a visibilidade necessária para vencer o circunstancial. Os biografados por
A. Tito Filho, ainda que (para ele) ignorados pelos piauienses, poderiam por meio
das crônicas ganharem a visibilidade que a permanência necessita. Além disso, ao
analisarmos suas biografias, poderemos perceber até que ponto (e como) A. Tito
5
SÁ, Jorge de. A crônica. 3. Ed. São Paulo: Ática, 1987. p. 11-13.
6
TITO FILHO, A. Caçador. O Dia, Teresina, 10 março 1988, p. 4.
7
TITO FILHO, A. João Alfredo. O Dia, Teresina, 08 abril 1988, p. 4.
4
Filho elaborou esses textos para também se inserir entre os intelectuais sobre os
quais escreve. Ao escrever sobre os intelectuais piauienses ele também escreve
sobre sua própria trajetória de intelectual. Portanto, o objetivo será saber como ele
buscou dar sentido a sua própria trajetória de intelectual e também como essa
escrita nos permite conhecer aspectos da vida literária do Piauí.
O cronista, portanto, também é um escritor, também deseja escrever algo que
fique para sempre. A crônica é uma tenda de cigano enquanto consciência da nossa
transitoriedade; no entanto é casa, quando reunida em livro, onde se percebe com
maior nitidez a busca de coerência no traçado da vida. Quando o cronista fala de si
mesmo, é a vida que está sendo focalizada por uma câmera disposta a alcançar um
amplo raio de ação. Ao narrar o mundo, o cronista narra a si mesmo, e assim vence
a passagem do tempo.8
Já para Chalhoub et al, as crônicas são textos surgidos ao acaso, da
espontaneidade de uma conversa – uma de suas características primeiras é a
leveza. Elas surgem da tensão entre a elaboração narrativa e o dever de dialogar de
forma direta com os temas e questões de seu tempo, definindo-se o perfil de um
gênero que teria importância central na produção literária brasileira a partir de
meados do século XIX.9
Dentre as características que marcam o gênero, apontam a
cumplicidade construída entre o autor e o leitor quanto aos temas e questões a
serem discutidos. Ao estabelecer essa espécie de acerto de contas com o presente,
a crônica teria como uma de suas marcas esse caráter de intervenção na realidade,
com a qual interagia. As formas pelas quais os cronistas brasileiros buscaram
realizar tal intento foram variadas. Em comum, no entanto, estava o cuidado
demonstrado na delimitação de um perfil próprio para suas séries, que torna um
tanto mais complexo o tipo de intervenção caracterizado pelas crônicas.
Outra característica é a indeterminação, sobretudo a natureza de sua
indeterminação. O cronista está sempre sujeito ao imponderável do cotidiano, que
lhe fornece temas e problemas com os quais discutir, quanto modifica e redireciona
suas opções iniciais. Os autores também reforçam a estreita ligação da crônica com
a imprensa. Essa ligação vincula a crônica e o cronista ao jornal em que se
publicam, e também permite o aparecimento de colunas especializadas. Por último,
8
SÁ, Jorge de. A crônica. 3. Ed. São Paulo: Ática, 1987. p. 17-22.
9
CHALOUB, Sidney et al. Apresentação. In: CHALOUB, Sidney; NEVES, Margarida de Sousa;
PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda. História em cousas miúdas: capítulos de história social da
crônica no Brasil. Campinas: UNICAMP, 2005. p. 11.
5
apontam que da aparente contradição entre a leveza e a cuidadosa elaboração de
suas séries, da tensão entre a tarefa de comentar a realidade e o intuito de
transformá-la; e da variedade de formas e temas por elas assumidos, define-se
enfim um perfil para a crônica.10
Ainda que façam questão de apontar essas características como mais
frequentes na produção dos autores brasileiros da segunda metade do século XIX e
da primeira metade do século XX, e mesmo que algumas das características sejam
contestáveis – como a (suposta) indeterminação presente nas crônicas –, a
característica referente à elaboração de séries será fundamental para entendermos
como A. Tito Filho construiu em suas crônicas um conjunto delas. As crônicas
referentes aos intelectuais piauienses, por exemplo, constituem a série a ser
trabalhada no segundo capítulo.
Outro conjunto é a série referente à história contemporânea do Brasil e do
Piauí, que é abordada por Tito Filho nas crônicas estudadas no terceiro capítulo:
desde a Independência do Brasil à abolição da escravatura no Piauí; do povoamento
(“desbravamento”) do Piauí ao Estado Novo no Piauí. Nelas, o autor busca
caracterizá-las como textos que historiam,11
portanto marcadas pelo conceito antigo
de crônica, ou seja, textos que procuram zelar pela memória dos acontecimentos
importantes. O cronista almeja, “pondo em crônica”, organizar cronologicamente
histórias existentes ou organizar do ponto de vista da memória (portanto, um ponto
de vista subjetivo) fixando aquilo que um dia aconteceu, que um dia foi presente.
A ambição do cronista é justamente escrever algo que fique num espaço que é
feito para as pessoas lerem e se esquecerem do que foi lido.12
Além das temáticas
citadas anteriormente, outras marcam presença em seus textos, e também podem
ser tomadas como séries: a história do Teatro 4 de Setembro, sobre o qual também
escreveu um livro;13
do Liceu Piauiense (onde foi professor e diretor); o Brasil
Republicano, sobretudo a trajetória constitucional do poder executivo e o momento
10
CHALOUB, Sidney et al. Apresentação. In: CHALOUB, Sidney, Margarida de Sousa; PEREIRA,
Leonardo Affonso de Miranda. História em cousas miúdas: capítulos de história social da crônica no
Brasil. Campinas: UNICAMP, 2005. p. 17.
11
LOPES, Telê Porto Ancona. A crônica de Mário de Andrade: impressões que historiam. In:
Candido, Antonio [et al]. A Crônica: o gênero, sua fixação e suas transformações no Brasil.
Campinas: UNICAMP; Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1992. p. 165-188.
12
LOPES, Telê Porto Ancona. A crônica de Mário de Andrade: impressões que historiam. In:
Candido, Antonio [et al]. A Crônica: o gênero, sua fixação e suas transformações no Brasil.
Campinas: UNICAMP; Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1992. p. 165-66.
13
TITO FILHO, A. Praça Aquibadã, sem número. Teresina: Governo do Estado do Piauí, 1975.
6
mais presente da chegada de Fernando Collor ao poder; e alguns textos que
abordam autores (e historiadores) piauienses, onde fez questão de deixar marcada
uma abordagem da história e do cotidiano de Teresina (e do Piauí) a partir de
leituras de obras literárias que considerava importantes (a literatura piauiense como
lugar de produção historiográfica?), como por exemplo: Benedita,14
Malhadinha,15
Um Manicaca16
e Contos do Sertão do Piauí.17
Um problema importante que surge a partir dessas séries é saber que
motivações o autor teve para a produção destas crônicas sobre a história do Brasil e
do Piauí. Além disso, o porquê de uma atenção tão grande dada à literatura do
Piauí, sobretudo se levarmos em conta que os livros citados acima têm em comum
uma intensa vontade de não apenas narrar uma história, mas ao mesmo tempo
retratar (fielmente) uma realidade. O primeiro problema poderia ser pensado a partir
do estudo de aspectos relativos ao processo de redemocratização do Brasil: seria a
necessidade de atualizar a história do Brasil e do Piauí por conta de uma
demanda?18
Uma preocupação do autor em fazer da história do Piauí parte da
história nacional?19
Quanto à atenção dada à literatura piauiense, poderíamos
relacioná-la ao fato de que nessas crônicas A. Tito Filho buscou construir para si
uma identidade de leitor, que aprendeu sobre a história do Piauí a partir do hábito da
leitura que cultivou desde a infância.20
No terceiro capítulo, veremos como o autor se
utilizou da crônica para fazer uma leitura da história do Brasil e do Piauí, e ao
mesmo tempo lidar com dois problemas: inserir a história do Piauí na História do
Brasil e construir para si uma identidade de leitor.
14
PACHECO, Edson. Benedita: a pureza que emergiu do lodo. Brasília: Gráfica do Senado Federal,
1983.
15
RÊGO, José Expedito. Malhadinha. Teresina: Academia Piauiense de Letras, 1990.
16
NEVES, Abdias da Costa. Um Manicaca. 5. ed. Teresina: CORISCO, 2012.
17
GAMEIRO, Alvina. Contos dos Sertões do Piauí. Teresina: Academia Piauiense de Letras/Projeto
Petrônio Portella, 1988.
18
MONTEIRO, Charles. Porto Alegre e suas escritas: história e memórias da cidade. Porto Alegre:
EDIPUCRS, 2006. p. 25.
19
TITO FILHO, A. Independência no Piauí. O Dia, 05 abril 1990, p. 4. Disponível em: <
http://migre.me/cwvWn >. Acesso em: 20 dezembro 2012.
20
TITO FILHO, A. Leitura. O Dia, 26 abril 1990, p. 4. Disponível em: < http://migre.me/cww1M >.
Acesso em: 20 dezembro 2012.
7
Passadas essas abordagens, algumas ideias foram apontadas ao longo do
texto e serão fundamentais para entendermos a forma como A. Tito Filho elaborou
os temas que perpassam os capítulos desta dissertação: a intenção do cronista em
atuar como uma espécie de “agente de correção” do costumes, apontada por Afrânio
Coutinho; a relação entre efemeridade e concretude, a crônica como o registro do
circunstancial; e por último, a construção de séries (temáticas) ao longo da trajetória
do cronista, apontada por Chalhoub et al. De certa forma, elas estão presentes em
todos os capítulos. Mas no quarto capítulo elas aparecem com muito mais
intensidade, onde veremos como o tema mais presente nas crônicas de A. Tito
Filho, a cidade de Teresina, é trabalhado. Ela é tema de uma de suas obras mais
conhecidas21
e espaço central de uma série de temas que marcaram, sobretudo,
seus textos publicados em livros: os carnavais de Teresina, a história do Teatro 4 de
Setembro, episódios relativos à fundação da cidade, bem como personagens que
marcaram a história da cidade ou que o cronista considerava importantes e julgava
esquecidos – muitos dos quais ele conheceu pessoalmente. Assim, o objeto das
crônicas é o cotidiano construído pelo cronista através da seleção que o leva a
registrar alguns aspectos e eventos e abandonar outros.22
As crônicas chamam a atenção por serem correspondentes, em seu estilo, à
própria dinâmica do momento vivido. Através das crônicas procuramos perceber de
que forma um determinado presente é entendido ou vivido.23
Assim, pensamos o
cronista como alguém que está como que vivendo entre o passado e o futuro. A
intenção é justamente mostrar que a forma como ele observa o cotidiano24
da cidade
(e estabelece diálogos com o cotidiano nacional, já que boa parte dos textos
também trata de temas relativos ao Brasil, sobretudo a cultura brasileira) se dá em
termos extemporâneos,25
ou seja: o que vai de encontro ao espírito da época, o que
a ele se contrapõe. O extemporâneo é aquele que adota duas posturas básicas: o
combate e a distância. Põe-se à distância do que ocorre à sua volta, para alterar o
21
TITO FILHO, A. Teresina meu amor. Teresina: COMEPI, 1973.
22
NEVES, Margarida de Sousa. Uma escrita do tempo: memória, ordem e progresso nas crônicas
cariocas. In: Candido, Antonio [et al]. A Crônica: o gênero, sua fixação e suas transformações no
Brasil. Campinas: UNICAMP; Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1992. p. 75-92.
23
BERBERI, Elizabeth. Impressões: a modernidade através das crônicas no início do século em
Curitiba. Curitiba: Aos Quatro Ventos, 1998. 115 p.
24
MATOS, Maria Izilda Santos de. Cotidiano e cultura: história, cidade e trabalho. Bauru: EDUSC,
2002.
25
MARTON, Scarlett. Por que sou um extemporâneo. In: Extravagâncias: ensaios sobre a filosofia
de Nietzsche. 2. ed. São Paulo: Discurso Editorial/UNIJUÍ, 2001. p. 19-49.
8
ponto de vista; afastando-se do desenrolar dos acontecimentos, coloca-se em outro
ângulo de visão. Assim, se condiciona a combater a cultura de seu tempo, para dizer
a (sua) verdade. A todo o momento, veremos como A. Tito Filho procura estabelecer
contrastes e paralelos entre a Teresina do presente e a do passado. Por exemplo,
em uma de suas crônicas podemos ler que
[...] a criança vive entregue a própria sorte. A rua simboliza o lar –
pois as nossas crianças moram na rua, ou porque não têm lar ou
porque apenas conhecem a casa da moradia – a casa em que os
membros da família se encontram para o repouso madrugadino.26
Para ele, que fala sobre o momento presente da cidade, as mulheres são as
culpadas por esta situação de abandono das crianças, já que sua entrada no
mercado de trabalho as retirou do espaço doméstico e o resultado se vê “no
abandono dos filhos pequenos, que se criam sem carinho e sem afeto”. O mesmo
tipo de reflexão aparece em seus textos sobre os carnavais de Teresina, em que o
autor despreza os carnavais da cidade do presente, como na passagem abaixo:
Na terça-feira fui ver a carnavalescação da avenida Frei Serafim.
Mau gosto generalizado. Frescura muita. No meu tempo de rapaz, só
havia de baitola o animado Bernardo Alfaiate, que sempre saía de
baiana cheia de enfeites, de vistosos adornos na cabeça, mas sem
peitos. Aplaudidíssimo. Agora o carnaval se faz com veados e
bumbuns. Cada maricas de seios e salamaleques que dá gosto. As
fêmeas de traseiros à mostra e algumas até de boi de cara preta de
ninguém botar defeito. Não vi exibição de beleza feminina, mas
simples e veemente pornografia.27
A essa imagem, o autor contrapõe a de um carnaval do passado, um carnaval
das letras,28
sobretudo pela presença marcante de intelectuais, políticos e pessoas
ligadas à cultura, o que podemos observar em Carnavais de Teresina e na série de
textos que foram publicados no jornal O Dia:
O carnaval valia uma festa de graça, de bom humor e de contagiante
alegria. Em tempos mais remotos, quando a folia se iniciava, depois
que se proibiu a estúpida brincadeira do entrudo, ainda no século
passado, o carnaval se fazia nos bailes dos clubes sociais e nas ruas
- e nessa época mais antiga a máscara era a principal fantasia no
reino de Momo. E a evolução para melhor se processou ano por ano,
apareceram os ranchos, os cordões, os blocos, cheios de
entusiasmo, que percorriam as ruas e prestigiavam as danças nos
salões. Uma beleza, momentos de efusivas manifestações de
26
TITO FILHO, A. As pobres vítimas. O Dia, 19 outubro 1987, p. 4. Disponível em: <
http://migre.me/cww3v >. Acesso em: 20 dezembro 2012.
27
TITO FILHO, A. Carnavalescação. O Dia, 07 março 1989, Teresina, p. 4. Disponível em: <
http://migre.me/cww5D >. Acesso em: 20 dezembro 2012.
28
LAZZARI, Alexandre. Coisas para o povo não fazer: carnaval em Porto Alegre (1870-1915).
Campinas: Editora da Unicamp/CECULT, 2001. – (Coleção Várias Histórias).
9
pândega. Que dizer das saudosas batalhas de confete e lança-
perfume nas praças animadas de inesquecíveis sambas e marchas
executadas pelas bandas militares? O automóvel e o caminhão
fizeram o corso gostoso. Percorriam-se ruas previamente escolhidas
e veículos, marcha vagarosa, lotados de moças e rapazes, se
enfeitavam e de um para outro jogava-se colorida serpentina. Muita
cantiga bonita e movimento de corpo. Pelas vias públicas desfilavam
homens fantasiados. Muito bom humor em tudo. Raras brigas se
verificavam. Nos grandes centros registrava-se as vezes um crime de
morte. Governos federais, estudais e municipais nada gastavam
nessa ruidosa brincadeira nacional.29
Essa carnavalescação30
do cotidiano, onde mães viram trabalhadoras, homens
viram baitolas (sic), o carnaval vira pornografia e não uma face da vida literária é
justamente o que se pretenderá abordar no quarto capítulo: a visão do cronista é
marcada pela lógica da inversão (onde ele vê as coisas e os valores invertidos), mas
ao mesmo tempo uma visão que não se deixa escapar da ambivalência,31
afinal de
contas o cronista é uma figura que possui muitas máscaras e muito do que ele diz
não necessariamente correspondia ao que ele fazia.32
O presente da cidade, o
presente da escrita do autor, é aquele referente ao contemporâneo: aquele que,
graças a uma diferença, uma defasagem ou um anacronismo, é capaz de captar seu
tempo e enxergá-lo. Por não se identificar com o presente, cria um ângulo (de
visão) do qual é possível expressá-lo. O escritor contemporâneo parece estar
motivado por uma grande urgência em se relacionar com a realidade histórica,
estando consciente, entretanto, da impossibilidade de captá-la na sua especificidade
atual, em seu presente. Essa escrita é marcada, portanto, por uma necessidade de
vingar-se:
Dois argumentos se juntam aqui: uma escrita que tem urgência, que
realmente ‘urge’, que significa, segundo o Aurélio, que se faz sem
demora, mas também que é eminente, que insiste, obriga e impele,
ou seja, uma escrita que se impõe de alguma forma. Ao mesmo
tempo, trata-se de uma escrita que age para ‘se vingar’, o que
também pode ser entendido, recuperando-se o sentido etimológico
da palavra ‘vingar’, como uma escrita que chega a, atinge ou alcança
seu alvo com eficiência. O essencial é observar que essa escrita se
29
TITO FILHO, A. Quase no fim. O Dia, 07 março 1989, p. 4. Disponível: < http://migre.me/cww7Y >.
Acesso em: 20 dezembro 2012.
30
DISCINI, Norma. Carnavalização. In: BRAIT, Beth (Org.). Bakhtin: outros conceitos-chave. São
Paulo: Contexto, 2008. p. 53-93.
31
“A ambivalência é a imagem viva da dialética (da contradição)”. Ver: BENJAMIN, Walter. Paris,
capital do século XIX. Tradução de Maria Cecília Londres. In: A Teoria da Literatura em suas
fontes, vol. 2. 3. ed. Organização de Luiz Costa Lima. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.
P. 689-706.
32
BORGES, Jorge Luis. everything and nothing. In: Antologia Pessoal. Tradução de Josely Viana
Baptista. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. p. 136-139.
10
guia por uma ambição de eficiência e pelo desejo de chegar a
alcançar uma determinada realidade, em vez de propor como uma
mera pressa ou alvoroço temporal.33
A urgência é a expressão sensível da dificuldade de lidar com o mais próximo e
atual, ou seja, a sensação, que atravessa alguns escritores, de ser anacrônico em
relação ao presente, passando a aceitar que a “realidade” mais real só poderá ser
refletida na margem e nunca enxergada de frente ou capturada diretamente.
Por último, pretendo ressaltar também que uma das máscaras utilizadas pelo
cronista é a do narrador: é dela que Tito Filho se utilizou para escrever, por exemplo,
sobre os fundadores e personagens da cidade. O narrador é aquele que consegue
fazer de sua escrita um intercâmbio de experiências. A experiência que passa de
pessoa para pessoa é a fonte a que recorrem todos os narradores. O narrador,
portanto, é aquele que retira da experiência o que ele conta: suas próprias
experiências ou as experiências relatadas por outros. 34
É o que podemos perceber,
com mais ênfase, em obras como Gente e Humor, Sermões aos Peixes e
Teresinando em Cordel.
Essa postura do narrador, que também traz em si a marca do historiador, é
perceptível, sobretudo, nos textos sobre personagens como o Conselheiro Saraiva,
o frei Serafim de Catânia e espaços como a Igreja de São Benedito (outrora Igreja
do Alto da Jurubeba) e a Praça Pedro II (outrora Praça Aquibadã). A história de
Teresina estaria marcada, portanto, pela atuação de figuras centrais que dirigiram o
processo desde sua fundação e de espaços que marcaram a história e
desenvolvimento de todas as cidades – como a criação de praças e igrejas de onde
a cidade se irradia.
Até aqui, imagino que já ficou claro que pretendo abordar a crônica e como a
entendo; como pretendo tomar o autor como cronista e como se dava sua atuação
enquanto tal, e por último, como esse gênero permitiu ao autor tratar de uma série
de temas e ao mesmo tempo falar de si. As crônicas permitem ao autor fixar
posições, construir conteúdos e sentidos, fazer aparecer um arranjo cultural, extratos
de vivências, modos de pensar e sensibilidades; além disso, elas operam com
33
SCHØLLHAMMER, Karl Erik. Que significa literatura contemporânea? In: Ficção brasileira
contemporânea. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009. p. 9-19. Grifos do autor.
34
BENJAMIN, Walter. O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: Magia e
técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução de Sérgio Paulo
Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994. p 197-221.
11
estratégias, tentando aproximar-se do imaginário de uma época.35
São ricas de
significados, pois externam fatos e conflitos existentes, tanto no espaço privado
quanto no espaço público. São resultados de vivências e de interlocuções do
cronista com o social, com o seu lugar de discurso, utilizando uma das várias formas
de “dizer”, mas que pela riqueza de detalhes tornam-se um meio essencial e
importante de análise histórica.36
Além disso, também poderia apontar a
possibilidade de pensarmos a obra do autor como um espaço de construção de
identidades, como a de intelectual37
ou mesmo como um espaço de construção de
uma escrita de si, o que significa dizer que as crônicas podem ser tomadas como
uma escrita autoreferencial: a necessidade e a relevância que o cronista têm de
dotar o mundo que o rodeia de significados especiais relacionados com sua própria
vida, para efetuar uma escrita de si.38
Além disso, cabe apontar que todos esses movimentos que o cronista é capaz
de efetuar, todas as características apontadas até aqui, são possíveis a partir da
percepção de que a crônica pode ser tomada como gênero literário de fronteira,
entre a literatura e a história, estabelecendo uma reflexão sobre se o autor ao
escrever a crônica está a fazer uma história de seu tempo.39
Me interessa apontar
aqui, a partir da análise de Sandra Jatahy Pesavento, que as crônicas podem referir-
se há outro tempo, no passado. São elas narrativas memorialísticas, quase sempre
baseadas, na maioria dos casos, na experiência e nas recordações de alguém que
viveu, viu e ouviu outro tempo. Tais crônicas são especialistas em assinalar a
diferença entre o tema/objeto da recordação tal como era no passado e o tempo da
narrativa, o presente onde se realiza o ato de rememorar. Não raro esta diferença no
tempo é qualificada, é julgada, como perda.
35
Essa frase eu não sei se faz sentido aqui, faz?
36
BRANDIM, Ana Cristina Meneses de Sousa. Entre letras e papéis: a crônica como vestígio da
cidade de Teresina. In: ADAD, Sarah Jane Holanda Costa; BRANDIM, Ana Cristina Meneses de
Sousa; RANGEL, Maria do Socorro (Orgs). Entre Línguas: movimento e mistura de saberes.
Fortaleza: UFC, 2008. p. 28-32.
37
BRANDIM, Ana Cristina Meneses de Sousa. Escrita dos movimentos interiores: escrita de si e
construção de uma trajetória de intelectualidade e distinção em A. Tito Filho (1971-1992). / Ana
Cristina Meneses de Sousa Brandim. Recife: UFPE, 2012. Tese (Doutorado em História do Norte-
Nordeste do Brasil). UFPE. 2012.
38
GOMES, Angela de Castro. Lapidação de si, escrita da História: a título de prólogo. In: GOMES,
Angela de Castro (Org.). Escrita de Si, Escrita da História. Rio de Janeiro: FGV, 2004. p. 7-24.
39
PESAVENTO, Sandra Jatahy. Crônica: fronteiras da narrativa histórica. In: História UNISINOS,
volume 8, nº 10, julho/dezembro, 2004, p. 61-80 – Disponível em: < http://bit.ly/JLDlkb >. Acesso em:
21 maio 2012.
12
De um modo geral, concordo que a crônica é um gênero de fronteira, se
tomarmos fronteira como o espaço entre tempos: essa intensa circulação de
temporalidades que o cronista consegue fazer funcionar no espaço do texto.
Interessa-me apontar com mais intensidade a forma como o cronista consegue fazer
funcionar no espaço do texto uma circulação de temas – aí, já é o momento de
tomarmos fronteira como o espaço entre perspectivas. Para Pesavento, a crônica é
a fronteira pela qual o cronista passa do presente para o passado, de volta para o
presente, ou mesmo para o futuro. No caso deste trabalho, pretendo apontar como a
crônica é a fronteira que o cronista utiliza para fazer passar a si mesmo enquanto
escreve sobre seus temas, ou fazer passar seus temas enquanto escreve sobre si
mesmo. Fiquemos de acordo que ela é um gênero de fronteira, mas a forma como
ele (o cronista) atravessa e com que intenções podem variar. Para Pesavento, as
crônicas intensificam a temporalidade, para mim elas intensificam uma perspectiva.
Pretendo, enfim, elaborar uma abordagem da produção escrita de A. Tito Filho,
sobretudo suas crônicas (sem, é claro deixar de lado alguns de seus livros), partindo
das vidas literárias abordadas no segundo capítulo; depois, no terceiro capítulo,
analisar as temáticas de história do Brasil e do Piauí, bem como da literatura
piauiense presentes em suas crônicas; e por último, sua perspectiva acerca da
história de Teresina, que parte de temáticas relativas à história da cidade, sobretudo
ao narrar sua fundação e retratar personagens que considera centrais e que vão
desde intelectuais, como o Conselheiro Saraiva, até figuras do cotidiano, como
Maria Preá, chegando a uma série de temáticas que marcaram presença em seus
textos: como os carnavais de Teresina, as mulheres, os cabarés, a política, enfim,
seu cotidiano.
Teresina, cidade da perdição
Para termos uma noção mais claro do que foi apontado acima, vejamos como
texto o cronista, no texto Cidade sem Lei,40
publicado no jornal Resistência,41
lidava
com os problemas da cidade de Teresina. Nele, A. Tito Filho compara a cidade a um
40
TITO FILHO, José de Arimathéa. Cidade sem lei. Resistência, Teresina, 05 novembro 1949, p. 5-
6.
41
Resistência foi um jornal de caráter político (pode-se mesmo considerá-lo um órgão político)
dirigido por Francisco Luís Almeida, destinado a combater o governo de José da Rocha Furtado, que
era da União Democrática Nacional (UDN). Ver: PINHEIRO FILHO, Celso. História da Imprensa no
Piauí. 2. ed. Teresina: COMEPI, 1988. p. 96.
13
filme também chamado Cidade sem lei,42
em exibição no Cine Rex. Segundo o
autor, qualquer um que tivesse visto o filme observaria o que estava se passando
em Teresina, e, no que dizia respeito à insegurança e à ordem pública dos cidadãos,
era ela também “uma cidade sem lei.” No perímetro urbano e suburbano, davam-se
freqüentes roubos e furtos; a jogatina campeava em todos os recantos da cidade,
“enfestada” por legiões de mendigos (alguns verdadeiros e outros falsos) que
invadiam lares, cafés e restaurantes. Era possível ver até loucos falando sozinhos e
“soltando pinotes”, perambulando pela praça Rio Branco.
No texto, A. Tito Filho também traça um painel noturno: das oito da noite em
diante a praça Rio Branco se transforma “em cabaré ao ar livre”, já que na mesma
se aglomeravam dezenas de meretrizes. E finaliza apontando a indiferença (para ele
criminosa) das autoridades, sobretudo o governador Rocha Furtado,43
diante de tais
fatos humilhantes e vergonhosos. A. Tito Filho se utiliza do espaço para produzir um
texto que expõe suas impressões (sua indignação) diante do que observa no
cotidiano da cidade. Mas é importante perceber também que o espaço do jornal era
utilizado para atingir o governador: o jornal Resistência, como o próprio nome já
indica, era um espaço de contestação ao governo do interventor federal.44
Pensando a crônica a partir do contexto do autor, percebe-se que sua escrita é
marcada pelas disputas políticas do momento: a imprensa escrita piauiense foi uma
das ferramentas mais utilizadas pelo poder político e partidário em suas propostas e
campanhas. Geralmente os jornais pertenciam a políticos ou grupos políticos aliados
42
A. Tito Filho provavelmente está se referindo ao filme San Antonio, lançado em 1945 e dirigido por
David Butler, que contava a história de Jeanne Starr (Alexis Smith), uma dançarina de salão que
trabalhava para o chefe do crime local e que acaba se apaixonando pelo “mocinho” Clay Harden
(Errol Flynn).
43
José da Rocha Furtado (União, 24-02-1909) governou o Estado do Piauí no período de 1947 a
1951 e faleceu em Fortaleza (CE) no dia 27 de fevereiro de 2005, aos 96 anos de idade, por conta de
problemas cardíacos. Primeiro governador eleito após o fim do Estado Novo, formou-se em medicina
na Universidade do Rio de Janeiro (escola da Praia Vermelha) em 1932. Voltou a Teresina em 1933 e
tornou-se diretor dos serviços de cirurgia e pronto-socorro do Hospital Getúlio Vargas, logo após a
inauguração do hospital em 1941. Após o fim do governo Vargas em 1945, surgiram vários partidos
políticos, mas os dois mais fortes eram o Partido Social Democrático (PSD) que aglutinou
simpatizantes das interventorias – e a União Democrática Nacional (UDN) que reuniu setores
contrários ao governo federal e estadual. Rocha Furtado elegeu-se governador pela UDN, mas seu
governo ficou marcado por graves divergências do Poder Executivo com o Legislativo e o Judiciário,
chegando inclusive a sofrer uma tentativa de impeachment pela maioria da Assembléia Legislativa.
Ver: bibliografia do livro CEPRO; TITO FILHO, A. Governadores do Piauí: Capitania – Província –
Estado. 3. ed. Rio de Janeiro: Artenova, 1978. p. 55.
44
Para uma leitura ainda mais ríspida da forma como o autor lidava com a situação política de
Teresina sob o governo de Rocha Furtado ver: TITO FILHO, A. A sifilização rochista. Resistência,
Teresina, 14 novembro 1948, p. 1.
14
ao poder (ou contra ele) para atingir fins político-eleitorais.45
É também o próprio
autor, em crônica que relembra sua trajetória profissional, que nos possibilita
compreender o contexto:
Já no Piauí, eleito Rocha Furtado, estive alguns meses na orientação
do órgão O Piauí, que circulava nos dias de quinta e domingo, e me
foi confiado por Eurípedes de Aguiar. Posteriormente, fiz parte da
redação de outras folhas, sempre partidárias, sob a responsabilidade
de governistas ou oposicionistas.46
Na crônica A vaca e o Hotel,47
publicada no jornal O Dia na década de 1960, A.
Tito Filho aborda novamente os problemas da cidade, mas dessa vez já
conseguimos identificar alguns elementos que vão além da crítica política:
São 6 horas da tarde de 13 de abril: não há luz. Já comprei, para
hoje, 2 pacotões de velas por Cr$ 80,00. O IAEE pagará essa
despesa? O IAEE já pagou Cr$ 600.000,00 de lenha que deve ao
amigo Edison Parente? Até quando o IAEE martirizará um povo, o
povo teresinense?
Minha cozinheira afirma que lenha é coisa de civilização primária. Até
quando o IAEE entende que o Piauí deva viver nesse primitivismo de
civilizações? Quantas industrias, nesta terra, necessitam de energia?
Quantos processos de vida estão sendo sufocados pelo IAEE?
Atesta a LBA, em oficio, que o deve mandar desobstruir fossas dos
meninos das Ilhotas. Para isto que serve o IAEE? As turbinas vivem
de lenha, primariamente. Energia que vem das turbinas. Quanto deve
o IAEE aos fornecedores de lenha para movimentar as turbinas?
Verdade é que o IAEE só tem sido útil aos ladrões noturnos e ao
comercio de velas. A mais ninguém. Graças a Deus de cá dos meus
domínios ladrão leva o que se leva da vida: nada. Mas tenho
padecido muito, sem defunto em casa, com compra diária de
pacotões. Cr$ 40,00 cada um. Pior que eu só o correto Edison
Parente: compra pacotão e não recebe o dinheiro da lenha que
vendeu ao IAEE.
Aqui são perceptíveis elementos que diferenciam este texto do anterior, já que,
como vimos, o contexto da escrita do autor era marcado pelas disputas políticas
daquele momento. Apontar a lenha como algo pertencente às civilizações primárias
nos dão pistas, indícios, de que há uma elaboração discursiva que tenta organizar a
cidade, apontar seus defeitos, os culpados e, conseqüentemente, as soluções.48
45
Ver: LIMA, Nilsângela Cardoso. Relações de poder e práticas jornalísticas na campanha político-
partidária nas emissoras de rádio de Teresina (1948-1962). In: LIMA, Frederico Osanan Amorim;
ARAÚJO, Johny Santana de (Orgs.). História: entre fontes, metodologias e pesquisa. Teresina:
EDUFPI, 2011. p. 41-54.
46
TITO FILHO, A. Um pouco de jornalismo. O Dia, Teresina, 22 dezembro 1990, p. 4, grifos do autor.
47
TITO FILHO, A. A Vaca e o Hotel. O Dia, Teresina, 17 abril 1960, p. 1-2, grifos do autor.
48
Ver: GINZBURG, Carlo. Sinais: raízes de um paradigma indiciário. In: Mitos, Emblemas, Sinais:
morfologia e história. 2. ed. Tradução de Federico Carotti – São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
p. 145-179.
15
Assim, a falta de luz só pode mesmo ser algo absurdo, coisa de país (ou cidade)
atrasada. Ela atrasa os “processos de vida” e as necessidades das indústrias.
Portanto, o Instituto de Águas e Energia Elétrica (IAEE)49
atrasava o progresso da
cidade. Seria possível para A. Tito Filho, se contentar apenas em querer organizar a
cidade? Pesquisando os textos do autor, sobretudo aqueles publicados no jornal O
Dia, percebemos que organizar a cidade é apenas uma etapa do processo. É
preciso dar conta das pessoas também, ou melhor, da sociedade.
Em outra crônica, da década de 1940, percebe-se como o autor lidou com a
questão dos jogos de azar em Teresina, sobretudo o jogo do bicho. Ora, se é do
interesse do autor organizar a cidade, civilizá-la, deparar-se com algo tão
complicado como o jogo – considerado naquele momento como crime – era
insuportável. Na crônica (na verdade uma crônica-reportagem) Jogo muito Jogo,50
A.
Tito Filho fala sobre o problema do jogo em Teresina:
Despe, leitor amigo, a roupagem vistosa com que te apresentas ante
as frivolidades da sociedade e vem comigo, lado a lado, para uma
peregrinação noturna nos antros da jogatina. São oito horas da noite,
é cêdo, a cidade toda mergulhou na sonolencia, depois do trabalho
exaustivo de seus habitantes. Arrulham ainda poucos casais nos
bancos de praça, mocinhas acabam de cansar as batatas da perna
volteando na pista da Pedro II. Daqui a pouco tudo dorme. Apenas
funciona o jogo, a terrível chaga social – sorvedouro da honra de
muitos, desgraça de tantos lares, causa de inumeras tragedias.
Funciona o jogo, leitor amigo, no centro da antiga Chapada do
Corisco – nos clubes, nos bares, em casas particulares, em toda a
parte. Desaparecem, no torvelinho medonho da jogatina, o pão, a
roupa, o livro, a educação de muitas crianças teresinenses. Esposas
aflitas rezam no recesso de residencias humildes, chupando muitas
vezes a carie de um dente, ou, em cima de três pedras, preparam um
ralo mingau de farinha com que entupir o bucho das crianças
famintas, enquanto o marido, no covil da jogatina, descarta-se do
dinheiro, do relogio e da aliança de casamento para alimentar o
terrível vicio – fumando e bebendo, dores nas costas, debruçado na
mesa fatídica, ou avido, nervoso, espiando a roda de roleta, atento
ao ruído da palheta, ou, ainda, ouvido apurado, marcando numeros,
á espera de que lhe dêem, no víspora, a pedra boa ...
JOGO, MUITO JOGO
- Cinqüenta e cinco ... numero oito ... noventa ...
É a voz arrastada do chamador, anunciando as pedras do víspora,
uma a uma, os viciados, palidos e pigarrentos, marcam os cartões,
49
O IAEE foi o órgão antecessor da Águas e Esgotos do Piauí S.A. (AGESPISA) criada através das
leis estaduais n.º 2.281, de 27 de julho de 1962 e 2.387, de 12 de dezembro de 1962 e das Centrais
Elétricas do Piauí S.A. (CEPISA) que foi criada em 08 de agosto de 1962.
50
TITO FILHO, A. Jogo muito Jogo. O Piauhy, Teresina, 11 abril 1948, s/p.
16
entre baforada de um cigarro quando estes desgraça os restos de
pulmões e o trago de aguardente que lhes corroe as tripas ...
Reino da batota e do deboche – a comunidade de caras mal
dormidas se expande, depois do ultimo rateio, no linguajar de calão,
parabenizando os felizardos da noite e consolando, com uma
palmada nas costas, so companheiros de desgraça e desventura.
Um pouco mais adiante, leitor amigo, o croupier anuncia, com gosto
infinito, o ultimo lance da roleta miserável:
- Deu 15, jacaré ... Cercado com dois mil reis.
O desgraçado, mãos nos bolsos, coçando os ultimos tostões do
ordenado ou as ultimas economia do pé de meia, lembra-se do
sonho de tres dias atras, soma, multiplica, subtrai, divide por dez – e
verifica, após maldizer a sorte ingrata, que o bicho era mesmo o
jacaré.
Além das questões relativas à cidade e seus problemas, é possível perceber
nesta crônica boa parte das características do gênero apontadas pelos autores
citados na primeira parte deste capítulo: a leveza do texto, elaborado num formato
espontâneo, como uma conversa; a cumplicidade entre autor e leitor, sobretudo
quando A. Tito Filho assume a responsabilidade de levar o leitor (como que pela
mão) pelos caminhos tortuosos e perigosos da cidade e que poucos (provavelmente)
conhecem; a intervenção na realidade, sobretudo na riqueza dos detalhes e das
descrições; os apelos feitos aos devidos responsáveis para que medidas fossem
tomadas, além do conteúdo da crônica em si: o problema dos jogos de azar. Na
crônica Teresina, cidade da perdição,51
pouco mais de um ano depois, o autor,
agora sob o pseudônimo de PERTINAX e escrevendo para outro jornal da cidade,
volta a abordar o tema, no que ele diz ser a primeira de uma série de reportagens
sobre o assunto.
É o único texto identificado na pesquisa em que A. Tito Filho aborda o tema.
Poderíamos, portanto, afirmar que a crônica foi marcada pela indeterminação.
Apesar do que o autor informou, perece ter sido a única reportagem sobre o
assunto. Pesquisando nos jornais dos dias e meses seguintes, outras reportagens
não apareceram. Por quê? Dificílimo apontar algum motivo. Pressões por parte de
autoridades e de políticos para que novas reportagens não fossem realizadas, já que
elas não só apontavam os problemas do cotidiano da cidade, mas também
apontavam a incompetência e negligência destes, ou mesmo simplesmente
apareceram temas que o autor considerou mais importante abordar, podem ser
tomadas como hipóteses. De qualquer forma, fica claro no texto a preocupação do
51
PERTINAX. Teresina, cidade da perdição. A Resistência, Teresina, 7 ago 1949, p. 5-6.
17
autor com o jogo. Ele aponta que o jogo de azar campeia livremente nas ruas da
capital teresinense, que o considera uma afronta a Nação inteira (!) e às leis que
governam a sociedade, como que desafiando as autoridades, fazendo com que se
duvide até que por trás dos bastidores políticos existam pressões interessadas e
coniventes com a situação (tida como criminosa).
Para A. Tito Filho, o jogo se enfileirava dentre as piores coisas que poderiam
acorrer na cidade, seguido da prostituição (desenfreada), do alcoolismo (sem
repressão), da mentalidade sem auxilio prático e resoluto do Governo e da infância
delinqüente e abandonada. O jogo se sobrepõe a qualquer outro problema porque
derruba instituições, degrada a mente e abre caminho para o crime. O jogo era
considerado o início do fim: quando, numa nação ou Estado, as pessoas procuram
no vício do jogo um motivo para sua degradação moral, o que existe de mais puro
nelas estará perdido.
Interessante também observar como o autor descreve o próprio trabalho de
reportagem:
O nosso objetivo era atingir o covil do jogo. Vê-lo de perto. Sentir as
sensações que ele nos oferece para podermos pintar o quadro real
para os nossos leitores. Dez ou mais cambistas ali estavam
localizados. De momento a momento, as poules eram arrancadas
dos talões e os centavos e os cruzeiros dos incautos caiam em seus
bolsos como o maná do Céu no Sermão da Montanha. Mas, não era
ali o Quartel General do jogo do bicho. Não seriam, também, o ‘Bar
do Carvalho’ e o ‘Restaurante Cairú’, os pontos de reuniões dos
transgressores da lei!52
A espeficifidade de um tema como o jogo, para um leitor de hoje, apresenta a
necessidade de uma cuidadosa tarefa de interpretação para compreendermos os
termos do cronista. Só assim será possível relacionar com sucesso esses textos à
realidade que é ao mesmo tempo a matéria-prima e o horizonte de intervenção do
cronista. Longe de refletir ou espelhar um momento da história de Teresina, o que A.
Tito Filho tenta fazer é conhecê-la da forma mais aprofundada possível, indo aonde
seja necessário para transformá-la. Para isso, se utiliza de um tom leve, que atrai o
leitor, combinado com o alcance possibilitado pelo trabalho na imprensa. Assim, ele
também consegue traçar um perfil para suas séries, tornando a crônica uma forma
de trabalho ainda mais complexa de se lidar enquanto fonte.
52
TITO FILHO, A. Jogo muito Jogo. O Piauhy, Teresina, 11 abril 1948, s/p.
18
Portanto, para atingir os objetivos propostos nesta dissertação, será preciso
traçar um perfil das crônicas, que nos ajudará a perceber de que forma A. Tito Filho
se utilizou dessa ferramenta53
para tratar de uma série de temáticas (relacionadas à
história do Piauí e de Teresina) bem como de conteúdos que surgiam a partir de sua
relação com o presente mais imediato. Ainda que a identidade do autor enquanto
cronista só tenha se fixado décadas após os textos citados acima, quando da
publicação de obras como Sermões aos Peixes e Teresina Meu Amor, o que procuro
deixar marcado aqui é que de certa forma a crônica já estava presente na obra
(jornalística) do autor mesmo quando seu campo de atuação ainda era aquele
relacionado ao jornalismo, sobretudo um jornalismo de forte caráter político, seu
principal espaço de atuação durante as décadas de 1950 e 1960.54
Quando mantinha uma coluna diária no Jornal do Piauí, ainda na década de
1970, o autor já se debatia acerca das dificuldades relacionadas ao gênero:
A crônica é gênero dificílimo. Tomar os pequenos como os grandes
episódios do dia-a-dia da vida, penetrar-lhe a sutileza, o poético, o
trágico, interpretá-los com sensibilidade, alcançar de cada um a
essência para projetá-la na inteligência do leitor – tudo isto é tarefa
de muita nobreza intelectual. A crônica deve ser precisa e natural. De
redação artística. De índole diversa, mas sempre de interêsse geral.
A razão de ser do cronista está no esforço de FAZER VIVER, de
TORNAR VIVOS os pormenores, as cousas, os seres, os pedaços
de natureza.55
Assim, percebo que ao longo da carreira do autor a crônica teve presença
constante, ainda que na forma de reportagens e o cronista aparecesse na forma de
jornalista. Nas crônicas citadas acima, penso que começa a aparecer (melhor seria
53
O que implica não percebê-las como meio. Ver: RORTY, Richard. A contingência da linguagem. In:
Contingência, ironia e solidariedade. Tradução de Vera Ribeiro. São Paulo: Martins Fontes, 2007 –
(Coleção Dialética). p. 25-55.
54
A. Tito Filho atuou em diversos órgãos de imprensa do Piauí (chegou inclusive a criar alguns) a
partir de 1948, quando retornou à Teresina vindo do Rio de Janeiro, local onde realizou sua formação
em direito e jornalismo. Ainda no Rio de Janeiro, fundou o jornal Libertação, em parceria com Luís
Costa, Virmar Soares, Vinícius Soares e Tibério Nunes. Redigido e impresso no Rio de Janeiro, onde
os fundadores eram estudantes, o jornal era transportado de avião para Teresina e teve apenas três
números. A. Tito Filho também atuou (ou dirigiu) outras publicações (algumas eram revistas) como O
Pirralho (1948), Jornal do Piauí (1951), A Luta (1952), Crítica (1952), Panóplia (1953), Folha da
Manhã (1958), Cidade de Teresina (1959), Folha do Nordeste (1962), Voz do Piauí (1964) e Jornal de
Bolso (1966). Seus espaços de atuação na imprensa que podemos considerar como os mais “fixos”
foram: jornal O Dia, onde trabalhou em boa parte da década 1960, depois retornando no período
abordado por esta pesquisa, de 1987 à 1992, ano de seu falecimento; no Jornal do Piauí, onde era
publicada sua coluna Caderno de Anotações, de 1970 à 1982; passagens pelo jornais O Estado e
Jornal do Comércio ao longo da década de 1980. Além disso, publicou dezenas de texto e discursos
em revistas como Presença, Almanaque da Parnaíba e Revista da Academia Piauiense de Letras.
Ver mais em: PINHEIRO FILHO, Celso. História da Imprensa no Piauí. Teresina: COMEPI, 1972. p.
79-99.
55
TITO FILHO, A. Caderno de Anotações. Jornal do Piauí, Teresina, 03 dezembro 1971, p. 6.
19
dizer, forjar-se) a identidade que marcaria a obra (e mesmo a vida) de A. Tito Filho: a
do cronista da cidade amada.56
56
Ver: MOURA, Francisco Miguel de. Tito Filho – namorador-mor de Teresina. In: TITO FILHO, A.
Cronista da cidade amada. Seleção de textos de Cineas Santos e M. Paulo Nunes. Teresina:
Prefeitura Municipal de Teresina, 1992.

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A Crônica e seus Contornos

  • 1. CAPÍTULO 1: A CRÔNICA NAS CRÔNICAS DE A. TITO FILHO Eu considerei a glória de um pavão ostentando o esplendor de suas cores; é um luxo imperial. Mas andei lendo livros, e descobri que aquelas cores todas não existem na pena do pavão. Não há pigmentos. O que há são minúsculas bolhas d’água em que a luz se fragmenta, como em um prisma. O pavão é um arco-íris de plumas. Eu considerei que este é o luxo do grande artista, atingir o máximo de matizes com o mínimo de elementos. De água e luz ele faz seu esplendor; seu grande mistério é a simplicidade. Rubem Braga Com muito farás pouco1 Muitas abordagens diferentes marcam o estudo da crônica, mas algumas características são mais presentes e alguns aspectos se repetem em diferentes autores. De certa forma, ela ganha contornos específicos de acordo com o momento estudado, bem como os objetivos estabelecidos. Para Afrânio Coutinho, a crônica surge como desdobramento do ensaio, gênero tradicional entre os britânicos.2 É gênero específico, estritamente ligado ao jornalismo. A crônica pode tornar-se um poderoso agente de correção dos costumes, ainda que tenha “ares de um passatempo frívolo”. Numa classificação dos cronistas brasileiros bem como das temáticas relacionadas ao estudo da crônica no Brasil, aponta dentre outras a relação entre a crônica e a reportagem: a crônica que não seja meramente noticiosa, é uma reportagem disfarçada, ou antes, uma reportagem subjetiva e às vezes mesmo lírica, na qual o fato é visto por um prisma transfigurador. O fato que é para o repórter em geral um fim, para o cronista é um pretexto: para divagações, comentários, reflexões do pequeno filósofo que nele exista. 1 Referência a uma passagem de artigo de Carlo Ginzburg presente em A micro-história e outros ensaios: “Os pombos abriram os olhos: conspiração popular na Itália do século XVII”. No texto, Ginzburg apresenta um estudo acerca de sujeitos que ele identifica como “mediadores culturais”: figuras que conseguem fazer a passagem de temas da cultura erudita para a cultura popular e vice- versa. A frase “com pouco conseguirás muito” é uma espécie de referência que o autor faz a pouca documentação apresentada no artigo. Penso que trabalhar com crônicas tem a ver com o que ele aponta: o cronista é uma espécie de mediador cultural, já que está entre o leitor e o cotidiano. Não sei se isso ficou claro no texto, mas de qualquer forma eu queria explicar o título da seção. Além disso, como a professora Teresinha Queiroz chamou-me à atenção, no que diz respeito à A. Tito Filho poderíamos mesmo dizer: “com muito farás pouco!”. Ver: GINZBURG, Carlo. Os pombos abriram os olhos: conspiração popular na Itália do século XVII. In: A micro-história e outros ensaios. Tradução de António Narino. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989. p. 131-141. 2 COUTINHO, Afrânio. Ensaio e crônica. In: A Literatura no Brasil: volume 6 – parte 3 – Relações e Perspectivas (Conclusão). 7. ed. São Paulo: Global, 2004. p. 117-143.
  • 2. 2 Veremos mais a frente, na crônica sobre os jogos de azar em Teresina, como A. Tito Filho se utiliza do texto jornalístico para trabalhar uma série de elementos referentes à crônica, para fazer do texto uma abordagem pessoal da realidade onde o leitor é conduzido “como que pela mão” para uma peregrinação noturna aos espaços da cidade onde a jogatina era praticada. Além disso, o texto possui um forte caráter dialógico, onde o autor a todo o momento tenta imprimir a marca de uma conversação que tem como base a observação direta do que é descrito. Quanto ao caráter apontado por Afrânio Coutinho acerca da “correção dos costumes”, veremos também a forma como A. Tito Filho cobra medidas enérgicas das autoridades. Observaremos também como essa característica é bem mais acentuada nas crônicas publicadas no jornal O Dia,3 sobretudo ao abordar uma série de temas que vão do carnaval à política nacional. Para Jorge de Sá, a crônica torna os fatos efêmeros mais concretos. Essa concretude lhes assegura a permanência, impedindo que caiam no esquecimento, e lembra aos leitores que a realidade – conforme a conhecemos ou como é recriada pela arte – é feita de pequenos lances. Essa estratégia estabelece o principio básico da crônica: registrar o circunstancial.4 Para ele, o cronista é uma espécie de narrador-repórter, que relata o fato não mais a um só receptor privilegiado, mas a muitos leitores que formam um público determinado. Assim como Afrânio Coutinho, reafirma a relação que a crônica mantém com o jornalismo e a literatura: ela seria uma soma das duas. A crônica surge primeiramente no jornal, herdando a sua precariedade, esse seu lado efêmero que nasce no começo de uma leitura e morre antes que se acabe o dia. O jornal, portanto, nasce, envelhece e morre a cada 24 horas. A crônica também assume essa transitoriedade dirigindo-se, sobretudo, a leitores apressados. Sua elaboração também assume essa urgência: o cronista dispõe de pouco tempo para produzir seu texto. Não é a toa que a falta de tempo, ou mesmo de assunto, é tema recorrente nas crônicas de vários autores. Outra característica marcante da crônica é o coloquialismo do texto, que marca a intenção do cronista em elaborar um diálogo com o leitor. Esse dialogismo equilibra o coloquial e o literário, permitindo que o lado espontâneo e sensível permaneça como o elemento provocador de outras visões do tema e subtemas tratados nas crônicas. 3 As crônicas estudadas aqui e ao longo da pesquisa estão disponíveis na internet no endereço: < www.acervoatitofilho.blogspot.com >. Acesso em: 01 abril 2013. 4 SÁ, Jorge de. A crônica. 3. ed. São Paulo: Ática, 1987. p. 06.
  • 3. 3 O cronista busca, assim, o circunstancial. Este é o pequeno acontecimento cotidiano do dia a dia, que poderia passar despercebido ou relegado a marginalidade por ser considerado insignificante. Com seu toque de lirismo reflexivo, o cronista capta esse instante brevíssimo que também faz parte da condição humana e lhe confere (ou lhe devolve) a dignidade de um núcleo estruturante de outros núcleos, transformando a simples situação no diálogo sobre a complexidade das nossas dores e alegrias. A pressa de viver desenvolve no cronista uma sensibilidade especial, que o predispõe a captar com maior intensidade os sinais da vida que diariamente deixamos escapar. Sua tarefa, então, consiste em ser nosso porta-voz, o intérprete aparelhado para nos devolver aquilo que a realidade não- gratificante sufocou: a consciência de que o lirismo no mundo atual não pode ser a simples expressão de uma dor de cotovelo, mas acima de tudo um repensar constante pelas vias da emoção aliada à razão.5 Além disso, o cronista não perde de vista que a situação particular só conta para o leitor na medida em que funciona como metáfora de situações universais, o que permite que façamos da leitura uma forma de catarse e empatia. Recompor a própria história individual é uma forma de o cronista nos ensinar a compor a nossa história na condição de pessoas ligadas a tantas e tantas heranças culturais. É importante que o cronista se defina num determinado tempo e espaço, compondo uma cronologia nunca limitadora, mas sempre esclarecedora da sua/nossa relação com os seres e com os objetos. Essas ideias serão importantíssimas para compreendermos, no primeiro capítulo, de que forma o autor se utilizou da crônica para biografar a vida de autores e intelectuais piauienses do passado (e alguns do presente). Não as escrevia apenas com o intuito de prestar homenagens, mas para tornar visíveis figuras o “que os piauienses desconhecem”,6 ou porque são figuras que “infelizmente, o Piauí ignora os filhos que o honraram e enalteceram nos domínios da inteligência”.7 A crônica, dotada daquela concretude que assegura a permanência, ajudava o autor a assegurar a visibilidade necessária para vencer o circunstancial. Os biografados por A. Tito Filho, ainda que (para ele) ignorados pelos piauienses, poderiam por meio das crônicas ganharem a visibilidade que a permanência necessita. Além disso, ao analisarmos suas biografias, poderemos perceber até que ponto (e como) A. Tito 5 SÁ, Jorge de. A crônica. 3. Ed. São Paulo: Ática, 1987. p. 11-13. 6 TITO FILHO, A. Caçador. O Dia, Teresina, 10 março 1988, p. 4. 7 TITO FILHO, A. João Alfredo. O Dia, Teresina, 08 abril 1988, p. 4.
  • 4. 4 Filho elaborou esses textos para também se inserir entre os intelectuais sobre os quais escreve. Ao escrever sobre os intelectuais piauienses ele também escreve sobre sua própria trajetória de intelectual. Portanto, o objetivo será saber como ele buscou dar sentido a sua própria trajetória de intelectual e também como essa escrita nos permite conhecer aspectos da vida literária do Piauí. O cronista, portanto, também é um escritor, também deseja escrever algo que fique para sempre. A crônica é uma tenda de cigano enquanto consciência da nossa transitoriedade; no entanto é casa, quando reunida em livro, onde se percebe com maior nitidez a busca de coerência no traçado da vida. Quando o cronista fala de si mesmo, é a vida que está sendo focalizada por uma câmera disposta a alcançar um amplo raio de ação. Ao narrar o mundo, o cronista narra a si mesmo, e assim vence a passagem do tempo.8 Já para Chalhoub et al, as crônicas são textos surgidos ao acaso, da espontaneidade de uma conversa – uma de suas características primeiras é a leveza. Elas surgem da tensão entre a elaboração narrativa e o dever de dialogar de forma direta com os temas e questões de seu tempo, definindo-se o perfil de um gênero que teria importância central na produção literária brasileira a partir de meados do século XIX.9 Dentre as características que marcam o gênero, apontam a cumplicidade construída entre o autor e o leitor quanto aos temas e questões a serem discutidos. Ao estabelecer essa espécie de acerto de contas com o presente, a crônica teria como uma de suas marcas esse caráter de intervenção na realidade, com a qual interagia. As formas pelas quais os cronistas brasileiros buscaram realizar tal intento foram variadas. Em comum, no entanto, estava o cuidado demonstrado na delimitação de um perfil próprio para suas séries, que torna um tanto mais complexo o tipo de intervenção caracterizado pelas crônicas. Outra característica é a indeterminação, sobretudo a natureza de sua indeterminação. O cronista está sempre sujeito ao imponderável do cotidiano, que lhe fornece temas e problemas com os quais discutir, quanto modifica e redireciona suas opções iniciais. Os autores também reforçam a estreita ligação da crônica com a imprensa. Essa ligação vincula a crônica e o cronista ao jornal em que se publicam, e também permite o aparecimento de colunas especializadas. Por último, 8 SÁ, Jorge de. A crônica. 3. Ed. São Paulo: Ática, 1987. p. 17-22. 9 CHALOUB, Sidney et al. Apresentação. In: CHALOUB, Sidney; NEVES, Margarida de Sousa; PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda. História em cousas miúdas: capítulos de história social da crônica no Brasil. Campinas: UNICAMP, 2005. p. 11.
  • 5. 5 apontam que da aparente contradição entre a leveza e a cuidadosa elaboração de suas séries, da tensão entre a tarefa de comentar a realidade e o intuito de transformá-la; e da variedade de formas e temas por elas assumidos, define-se enfim um perfil para a crônica.10 Ainda que façam questão de apontar essas características como mais frequentes na produção dos autores brasileiros da segunda metade do século XIX e da primeira metade do século XX, e mesmo que algumas das características sejam contestáveis – como a (suposta) indeterminação presente nas crônicas –, a característica referente à elaboração de séries será fundamental para entendermos como A. Tito Filho construiu em suas crônicas um conjunto delas. As crônicas referentes aos intelectuais piauienses, por exemplo, constituem a série a ser trabalhada no segundo capítulo. Outro conjunto é a série referente à história contemporânea do Brasil e do Piauí, que é abordada por Tito Filho nas crônicas estudadas no terceiro capítulo: desde a Independência do Brasil à abolição da escravatura no Piauí; do povoamento (“desbravamento”) do Piauí ao Estado Novo no Piauí. Nelas, o autor busca caracterizá-las como textos que historiam,11 portanto marcadas pelo conceito antigo de crônica, ou seja, textos que procuram zelar pela memória dos acontecimentos importantes. O cronista almeja, “pondo em crônica”, organizar cronologicamente histórias existentes ou organizar do ponto de vista da memória (portanto, um ponto de vista subjetivo) fixando aquilo que um dia aconteceu, que um dia foi presente. A ambição do cronista é justamente escrever algo que fique num espaço que é feito para as pessoas lerem e se esquecerem do que foi lido.12 Além das temáticas citadas anteriormente, outras marcam presença em seus textos, e também podem ser tomadas como séries: a história do Teatro 4 de Setembro, sobre o qual também escreveu um livro;13 do Liceu Piauiense (onde foi professor e diretor); o Brasil Republicano, sobretudo a trajetória constitucional do poder executivo e o momento 10 CHALOUB, Sidney et al. Apresentação. In: CHALOUB, Sidney, Margarida de Sousa; PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda. História em cousas miúdas: capítulos de história social da crônica no Brasil. Campinas: UNICAMP, 2005. p. 17. 11 LOPES, Telê Porto Ancona. A crônica de Mário de Andrade: impressões que historiam. In: Candido, Antonio [et al]. A Crônica: o gênero, sua fixação e suas transformações no Brasil. Campinas: UNICAMP; Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1992. p. 165-188. 12 LOPES, Telê Porto Ancona. A crônica de Mário de Andrade: impressões que historiam. In: Candido, Antonio [et al]. A Crônica: o gênero, sua fixação e suas transformações no Brasil. Campinas: UNICAMP; Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1992. p. 165-66. 13 TITO FILHO, A. Praça Aquibadã, sem número. Teresina: Governo do Estado do Piauí, 1975.
  • 6. 6 mais presente da chegada de Fernando Collor ao poder; e alguns textos que abordam autores (e historiadores) piauienses, onde fez questão de deixar marcada uma abordagem da história e do cotidiano de Teresina (e do Piauí) a partir de leituras de obras literárias que considerava importantes (a literatura piauiense como lugar de produção historiográfica?), como por exemplo: Benedita,14 Malhadinha,15 Um Manicaca16 e Contos do Sertão do Piauí.17 Um problema importante que surge a partir dessas séries é saber que motivações o autor teve para a produção destas crônicas sobre a história do Brasil e do Piauí. Além disso, o porquê de uma atenção tão grande dada à literatura do Piauí, sobretudo se levarmos em conta que os livros citados acima têm em comum uma intensa vontade de não apenas narrar uma história, mas ao mesmo tempo retratar (fielmente) uma realidade. O primeiro problema poderia ser pensado a partir do estudo de aspectos relativos ao processo de redemocratização do Brasil: seria a necessidade de atualizar a história do Brasil e do Piauí por conta de uma demanda?18 Uma preocupação do autor em fazer da história do Piauí parte da história nacional?19 Quanto à atenção dada à literatura piauiense, poderíamos relacioná-la ao fato de que nessas crônicas A. Tito Filho buscou construir para si uma identidade de leitor, que aprendeu sobre a história do Piauí a partir do hábito da leitura que cultivou desde a infância.20 No terceiro capítulo, veremos como o autor se utilizou da crônica para fazer uma leitura da história do Brasil e do Piauí, e ao mesmo tempo lidar com dois problemas: inserir a história do Piauí na História do Brasil e construir para si uma identidade de leitor. 14 PACHECO, Edson. Benedita: a pureza que emergiu do lodo. Brasília: Gráfica do Senado Federal, 1983. 15 RÊGO, José Expedito. Malhadinha. Teresina: Academia Piauiense de Letras, 1990. 16 NEVES, Abdias da Costa. Um Manicaca. 5. ed. Teresina: CORISCO, 2012. 17 GAMEIRO, Alvina. Contos dos Sertões do Piauí. Teresina: Academia Piauiense de Letras/Projeto Petrônio Portella, 1988. 18 MONTEIRO, Charles. Porto Alegre e suas escritas: história e memórias da cidade. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2006. p. 25. 19 TITO FILHO, A. Independência no Piauí. O Dia, 05 abril 1990, p. 4. Disponível em: < http://migre.me/cwvWn >. Acesso em: 20 dezembro 2012. 20 TITO FILHO, A. Leitura. O Dia, 26 abril 1990, p. 4. Disponível em: < http://migre.me/cww1M >. Acesso em: 20 dezembro 2012.
  • 7. 7 Passadas essas abordagens, algumas ideias foram apontadas ao longo do texto e serão fundamentais para entendermos a forma como A. Tito Filho elaborou os temas que perpassam os capítulos desta dissertação: a intenção do cronista em atuar como uma espécie de “agente de correção” do costumes, apontada por Afrânio Coutinho; a relação entre efemeridade e concretude, a crônica como o registro do circunstancial; e por último, a construção de séries (temáticas) ao longo da trajetória do cronista, apontada por Chalhoub et al. De certa forma, elas estão presentes em todos os capítulos. Mas no quarto capítulo elas aparecem com muito mais intensidade, onde veremos como o tema mais presente nas crônicas de A. Tito Filho, a cidade de Teresina, é trabalhado. Ela é tema de uma de suas obras mais conhecidas21 e espaço central de uma série de temas que marcaram, sobretudo, seus textos publicados em livros: os carnavais de Teresina, a história do Teatro 4 de Setembro, episódios relativos à fundação da cidade, bem como personagens que marcaram a história da cidade ou que o cronista considerava importantes e julgava esquecidos – muitos dos quais ele conheceu pessoalmente. Assim, o objeto das crônicas é o cotidiano construído pelo cronista através da seleção que o leva a registrar alguns aspectos e eventos e abandonar outros.22 As crônicas chamam a atenção por serem correspondentes, em seu estilo, à própria dinâmica do momento vivido. Através das crônicas procuramos perceber de que forma um determinado presente é entendido ou vivido.23 Assim, pensamos o cronista como alguém que está como que vivendo entre o passado e o futuro. A intenção é justamente mostrar que a forma como ele observa o cotidiano24 da cidade (e estabelece diálogos com o cotidiano nacional, já que boa parte dos textos também trata de temas relativos ao Brasil, sobretudo a cultura brasileira) se dá em termos extemporâneos,25 ou seja: o que vai de encontro ao espírito da época, o que a ele se contrapõe. O extemporâneo é aquele que adota duas posturas básicas: o combate e a distância. Põe-se à distância do que ocorre à sua volta, para alterar o 21 TITO FILHO, A. Teresina meu amor. Teresina: COMEPI, 1973. 22 NEVES, Margarida de Sousa. Uma escrita do tempo: memória, ordem e progresso nas crônicas cariocas. In: Candido, Antonio [et al]. A Crônica: o gênero, sua fixação e suas transformações no Brasil. Campinas: UNICAMP; Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1992. p. 75-92. 23 BERBERI, Elizabeth. Impressões: a modernidade através das crônicas no início do século em Curitiba. Curitiba: Aos Quatro Ventos, 1998. 115 p. 24 MATOS, Maria Izilda Santos de. Cotidiano e cultura: história, cidade e trabalho. Bauru: EDUSC, 2002. 25 MARTON, Scarlett. Por que sou um extemporâneo. In: Extravagâncias: ensaios sobre a filosofia de Nietzsche. 2. ed. São Paulo: Discurso Editorial/UNIJUÍ, 2001. p. 19-49.
  • 8. 8 ponto de vista; afastando-se do desenrolar dos acontecimentos, coloca-se em outro ângulo de visão. Assim, se condiciona a combater a cultura de seu tempo, para dizer a (sua) verdade. A todo o momento, veremos como A. Tito Filho procura estabelecer contrastes e paralelos entre a Teresina do presente e a do passado. Por exemplo, em uma de suas crônicas podemos ler que [...] a criança vive entregue a própria sorte. A rua simboliza o lar – pois as nossas crianças moram na rua, ou porque não têm lar ou porque apenas conhecem a casa da moradia – a casa em que os membros da família se encontram para o repouso madrugadino.26 Para ele, que fala sobre o momento presente da cidade, as mulheres são as culpadas por esta situação de abandono das crianças, já que sua entrada no mercado de trabalho as retirou do espaço doméstico e o resultado se vê “no abandono dos filhos pequenos, que se criam sem carinho e sem afeto”. O mesmo tipo de reflexão aparece em seus textos sobre os carnavais de Teresina, em que o autor despreza os carnavais da cidade do presente, como na passagem abaixo: Na terça-feira fui ver a carnavalescação da avenida Frei Serafim. Mau gosto generalizado. Frescura muita. No meu tempo de rapaz, só havia de baitola o animado Bernardo Alfaiate, que sempre saía de baiana cheia de enfeites, de vistosos adornos na cabeça, mas sem peitos. Aplaudidíssimo. Agora o carnaval se faz com veados e bumbuns. Cada maricas de seios e salamaleques que dá gosto. As fêmeas de traseiros à mostra e algumas até de boi de cara preta de ninguém botar defeito. Não vi exibição de beleza feminina, mas simples e veemente pornografia.27 A essa imagem, o autor contrapõe a de um carnaval do passado, um carnaval das letras,28 sobretudo pela presença marcante de intelectuais, políticos e pessoas ligadas à cultura, o que podemos observar em Carnavais de Teresina e na série de textos que foram publicados no jornal O Dia: O carnaval valia uma festa de graça, de bom humor e de contagiante alegria. Em tempos mais remotos, quando a folia se iniciava, depois que se proibiu a estúpida brincadeira do entrudo, ainda no século passado, o carnaval se fazia nos bailes dos clubes sociais e nas ruas - e nessa época mais antiga a máscara era a principal fantasia no reino de Momo. E a evolução para melhor se processou ano por ano, apareceram os ranchos, os cordões, os blocos, cheios de entusiasmo, que percorriam as ruas e prestigiavam as danças nos salões. Uma beleza, momentos de efusivas manifestações de 26 TITO FILHO, A. As pobres vítimas. O Dia, 19 outubro 1987, p. 4. Disponível em: < http://migre.me/cww3v >. Acesso em: 20 dezembro 2012. 27 TITO FILHO, A. Carnavalescação. O Dia, 07 março 1989, Teresina, p. 4. Disponível em: < http://migre.me/cww5D >. Acesso em: 20 dezembro 2012. 28 LAZZARI, Alexandre. Coisas para o povo não fazer: carnaval em Porto Alegre (1870-1915). Campinas: Editora da Unicamp/CECULT, 2001. – (Coleção Várias Histórias).
  • 9. 9 pândega. Que dizer das saudosas batalhas de confete e lança- perfume nas praças animadas de inesquecíveis sambas e marchas executadas pelas bandas militares? O automóvel e o caminhão fizeram o corso gostoso. Percorriam-se ruas previamente escolhidas e veículos, marcha vagarosa, lotados de moças e rapazes, se enfeitavam e de um para outro jogava-se colorida serpentina. Muita cantiga bonita e movimento de corpo. Pelas vias públicas desfilavam homens fantasiados. Muito bom humor em tudo. Raras brigas se verificavam. Nos grandes centros registrava-se as vezes um crime de morte. Governos federais, estudais e municipais nada gastavam nessa ruidosa brincadeira nacional.29 Essa carnavalescação30 do cotidiano, onde mães viram trabalhadoras, homens viram baitolas (sic), o carnaval vira pornografia e não uma face da vida literária é justamente o que se pretenderá abordar no quarto capítulo: a visão do cronista é marcada pela lógica da inversão (onde ele vê as coisas e os valores invertidos), mas ao mesmo tempo uma visão que não se deixa escapar da ambivalência,31 afinal de contas o cronista é uma figura que possui muitas máscaras e muito do que ele diz não necessariamente correspondia ao que ele fazia.32 O presente da cidade, o presente da escrita do autor, é aquele referente ao contemporâneo: aquele que, graças a uma diferença, uma defasagem ou um anacronismo, é capaz de captar seu tempo e enxergá-lo. Por não se identificar com o presente, cria um ângulo (de visão) do qual é possível expressá-lo. O escritor contemporâneo parece estar motivado por uma grande urgência em se relacionar com a realidade histórica, estando consciente, entretanto, da impossibilidade de captá-la na sua especificidade atual, em seu presente. Essa escrita é marcada, portanto, por uma necessidade de vingar-se: Dois argumentos se juntam aqui: uma escrita que tem urgência, que realmente ‘urge’, que significa, segundo o Aurélio, que se faz sem demora, mas também que é eminente, que insiste, obriga e impele, ou seja, uma escrita que se impõe de alguma forma. Ao mesmo tempo, trata-se de uma escrita que age para ‘se vingar’, o que também pode ser entendido, recuperando-se o sentido etimológico da palavra ‘vingar’, como uma escrita que chega a, atinge ou alcança seu alvo com eficiência. O essencial é observar que essa escrita se 29 TITO FILHO, A. Quase no fim. O Dia, 07 março 1989, p. 4. Disponível: < http://migre.me/cww7Y >. Acesso em: 20 dezembro 2012. 30 DISCINI, Norma. Carnavalização. In: BRAIT, Beth (Org.). Bakhtin: outros conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2008. p. 53-93. 31 “A ambivalência é a imagem viva da dialética (da contradição)”. Ver: BENJAMIN, Walter. Paris, capital do século XIX. Tradução de Maria Cecília Londres. In: A Teoria da Literatura em suas fontes, vol. 2. 3. ed. Organização de Luiz Costa Lima. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. P. 689-706. 32 BORGES, Jorge Luis. everything and nothing. In: Antologia Pessoal. Tradução de Josely Viana Baptista. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. p. 136-139.
  • 10. 10 guia por uma ambição de eficiência e pelo desejo de chegar a alcançar uma determinada realidade, em vez de propor como uma mera pressa ou alvoroço temporal.33 A urgência é a expressão sensível da dificuldade de lidar com o mais próximo e atual, ou seja, a sensação, que atravessa alguns escritores, de ser anacrônico em relação ao presente, passando a aceitar que a “realidade” mais real só poderá ser refletida na margem e nunca enxergada de frente ou capturada diretamente. Por último, pretendo ressaltar também que uma das máscaras utilizadas pelo cronista é a do narrador: é dela que Tito Filho se utilizou para escrever, por exemplo, sobre os fundadores e personagens da cidade. O narrador é aquele que consegue fazer de sua escrita um intercâmbio de experiências. A experiência que passa de pessoa para pessoa é a fonte a que recorrem todos os narradores. O narrador, portanto, é aquele que retira da experiência o que ele conta: suas próprias experiências ou as experiências relatadas por outros. 34 É o que podemos perceber, com mais ênfase, em obras como Gente e Humor, Sermões aos Peixes e Teresinando em Cordel. Essa postura do narrador, que também traz em si a marca do historiador, é perceptível, sobretudo, nos textos sobre personagens como o Conselheiro Saraiva, o frei Serafim de Catânia e espaços como a Igreja de São Benedito (outrora Igreja do Alto da Jurubeba) e a Praça Pedro II (outrora Praça Aquibadã). A história de Teresina estaria marcada, portanto, pela atuação de figuras centrais que dirigiram o processo desde sua fundação e de espaços que marcaram a história e desenvolvimento de todas as cidades – como a criação de praças e igrejas de onde a cidade se irradia. Até aqui, imagino que já ficou claro que pretendo abordar a crônica e como a entendo; como pretendo tomar o autor como cronista e como se dava sua atuação enquanto tal, e por último, como esse gênero permitiu ao autor tratar de uma série de temas e ao mesmo tempo falar de si. As crônicas permitem ao autor fixar posições, construir conteúdos e sentidos, fazer aparecer um arranjo cultural, extratos de vivências, modos de pensar e sensibilidades; além disso, elas operam com 33 SCHØLLHAMMER, Karl Erik. Que significa literatura contemporânea? In: Ficção brasileira contemporânea. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009. p. 9-19. Grifos do autor. 34 BENJAMIN, Walter. O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994. p 197-221.
  • 11. 11 estratégias, tentando aproximar-se do imaginário de uma época.35 São ricas de significados, pois externam fatos e conflitos existentes, tanto no espaço privado quanto no espaço público. São resultados de vivências e de interlocuções do cronista com o social, com o seu lugar de discurso, utilizando uma das várias formas de “dizer”, mas que pela riqueza de detalhes tornam-se um meio essencial e importante de análise histórica.36 Além disso, também poderia apontar a possibilidade de pensarmos a obra do autor como um espaço de construção de identidades, como a de intelectual37 ou mesmo como um espaço de construção de uma escrita de si, o que significa dizer que as crônicas podem ser tomadas como uma escrita autoreferencial: a necessidade e a relevância que o cronista têm de dotar o mundo que o rodeia de significados especiais relacionados com sua própria vida, para efetuar uma escrita de si.38 Além disso, cabe apontar que todos esses movimentos que o cronista é capaz de efetuar, todas as características apontadas até aqui, são possíveis a partir da percepção de que a crônica pode ser tomada como gênero literário de fronteira, entre a literatura e a história, estabelecendo uma reflexão sobre se o autor ao escrever a crônica está a fazer uma história de seu tempo.39 Me interessa apontar aqui, a partir da análise de Sandra Jatahy Pesavento, que as crônicas podem referir- se há outro tempo, no passado. São elas narrativas memorialísticas, quase sempre baseadas, na maioria dos casos, na experiência e nas recordações de alguém que viveu, viu e ouviu outro tempo. Tais crônicas são especialistas em assinalar a diferença entre o tema/objeto da recordação tal como era no passado e o tempo da narrativa, o presente onde se realiza o ato de rememorar. Não raro esta diferença no tempo é qualificada, é julgada, como perda. 35 Essa frase eu não sei se faz sentido aqui, faz? 36 BRANDIM, Ana Cristina Meneses de Sousa. Entre letras e papéis: a crônica como vestígio da cidade de Teresina. In: ADAD, Sarah Jane Holanda Costa; BRANDIM, Ana Cristina Meneses de Sousa; RANGEL, Maria do Socorro (Orgs). Entre Línguas: movimento e mistura de saberes. Fortaleza: UFC, 2008. p. 28-32. 37 BRANDIM, Ana Cristina Meneses de Sousa. Escrita dos movimentos interiores: escrita de si e construção de uma trajetória de intelectualidade e distinção em A. Tito Filho (1971-1992). / Ana Cristina Meneses de Sousa Brandim. Recife: UFPE, 2012. Tese (Doutorado em História do Norte- Nordeste do Brasil). UFPE. 2012. 38 GOMES, Angela de Castro. Lapidação de si, escrita da História: a título de prólogo. In: GOMES, Angela de Castro (Org.). Escrita de Si, Escrita da História. Rio de Janeiro: FGV, 2004. p. 7-24. 39 PESAVENTO, Sandra Jatahy. Crônica: fronteiras da narrativa histórica. In: História UNISINOS, volume 8, nº 10, julho/dezembro, 2004, p. 61-80 – Disponível em: < http://bit.ly/JLDlkb >. Acesso em: 21 maio 2012.
  • 12. 12 De um modo geral, concordo que a crônica é um gênero de fronteira, se tomarmos fronteira como o espaço entre tempos: essa intensa circulação de temporalidades que o cronista consegue fazer funcionar no espaço do texto. Interessa-me apontar com mais intensidade a forma como o cronista consegue fazer funcionar no espaço do texto uma circulação de temas – aí, já é o momento de tomarmos fronteira como o espaço entre perspectivas. Para Pesavento, a crônica é a fronteira pela qual o cronista passa do presente para o passado, de volta para o presente, ou mesmo para o futuro. No caso deste trabalho, pretendo apontar como a crônica é a fronteira que o cronista utiliza para fazer passar a si mesmo enquanto escreve sobre seus temas, ou fazer passar seus temas enquanto escreve sobre si mesmo. Fiquemos de acordo que ela é um gênero de fronteira, mas a forma como ele (o cronista) atravessa e com que intenções podem variar. Para Pesavento, as crônicas intensificam a temporalidade, para mim elas intensificam uma perspectiva. Pretendo, enfim, elaborar uma abordagem da produção escrita de A. Tito Filho, sobretudo suas crônicas (sem, é claro deixar de lado alguns de seus livros), partindo das vidas literárias abordadas no segundo capítulo; depois, no terceiro capítulo, analisar as temáticas de história do Brasil e do Piauí, bem como da literatura piauiense presentes em suas crônicas; e por último, sua perspectiva acerca da história de Teresina, que parte de temáticas relativas à história da cidade, sobretudo ao narrar sua fundação e retratar personagens que considera centrais e que vão desde intelectuais, como o Conselheiro Saraiva, até figuras do cotidiano, como Maria Preá, chegando a uma série de temáticas que marcaram presença em seus textos: como os carnavais de Teresina, as mulheres, os cabarés, a política, enfim, seu cotidiano. Teresina, cidade da perdição Para termos uma noção mais claro do que foi apontado acima, vejamos como texto o cronista, no texto Cidade sem Lei,40 publicado no jornal Resistência,41 lidava com os problemas da cidade de Teresina. Nele, A. Tito Filho compara a cidade a um 40 TITO FILHO, José de Arimathéa. Cidade sem lei. Resistência, Teresina, 05 novembro 1949, p. 5- 6. 41 Resistência foi um jornal de caráter político (pode-se mesmo considerá-lo um órgão político) dirigido por Francisco Luís Almeida, destinado a combater o governo de José da Rocha Furtado, que era da União Democrática Nacional (UDN). Ver: PINHEIRO FILHO, Celso. História da Imprensa no Piauí. 2. ed. Teresina: COMEPI, 1988. p. 96.
  • 13. 13 filme também chamado Cidade sem lei,42 em exibição no Cine Rex. Segundo o autor, qualquer um que tivesse visto o filme observaria o que estava se passando em Teresina, e, no que dizia respeito à insegurança e à ordem pública dos cidadãos, era ela também “uma cidade sem lei.” No perímetro urbano e suburbano, davam-se freqüentes roubos e furtos; a jogatina campeava em todos os recantos da cidade, “enfestada” por legiões de mendigos (alguns verdadeiros e outros falsos) que invadiam lares, cafés e restaurantes. Era possível ver até loucos falando sozinhos e “soltando pinotes”, perambulando pela praça Rio Branco. No texto, A. Tito Filho também traça um painel noturno: das oito da noite em diante a praça Rio Branco se transforma “em cabaré ao ar livre”, já que na mesma se aglomeravam dezenas de meretrizes. E finaliza apontando a indiferença (para ele criminosa) das autoridades, sobretudo o governador Rocha Furtado,43 diante de tais fatos humilhantes e vergonhosos. A. Tito Filho se utiliza do espaço para produzir um texto que expõe suas impressões (sua indignação) diante do que observa no cotidiano da cidade. Mas é importante perceber também que o espaço do jornal era utilizado para atingir o governador: o jornal Resistência, como o próprio nome já indica, era um espaço de contestação ao governo do interventor federal.44 Pensando a crônica a partir do contexto do autor, percebe-se que sua escrita é marcada pelas disputas políticas do momento: a imprensa escrita piauiense foi uma das ferramentas mais utilizadas pelo poder político e partidário em suas propostas e campanhas. Geralmente os jornais pertenciam a políticos ou grupos políticos aliados 42 A. Tito Filho provavelmente está se referindo ao filme San Antonio, lançado em 1945 e dirigido por David Butler, que contava a história de Jeanne Starr (Alexis Smith), uma dançarina de salão que trabalhava para o chefe do crime local e que acaba se apaixonando pelo “mocinho” Clay Harden (Errol Flynn). 43 José da Rocha Furtado (União, 24-02-1909) governou o Estado do Piauí no período de 1947 a 1951 e faleceu em Fortaleza (CE) no dia 27 de fevereiro de 2005, aos 96 anos de idade, por conta de problemas cardíacos. Primeiro governador eleito após o fim do Estado Novo, formou-se em medicina na Universidade do Rio de Janeiro (escola da Praia Vermelha) em 1932. Voltou a Teresina em 1933 e tornou-se diretor dos serviços de cirurgia e pronto-socorro do Hospital Getúlio Vargas, logo após a inauguração do hospital em 1941. Após o fim do governo Vargas em 1945, surgiram vários partidos políticos, mas os dois mais fortes eram o Partido Social Democrático (PSD) que aglutinou simpatizantes das interventorias – e a União Democrática Nacional (UDN) que reuniu setores contrários ao governo federal e estadual. Rocha Furtado elegeu-se governador pela UDN, mas seu governo ficou marcado por graves divergências do Poder Executivo com o Legislativo e o Judiciário, chegando inclusive a sofrer uma tentativa de impeachment pela maioria da Assembléia Legislativa. Ver: bibliografia do livro CEPRO; TITO FILHO, A. Governadores do Piauí: Capitania – Província – Estado. 3. ed. Rio de Janeiro: Artenova, 1978. p. 55. 44 Para uma leitura ainda mais ríspida da forma como o autor lidava com a situação política de Teresina sob o governo de Rocha Furtado ver: TITO FILHO, A. A sifilização rochista. Resistência, Teresina, 14 novembro 1948, p. 1.
  • 14. 14 ao poder (ou contra ele) para atingir fins político-eleitorais.45 É também o próprio autor, em crônica que relembra sua trajetória profissional, que nos possibilita compreender o contexto: Já no Piauí, eleito Rocha Furtado, estive alguns meses na orientação do órgão O Piauí, que circulava nos dias de quinta e domingo, e me foi confiado por Eurípedes de Aguiar. Posteriormente, fiz parte da redação de outras folhas, sempre partidárias, sob a responsabilidade de governistas ou oposicionistas.46 Na crônica A vaca e o Hotel,47 publicada no jornal O Dia na década de 1960, A. Tito Filho aborda novamente os problemas da cidade, mas dessa vez já conseguimos identificar alguns elementos que vão além da crítica política: São 6 horas da tarde de 13 de abril: não há luz. Já comprei, para hoje, 2 pacotões de velas por Cr$ 80,00. O IAEE pagará essa despesa? O IAEE já pagou Cr$ 600.000,00 de lenha que deve ao amigo Edison Parente? Até quando o IAEE martirizará um povo, o povo teresinense? Minha cozinheira afirma que lenha é coisa de civilização primária. Até quando o IAEE entende que o Piauí deva viver nesse primitivismo de civilizações? Quantas industrias, nesta terra, necessitam de energia? Quantos processos de vida estão sendo sufocados pelo IAEE? Atesta a LBA, em oficio, que o deve mandar desobstruir fossas dos meninos das Ilhotas. Para isto que serve o IAEE? As turbinas vivem de lenha, primariamente. Energia que vem das turbinas. Quanto deve o IAEE aos fornecedores de lenha para movimentar as turbinas? Verdade é que o IAEE só tem sido útil aos ladrões noturnos e ao comercio de velas. A mais ninguém. Graças a Deus de cá dos meus domínios ladrão leva o que se leva da vida: nada. Mas tenho padecido muito, sem defunto em casa, com compra diária de pacotões. Cr$ 40,00 cada um. Pior que eu só o correto Edison Parente: compra pacotão e não recebe o dinheiro da lenha que vendeu ao IAEE. Aqui são perceptíveis elementos que diferenciam este texto do anterior, já que, como vimos, o contexto da escrita do autor era marcado pelas disputas políticas daquele momento. Apontar a lenha como algo pertencente às civilizações primárias nos dão pistas, indícios, de que há uma elaboração discursiva que tenta organizar a cidade, apontar seus defeitos, os culpados e, conseqüentemente, as soluções.48 45 Ver: LIMA, Nilsângela Cardoso. Relações de poder e práticas jornalísticas na campanha político- partidária nas emissoras de rádio de Teresina (1948-1962). In: LIMA, Frederico Osanan Amorim; ARAÚJO, Johny Santana de (Orgs.). História: entre fontes, metodologias e pesquisa. Teresina: EDUFPI, 2011. p. 41-54. 46 TITO FILHO, A. Um pouco de jornalismo. O Dia, Teresina, 22 dezembro 1990, p. 4, grifos do autor. 47 TITO FILHO, A. A Vaca e o Hotel. O Dia, Teresina, 17 abril 1960, p. 1-2, grifos do autor. 48 Ver: GINZBURG, Carlo. Sinais: raízes de um paradigma indiciário. In: Mitos, Emblemas, Sinais: morfologia e história. 2. ed. Tradução de Federico Carotti – São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p. 145-179.
  • 15. 15 Assim, a falta de luz só pode mesmo ser algo absurdo, coisa de país (ou cidade) atrasada. Ela atrasa os “processos de vida” e as necessidades das indústrias. Portanto, o Instituto de Águas e Energia Elétrica (IAEE)49 atrasava o progresso da cidade. Seria possível para A. Tito Filho, se contentar apenas em querer organizar a cidade? Pesquisando os textos do autor, sobretudo aqueles publicados no jornal O Dia, percebemos que organizar a cidade é apenas uma etapa do processo. É preciso dar conta das pessoas também, ou melhor, da sociedade. Em outra crônica, da década de 1940, percebe-se como o autor lidou com a questão dos jogos de azar em Teresina, sobretudo o jogo do bicho. Ora, se é do interesse do autor organizar a cidade, civilizá-la, deparar-se com algo tão complicado como o jogo – considerado naquele momento como crime – era insuportável. Na crônica (na verdade uma crônica-reportagem) Jogo muito Jogo,50 A. Tito Filho fala sobre o problema do jogo em Teresina: Despe, leitor amigo, a roupagem vistosa com que te apresentas ante as frivolidades da sociedade e vem comigo, lado a lado, para uma peregrinação noturna nos antros da jogatina. São oito horas da noite, é cêdo, a cidade toda mergulhou na sonolencia, depois do trabalho exaustivo de seus habitantes. Arrulham ainda poucos casais nos bancos de praça, mocinhas acabam de cansar as batatas da perna volteando na pista da Pedro II. Daqui a pouco tudo dorme. Apenas funciona o jogo, a terrível chaga social – sorvedouro da honra de muitos, desgraça de tantos lares, causa de inumeras tragedias. Funciona o jogo, leitor amigo, no centro da antiga Chapada do Corisco – nos clubes, nos bares, em casas particulares, em toda a parte. Desaparecem, no torvelinho medonho da jogatina, o pão, a roupa, o livro, a educação de muitas crianças teresinenses. Esposas aflitas rezam no recesso de residencias humildes, chupando muitas vezes a carie de um dente, ou, em cima de três pedras, preparam um ralo mingau de farinha com que entupir o bucho das crianças famintas, enquanto o marido, no covil da jogatina, descarta-se do dinheiro, do relogio e da aliança de casamento para alimentar o terrível vicio – fumando e bebendo, dores nas costas, debruçado na mesa fatídica, ou avido, nervoso, espiando a roda de roleta, atento ao ruído da palheta, ou, ainda, ouvido apurado, marcando numeros, á espera de que lhe dêem, no víspora, a pedra boa ... JOGO, MUITO JOGO - Cinqüenta e cinco ... numero oito ... noventa ... É a voz arrastada do chamador, anunciando as pedras do víspora, uma a uma, os viciados, palidos e pigarrentos, marcam os cartões, 49 O IAEE foi o órgão antecessor da Águas e Esgotos do Piauí S.A. (AGESPISA) criada através das leis estaduais n.º 2.281, de 27 de julho de 1962 e 2.387, de 12 de dezembro de 1962 e das Centrais Elétricas do Piauí S.A. (CEPISA) que foi criada em 08 de agosto de 1962. 50 TITO FILHO, A. Jogo muito Jogo. O Piauhy, Teresina, 11 abril 1948, s/p.
  • 16. 16 entre baforada de um cigarro quando estes desgraça os restos de pulmões e o trago de aguardente que lhes corroe as tripas ... Reino da batota e do deboche – a comunidade de caras mal dormidas se expande, depois do ultimo rateio, no linguajar de calão, parabenizando os felizardos da noite e consolando, com uma palmada nas costas, so companheiros de desgraça e desventura. Um pouco mais adiante, leitor amigo, o croupier anuncia, com gosto infinito, o ultimo lance da roleta miserável: - Deu 15, jacaré ... Cercado com dois mil reis. O desgraçado, mãos nos bolsos, coçando os ultimos tostões do ordenado ou as ultimas economia do pé de meia, lembra-se do sonho de tres dias atras, soma, multiplica, subtrai, divide por dez – e verifica, após maldizer a sorte ingrata, que o bicho era mesmo o jacaré. Além das questões relativas à cidade e seus problemas, é possível perceber nesta crônica boa parte das características do gênero apontadas pelos autores citados na primeira parte deste capítulo: a leveza do texto, elaborado num formato espontâneo, como uma conversa; a cumplicidade entre autor e leitor, sobretudo quando A. Tito Filho assume a responsabilidade de levar o leitor (como que pela mão) pelos caminhos tortuosos e perigosos da cidade e que poucos (provavelmente) conhecem; a intervenção na realidade, sobretudo na riqueza dos detalhes e das descrições; os apelos feitos aos devidos responsáveis para que medidas fossem tomadas, além do conteúdo da crônica em si: o problema dos jogos de azar. Na crônica Teresina, cidade da perdição,51 pouco mais de um ano depois, o autor, agora sob o pseudônimo de PERTINAX e escrevendo para outro jornal da cidade, volta a abordar o tema, no que ele diz ser a primeira de uma série de reportagens sobre o assunto. É o único texto identificado na pesquisa em que A. Tito Filho aborda o tema. Poderíamos, portanto, afirmar que a crônica foi marcada pela indeterminação. Apesar do que o autor informou, perece ter sido a única reportagem sobre o assunto. Pesquisando nos jornais dos dias e meses seguintes, outras reportagens não apareceram. Por quê? Dificílimo apontar algum motivo. Pressões por parte de autoridades e de políticos para que novas reportagens não fossem realizadas, já que elas não só apontavam os problemas do cotidiano da cidade, mas também apontavam a incompetência e negligência destes, ou mesmo simplesmente apareceram temas que o autor considerou mais importante abordar, podem ser tomadas como hipóteses. De qualquer forma, fica claro no texto a preocupação do 51 PERTINAX. Teresina, cidade da perdição. A Resistência, Teresina, 7 ago 1949, p. 5-6.
  • 17. 17 autor com o jogo. Ele aponta que o jogo de azar campeia livremente nas ruas da capital teresinense, que o considera uma afronta a Nação inteira (!) e às leis que governam a sociedade, como que desafiando as autoridades, fazendo com que se duvide até que por trás dos bastidores políticos existam pressões interessadas e coniventes com a situação (tida como criminosa). Para A. Tito Filho, o jogo se enfileirava dentre as piores coisas que poderiam acorrer na cidade, seguido da prostituição (desenfreada), do alcoolismo (sem repressão), da mentalidade sem auxilio prático e resoluto do Governo e da infância delinqüente e abandonada. O jogo se sobrepõe a qualquer outro problema porque derruba instituições, degrada a mente e abre caminho para o crime. O jogo era considerado o início do fim: quando, numa nação ou Estado, as pessoas procuram no vício do jogo um motivo para sua degradação moral, o que existe de mais puro nelas estará perdido. Interessante também observar como o autor descreve o próprio trabalho de reportagem: O nosso objetivo era atingir o covil do jogo. Vê-lo de perto. Sentir as sensações que ele nos oferece para podermos pintar o quadro real para os nossos leitores. Dez ou mais cambistas ali estavam localizados. De momento a momento, as poules eram arrancadas dos talões e os centavos e os cruzeiros dos incautos caiam em seus bolsos como o maná do Céu no Sermão da Montanha. Mas, não era ali o Quartel General do jogo do bicho. Não seriam, também, o ‘Bar do Carvalho’ e o ‘Restaurante Cairú’, os pontos de reuniões dos transgressores da lei!52 A espeficifidade de um tema como o jogo, para um leitor de hoje, apresenta a necessidade de uma cuidadosa tarefa de interpretação para compreendermos os termos do cronista. Só assim será possível relacionar com sucesso esses textos à realidade que é ao mesmo tempo a matéria-prima e o horizonte de intervenção do cronista. Longe de refletir ou espelhar um momento da história de Teresina, o que A. Tito Filho tenta fazer é conhecê-la da forma mais aprofundada possível, indo aonde seja necessário para transformá-la. Para isso, se utiliza de um tom leve, que atrai o leitor, combinado com o alcance possibilitado pelo trabalho na imprensa. Assim, ele também consegue traçar um perfil para suas séries, tornando a crônica uma forma de trabalho ainda mais complexa de se lidar enquanto fonte. 52 TITO FILHO, A. Jogo muito Jogo. O Piauhy, Teresina, 11 abril 1948, s/p.
  • 18. 18 Portanto, para atingir os objetivos propostos nesta dissertação, será preciso traçar um perfil das crônicas, que nos ajudará a perceber de que forma A. Tito Filho se utilizou dessa ferramenta53 para tratar de uma série de temáticas (relacionadas à história do Piauí e de Teresina) bem como de conteúdos que surgiam a partir de sua relação com o presente mais imediato. Ainda que a identidade do autor enquanto cronista só tenha se fixado décadas após os textos citados acima, quando da publicação de obras como Sermões aos Peixes e Teresina Meu Amor, o que procuro deixar marcado aqui é que de certa forma a crônica já estava presente na obra (jornalística) do autor mesmo quando seu campo de atuação ainda era aquele relacionado ao jornalismo, sobretudo um jornalismo de forte caráter político, seu principal espaço de atuação durante as décadas de 1950 e 1960.54 Quando mantinha uma coluna diária no Jornal do Piauí, ainda na década de 1970, o autor já se debatia acerca das dificuldades relacionadas ao gênero: A crônica é gênero dificílimo. Tomar os pequenos como os grandes episódios do dia-a-dia da vida, penetrar-lhe a sutileza, o poético, o trágico, interpretá-los com sensibilidade, alcançar de cada um a essência para projetá-la na inteligência do leitor – tudo isto é tarefa de muita nobreza intelectual. A crônica deve ser precisa e natural. De redação artística. De índole diversa, mas sempre de interêsse geral. A razão de ser do cronista está no esforço de FAZER VIVER, de TORNAR VIVOS os pormenores, as cousas, os seres, os pedaços de natureza.55 Assim, percebo que ao longo da carreira do autor a crônica teve presença constante, ainda que na forma de reportagens e o cronista aparecesse na forma de jornalista. Nas crônicas citadas acima, penso que começa a aparecer (melhor seria 53 O que implica não percebê-las como meio. Ver: RORTY, Richard. A contingência da linguagem. In: Contingência, ironia e solidariedade. Tradução de Vera Ribeiro. São Paulo: Martins Fontes, 2007 – (Coleção Dialética). p. 25-55. 54 A. Tito Filho atuou em diversos órgãos de imprensa do Piauí (chegou inclusive a criar alguns) a partir de 1948, quando retornou à Teresina vindo do Rio de Janeiro, local onde realizou sua formação em direito e jornalismo. Ainda no Rio de Janeiro, fundou o jornal Libertação, em parceria com Luís Costa, Virmar Soares, Vinícius Soares e Tibério Nunes. Redigido e impresso no Rio de Janeiro, onde os fundadores eram estudantes, o jornal era transportado de avião para Teresina e teve apenas três números. A. Tito Filho também atuou (ou dirigiu) outras publicações (algumas eram revistas) como O Pirralho (1948), Jornal do Piauí (1951), A Luta (1952), Crítica (1952), Panóplia (1953), Folha da Manhã (1958), Cidade de Teresina (1959), Folha do Nordeste (1962), Voz do Piauí (1964) e Jornal de Bolso (1966). Seus espaços de atuação na imprensa que podemos considerar como os mais “fixos” foram: jornal O Dia, onde trabalhou em boa parte da década 1960, depois retornando no período abordado por esta pesquisa, de 1987 à 1992, ano de seu falecimento; no Jornal do Piauí, onde era publicada sua coluna Caderno de Anotações, de 1970 à 1982; passagens pelo jornais O Estado e Jornal do Comércio ao longo da década de 1980. Além disso, publicou dezenas de texto e discursos em revistas como Presença, Almanaque da Parnaíba e Revista da Academia Piauiense de Letras. Ver mais em: PINHEIRO FILHO, Celso. História da Imprensa no Piauí. Teresina: COMEPI, 1972. p. 79-99. 55 TITO FILHO, A. Caderno de Anotações. Jornal do Piauí, Teresina, 03 dezembro 1971, p. 6.
  • 19. 19 dizer, forjar-se) a identidade que marcaria a obra (e mesmo a vida) de A. Tito Filho: a do cronista da cidade amada.56 56 Ver: MOURA, Francisco Miguel de. Tito Filho – namorador-mor de Teresina. In: TITO FILHO, A. Cronista da cidade amada. Seleção de textos de Cineas Santos e M. Paulo Nunes. Teresina: Prefeitura Municipal de Teresina, 1992.