SlideShare une entreprise Scribd logo
1  sur  28
Télécharger pour lire hors ligne
OOOO EEEESSSSPPPPEEEELLLLHHHHOOOO DDDDAAAA VVVVIIIIDDDDAAAA
Drama
Texto de:
JULIO CARRARA
Escrita em 1995
Julio CarraraJulio CarraraJulio CarraraJulio Carrara O Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da Vida 1111
PERSONAGENS:
DORA
NANDO
GUTO
PALOMA
MÁRCIA
ANALU
GABRIELA
EDUARDO
ALEXANDRE
e
NANDO, GUTO, PALOMA, ANALU, EDUARDO e GABRIELA, quando
crianças.
ÉPOCA: Atual
CENÁRIO: Uma plataforma ocupando toda a parte superior do palco com
mais ou menos um metro e meio de altura. Na frente desta plataforma, dois
praticáveis em diagonal, sendo um do lado direito e outro do lado esquerdo. O
praticável situado à esquerda representa o quarto de Guto e Nando. O
praticável do lado direito, o quarto de Paloma. Uma escada central conduz aos
quartos. Uma mesinha com cadeiras do lado esquerdo central. O cenário a
iluminação deverão possuir uma linha expressionista. Um ciclorama deve
cobrir o cenário inteiramente nas cenas da floresta e da rua e deve desaparecer
em outras cenas. Nesse ciclorama deve ser projetada com auxílio de máscaras
de iluminação, uma mata. Na cena em que as personagens estão brincando na
rua, várias casas espremidas entre os prédios de apartamentos.
Julio CarraraJulio CarraraJulio CarraraJulio Carrara O Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da Vida 2222
PRÓLOGO
(Black-out. Luz sobe em resistência até meia-luz com o palco na penumbra. Uma jovem
está no centro do palco, de costas para o público. Traja um vestido de gestante e está
prestes a dar à luz. Ela procura um lugar para parir a criança. Sente fortes contrações.
A bolsa estoura. Ela geme. Sua respiração é mesclada com a música que deverá sugerir
mistério e poesia. Fica de cócoras, de costas, e faz o seu próprio parto. O bebê nasce.
Um choro frágil e ao mesmo tempo forte é ouvido no áudio. A mulher, exausta, ergue o
bebê para o alto, depois de cortar o cordão umbilical, como se estivesse apresentando-o
para o mundo. Abraça-o com devoção. Enrola-o numa mantinha, carrega-o nos braços
e vira-se de frente para o público. Abraça-o com ternura. Tira o peito e oferece ao filho.
Depois de amamentá-lo, balança o corpo para frente e para trás, fazendo-o dormir. Luz
desce em resistência, deixando apenas um foco desenhando mãe e filho. Black-out.)
CENA 1
(Uma rua onde brincam crianças de quatro a seis anos: Guto, Paloma, Eduardo,
Gabriela, Analu e Nando. Os dois primeiros são os filhos mais velhos de Dora, a jovem
do prólogo. Nando é o bebê dela. O garoto está com quatro anos e sofre de paralisia. O
único membro que o menino consegue movimentar é somente o pé esquerdo. As
crianças brincam de amarelinha, de pular corda, unha na mula, bafo, carteiro tem
carta, balança caixão, etc. Saem de cena. Mudança de luz. Voltam esses mesmos
personagens, só que agora, mais velhos. Começam a aparecer os conflitos. Eduardo e
Paloma trocando olhares, Analu e Gabriela desprezando Nando; e Guto, sempre
revoltado, num canto. Black-out.)
CENA 2
(Casa de Dora. Paloma e Guto estão estudando numa mesinha. Nando está encostado
na parede, perto da escada que leva aos quartos, observando os irmãos mais velhos
estudarem. Paloma tem uma dúvida.)
Julio CarraraJulio CarraraJulio CarraraJulio Carrara O Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da Vida 3333
PALOMA
Guto, quanto é vinte e cinco por cento de um quarto?
GUTO
(Pensa.) Vinte e cinco por cento de um quarto? (Ri.) Que pergunta idiota,
Paloma. Vinte e cinco por cento já é um quarto. Não dá pra ter um quarto de
um quarto.
PALOMA
Claro que dá. (Para Nando.) Não dá, Nando?
GUTO
(Irônico.) Ora, Paloma, o que ele sabe?
(Nando pega um giz com os dedos do pé esquerdo.)
PALOMA
(Assustada, chamando Dora.) Mãe, corre aqui, o Nando pegou um giz!
(Entra Dora, bem mais velha que a figura do prólogo.)
DORA
Vamos lá, Nando. Escreva o que quiser.
(Nando começa a fazer riscos no chão. Dora e Paloma tentam adivinhar.)
PALOMA
É um Y?
DORA
É um X?
Julio CarraraJulio CarraraJulio CarraraJulio Carrara O Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da Vida 4444
GUTO
(Olha com desprezo.) Que nada. É só um rabisco!
DORA
Não, não. Ele tá querendo dizer alguma coisa! Eu sei...
GUTO
Não coloque idéias na sua cabeça, mãe. O Nando é um débil-mental. E
ninguém vai conseguir ensinar nada a ele, ouviu? Ninguém... Não se ensinam
retardados.
DORA
(Brava.) Não fale isso do seu irmão, Guto!
GUTO
(Revoltado.) Irmão... Isso aí é um desastre da natureza... Um monte de
carne deformada que teve a infelicidade de vir ao mundo.
DORA
(Furiosa, atinge o rosto do filho com uma violenta bofetada.) Nunca mais fale
isso, ouviu? Nunca mais. Se você repetir mais uma vez o que disse agora, eu
juro por tudo que é mais sagrado neste mundo que arrebento todos os dentes
da sua boca. Agora sobe pro seu quarto e não saia de lá até amanhã. Não
quero mais olhar pra sua cara, hoje!
(Guto olha para o irmão com muito ódio. Sobe para o quarto. Paloma o segue. Nando
faz um beicinho de choro. Dora o abraça.)
DORA
Ô Nando, meu filho. Não liga pro seu irmão, viu? Ele é assim mesmo.
Mas no fundo, no fundo, ele te ama muito. Ele só tá com... medo.
Julio CarraraJulio CarraraJulio CarraraJulio Carrara O Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da Vida 5555
CENA 3
(Guto e Paloma no quarto, numa conversa bastante tensa.)
GUTO
...Medo, eu?
PALOMA
É... Medo, Guto. Medo!
GUTO
Medo de quê?
PALOMA
De aceitar a verdade.
GUTO
Que verdade?
PALOMA
O seu irmão. Tem medo de aceitar o Nando como ele é. Medo de dar
carinho, de dar um beijo, um abraço nele.
GUTO
Não é medo, não, Paloma. É raiva... Eu quero que ele morra. Ele não
presta pra nada mesmo. Só serve pra foder a vida da gente. Desde pequeno, só
o Nando teve o que quis. O Nando, Nando, Nando, Nando, sempre o Nando...
E a gente acabou na lata do lixo. Por culpa dele, nós sempre tomamos no rabo,
sempre se fodendo por culpa de um bostinha que não presta nem pra limpar a
bunda. Eu odeio o Nando. ODEIO!!! (Dá murros na parede.)
Julio CarraraJulio CarraraJulio CarraraJulio Carrara O Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da Vida 6666
PALOMA
Você não tá sendo justo, Guto! Você não faz ideia do que a mamãe
passou pra criar sozinha nós três! Depois do chute que o pai deu nela, ela
ralou e muito pra sustentar a gente. Pensa que ela não sofreu? Hein?... Me
diga?... Olhe pra você: um rapaz saudável... Agora faça uma comparação entre
você e o Nando, faça!
GUTO
Não dá nem pra comparar, né!
PALOMA
É claro que não. Você sempre soube que o Nando não é como você e os
outros meninos.
GUTO
(Com a cabeça mais fria.) Sabe o que é? É que não gosto de ouvir em
rodinhas, comentários a respeito dele. Quando saio com ele, percebo que as
pessoas ficam tirando uma dele e da situação fodida da gente.
PALOMA
E você vai se importar com que os outros falam ou deixam de falar? Eles
que se danem. Que vão cuidar de suas vidas.
GUTO
Você tem razão.
PALOMA
(Sorrindo.) Não falei que quando você esfriasse a cabeça, iria pensar
diferente?
(Ambos se abraçam e saem de cena.)
Julio CarraraJulio CarraraJulio CarraraJulio Carrara O Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da Vida 7777
CENA 4
(Ouve-se a campainha. Dora que estava com Nando na sala, levanta-se e caminha em
direção à porta. Entra Márcia.)
DORA
Que bom que você chegou, Márcia... Você pode tomar conta do Nando?
Eu preciso passar na farmácia.
MÁRCIA
Claro, Dora, com o maior prazer. Pode ir sossegada. Vou cuidar muito
bem do Nando. Muito bem mesmo.
DORA
Eu não vou demorar.
MÁRCIA
Não precisa se preocupar. Ele estará em boas mãos.
DORA
(Já de saída.) Ah, a papinha dele tá no fogão. Você pode alimentá-lo?
MÁRCIA
Claro.
(Dora sai. Márcia caminha até a cozinha e volta com a papinha de Nando. A mulher
olha com asco para a comida. Nando, que estava dormindo, é acordado violentamente
por ela.)
MÁRCIA
Você tá com fome, Nandinho? (O menino balança a cabeça
afirmativamente.) Então vem pegar! (Márcia senta-se do outro lado da sala, de
propósito. Nando vai até ela rastejando-se.) Olha só, parece um verme!
Julio CarraraJulio CarraraJulio CarraraJulio Carrara O Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da Vida 8888
(Nando chega até ela que começa a dar a papinha para ele. Ela coloca a colher bem
próxima da boca do garoto. Quando Nando abre a boca, ela afasta a colher, se
divertindo com a situação. Isso se repete algumas vezes até que ela enfia uma colherada
atrás da outra na boca do menino que se lambuza todo.)
MÁRCIA
Que coisa feia, Nando! Nem cachorro come desse jeito... Coitada da
Dora, você é a cruz mais pesada que ela carrega. Pobre diabinho! (Nando vira o
rosto de lado e não quer mais comer. Ela insiste, em vão.) Com o resto que você
deixa, daria para alimentar um exército.
(Sai para a cozinha levando o prato. Volta em seguida. Chega perto do menino e olha-o
com desprezo. Ficam assim por um bom tempo. Márcia pega uma revista e começa a
folheá-la. Depois acha uma cartilha e tem uma ideia.)
MÁRCIA
Venha aqui, Nando. Vou te ensinar a ler. Você não vai mesmo conseguir
aprender, mas pelo menos vou fazer algo útil (O menino vai até ela que põe a
cartilha bem próxima ao seu rosto.) ‘A’ de ‘anormal’; ‘B’ de‘burro’; ‘C’ de
‘coitado’; e ‘D’... ‘D’ de ‘débil-mental’. (Destaca bem as sílabas.) ‘Dé-bil-men-tal’.
É o que você é.
(Nando resmunga palavras desconexas. Grita muito e bate o pé no chão, olhando
furioso para Márcia. Dora entra correndo. Está carregada de embrulhos.)
DORA
(Preocupada.) O que aconteceu com o Nando, Márcia?
MÁRCIA
(Sonsa.) Não sei Dora. Eu fui dar a papinha dele. Ele não comeu quase
nada. Depois peguei uma cartilha pra mostrar o alfabeto pra ele e de repente
ele olhou feio pra mim e começou a berrar e a bater o pé no chão.
Julio CarraraJulio CarraraJulio CarraraJulio Carrara O Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da Vida 9999
(Nando aponta Márcia com o pé, e joga intenção no rosto, com a maior dificuldade.)
DORA
A Márcia? (Nando balança a cabeça afirmativamente.) O que ela te fez? (À
Márcia.) Você maltratou o Nando?
MÁRCIA
(Falsa.) Eu, Dora? Eu jamais faria isso. Eu adoro esse menino.
DORA
(Meio sem jeito.) Ai, Márcia, me desculpe...
MÁRCIA
Desse jeito você me ofende...
DORA
Tô nervosa. Como é difícil entender o Nando...
MÁRCIA
(Olha para o relógio.) Bem, amiga, já tá na minha hora. Preciso ir andando.
(Caminha até Nando e lhe aperta a bochecha “carinhosamente”.) Tchau, Nandinho.
Amanhã eu venho te visitar...
(O menino olha para ela desejando-lhe a sua morte. Dora acompanha Márcia até a
porta da rua e sai com ela.)
CENA 5
(Guto e Paloma entram correndo em direção de Nando. Guto traz nas mãos uma
carrocinha de madeira.)
Julio CarraraJulio CarraraJulio CarraraJulio Carrara O Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da Vida 10101010
PALOMA
(Empolgada.) Nando, Nando, veja o que o Guto fez pra você?
GUTO
(Brandindo.) Uma carrocinha, Nando. Agora você pode conviver com os
outros meninos até nossa mãe completar o dinheiro pra comprar sua cadeira
de rodas. Não é o máximo, cara? (Nando fica indiferente. Guto se chateia.) O que
foi Nando? Não gostou?
PALOMA
O Guto perdeu a tarde inteira pra construir essa carrocinha pra você e
você trata ele assim, Nando?
GUTO
Deixa, Paloma. Já sei por que ele tá me tratando assim... (Para Nando,
docemente.) Ô Nando, me perdoa. Eu tava nervoso e descontei em você. Você
não tem culpa, cara. Eu é que sou um bosta e que não presta pra nada. (Pausa.)
Bom, se você não quiser a carrocinha, tudo bem, eu vou entender. Você tem
todo o direito de recusar esse presente. Tem todas as razões do mundo pra não
aceitar nada que venha de mim. Mas gostaria que você soubesse de duas
coisas: a primeira é que eu construí isso de coração e a segunda é que eu te
amo muito... Muito mesmo.
(Beija o rosto do irmão, pega a carrocinha tristemente e vai saindo. Nando olha para ele
e balbucia pedindo para ele ficar. Guto corre para o irmão e o abraça fortemente.)
GUTO
Eu sabia que você iria me perdoar. Eu te admiro muito, viu?... Agora
vamos estrear o seu “carro”?
(Guto põe o irmão na carrocinha auxiliado por Paloma. Guto “pilota”. Paloma entra
na frente e Guto vai em direção dela, querendo atropelá-la. Ela desvia. Os três brincam
Julio CarraraJulio CarraraJulio CarraraJulio Carrara O Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da Vida 11111111
por todo o espaço cênico, fazendo manobras cada vez mais radicais ao som de “Unchain
My Heart”, de Joe Cocker. Os três gritam felizes e saem com esse mesmo pique.)
CENA 6
(Ouve-se a campainha. Dora vai até a porta. Ao abrir, leva um susto. Em sua frente
está Alexandre, seu ex-marido.)
DORA
(Balbucia.) Você?
ALEXANDRE
Por que esse espanto todo, Dora? Vim aqui pra gente conversar. Numa
boa!
DORA
Não tô com a mínima vontade de conversar com você.
ALEXANDRE
Eu queria que você entendesse...
DORA
Não precisa ficar rodeando... Vai direto ao assunto...
ALEXANDRE
(Embaraçado.) É sobre o Nando. Sobre o nosso filho...
DORA
Nosso filho??? Ele é meu filho. Só MEU.
ALEXANDRE
Não complica as coisas. Vim oferecer ajuda, caso o Nando precise.
Julio CarraraJulio CarraraJulio CarraraJulio Carrara O Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da Vida 12121212
DORA
No momento em que ele mais precisou de ajuda, você me deu um chute,
me jogou pra escanteio. Você não faz ideia do que eu passei pro Nando nascer.
Ninguém quis me ajudar. Ninguém. Todos viraram as costas pra mim. Fui dar
à luz no meio do mato. Sozinha. Sem ajuda de ninguém... E depois do parto
comecei a cuidar daquela criança tão pequena, tão indefesa e com um futuro
incerto. Me dediquei à ele de corpo e alma. Sacrifiquei meus dois outros filhos,
mas não deixei faltar nada pro Nando. E depois de tudo isso, você ainda tem
coragem de vir bater na minha porta com essa cara deslavada e tem a ousadia
de me oferecer ajuda? Você é muito cínico. Eu quero que você pegue todo seu
dinheiro e enfie no seu...
ALEXANDRE
(Corta abruptamente.) Eu queria pelo menos ver os meus filhos.
DORA
Você não vai nem chegar perto deles. Qual é o seu interesse nisso, hein?
Sim, porque prum homem abandonar sua mulher com dois filhos pequenos,
por saber que o terceiro nasceria deficiente, depois de quinze anos
desaparecido, vem procurar esse mesmo filho que rejeitou? O que você
pretende seu covarde? Veio ver o estado em que estou? Ver as rugas do meu
rosto? Ver o quanto engordei? Foi isso?
ALEXANDRE
Dora, você tá sendo cruel.
DORA
Cruel, eu? Você não tem espelho, não?
ALEXANDRE
Você tá fazendo uma tempestade num copo d’água. Eu venho aqui, com
a melhor das intenções, e...
Julio CarraraJulio CarraraJulio CarraraJulio Carrara O Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da Vida 13131313
DORA
De boas-intenções o inferno tá cheio. Não sei por que tô perdendo o meu
tempo discutindo com você. Vá embora, vá. Um homem sem escrúpulos como
você não deveria nem pisar na minha casa.
ALEXANDRE
Me deixe pelo menos ver o menino. Tenho direito. Sou o pai.
DORA
Pai??? Porra, que pai?! Você não é nada dele.
ALEXANDRE
Queria pelo menos saber do Guto e da Paloma.
DORA
Eles estão muito bem.
ALEXANDRE
Por que você os proíbe de me visitarem?
DORA
Não proíbo. Nunca proibi. É que eles sentiram na pele todo o mal que
você nos causou.
ALEXANDRE
Você fez a cabeça deles contra mim?
DORA
Eu não fiz a cabeça de ninguém. Eles souberam da verdade e a partir
dela acharam o que deveriam achar. Se eles nunca te procuraram, acredito que
tiveram motivos pra isso...
Julio CarraraJulio CarraraJulio CarraraJulio Carrara O Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da Vida 14141414
ALEXANDRE
(Arrependido.) Gostaria de poder estar junto deles. Acompanhando o
crescimento, o amadurecimento. Queria poder jogar futebol com o Guto, levar
a Paloma andar de bicicleta. Tinha tantos planos pra eles.
DORA
Até que surge um filho deficiente que estraga tudo... Só vou te alertar de
uma coisa. O Guto e a Paloma quando quiserem te encontrar, tudo bem. Não
vou proibir. A cabeça é deles. Eles já são grandes o bastante pra saber o que é
bom e o que é ruim. (Ameaçadora.) Mas se você ousar pisar nesta casa
novamente ou chegar perto do Nando, ai de você... Ai de você... (Vai até a porta
da rua e a abre.) Adeus, Alexandre!
(Alexandre caminha de cabeça baixa até a porta da rua e sai. Dora encara o ex-marido
com desprezo e indiferença. Após a saída do homem, cai num choro. Black-out.)
CENA 7
(Luz sobe em resistência. No centro do palco estão sentados Guto, Paloma, Gabriela,
Analu e Nando em sua carrocinha. Brincam de jogo da verdade.)
ANALU
(Cochichando com Gabriela.) Se o compasso cair no Guto vou perguntar se
ele quer namorar comigo.
GABRIELA
E se cair no Nando ou no Eduardo?
ANALU
Ah, o Nando nem tá no jogo. E se cair no Eduardo, eu pergunto
qualquer coisa sobre a Paloma.
Julio CarraraJulio CarraraJulio CarraraJulio Carrara O Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da Vida 15151515
GUTO
(Abre o compasso e coloca-o no centro da rodinha.) Comece Analu.
(Analu gira o compasso e o mesmo para justamente na direção de Nando.)
ANALU
(Reage frustrada; sonsa.) Ninguém!!!
PALOMA
Como, ninguém?! Caiu no Nando.
ANALU
Mas o Nando não tá no jogo...
GUTO
(Irônico.) É claro que tá. O compasso tá apontando pra ele.
ANALU
(Levanta-se, vai em direção de Nando e beija-lhe o rosto.) Você, apesar de
tudo, é o único que presta nesse grupo. E tem os olhos lindos...
(Zoeira geral. Guto olha para Analu e sorri maliciosamente. Ela vai saindo, frustrada e
Gabriela a segue.)
GABRIELA
(Para Guto.) Tchau, Guto.
GUTO
(Não responde para Gabriela e provoca Analu, que passa ao seu lado.) Tchau,
Analu.
Julio CarraraJulio CarraraJulio CarraraJulio Carrara O Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da Vida 16161616
ANALU
(Olha furiosa para ele; estúpida.) Tchau, Guto. Durma bem... (Saem.)
(Guto pega o compasso. Boceja.)
GUTO
Vou pra cama! Boa noite!
EDUARDO
Boa noite!
(Guto pega Nando do carrinho e sobe com ele para o quarto, deixando Eduardo e
Paloma sozinhos. Eduardo verifica se Guto já subiu. Aproxima-se de Paloma e lhe dá
um beijo na boca. Acariciam-se e transam. Black-out.)
CENA 8
(No dia seguinte. Luz sobe em resistência. Em cena estão Eduardo, Gabriela e Analu.
Os três estão impacientes.)
GABRIELA
(Gritando para Paloma, que se arruma no quarto.) Ô Paloma, anda logo que
a gente vai perder a prova da primeira aula...
EDUARDO
(Parado à porta do banheiro.) Ô Guto, o que tanto faz nesse banheiro? Se
for o que eu estou pensando, vou me mandar!
GUTO
(Sai do banheiro e põe uma revista de mulher pelada entre os cadernos.) Que
inferno!
Julio CarraraJulio CarraraJulio CarraraJulio Carrara O Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da Vida 17171717
(Guto vai saindo e deixa cair uma folha de papel de seu caderno. Eduardo e Guto saem.
Gabriela e Analu esperam ambos saírem. Analu pega a folha do chão.)
ANALU
(Lê o papel; maravilhada.) Veja, Gabi, olha só o que o Guto fez pra mim...
Que desenho maravilhoso. Leia aqui embaixo: “Seus lindos olhos são piscinas
profundas e azuis onde eu mergulho. Te amo, Analu!” Não é lindo? Eu sabia, eu
sempre soube que o Guto era doido por mim. Só ele não queria admitir.
GABRIELA
(Pega o desenho das mãos de Analu.) Deixa eu ver...Esse desenho com essa
frase não foi feito pelo Guto, não.
ANALU
(Estranha.) Como não, se caiu do caderno dele?
GABRIELA
Veja a assinatura: Nando. (Satiriza a amiga.) O aleijadinho é apaixonado
por você. (Nando desce as escadas, rastejando-se.) Falando no doente, aí vem ele.
Por que não tira isso a limpo?
ANALU
É o que vou fazer. (Para Nando.) Foi você que desenhou isso, Nando?
(Nando confirma.) Pode pegar de volta. Eu sei que o que você escreveu é
verdade, mas não vai ser um aleijadinho de merda que vai me conquistar... Se
isso tivesse sido feito pelo gostoso do seu irmão, eu aceitaria com o maior
prazer. Mas como foi você quem fez... (Rasga o desenho e joga na cara do menino.)
Toma! Fique com essa porcaria. (Para o quarto de Paloma.) Ô Paloma, vai logo.
PALOMA
(Desce as escadas.) Estou indo. (Para Nando.) Toma conta da casa, Nando.
(Beija-lhe a face e sai com Analu.)
Julio CarraraJulio CarraraJulio CarraraJulio Carrara O Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da Vida 18181818
GABRIELA
(Sozinha com Nando.) E diga pro Guto, que... Ah, você não fala... Que
diferença... Você e o Guto são irmãos mesmo? Como vocês podem ser tão
diferentes? Eu acho que você é adotado... (Cínica.) Bye, bye, parasita!
(Sai. Nando começa a chorar. Grossas lágrimas escorrem pelos seus olhos e um soluço
que vem do fundo de sua alma toma conta de todo o seu ser. Black-out rápido.)
CENA 9
(Muda luz. entra Guto, gritando)
GUTO
Nando, comprei um presente pra você.
DORA
(Entra, curiosa.) Presente? Que presente?
GUTO
O que você sempre quis comprar para o Nando, mas nunca pôde?
DORA
(Incrédula.) Não me diga que...
GUTO
Isso mesmo...
DORA
(Abraça o filho, feliz.) Guto, meu filho, você não sabe o quanto tô feliz!
Julio CarraraJulio CarraraJulio CarraraJulio Carrara O Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da Vida 19191919
GUTO
(Sai e volta com uma cadeira de rodas.) Tá aqui o seu presente, mano. A sua
cadeira de rodas. Não é uma grande coisa, mas dá pra quebrar o galho. (Nando
agradece o irmão dizendo palavras desconexas.) Não precisa me agradecer. Você
merece muito mais. Agora vamos dar um passeio?
(Põe o irmão na cadeira e sai com ele.)
CENA 10
(Alguns dias depois. Dora está na sala quando é despertada por um soluço. Ela
caminha em direção do quarto de Paloma e vê a filha chorando.)
DORA
Paloma, o que aconteceu?
PALOMA
(Abraça a mãe; chorando mais.) Mãe, me perdoa!
DORA
Perdoar o quê?
PALOMA
Juro que não queria mãe, mas estávamos sozinhos na sala, o perfume
dele tomando conta de tudo... ele me tocando...Não deu pra segurar... (Com um
fio de voz.) Aconteceu...
DORA
Você... Você transou com o Edu?
PALOMA
(Envergonhada.) Eu tentei evitar, mas foi mais forte que eu...
Julio CarraraJulio CarraraJulio CarraraJulio Carrara O Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da Vida 20202020
DORA
Eu também já tive sua idade e sei como são essas coisas. Eu só espero
que vocês tenham se prevenido... (Enxuga as lágrimas que escorrem pelos olhos da
filha.) Agora enxuga essas lágrimas, vai...
PALOMA
(Embaraçada.) A coisa é mais séria!
DORA
Não me diga que você... (Desmonta.)
PALOMA
Eu tô grávida, mãe! Minha menstruação tava atrasada, comecei a sentir
enjoos frequentes, desconfiei logo e fui comprar aquele teste de gravidez na
farmácia. Fiz o teste e deu positivo.
DORA
Uma gravidez, agora?
PALOMA
Eu e o Edu já conversamos e acertamos tudo. A gente precisa se casar o
mais depressa possível.
DORA
Você não faz ideia de como vai mudar sua vida daqui pra frente. O que
você vai pegar no colo daqui a nove meses vai ser um ser humano e não essas
bonecas que enfeitam seu quarto... Mas tudo bem... Já que aconteceu, é
necessário assumir a responsabilidade. À noite a gente conversa com o Guto...
Ele vai entender!
PALOMA
(Abraça a mãe.) Ô mãe, eu amo você!
Julio CarraraJulio CarraraJulio CarraraJulio Carrara O Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da Vida 21212121
(Black-out.)
CENA 11
(Márcia entra. Nando está sentado em sua cadeira de rodas.)
MÁRCIA
Dora! (Para Nando.) Ô moleque, sua mãe tá aí? (Tenta fazer com que o
garoto preste atenção nela.) Ô garoto, tô falando com você... (Dá um forte tapa na
cabeça do menino.) Ah, esqueci que você não fala... (Dora entra e fica espiando,
escondida.) Olha só: o retardadinho ganhou uma cadeira de rodas. Agora não
vai mais andar naquela carroça imunda. Pelo menos agora não vai ficar se
rastejando no chão como um verme nojento.
DORA
(Furiosa, agarra Márcia.) Verme nojento é a puta que te pariu... (Esbofeteia
Márcia.)
MÁRCIA
(Assustada.) Dora!
DORA
Que amiga fui arranjar: cínica, mentirosa e traiçoeira. Uma cobra
peçonhenta dentro da minha própria casa e fingindo ser minha amiga. Agora
entendi porque o Nando tava agitado aquele dia. Ele queria me alertar a seu
respeito, sua cadela ordinária! (Derruba a mulher no chão e prensa sua cabeça no
assoalho.) Sabe o que eu devia fazer com você? Esmagar sua cabeça como que
se esmaga uma cabeça de cobra! Agora você vai sentir na carne tudo o que o
Nando sentiu quando tava sendo humilhado por você. (Levanta a mulher do
chão. Para Nando.) Veja, Nando. (Dá uma forte bofetada na cara dela.) Esse é por
mim. (Dá mais duas bofetadas.) E esses dois são por você. Agora desapareça da
minha casa. (Abre a porta e empurra a mulher escada abaixo. Márcia grita. Dora vai
Julio CarraraJulio CarraraJulio CarraraJulio Carrara O Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da Vida 22222222
para perto de Nando.) Nando... eu juro que essa ordinária nunca mais vai chegar
perto de você. Eu juro...
GUTO
(Desce do seu quarto.) Que barulho foi esse, mãe?
DORA
A Márcia, aquela ordinária, que maltratava o Nando... Mas já tratei
disso, e ela nunca mais vai entrar aqui em casa. (Pausa tensa. Muda de assunto.)
Guto, preciso lhe dizer uma coisa...
GUTO
Diga.
(Paloma entra em cena, trêmula.)
DORA
Guto, a Paloma vai se casar com o Edu.
GUTO
(Feliz.) Mas que maravilha! Quando?
DORA
Daqui a um mês, no máximo!
GUTO
Por que a pressa?
DORA
(Embaraçada. Paloma engole em seco.) Porque... Ela tá grávida!
Julio CarraraJulio CarraraJulio CarraraJulio Carrara O Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da Vida 23232323
GUTO
(Irônico e irado.) Que notícia ótima!!! Quem é o pai? Se é que você sabe
quem é o pai, não é, sua vagabunda?
PALOMA
Não foi culpa minha!
GUTO
E de quem foi então? Minha? (Suas expressões tornam-se cada vez mais
monstruosas.) Mas que maravilha, enquanto a mãe não tem dinheiro nem pra
comprar uma roupa decente, a filha não consegue ficar com calcinha? (Nando
demonstra no rosto sinais de raiva.) Vem aqui, Paloma, que vou te ensinar a
fechar as pernas, sua vagabunda. Vou te quebrar inteira!
NANDO
(Sua raiva vai aumentando.) Eu mato o Guto. (Começa a soltar urros.)
(Dora tenta acalmar Guto defendendo Paloma e Nando. Nando berra e Guto tenta
avançar, até sair de cena, furioso.)
PALOMA
Calma, Nando, calma... Eu vou embora daqui... Vou morar com o Edu.
Cuide bem da mamãe pra mim, viu?
(Os três se abraçam. Congelam em posição de foto. Black-out.)
CENA 12
(Luz sobe em resistência. Estamos na mesma mata em que Dora deu à luz a Nando.
Entra Paloma. Seus passos são milimétricos. Carrega uma mala. Sua respiração está
ofegante, parece que correu muito. Ela caminha pelo proscênio e para no centro. Abre a
mala. Tira uma carta. Lê e chora. Em seguida começa a bater violentamente na barriga.
Julio CarraraJulio CarraraJulio CarraraJulio Carrara O Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da Vida 24242424
Ela tenta a todo custo, expulsar a criança do seu útero. Num plano acima, está o “feto”
de Paloma. O ator que interpretar o bebê está nu, em posição de fetal. Ele se mexe
conforme Paloma bate em sua barriga. A jovem não encontra mais forças e estressada
desaba no chão. Fica assim por algum tempo. Olha para o lado e vê a mala aberta.
Levanta-se e revira toda a roupa dali de dentro. Por fim encontra uma agulha de tricô.
Pega-a e olha para a agulha. Seus olhos estão fixos naquele objeto como num ritual
macabro. Vai enfiar a agulha na vagina, mas perde a coragem. Segunda tentativa:
tentativa frustrada. Terceira tentativa: olha para a agulha e violentamente dá uma
estocada em sua vagina. Os gritos de dor de Paloma e do bebê são mesclados com o
forte bater de um tambor. Black-out.)
EPÍLOGO
(Luz sobe em resistência. Dora, Guto e Nando estão no centro da sala. Vestem luto por
Paloma.)
GUTO
(Chora. Quebra o gelo.) Eu tava nervoso, mãe. Ela não podia ter ido
embora. Ela sabe como eu sou sempre soube. Como me sinto culpado pela
morte dela.
DORA
(Inconformada.) Não se sinta culpado, Guto. (Tira uma carta amassada do
bolso.) Veja, esta carta foi encontrada junto ao corpo de Paloma. Aqui, o Edu
dizia que não queria mais se casar e principalmente assumir a criança. Ela se
sentiu culpada, perdida, e fez tudo isso.
GUTO
Eu não queria falar daquele jeito com ela. É que eu levei um choque
quando soube... Merda de vida. Nem que eu viva cem anos, vou conseguir
esquecer o que fiz pra ela.
Julio CarraraJulio CarraraJulio CarraraJulio Carrara O Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da Vida 25252525
DORA
(Fazendo-se de forte.) Filho, não fique assim... aconteceu. Não consigo
explicar o que sinto. Não dá prá dizer com palavras o que uma mãe sente
quando vê o seu próprio filho morto. Preferia mil vezes morrer do que ver um
filho meu num caixão. (Solta um gemido grosso.) Filho, me dê forças pra
continuar vivendo, por favor. Me ajude a criar o Nando. A vida dele depende
da minha. Eu preciso compreender... Promete que vai ficar pra sempre do meu
lado, Guto, promete?
GUTO
Prometo mãe.
DORA
Eu pensei que tava tendo um pesadelo quando vi o caixão da Paloma
entrar no túmulo. Os coveiros enterrando a minha menina... O Edu chegando
ao cemitério e depois de ter certeza que era ela, sair correndo sem dizer uma
palavra. Mas aí fui ver que não era pesadelo, não. Era realidade. A mais pura
realidade.
GUTO
Ela era tão jovem... Cheia de sonhos! Tinha toda a vida pela frente.
Como queria que o tempo voltasse atrás. Como queria estar do lado da
Paloma neste momento.
(Nesse instante, no plano alto, surge o espectro de Paloma. A garota está vestida de
noiva e tem um véu cobrindo seu rosto.)
GUTO
Como queria que ela me perdoasse mãe.
PALOMA
(Com a voz suave.) Eu já te perdoei, Guto.
Julio CarraraJulio CarraraJulio CarraraJulio Carrara O Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da Vida 26262626
GUTO
(Sente um calafrio.) Mãe, a Paloma...
DORA
O quê?
GUTO
(Místico.) Sinta mãe. Parece que a Paloma tá aqui com a gente.
DORA
Eu não sinto isso, filho. Por quê? Eu queria pelo menos um sinal...
(Nando balbucia.)
GUTO
(Com carinho, para o irmão.) O que, Nando?
NANDO
(Com dificuldade.) Pegue essa carta...
GUTO
Carta? Que carta?
NANDO
Aqui, no meu pé.
(Guto pega uma folha de papel aberta do pé de Nando.)
GUTO
O que é isso? “Para a mamãe”. (Lê em voz baixa e se emociona.) Foi você
que escreveu isso, Nando? (Nando afirma.) É lindo demais, mano!
Julio CarraraJulio CarraraJulio CarraraJulio Carrara O Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da Vida 27272727
DORA
(Ansiosa.) Fala logo, Guto, o que o Nando diz na carta?
GUTO
(Lê para a mãe.) “Mãe, é necessário encontrar forças, mesmo depois de ter
passado pelo que você passou...”
NANDO
(No áudio ouvimos a voz de Nando, bem articulada.) “Não sei como
descrever o que eu sinto por você. Mesmo sabendo da minha deficiência,
enfrentou tudo e todos para me deixar nascer. Você foi à única pessoa que
nunca se envergonhou de mim. Obrigado por me deixar nascer. Obrigado por
me aceitar assim.” (Guto pega uma flor vermelha que está no bolso da camisa de
Nando e a coloca no pé esquerdo do menino, que oferece para a mãe.) “Aceite essa flor
como prova do meu agradecimento por tudo que você me fez. Te amo!
Nando”.
(Dora, com os olhos cheios de lágrimas pega a flor do pé esquerdo do filho e abraça-o,
emocionada. Guto, também emocionado, abraça os dois. Paloma ri e chora ao mesmo
tempo. Black-out final.)
FIM
Agosto/1995

Contenu connexe

Tendances

Perfeição - capítulo 01 - Raquel volta extorquindo Ester
Perfeição - capítulo 01 - Raquel volta extorquindo EsterPerfeição - capítulo 01 - Raquel volta extorquindo Ester
Perfeição - capítulo 01 - Raquel volta extorquindo Esterlucas_vinicius2012
 
Shiuuu, não contes a ninguém, diário
Shiuuu, não contes a ninguém, diárioShiuuu, não contes a ninguém, diário
Shiuuu, não contes a ninguém, diárioe- Arquivo
 

Tendances (6)

Minha escola
Minha escolaMinha escola
Minha escola
 
"Perfeição" - Cap. 11
"Perfeição" - Cap. 11"Perfeição" - Cap. 11
"Perfeição" - Cap. 11
 
Perfeição - capítulo 01 - Raquel volta extorquindo Ester
Perfeição - capítulo 01 - Raquel volta extorquindo EsterPerfeição - capítulo 01 - Raquel volta extorquindo Ester
Perfeição - capítulo 01 - Raquel volta extorquindo Ester
 
Chip
ChipChip
Chip
 
Shiuuu, não contes a ninguém, diário
Shiuuu, não contes a ninguém, diárioShiuuu, não contes a ninguém, diário
Shiuuu, não contes a ninguém, diário
 
Ana e eu
Ana e euAna e eu
Ana e eu
 

En vedette

10. oh, dúvida cruel!
10. oh, dúvida cruel!10. oh, dúvida cruel!
10. oh, dúvida cruel!Julio Carrara
 
09. a caverna dos suspiros
09. a caverna dos suspiros09. a caverna dos suspiros
09. a caverna dos suspirosJulio Carrara
 
25. castelos de areia
25. castelos de areia25. castelos de areia
25. castelos de areiaJulio Carrara
 
02.sombras do passado
02.sombras do passado02.sombras do passado
02.sombras do passadoJulio Carrara
 
06. baile de formatura
06. baile de formatura06. baile de formatura
06. baile de formaturaJulio Carrara
 
04. la na terra do contrário
04. la na terra do contrário04. la na terra do contrário
04. la na terra do contrárioJulio Carrara
 
05. a moléstia azul
05. a moléstia azul05. a moléstia azul
05. a moléstia azulJulio Carrara
 
15. cinzas no paraíso
15. cinzas no paraíso15. cinzas no paraíso
15. cinzas no paraísoJulio Carrara
 
20. perdidos na serra
20. perdidos na serra20. perdidos na serra
20. perdidos na serraJulio Carrara
 
27. a torta de maçã
27. a torta de maçã27. a torta de maçã
27. a torta de maçãJulio Carrara
 
29. voar é com os pássaros
29. voar é com os pássaros29. voar é com os pássaros
29. voar é com os pássarosJulio Carrara
 
14. natal dos excluídos
14. natal dos excluídos14. natal dos excluídos
14. natal dos excluídosJulio Carrara
 
30. estrela de bastidor
30. estrela de bastidor30. estrela de bastidor
30. estrela de bastidorJulio Carrara
 

En vedette (20)

10. oh, dúvida cruel!
10. oh, dúvida cruel!10. oh, dúvida cruel!
10. oh, dúvida cruel!
 
09. a caverna dos suspiros
09. a caverna dos suspiros09. a caverna dos suspiros
09. a caverna dos suspiros
 
08. catedral
08. catedral08. catedral
08. catedral
 
25. castelos de areia
25. castelos de areia25. castelos de areia
25. castelos de areia
 
02.sombras do passado
02.sombras do passado02.sombras do passado
02.sombras do passado
 
06. baile de formatura
06. baile de formatura06. baile de formatura
06. baile de formatura
 
07. o anjo maldito
07. o anjo maldito07. o anjo maldito
07. o anjo maldito
 
11. conto de verão
11. conto de verão11. conto de verão
11. conto de verão
 
04. la na terra do contrário
04. la na terra do contrário04. la na terra do contrário
04. la na terra do contrário
 
05. a moléstia azul
05. a moléstia azul05. a moléstia azul
05. a moléstia azul
 
15. cinzas no paraíso
15. cinzas no paraíso15. cinzas no paraíso
15. cinzas no paraíso
 
20. perdidos na serra
20. perdidos na serra20. perdidos na serra
20. perdidos na serra
 
26. doce ilusão
26. doce ilusão26. doce ilusão
26. doce ilusão
 
24. adega dos anjos
24. adega dos anjos24. adega dos anjos
24. adega dos anjos
 
18. rapidinhas
18. rapidinhas18. rapidinhas
18. rapidinhas
 
27. a torta de maçã
27. a torta de maçã27. a torta de maçã
27. a torta de maçã
 
17. uriel
17. uriel17. uriel
17. uriel
 
29. voar é com os pássaros
29. voar é com os pássaros29. voar é com os pássaros
29. voar é com os pássaros
 
14. natal dos excluídos
14. natal dos excluídos14. natal dos excluídos
14. natal dos excluídos
 
30. estrela de bastidor
30. estrela de bastidor30. estrela de bastidor
30. estrela de bastidor
 

Similaire à 03. o espelho da vida

Similaire à 03. o espelho da vida (11)

Uma História Difícil
Uma História DifícilUma História Difícil
Uma História Difícil
 
Alerta sobre abuso
Alerta sobre abusoAlerta sobre abuso
Alerta sobre abuso
 
Todos Tem Que Ler Isto!
Todos Tem Que Ler Isto!Todos Tem Que Ler Isto!
Todos Tem Que Ler Isto!
 
Perfeição - cap[ítulo 15
Perfeição - cap[ítulo 15Perfeição - cap[ítulo 15
Perfeição - cap[ítulo 15
 
Guiao adaptado - feiticeiro de oz - Associação de pais EB da Restauração
Guiao adaptado - feiticeiro de oz - Associação de pais EB da RestauraçãoGuiao adaptado - feiticeiro de oz - Associação de pais EB da Restauração
Guiao adaptado - feiticeiro de oz - Associação de pais EB da Restauração
 
OS PECADOS DA TRIBO
OS PECADOS DA TRIBOOS PECADOS DA TRIBO
OS PECADOS DA TRIBO
 
Vidas secas
Vidas secasVidas secas
Vidas secas
 
Histórias de um Detective
Histórias de um DetectiveHistórias de um Detective
Histórias de um Detective
 
4. diagnotico _3_ano_lp
4. diagnotico _3_ano_lp4. diagnotico _3_ano_lp
4. diagnotico _3_ano_lp
 
4. diagnotico _3_ano_lp
4. diagnotico _3_ano_lp4. diagnotico _3_ano_lp
4. diagnotico _3_ano_lp
 
4. diagnotico _3_ano_lp
4. diagnotico _3_ano_lp4. diagnotico _3_ano_lp
4. diagnotico _3_ano_lp
 

Plus de Julio Carrara

Orgasmo dos deuses e outros poemas
Orgasmo dos deuses e outros poemasOrgasmo dos deuses e outros poemas
Orgasmo dos deuses e outros poemasJulio Carrara
 
12. cidade dos urubus
12. cidade dos urubus12. cidade dos urubus
12. cidade dos urubusJulio Carrara
 
16. vamos brincar de roda
16. vamos brincar de roda16. vamos brincar de roda
16. vamos brincar de rodaJulio Carrara
 
19. puros depravados
19. puros depravados19. puros depravados
19. puros depravadosJulio Carrara
 
22. hamlet ao quadrado
22. hamlet ao quadrado22. hamlet ao quadrado
22. hamlet ao quadradoJulio Carrara
 
28.a sétima trombeta
28.a sétima trombeta28.a sétima trombeta
28.a sétima trombetaJulio Carrara
 

Plus de Julio Carrara (9)

Orgasmo dos deuses e outros poemas
Orgasmo dos deuses e outros poemasOrgasmo dos deuses e outros poemas
Orgasmo dos deuses e outros poemas
 
12. cidade dos urubus
12. cidade dos urubus12. cidade dos urubus
12. cidade dos urubus
 
16. vamos brincar de roda
16. vamos brincar de roda16. vamos brincar de roda
16. vamos brincar de roda
 
13. retalhos
13. retalhos13. retalhos
13. retalhos
 
23. depois da chuva
23. depois da chuva23. depois da chuva
23. depois da chuva
 
19. puros depravados
19. puros depravados19. puros depravados
19. puros depravados
 
22. hamlet ao quadrado
22. hamlet ao quadrado22. hamlet ao quadrado
22. hamlet ao quadrado
 
21. blefe de mestre
21. blefe de mestre21. blefe de mestre
21. blefe de mestre
 
28.a sétima trombeta
28.a sétima trombeta28.a sétima trombeta
28.a sétima trombeta
 

03. o espelho da vida

  • 1. OOOO EEEESSSSPPPPEEEELLLLHHHHOOOO DDDDAAAA VVVVIIIIDDDDAAAA Drama Texto de: JULIO CARRARA Escrita em 1995
  • 2. Julio CarraraJulio CarraraJulio CarraraJulio Carrara O Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da Vida 1111 PERSONAGENS: DORA NANDO GUTO PALOMA MÁRCIA ANALU GABRIELA EDUARDO ALEXANDRE e NANDO, GUTO, PALOMA, ANALU, EDUARDO e GABRIELA, quando crianças. ÉPOCA: Atual CENÁRIO: Uma plataforma ocupando toda a parte superior do palco com mais ou menos um metro e meio de altura. Na frente desta plataforma, dois praticáveis em diagonal, sendo um do lado direito e outro do lado esquerdo. O praticável situado à esquerda representa o quarto de Guto e Nando. O praticável do lado direito, o quarto de Paloma. Uma escada central conduz aos quartos. Uma mesinha com cadeiras do lado esquerdo central. O cenário a iluminação deverão possuir uma linha expressionista. Um ciclorama deve cobrir o cenário inteiramente nas cenas da floresta e da rua e deve desaparecer em outras cenas. Nesse ciclorama deve ser projetada com auxílio de máscaras de iluminação, uma mata. Na cena em que as personagens estão brincando na rua, várias casas espremidas entre os prédios de apartamentos.
  • 3. Julio CarraraJulio CarraraJulio CarraraJulio Carrara O Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da Vida 2222 PRÓLOGO (Black-out. Luz sobe em resistência até meia-luz com o palco na penumbra. Uma jovem está no centro do palco, de costas para o público. Traja um vestido de gestante e está prestes a dar à luz. Ela procura um lugar para parir a criança. Sente fortes contrações. A bolsa estoura. Ela geme. Sua respiração é mesclada com a música que deverá sugerir mistério e poesia. Fica de cócoras, de costas, e faz o seu próprio parto. O bebê nasce. Um choro frágil e ao mesmo tempo forte é ouvido no áudio. A mulher, exausta, ergue o bebê para o alto, depois de cortar o cordão umbilical, como se estivesse apresentando-o para o mundo. Abraça-o com devoção. Enrola-o numa mantinha, carrega-o nos braços e vira-se de frente para o público. Abraça-o com ternura. Tira o peito e oferece ao filho. Depois de amamentá-lo, balança o corpo para frente e para trás, fazendo-o dormir. Luz desce em resistência, deixando apenas um foco desenhando mãe e filho. Black-out.) CENA 1 (Uma rua onde brincam crianças de quatro a seis anos: Guto, Paloma, Eduardo, Gabriela, Analu e Nando. Os dois primeiros são os filhos mais velhos de Dora, a jovem do prólogo. Nando é o bebê dela. O garoto está com quatro anos e sofre de paralisia. O único membro que o menino consegue movimentar é somente o pé esquerdo. As crianças brincam de amarelinha, de pular corda, unha na mula, bafo, carteiro tem carta, balança caixão, etc. Saem de cena. Mudança de luz. Voltam esses mesmos personagens, só que agora, mais velhos. Começam a aparecer os conflitos. Eduardo e Paloma trocando olhares, Analu e Gabriela desprezando Nando; e Guto, sempre revoltado, num canto. Black-out.) CENA 2 (Casa de Dora. Paloma e Guto estão estudando numa mesinha. Nando está encostado na parede, perto da escada que leva aos quartos, observando os irmãos mais velhos estudarem. Paloma tem uma dúvida.)
  • 4. Julio CarraraJulio CarraraJulio CarraraJulio Carrara O Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da Vida 3333 PALOMA Guto, quanto é vinte e cinco por cento de um quarto? GUTO (Pensa.) Vinte e cinco por cento de um quarto? (Ri.) Que pergunta idiota, Paloma. Vinte e cinco por cento já é um quarto. Não dá pra ter um quarto de um quarto. PALOMA Claro que dá. (Para Nando.) Não dá, Nando? GUTO (Irônico.) Ora, Paloma, o que ele sabe? (Nando pega um giz com os dedos do pé esquerdo.) PALOMA (Assustada, chamando Dora.) Mãe, corre aqui, o Nando pegou um giz! (Entra Dora, bem mais velha que a figura do prólogo.) DORA Vamos lá, Nando. Escreva o que quiser. (Nando começa a fazer riscos no chão. Dora e Paloma tentam adivinhar.) PALOMA É um Y? DORA É um X?
  • 5. Julio CarraraJulio CarraraJulio CarraraJulio Carrara O Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da Vida 4444 GUTO (Olha com desprezo.) Que nada. É só um rabisco! DORA Não, não. Ele tá querendo dizer alguma coisa! Eu sei... GUTO Não coloque idéias na sua cabeça, mãe. O Nando é um débil-mental. E ninguém vai conseguir ensinar nada a ele, ouviu? Ninguém... Não se ensinam retardados. DORA (Brava.) Não fale isso do seu irmão, Guto! GUTO (Revoltado.) Irmão... Isso aí é um desastre da natureza... Um monte de carne deformada que teve a infelicidade de vir ao mundo. DORA (Furiosa, atinge o rosto do filho com uma violenta bofetada.) Nunca mais fale isso, ouviu? Nunca mais. Se você repetir mais uma vez o que disse agora, eu juro por tudo que é mais sagrado neste mundo que arrebento todos os dentes da sua boca. Agora sobe pro seu quarto e não saia de lá até amanhã. Não quero mais olhar pra sua cara, hoje! (Guto olha para o irmão com muito ódio. Sobe para o quarto. Paloma o segue. Nando faz um beicinho de choro. Dora o abraça.) DORA Ô Nando, meu filho. Não liga pro seu irmão, viu? Ele é assim mesmo. Mas no fundo, no fundo, ele te ama muito. Ele só tá com... medo.
  • 6. Julio CarraraJulio CarraraJulio CarraraJulio Carrara O Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da Vida 5555 CENA 3 (Guto e Paloma no quarto, numa conversa bastante tensa.) GUTO ...Medo, eu? PALOMA É... Medo, Guto. Medo! GUTO Medo de quê? PALOMA De aceitar a verdade. GUTO Que verdade? PALOMA O seu irmão. Tem medo de aceitar o Nando como ele é. Medo de dar carinho, de dar um beijo, um abraço nele. GUTO Não é medo, não, Paloma. É raiva... Eu quero que ele morra. Ele não presta pra nada mesmo. Só serve pra foder a vida da gente. Desde pequeno, só o Nando teve o que quis. O Nando, Nando, Nando, Nando, sempre o Nando... E a gente acabou na lata do lixo. Por culpa dele, nós sempre tomamos no rabo, sempre se fodendo por culpa de um bostinha que não presta nem pra limpar a bunda. Eu odeio o Nando. ODEIO!!! (Dá murros na parede.)
  • 7. Julio CarraraJulio CarraraJulio CarraraJulio Carrara O Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da Vida 6666 PALOMA Você não tá sendo justo, Guto! Você não faz ideia do que a mamãe passou pra criar sozinha nós três! Depois do chute que o pai deu nela, ela ralou e muito pra sustentar a gente. Pensa que ela não sofreu? Hein?... Me diga?... Olhe pra você: um rapaz saudável... Agora faça uma comparação entre você e o Nando, faça! GUTO Não dá nem pra comparar, né! PALOMA É claro que não. Você sempre soube que o Nando não é como você e os outros meninos. GUTO (Com a cabeça mais fria.) Sabe o que é? É que não gosto de ouvir em rodinhas, comentários a respeito dele. Quando saio com ele, percebo que as pessoas ficam tirando uma dele e da situação fodida da gente. PALOMA E você vai se importar com que os outros falam ou deixam de falar? Eles que se danem. Que vão cuidar de suas vidas. GUTO Você tem razão. PALOMA (Sorrindo.) Não falei que quando você esfriasse a cabeça, iria pensar diferente? (Ambos se abraçam e saem de cena.)
  • 8. Julio CarraraJulio CarraraJulio CarraraJulio Carrara O Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da Vida 7777 CENA 4 (Ouve-se a campainha. Dora que estava com Nando na sala, levanta-se e caminha em direção à porta. Entra Márcia.) DORA Que bom que você chegou, Márcia... Você pode tomar conta do Nando? Eu preciso passar na farmácia. MÁRCIA Claro, Dora, com o maior prazer. Pode ir sossegada. Vou cuidar muito bem do Nando. Muito bem mesmo. DORA Eu não vou demorar. MÁRCIA Não precisa se preocupar. Ele estará em boas mãos. DORA (Já de saída.) Ah, a papinha dele tá no fogão. Você pode alimentá-lo? MÁRCIA Claro. (Dora sai. Márcia caminha até a cozinha e volta com a papinha de Nando. A mulher olha com asco para a comida. Nando, que estava dormindo, é acordado violentamente por ela.) MÁRCIA Você tá com fome, Nandinho? (O menino balança a cabeça afirmativamente.) Então vem pegar! (Márcia senta-se do outro lado da sala, de propósito. Nando vai até ela rastejando-se.) Olha só, parece um verme!
  • 9. Julio CarraraJulio CarraraJulio CarraraJulio Carrara O Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da Vida 8888 (Nando chega até ela que começa a dar a papinha para ele. Ela coloca a colher bem próxima da boca do garoto. Quando Nando abre a boca, ela afasta a colher, se divertindo com a situação. Isso se repete algumas vezes até que ela enfia uma colherada atrás da outra na boca do menino que se lambuza todo.) MÁRCIA Que coisa feia, Nando! Nem cachorro come desse jeito... Coitada da Dora, você é a cruz mais pesada que ela carrega. Pobre diabinho! (Nando vira o rosto de lado e não quer mais comer. Ela insiste, em vão.) Com o resto que você deixa, daria para alimentar um exército. (Sai para a cozinha levando o prato. Volta em seguida. Chega perto do menino e olha-o com desprezo. Ficam assim por um bom tempo. Márcia pega uma revista e começa a folheá-la. Depois acha uma cartilha e tem uma ideia.) MÁRCIA Venha aqui, Nando. Vou te ensinar a ler. Você não vai mesmo conseguir aprender, mas pelo menos vou fazer algo útil (O menino vai até ela que põe a cartilha bem próxima ao seu rosto.) ‘A’ de ‘anormal’; ‘B’ de‘burro’; ‘C’ de ‘coitado’; e ‘D’... ‘D’ de ‘débil-mental’. (Destaca bem as sílabas.) ‘Dé-bil-men-tal’. É o que você é. (Nando resmunga palavras desconexas. Grita muito e bate o pé no chão, olhando furioso para Márcia. Dora entra correndo. Está carregada de embrulhos.) DORA (Preocupada.) O que aconteceu com o Nando, Márcia? MÁRCIA (Sonsa.) Não sei Dora. Eu fui dar a papinha dele. Ele não comeu quase nada. Depois peguei uma cartilha pra mostrar o alfabeto pra ele e de repente ele olhou feio pra mim e começou a berrar e a bater o pé no chão.
  • 10. Julio CarraraJulio CarraraJulio CarraraJulio Carrara O Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da Vida 9999 (Nando aponta Márcia com o pé, e joga intenção no rosto, com a maior dificuldade.) DORA A Márcia? (Nando balança a cabeça afirmativamente.) O que ela te fez? (À Márcia.) Você maltratou o Nando? MÁRCIA (Falsa.) Eu, Dora? Eu jamais faria isso. Eu adoro esse menino. DORA (Meio sem jeito.) Ai, Márcia, me desculpe... MÁRCIA Desse jeito você me ofende... DORA Tô nervosa. Como é difícil entender o Nando... MÁRCIA (Olha para o relógio.) Bem, amiga, já tá na minha hora. Preciso ir andando. (Caminha até Nando e lhe aperta a bochecha “carinhosamente”.) Tchau, Nandinho. Amanhã eu venho te visitar... (O menino olha para ela desejando-lhe a sua morte. Dora acompanha Márcia até a porta da rua e sai com ela.) CENA 5 (Guto e Paloma entram correndo em direção de Nando. Guto traz nas mãos uma carrocinha de madeira.)
  • 11. Julio CarraraJulio CarraraJulio CarraraJulio Carrara O Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da Vida 10101010 PALOMA (Empolgada.) Nando, Nando, veja o que o Guto fez pra você? GUTO (Brandindo.) Uma carrocinha, Nando. Agora você pode conviver com os outros meninos até nossa mãe completar o dinheiro pra comprar sua cadeira de rodas. Não é o máximo, cara? (Nando fica indiferente. Guto se chateia.) O que foi Nando? Não gostou? PALOMA O Guto perdeu a tarde inteira pra construir essa carrocinha pra você e você trata ele assim, Nando? GUTO Deixa, Paloma. Já sei por que ele tá me tratando assim... (Para Nando, docemente.) Ô Nando, me perdoa. Eu tava nervoso e descontei em você. Você não tem culpa, cara. Eu é que sou um bosta e que não presta pra nada. (Pausa.) Bom, se você não quiser a carrocinha, tudo bem, eu vou entender. Você tem todo o direito de recusar esse presente. Tem todas as razões do mundo pra não aceitar nada que venha de mim. Mas gostaria que você soubesse de duas coisas: a primeira é que eu construí isso de coração e a segunda é que eu te amo muito... Muito mesmo. (Beija o rosto do irmão, pega a carrocinha tristemente e vai saindo. Nando olha para ele e balbucia pedindo para ele ficar. Guto corre para o irmão e o abraça fortemente.) GUTO Eu sabia que você iria me perdoar. Eu te admiro muito, viu?... Agora vamos estrear o seu “carro”? (Guto põe o irmão na carrocinha auxiliado por Paloma. Guto “pilota”. Paloma entra na frente e Guto vai em direção dela, querendo atropelá-la. Ela desvia. Os três brincam
  • 12. Julio CarraraJulio CarraraJulio CarraraJulio Carrara O Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da Vida 11111111 por todo o espaço cênico, fazendo manobras cada vez mais radicais ao som de “Unchain My Heart”, de Joe Cocker. Os três gritam felizes e saem com esse mesmo pique.) CENA 6 (Ouve-se a campainha. Dora vai até a porta. Ao abrir, leva um susto. Em sua frente está Alexandre, seu ex-marido.) DORA (Balbucia.) Você? ALEXANDRE Por que esse espanto todo, Dora? Vim aqui pra gente conversar. Numa boa! DORA Não tô com a mínima vontade de conversar com você. ALEXANDRE Eu queria que você entendesse... DORA Não precisa ficar rodeando... Vai direto ao assunto... ALEXANDRE (Embaraçado.) É sobre o Nando. Sobre o nosso filho... DORA Nosso filho??? Ele é meu filho. Só MEU. ALEXANDRE Não complica as coisas. Vim oferecer ajuda, caso o Nando precise.
  • 13. Julio CarraraJulio CarraraJulio CarraraJulio Carrara O Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da Vida 12121212 DORA No momento em que ele mais precisou de ajuda, você me deu um chute, me jogou pra escanteio. Você não faz ideia do que eu passei pro Nando nascer. Ninguém quis me ajudar. Ninguém. Todos viraram as costas pra mim. Fui dar à luz no meio do mato. Sozinha. Sem ajuda de ninguém... E depois do parto comecei a cuidar daquela criança tão pequena, tão indefesa e com um futuro incerto. Me dediquei à ele de corpo e alma. Sacrifiquei meus dois outros filhos, mas não deixei faltar nada pro Nando. E depois de tudo isso, você ainda tem coragem de vir bater na minha porta com essa cara deslavada e tem a ousadia de me oferecer ajuda? Você é muito cínico. Eu quero que você pegue todo seu dinheiro e enfie no seu... ALEXANDRE (Corta abruptamente.) Eu queria pelo menos ver os meus filhos. DORA Você não vai nem chegar perto deles. Qual é o seu interesse nisso, hein? Sim, porque prum homem abandonar sua mulher com dois filhos pequenos, por saber que o terceiro nasceria deficiente, depois de quinze anos desaparecido, vem procurar esse mesmo filho que rejeitou? O que você pretende seu covarde? Veio ver o estado em que estou? Ver as rugas do meu rosto? Ver o quanto engordei? Foi isso? ALEXANDRE Dora, você tá sendo cruel. DORA Cruel, eu? Você não tem espelho, não? ALEXANDRE Você tá fazendo uma tempestade num copo d’água. Eu venho aqui, com a melhor das intenções, e...
  • 14. Julio CarraraJulio CarraraJulio CarraraJulio Carrara O Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da Vida 13131313 DORA De boas-intenções o inferno tá cheio. Não sei por que tô perdendo o meu tempo discutindo com você. Vá embora, vá. Um homem sem escrúpulos como você não deveria nem pisar na minha casa. ALEXANDRE Me deixe pelo menos ver o menino. Tenho direito. Sou o pai. DORA Pai??? Porra, que pai?! Você não é nada dele. ALEXANDRE Queria pelo menos saber do Guto e da Paloma. DORA Eles estão muito bem. ALEXANDRE Por que você os proíbe de me visitarem? DORA Não proíbo. Nunca proibi. É que eles sentiram na pele todo o mal que você nos causou. ALEXANDRE Você fez a cabeça deles contra mim? DORA Eu não fiz a cabeça de ninguém. Eles souberam da verdade e a partir dela acharam o que deveriam achar. Se eles nunca te procuraram, acredito que tiveram motivos pra isso...
  • 15. Julio CarraraJulio CarraraJulio CarraraJulio Carrara O Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da Vida 14141414 ALEXANDRE (Arrependido.) Gostaria de poder estar junto deles. Acompanhando o crescimento, o amadurecimento. Queria poder jogar futebol com o Guto, levar a Paloma andar de bicicleta. Tinha tantos planos pra eles. DORA Até que surge um filho deficiente que estraga tudo... Só vou te alertar de uma coisa. O Guto e a Paloma quando quiserem te encontrar, tudo bem. Não vou proibir. A cabeça é deles. Eles já são grandes o bastante pra saber o que é bom e o que é ruim. (Ameaçadora.) Mas se você ousar pisar nesta casa novamente ou chegar perto do Nando, ai de você... Ai de você... (Vai até a porta da rua e a abre.) Adeus, Alexandre! (Alexandre caminha de cabeça baixa até a porta da rua e sai. Dora encara o ex-marido com desprezo e indiferença. Após a saída do homem, cai num choro. Black-out.) CENA 7 (Luz sobe em resistência. No centro do palco estão sentados Guto, Paloma, Gabriela, Analu e Nando em sua carrocinha. Brincam de jogo da verdade.) ANALU (Cochichando com Gabriela.) Se o compasso cair no Guto vou perguntar se ele quer namorar comigo. GABRIELA E se cair no Nando ou no Eduardo? ANALU Ah, o Nando nem tá no jogo. E se cair no Eduardo, eu pergunto qualquer coisa sobre a Paloma.
  • 16. Julio CarraraJulio CarraraJulio CarraraJulio Carrara O Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da Vida 15151515 GUTO (Abre o compasso e coloca-o no centro da rodinha.) Comece Analu. (Analu gira o compasso e o mesmo para justamente na direção de Nando.) ANALU (Reage frustrada; sonsa.) Ninguém!!! PALOMA Como, ninguém?! Caiu no Nando. ANALU Mas o Nando não tá no jogo... GUTO (Irônico.) É claro que tá. O compasso tá apontando pra ele. ANALU (Levanta-se, vai em direção de Nando e beija-lhe o rosto.) Você, apesar de tudo, é o único que presta nesse grupo. E tem os olhos lindos... (Zoeira geral. Guto olha para Analu e sorri maliciosamente. Ela vai saindo, frustrada e Gabriela a segue.) GABRIELA (Para Guto.) Tchau, Guto. GUTO (Não responde para Gabriela e provoca Analu, que passa ao seu lado.) Tchau, Analu.
  • 17. Julio CarraraJulio CarraraJulio CarraraJulio Carrara O Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da Vida 16161616 ANALU (Olha furiosa para ele; estúpida.) Tchau, Guto. Durma bem... (Saem.) (Guto pega o compasso. Boceja.) GUTO Vou pra cama! Boa noite! EDUARDO Boa noite! (Guto pega Nando do carrinho e sobe com ele para o quarto, deixando Eduardo e Paloma sozinhos. Eduardo verifica se Guto já subiu. Aproxima-se de Paloma e lhe dá um beijo na boca. Acariciam-se e transam. Black-out.) CENA 8 (No dia seguinte. Luz sobe em resistência. Em cena estão Eduardo, Gabriela e Analu. Os três estão impacientes.) GABRIELA (Gritando para Paloma, que se arruma no quarto.) Ô Paloma, anda logo que a gente vai perder a prova da primeira aula... EDUARDO (Parado à porta do banheiro.) Ô Guto, o que tanto faz nesse banheiro? Se for o que eu estou pensando, vou me mandar! GUTO (Sai do banheiro e põe uma revista de mulher pelada entre os cadernos.) Que inferno!
  • 18. Julio CarraraJulio CarraraJulio CarraraJulio Carrara O Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da Vida 17171717 (Guto vai saindo e deixa cair uma folha de papel de seu caderno. Eduardo e Guto saem. Gabriela e Analu esperam ambos saírem. Analu pega a folha do chão.) ANALU (Lê o papel; maravilhada.) Veja, Gabi, olha só o que o Guto fez pra mim... Que desenho maravilhoso. Leia aqui embaixo: “Seus lindos olhos são piscinas profundas e azuis onde eu mergulho. Te amo, Analu!” Não é lindo? Eu sabia, eu sempre soube que o Guto era doido por mim. Só ele não queria admitir. GABRIELA (Pega o desenho das mãos de Analu.) Deixa eu ver...Esse desenho com essa frase não foi feito pelo Guto, não. ANALU (Estranha.) Como não, se caiu do caderno dele? GABRIELA Veja a assinatura: Nando. (Satiriza a amiga.) O aleijadinho é apaixonado por você. (Nando desce as escadas, rastejando-se.) Falando no doente, aí vem ele. Por que não tira isso a limpo? ANALU É o que vou fazer. (Para Nando.) Foi você que desenhou isso, Nando? (Nando confirma.) Pode pegar de volta. Eu sei que o que você escreveu é verdade, mas não vai ser um aleijadinho de merda que vai me conquistar... Se isso tivesse sido feito pelo gostoso do seu irmão, eu aceitaria com o maior prazer. Mas como foi você quem fez... (Rasga o desenho e joga na cara do menino.) Toma! Fique com essa porcaria. (Para o quarto de Paloma.) Ô Paloma, vai logo. PALOMA (Desce as escadas.) Estou indo. (Para Nando.) Toma conta da casa, Nando. (Beija-lhe a face e sai com Analu.)
  • 19. Julio CarraraJulio CarraraJulio CarraraJulio Carrara O Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da Vida 18181818 GABRIELA (Sozinha com Nando.) E diga pro Guto, que... Ah, você não fala... Que diferença... Você e o Guto são irmãos mesmo? Como vocês podem ser tão diferentes? Eu acho que você é adotado... (Cínica.) Bye, bye, parasita! (Sai. Nando começa a chorar. Grossas lágrimas escorrem pelos seus olhos e um soluço que vem do fundo de sua alma toma conta de todo o seu ser. Black-out rápido.) CENA 9 (Muda luz. entra Guto, gritando) GUTO Nando, comprei um presente pra você. DORA (Entra, curiosa.) Presente? Que presente? GUTO O que você sempre quis comprar para o Nando, mas nunca pôde? DORA (Incrédula.) Não me diga que... GUTO Isso mesmo... DORA (Abraça o filho, feliz.) Guto, meu filho, você não sabe o quanto tô feliz!
  • 20. Julio CarraraJulio CarraraJulio CarraraJulio Carrara O Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da Vida 19191919 GUTO (Sai e volta com uma cadeira de rodas.) Tá aqui o seu presente, mano. A sua cadeira de rodas. Não é uma grande coisa, mas dá pra quebrar o galho. (Nando agradece o irmão dizendo palavras desconexas.) Não precisa me agradecer. Você merece muito mais. Agora vamos dar um passeio? (Põe o irmão na cadeira e sai com ele.) CENA 10 (Alguns dias depois. Dora está na sala quando é despertada por um soluço. Ela caminha em direção do quarto de Paloma e vê a filha chorando.) DORA Paloma, o que aconteceu? PALOMA (Abraça a mãe; chorando mais.) Mãe, me perdoa! DORA Perdoar o quê? PALOMA Juro que não queria mãe, mas estávamos sozinhos na sala, o perfume dele tomando conta de tudo... ele me tocando...Não deu pra segurar... (Com um fio de voz.) Aconteceu... DORA Você... Você transou com o Edu? PALOMA (Envergonhada.) Eu tentei evitar, mas foi mais forte que eu...
  • 21. Julio CarraraJulio CarraraJulio CarraraJulio Carrara O Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da Vida 20202020 DORA Eu também já tive sua idade e sei como são essas coisas. Eu só espero que vocês tenham se prevenido... (Enxuga as lágrimas que escorrem pelos olhos da filha.) Agora enxuga essas lágrimas, vai... PALOMA (Embaraçada.) A coisa é mais séria! DORA Não me diga que você... (Desmonta.) PALOMA Eu tô grávida, mãe! Minha menstruação tava atrasada, comecei a sentir enjoos frequentes, desconfiei logo e fui comprar aquele teste de gravidez na farmácia. Fiz o teste e deu positivo. DORA Uma gravidez, agora? PALOMA Eu e o Edu já conversamos e acertamos tudo. A gente precisa se casar o mais depressa possível. DORA Você não faz ideia de como vai mudar sua vida daqui pra frente. O que você vai pegar no colo daqui a nove meses vai ser um ser humano e não essas bonecas que enfeitam seu quarto... Mas tudo bem... Já que aconteceu, é necessário assumir a responsabilidade. À noite a gente conversa com o Guto... Ele vai entender! PALOMA (Abraça a mãe.) Ô mãe, eu amo você!
  • 22. Julio CarraraJulio CarraraJulio CarraraJulio Carrara O Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da Vida 21212121 (Black-out.) CENA 11 (Márcia entra. Nando está sentado em sua cadeira de rodas.) MÁRCIA Dora! (Para Nando.) Ô moleque, sua mãe tá aí? (Tenta fazer com que o garoto preste atenção nela.) Ô garoto, tô falando com você... (Dá um forte tapa na cabeça do menino.) Ah, esqueci que você não fala... (Dora entra e fica espiando, escondida.) Olha só: o retardadinho ganhou uma cadeira de rodas. Agora não vai mais andar naquela carroça imunda. Pelo menos agora não vai ficar se rastejando no chão como um verme nojento. DORA (Furiosa, agarra Márcia.) Verme nojento é a puta que te pariu... (Esbofeteia Márcia.) MÁRCIA (Assustada.) Dora! DORA Que amiga fui arranjar: cínica, mentirosa e traiçoeira. Uma cobra peçonhenta dentro da minha própria casa e fingindo ser minha amiga. Agora entendi porque o Nando tava agitado aquele dia. Ele queria me alertar a seu respeito, sua cadela ordinária! (Derruba a mulher no chão e prensa sua cabeça no assoalho.) Sabe o que eu devia fazer com você? Esmagar sua cabeça como que se esmaga uma cabeça de cobra! Agora você vai sentir na carne tudo o que o Nando sentiu quando tava sendo humilhado por você. (Levanta a mulher do chão. Para Nando.) Veja, Nando. (Dá uma forte bofetada na cara dela.) Esse é por mim. (Dá mais duas bofetadas.) E esses dois são por você. Agora desapareça da minha casa. (Abre a porta e empurra a mulher escada abaixo. Márcia grita. Dora vai
  • 23. Julio CarraraJulio CarraraJulio CarraraJulio Carrara O Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da Vida 22222222 para perto de Nando.) Nando... eu juro que essa ordinária nunca mais vai chegar perto de você. Eu juro... GUTO (Desce do seu quarto.) Que barulho foi esse, mãe? DORA A Márcia, aquela ordinária, que maltratava o Nando... Mas já tratei disso, e ela nunca mais vai entrar aqui em casa. (Pausa tensa. Muda de assunto.) Guto, preciso lhe dizer uma coisa... GUTO Diga. (Paloma entra em cena, trêmula.) DORA Guto, a Paloma vai se casar com o Edu. GUTO (Feliz.) Mas que maravilha! Quando? DORA Daqui a um mês, no máximo! GUTO Por que a pressa? DORA (Embaraçada. Paloma engole em seco.) Porque... Ela tá grávida!
  • 24. Julio CarraraJulio CarraraJulio CarraraJulio Carrara O Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da Vida 23232323 GUTO (Irônico e irado.) Que notícia ótima!!! Quem é o pai? Se é que você sabe quem é o pai, não é, sua vagabunda? PALOMA Não foi culpa minha! GUTO E de quem foi então? Minha? (Suas expressões tornam-se cada vez mais monstruosas.) Mas que maravilha, enquanto a mãe não tem dinheiro nem pra comprar uma roupa decente, a filha não consegue ficar com calcinha? (Nando demonstra no rosto sinais de raiva.) Vem aqui, Paloma, que vou te ensinar a fechar as pernas, sua vagabunda. Vou te quebrar inteira! NANDO (Sua raiva vai aumentando.) Eu mato o Guto. (Começa a soltar urros.) (Dora tenta acalmar Guto defendendo Paloma e Nando. Nando berra e Guto tenta avançar, até sair de cena, furioso.) PALOMA Calma, Nando, calma... Eu vou embora daqui... Vou morar com o Edu. Cuide bem da mamãe pra mim, viu? (Os três se abraçam. Congelam em posição de foto. Black-out.) CENA 12 (Luz sobe em resistência. Estamos na mesma mata em que Dora deu à luz a Nando. Entra Paloma. Seus passos são milimétricos. Carrega uma mala. Sua respiração está ofegante, parece que correu muito. Ela caminha pelo proscênio e para no centro. Abre a mala. Tira uma carta. Lê e chora. Em seguida começa a bater violentamente na barriga.
  • 25. Julio CarraraJulio CarraraJulio CarraraJulio Carrara O Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da Vida 24242424 Ela tenta a todo custo, expulsar a criança do seu útero. Num plano acima, está o “feto” de Paloma. O ator que interpretar o bebê está nu, em posição de fetal. Ele se mexe conforme Paloma bate em sua barriga. A jovem não encontra mais forças e estressada desaba no chão. Fica assim por algum tempo. Olha para o lado e vê a mala aberta. Levanta-se e revira toda a roupa dali de dentro. Por fim encontra uma agulha de tricô. Pega-a e olha para a agulha. Seus olhos estão fixos naquele objeto como num ritual macabro. Vai enfiar a agulha na vagina, mas perde a coragem. Segunda tentativa: tentativa frustrada. Terceira tentativa: olha para a agulha e violentamente dá uma estocada em sua vagina. Os gritos de dor de Paloma e do bebê são mesclados com o forte bater de um tambor. Black-out.) EPÍLOGO (Luz sobe em resistência. Dora, Guto e Nando estão no centro da sala. Vestem luto por Paloma.) GUTO (Chora. Quebra o gelo.) Eu tava nervoso, mãe. Ela não podia ter ido embora. Ela sabe como eu sou sempre soube. Como me sinto culpado pela morte dela. DORA (Inconformada.) Não se sinta culpado, Guto. (Tira uma carta amassada do bolso.) Veja, esta carta foi encontrada junto ao corpo de Paloma. Aqui, o Edu dizia que não queria mais se casar e principalmente assumir a criança. Ela se sentiu culpada, perdida, e fez tudo isso. GUTO Eu não queria falar daquele jeito com ela. É que eu levei um choque quando soube... Merda de vida. Nem que eu viva cem anos, vou conseguir esquecer o que fiz pra ela.
  • 26. Julio CarraraJulio CarraraJulio CarraraJulio Carrara O Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da Vida 25252525 DORA (Fazendo-se de forte.) Filho, não fique assim... aconteceu. Não consigo explicar o que sinto. Não dá prá dizer com palavras o que uma mãe sente quando vê o seu próprio filho morto. Preferia mil vezes morrer do que ver um filho meu num caixão. (Solta um gemido grosso.) Filho, me dê forças pra continuar vivendo, por favor. Me ajude a criar o Nando. A vida dele depende da minha. Eu preciso compreender... Promete que vai ficar pra sempre do meu lado, Guto, promete? GUTO Prometo mãe. DORA Eu pensei que tava tendo um pesadelo quando vi o caixão da Paloma entrar no túmulo. Os coveiros enterrando a minha menina... O Edu chegando ao cemitério e depois de ter certeza que era ela, sair correndo sem dizer uma palavra. Mas aí fui ver que não era pesadelo, não. Era realidade. A mais pura realidade. GUTO Ela era tão jovem... Cheia de sonhos! Tinha toda a vida pela frente. Como queria que o tempo voltasse atrás. Como queria estar do lado da Paloma neste momento. (Nesse instante, no plano alto, surge o espectro de Paloma. A garota está vestida de noiva e tem um véu cobrindo seu rosto.) GUTO Como queria que ela me perdoasse mãe. PALOMA (Com a voz suave.) Eu já te perdoei, Guto.
  • 27. Julio CarraraJulio CarraraJulio CarraraJulio Carrara O Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da Vida 26262626 GUTO (Sente um calafrio.) Mãe, a Paloma... DORA O quê? GUTO (Místico.) Sinta mãe. Parece que a Paloma tá aqui com a gente. DORA Eu não sinto isso, filho. Por quê? Eu queria pelo menos um sinal... (Nando balbucia.) GUTO (Com carinho, para o irmão.) O que, Nando? NANDO (Com dificuldade.) Pegue essa carta... GUTO Carta? Que carta? NANDO Aqui, no meu pé. (Guto pega uma folha de papel aberta do pé de Nando.) GUTO O que é isso? “Para a mamãe”. (Lê em voz baixa e se emociona.) Foi você que escreveu isso, Nando? (Nando afirma.) É lindo demais, mano!
  • 28. Julio CarraraJulio CarraraJulio CarraraJulio Carrara O Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da VidaO Espelho da Vida 27272727 DORA (Ansiosa.) Fala logo, Guto, o que o Nando diz na carta? GUTO (Lê para a mãe.) “Mãe, é necessário encontrar forças, mesmo depois de ter passado pelo que você passou...” NANDO (No áudio ouvimos a voz de Nando, bem articulada.) “Não sei como descrever o que eu sinto por você. Mesmo sabendo da minha deficiência, enfrentou tudo e todos para me deixar nascer. Você foi à única pessoa que nunca se envergonhou de mim. Obrigado por me deixar nascer. Obrigado por me aceitar assim.” (Guto pega uma flor vermelha que está no bolso da camisa de Nando e a coloca no pé esquerdo do menino, que oferece para a mãe.) “Aceite essa flor como prova do meu agradecimento por tudo que você me fez. Te amo! Nando”. (Dora, com os olhos cheios de lágrimas pega a flor do pé esquerdo do filho e abraça-o, emocionada. Guto, também emocionado, abraça os dois. Paloma ri e chora ao mesmo tempo. Black-out final.) FIM Agosto/1995