O documento discute conceitos de multiculturalismo e direitos humanos, analisando a possibilidade de universalizar os direitos humanos em uma sociedade globalizada e multicultural. Apresenta reflexões de Boaventura de Souza Santos e Flavia Cristina Piovesan sobre como os direitos humanos podem servir como alternativa a manifestações culturais, respeitando as particularidades culturais e não sendo dominados por interesses ocidentais.
Concepções e reflexões sobre o Multiculturalismo e Direitos Humanos
1. Concepções e reflexões sobre o Multiculturalismo e
Direitos Humanos
Karla Oliveira Amaral Ribeiro da Cruz1
Resumo
O presente trabalho propõe uma abordagem sobre os conceitos de multiculturalismo
e direitos humanos, analisando a possibilidade de universalizar os direitos humanos
numa sociedade globalizada e multicultural e examinar em que medida os direitos
humanos podem servir como alternativa a manifestações culturais que se
expressam no seio de uma dominação ocidental – globalizante e voltada para os
interesses econômicos e políticos – e permeada por violações desses mesmos
direitos. Para tanto, apresentarei reflexões de Boaventura de Souza Santos e Flavia
Cristina Piovesan, que tratam do assunto em referencia em seus textos, “Por uma
concepção multicultural de Direitos Humanos” e “Ações afirmativas da perspectiva
dos direitos humanos”, respectivamente.
Palavras – chave: Multiculturalismo, Direitos Humanos, Ações Afirmativas.
Abstract
This paper proposes an approach to the concepts of multiculturalism and human
rights, analyzing the possibility of universal human rights in a globalized and
multicultural society and examine the extent to which human rights can serve as an
alternative to cultural manifestations that express within a Western domination –
globalizing and focused on the economic and political interests – and permeated by
violations of these rights. To do so, I will present reflections Boaventura de Souza
Santos and Flavia Cristina Piovesan, dealing with the matter referred to in their texts,
"Towards a multicultural conception of human rights" and "Affirmative action from the
perspective of human rights", respectively.
Keywords: Multiculturalism, Human Rights, Affirmative Action.
Vitória/ES
2014
1
Bacharel em Serviço Social pela Faculdade Salesiana de Vitória, Especialista em Gestão Pública
dos Serviços de Saúde pela Faculdades Integradas Jacarepaguá e aluna especial do Programa de
Pós-Graduação Stricto Sensu em Ciências Sociais da Universidade Federal do Espírito Santo.
2. 1. Introdução
O presente ensaio propõe uma abordagem sobre os conceitos de multiculturalismo e
direitos humanos, analisando a possibilidade de universalizar os direitos humanos
numa sociedade globalizada e multicultural e examinar em que medida os direitos
humanos podem servir como alternativa a manifestações culturais que se
expressam no seio de uma dominação ocidental – globalizante e voltada para os
interesses econômicos e políticos – e permeada por violações desses mesmos
direitos.
Primeiramente trabalharei as concepções acerca do Multiculturalismo e Direitos
Humanos e posteriormente, apresentarei as considerações de Boaventura de Souza
Santos e Flavia Cristina Piovesan, que analisam, respectivamente, em seus artigos
“Por uma concepção multicultural dos Direitos Humanos” e “Ações afirmativas da
perspectiva dos Direitos Humanos”, sobre a evidência dos Direitos Humanos no
mundo contemporâneo, bem como a promoção e proteção desses direitos,
buscando respeitar as particularidades de cada cultura e não fomentar ainda mais o
caráter “ocidentalizante” para o qual foram criados.
2. Concepções acerca do Multiculturalismo e Direitos Humanos
Seria contraditoriamente ilógico iniciar a discussão sobre Multiculturalismo e Direitos
Humanos, sem antes abordar o conceitos de ambos, bem como nasceu tais
terminologias no decorrer da história da sociedade.
Mesmo diante de novas narrativas que incluem diversas abordagens culturais,
desenvolvidas no campo das Ciências Sociais, vamos nos ater ao conceito de
multiculturalismo. Para tanto, torna-se necessário, antes de qualquer coisa,
compreendermos sobre o emprego do termo “cultura”, destacando suas definições e
como se estabelece no mundo contemporâneo.
A palavra cultura, deriva do termo germânico kultur, que desde o final do século 18,
referia-se aos aspectos espirituais de uma comunidade. Por ter sido fortemente
associada ao conceito de civilização no século XVIII, a cultura muitas vezes se
3. confunde com noções de: desenvolvimento, educação, bons costumes, etiqueta e
comportamentos de elite. Essa confusão entre cultura e civilização foi comum,
sobretudo, na França e na Inglaterra dos séculos XVIII e XIX, onde cultura se referia
a um ideal de elite.
O antropólogo Edward Tylor (1832-1917), traz notas esclarecedoras e formula o
conceito de cultura como sendo um conjunto de idéias, comportamentos, símbolos e
práticas sociais artificiais (isto é, não naturais ou biológicos) aprendidos de geração
em geração por meio da vida em sociedade. Concordando com Tylor, segue Laraia
(1999) concebendo o termo cultura como algo que estabelece todas as
possibilidades de realização humana, além de marcar fortemente o caráter de
aprendizado da cultura em oposição à idéia de aquisição inata, transmitida por
mecanismos biológicos. (Laraia, 1999, p. 25).
Machado (2002, p.18) descreve que:
Ao longo dos anos o termo “cultura” foi se modificando e somente a partir do
surgimento do vocábulo inglês culture é que foi estabelecida sua acepção
complexa, que abrange conhecimentos, crenças, arte, moral, leis, costumes
ou qualquer outra habilidade ou tradição adquiridos pelo homem, tal como
a vemos hoje.
Já Santos e Nunes (2003, p. 27) consideram que existem duas concepções de
cultura. A primeira está associada aos saberes institucionalizados pelo Ocidente,
sendo definida como o melhor que a humanidade produziu, baseia-se “em critérios
de valor, estéticos, morais ou cognitivos que, definindo-se a si próprios como
universais, suprimem a diferença cultural ou a especificidade histórica dos objetos
que classificam.” A segunda concepção, citada pelos autores, define acultura como
totalidades complexas, sendo esta, evidenciada nas distinções entre diversas
culturas, em diferentes lugares e em períodos diferenciados.
Estes padrões complexos, tornaram-se relevantes à partir da década de 80, fazendo
com que os estudos culturais, tanto nas sociedades nacionais, locais e espaços
globais(internacionais) aumentassem. Dessa forma, a cultura tornou-se “um conceito
estratégico central para a definição de identidades e de alteridades no mundo
contemporâneo, um recurso para a afirmação da diferença e da exigência do seu
4. reconhecimento e um campo de lutas e de contradições”(Santos e Nunes, 2003, p.
28).
É nesse contexto contemporâneo que surge o termo multiculturalismo. Santos e
Nunes (2003, p.27 – 33) designa o multiculturalismo como sendo “a coexistência de
formas culturais ou de grupos caracterizados por culturas diferentes no seio de
sociedades modernas”. Afirmam ainda que, o multiculturalismo se tornou um modo
de descrever as diferenças culturais em um contexto transnacional e global, sendo
associado a projetos e conteúdos emancipatórios e contra hegemônicos baseados
em lutas pelo reconhecimento da diferença.
Conclui-se neste primeiro momento que, no multiculturalismo há uma mescla de
culturas, de visões de vida e valores.
Associado ao multiculturalismo atrela-se os Direitos Humanos, que é um fenômeno
recente na historia mundial, consolidando-se a partir da II Guerra Mundial, no
entanto, muito debatidos ao longo dos anos por diversos cientistas.
O elevado número de tragédias humanas ocorridas a partir da segunda metade do
século XX impõe uma conscientização permanente sobre a capacidade de
destruição do ser humano, sendo instaurado o sistema internacional de proteção aos
direitos humanos. Como sintetiza a Flávia Piovesan:
“No momento em que os seres humanos se tornam supérfluos e
descartáveis, no momento em que vige a lógica da destruição, em que
cruelmente se abole o valor da pessoa humana, torna-se necessário a
reconstrução dos direitos humanos, como paradigma ético de restaurar a
lógica do razoável.” (PIOVESAN, 2006, p.13)
Bobbio citado por Piovesan refere que os direitos humanos não nascem de uma vez
e nem de vez por todas, mas de reivindicações morais.
5. Destarte, em 10 de dezembro de 1948, a Assembleia Geral das Nações Unidas
proclama a Declaração Universal dos Direitos Humanos2
, sendo um documento
marcante na história dos direitos humanos.
É neste contexto, que analisarei as considerações dos autores Boaventura de
Souza3
Santos e Flávia Cristina Piovesan4
sobre a temática em referência.
3. Reflexões sobre Multiculturalismo e Direitos Humanos da perspectiva de
Piovesan e Santos
Flávia Cristina Piovesan em seu texto “Ações afirmativas da perspectiva dos Direitos
Humanos” desenvolve uma análise sobre as ações afirmativas sob a perspectiva
dos direitos humanos, tratando inicialmente sobre a concepção dos direitos
humanos, introduzida na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, com
ênfase na universalidade, indivisibilidade e interdependência dos direitos humanos,
sendo apreciadas, posteriormente, as ações afirmativas da perspectiva dos direitos
humanos, com destaque dos valores da igualdade e diversidade e por fim, são
avaliadas as perspectivas e desafios para a implementação da igualdade étnico-
racial na ordem contemporânea.
Inicia seu ensaio, trazendo concepções histórias sobre os Direitos Humanos. Cita
então, Noberto Bobbio (1988) e Hannah Arendt(1979), descrevendo os direitos
humanos, respectivamente, como algo que não nascem de uma vez e nem todos ao
mesmo tempo e também como algo em processo de construção e reconstrução.
Realça que a Declaração de 1948, inovou ao introduzir uma concepção
contemporânea dos direitos humanos, marcados pela universalidade – esta
2
A Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) foi elaborado por representantes de diversas origens
jurídicas e culturais de todas as regiões do mundo, sendo proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas
em Paris, em 10 de Dezembro de 1948, através da Resolução 217 A(III) da Assembleia Geral como uma norma
comum a ser alcançada por todos os povos e nações. Ela estabelece pela primeira vez, a proteção universal dos
direitos humanos . Fonte: http://www.dudh.org.br/declaracao/
3
SANTOS, Boaventura de Sousa. Por uma concepção multicultural de Direitos Humanos. In: Reconhecer para
libertar: os caminhos do cosmopolitismo cultural. Rio de Janeiro: Civlizacao Brasileira, 2003.
4
PIOVESAN, Flavia C. Ações afirmartivas da perspectiva dos Direitos Humanos. Cadernos de Pesquisa, v.35,
n.124, p.43-55, jan./abr.2005.
6. relacionada a extensão universal dos direitos humanos, considerando o ser humano
como ser moral, dotado de unicidade existencial e dignidade – e indivisibilidade –
que é quando o catálogo dos direitos civis e políticos é conjugado ao catálogo dos
direitos econômicos, sociais e culturais. Sendo assim a Declaração de 1948 confere
o incurso do discurso liberal e o discurso social da cidadania.
A autora enfatiza que o processo de universalização, permitiu a formação de um
sistema internacional (global) de Direitos Humanos. Ao lado do sistema global,
surgem os sistemas regionais de proteção, sendo esses sistemas complementares,
voltados a proteção dos direitos fundamentais.
O inicio da proteção dos direitos humanos, segundo Piovesan (2005, p.46), foi
marcado pela proteção geral, expressando o temor a diferença (que no nazismo
havia sido orientada para o extermínio) com base na igualdade formal. Percebe-se
então que, a Declaração de 1948 foi movida por interesses, voltados ao capitalismo
hegemônico.
Em concordância com Piovesan, Boaventura de Souza Santos (2003) afirma que na
historia dos direitos humanos, no período pós Segunda Grande Guerra, não seria
difícil concluir que as politicas de direitos humanos estariam ao serviço dos
interesses econômicos e geopolíticos dos Estados capitalistas hegemônicos.
Nesse contexto o indivíduo era tratado genericamente, onde se compreende que a
questão da universalidade foi caracterizada como preponderantemente sendo
especifica da cultura ocidental.
Diante dos fatos, Piovesan ressalta sobre a importância de conferir a determinados
grupos uma proteção especial e particularizada, em face de sua própria
vulnerabilidade. Isso significa que a diferença não mais seria utilizada para a
aniquilação de direitos, mas, ao revés, para sua promoção. Ao lado do direito à
igualdade, surge também, como direito fundamental, o direito à diferença.
No que tange a concepção da igualdade, a autora destaca três vertentes: a)
igualdade formal, reduzida à fórmula “todos são iguais perante a lei” (que no seu
7. tempo foi crucial para a abolição de privilégios); b) igualdade material,
correspondente ao ideal de justiça social e distributiva (igualdade orientada pelo
critério socioeconômico); e c) igualdade material, correspondente ao ideal de justiça
como reconhecimento de identidades (igualdade orientada pelos critérios gênero,
orientação sexual, idade, raça, etnia e demais critérios).
Do mesmo modo, Boaventura de Souza Santos (2003) afirma que apenas a
exigência do reconhecimento da diferença e da redistribuição permite a realização
da igualdade. Acrescentando:
...temos o direito a ser iguais quando a nossa diferença nos inferioriza; e temos o
direito a ser diferentes quando a nossa igualdade nos descaracteriza. Daí a
necessidade de uma igualdade que reconheça as diferenças e de uma diferença que
não produza, alimente ou reproduza as desigualdades. (p.56)
Com vistas a trabalhar as diferenças, em 1965, as Nações Unidas aprovam a
Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial e em
1979, Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra
Mulher, com o âmbito de enfrentar a problemática da discriminação.
A autora então destaca duas estratégias para trabalhar a discriminação, no âmbito
do Direito Internacional dos Direitos Humanos. Sendo a primeira repressiva punitiva
– visa punir, proibir e eliminar a discriminação – e a segunda, promocional – visa
promover, fomentar e avançar a igualdade. Sendo fundamental conjugar a vertente
repressiva punitiva com a vertente promocional. Isto é, para assegurar a igualdade
não basta apenas proibir a discriminação, mediante legislação repressiva. São
essenciais as estratégias promocionais capazes de estimular a inserção e inclusão
de grupos socialmente vulneráveis nos espaços sociais.
Nesse sentido, declara que as ações afirmativas nascem como poderoso
instrumento de inclusão social, já que constituem medidas especiais e temporárias
que, buscam remediar um passado discriminatório, acelerando o processo de
alcance da igualdade pelos grupos vulneráveis, como as minorias étnicas e raciais,
assegurando a diversidade e a pluralidade social.
8. Ao destacar as perspectivas e desafios para implementação da igualdade étnico-
racial na ordem contemporânea, enfatiza a necessidade de adotar medidas punitivas
e promocionais que propiciem o direito a igualdade. Reitera que a Convenção sobre
a Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial existentes no Brasil
aponta para essas medidas.
Para tanto, conclui seu ensaio, enfatizando que a implementação do direito à
igualdade racial há de ser um imperativo ético-político-social, capaz de enfrentar o
legado discriminatório que tem negado à metade da população brasileira o pleno
exercício de seus direitos e de liberdades fundamentais.
Trabalhando com a mesma temática, Boaventura de Souza Santos questiona se
poderá os direitos humanos ser uma politica simultaneamente cultural e global?
Essa pergunta refere-se a um questionamento “utópico” do autor em seu texto “Por
uma concepção multicultural dos Direitos Humanos”. Ele propõe uma nova
perspectiva de direitos humanos, posicionando-se contrário à perspectiva dominante
atual, que não confere direitos humanos universais, mas requerendo direitos
humanos que priorizem as particularidades de comunidades multiculturais num
contexto global.
Santos (2003) inicia seu artigo enfatizando sobre a evidencia dos Direitos Humanos
à partir da Segunda Guerra Mundial, como uma politica progressista, que utilizava
de violações dos direitos humanos em prol do desenvolvimento. No entanto, refere
que para entender o funcionamento desses direitos, alocados dentro de uma politica
progressista e emancipatória, torna-se necessário compreender três tensões
dialéticas: 1) a crise dos modelos de emancipação e regulação social; 2) entre o
Estado e a Sociedade Civil e 3) entre o Estado-nação e a globalização.
Ao tratar das tensões entre a crise dos modelos de emancipação e regulação social,
defende que os direitos humanos passam a ser uma ferramenta para solucionar a
crise de modelos, estes que depois da década de 60 deixaram de ser opostos para
ser um problema em conjunto; a sociedade já não deseja apenas um Estado
regulador ou uma revolução social, mas algo que esteja entre os dois âmbitos.
9. Já na relação entre o Estado e a Sociedade, a tensão se dá a partir do momento em
que a sociedade civil se une de forma a exigir do Estado que ele cumpra o seu papel
de regulamentador de maneira legal. Os direitos humanos aparecem como um
equilíbrio da questão, já que este é o fruto das lutas sociais e garantido pelo Estado,
o protetor dessa sociedade.
Na terceira tensão – entre o Estado-nação e a globalização – a ideia de sociedade
global está, aos poucos, sobrepondo o sistema interestatal. Com isso, os direitos
humanos deixariam de agir nas particularidades culturais de cada Estado-nação e
passam a serem direitos universais.
O autor busca compreender tal politica progressista de direitos humanos a partir do
âmbito global e da legitimidade local.
Para tanto, define por globalização como um processo pelo qual determinada
condição ou entidade local estende sua influencia a todo o globo e, ao fazê-lo,
desenvolve a capacidade de designar como local outra condição social ou entidade
rival.
Trabalha-se com esse conceito a partir do pressuposto de que a globalização não é
exatamente um universalismo de todos os elementos, mas sim, de um localismo e
por mais que a globalização pareça ter esse sentido, observa-se que cada vez mais
esse processo tem intensificado as questões dos regionalismos e do localismo.
Portanto, o autor afirma-se a uma definição de globalização mais sensível às
dimensões sociais, políticas e culturais, designada por conjuntos diferenciados de
relações sociais, que originam os fenômenos da globalização.
Nesse caso, Santos cita como exemplo a feijoada, que é tipicamente brasileira e não
perderá essa característica, apesar do fenômeno da globalização ter atingido o país.
Por isso, o autor considera que o termo localização seria tão quanto adequado
quanto globalização.
Santos discorre sobre quatro modos de produção da globalização e que dão origem
a formas distintas de globalização. A primeira forma é chamada de localismo
10. globalizado e ocorre quando um determinado fenômeno local é globalizado de forma
efetiva, como a transformação do inglês em uma língua universal.
A segunda forma é chamada de globalismo localizado e consiste no impacto de
práticas transnacionais no contexto local, as quais são quebradas e remodeladas a
fim de atender a esses imperativos transnacionais. Um exemplo pode ser os
enclaves de livre comércio ou zonas francas. Nesse contexto, a produção
internacional da globalização se dá de forma que os países centrais especializam-se
em localismos globalizados e os países periféricos em globalismos localizados.
A intensificação das interações globais pressupõe dois outros processos. O primeiro
deles é o cosmopolitismo, onde as formas predominantes de dominação não privam
Estados, regiões e grupos sociais subordinados de se organizarem a nível
transnacional para buscarem a defesa de seus interesses comuns. Tais atividades
incluem redes internacionais de assistência jurídica, organizações não
governamentais, movimentos artísticos e culturais, etc.
O segundo processo recebe a alcunha de patrimônio comum da humanidade. São
temas que ganham sentido apenas quando tratados de forma global, como por
exemplo, as questões ambientais ou questões de exploração do espaço exterior.
Ressalta que a preocupação com o cosmopolitismo e patrimônio comum da
humanidade intensificou nas últimas décadas. De semelhante modo, movimentos de
resistência liderados principalmente por países hegemônicos, surgiram em oposição
a essas duas correntes. Tais conflitos servem para corroborar a idéia de que a
globalização é “um conjunto de arenas de lutas transfronteiriças” (SANTOS, 1997,
p.18)
O autor defende que enquanto considerarem os direitos humanos universais eles
sempre serão vistos como completamente ocidentais e que para serem realmente
aceitos, e não impostos deverão ser tratados como multiculturais, pois só assim terá,
além da competência global, uma legitimidade local.
11. Assim como Piovesan, Santos confirma que o conceito atual de direitos humanos
está baseado em pressupostos ocidentais, o que leva a uma discussão sobre sua
universalidade. A Declaração Universal de 1948, por exemplo, foi elaborada apenas
por uma minoria dos povos mundiais.
Boaventura de Souza Santos também ressalta que a luta pelos direitos humanos
tem se intensificado cada vez mais em todo o mundo, onde milhares de pessoas e
ONG`s correm risco defendendo classes sociais e grupos oprimidos, geralmente por
Estados capitalistas autoritários, tendo quase sempre como fundo um discurso
anticapitalista; com isso foram surgindo conceitos de direitos humanos não
ocidentais e com mais diálogos interculturais.
O autor enumera algumas premissas para que essa transformação seja possível.
Primeiramente ele defende que o debate entre universalismo e relativismo cultural
deve ser superado, afirmando que apesar de todas as culturas serem relativas o
relativismo é incorreto: assim como toda cultura aspira a valores universais, o
universalismo cultural também deve ser condenado.
A segunda premissa é a de que todas as culturas têm uma visão de dignidade
humana, mas nem todas se encaixam nos direitos humanos e a terceira é que cada
cultura é incompleta no que corresponde a essa visão, no entanto isso é o que
permite a existência de tantas culturas diferentes, já que se alguma fosse completa
existiria apenas uma só cultura.
A terceira premissa conclui que todas as culturas são incompletas e problemáticas
em suas concepções de dignidade humana. Refere que essa incompletude provem
da pluralidade de culturas.
A quarta premissa é a de que a visão de dignidade humana de cada cultura tem
variações, umas mais amplas que as outras por exemplo. A quinta e última premissa
é que todas as culturas tendem a dividir os grupos sociais em dois princípios, o da
igualdade (hierarquia entre cidadão/estrangeiro) e o da diferença (hierarquia entre
etnias, sexo, religiões ou orientações sexuais).
12. O autor propõe uma hermenêutica diatópica, que julga ser adequado para condução
nas dificuldades a enfrentar.
Para que o diálogo intercultural possa acontecer e para que haja uma perspectiva
multicultural de direitos humanos na prática, em que as culturas se percebam
incompletas, Santos (2003) propõe a “hermenêutica diatópica”, que consiste num
procedimento hermenêutico.
A hermenêutica diatópica requer não apenas um tipo de conhecimento
diferente, mas também um diferente processo de criação de conhecimento. A
hermenêutica diatópica exige uma produção de conhecimento coletiva,
participativa, interativa, intersubjetiva e reticular, uma produção baseada em
trocas cognitivas e afetivas que avançam por intermédio do aprofundamento
da reciprocidade entre elas. (SANTOS, 2003, p. 451).
Por fim, Boaventura acredita em dois imperativos para o bom funcionamento da
hermenêutica diatópica: o primeiro é de que a versão de uma cultura que representa
o círculo mais amplo de reciprocidade deve ser escolhida; o segundo, que todas as
culturas tendem a distribuir pessoas e grupos de acordo com os princípios de
igualdade e diferença e que as mesmas têm direito de serem iguais ou diferentes
dependendo do contexto, o que é muito difícil de conseguir e manter; somente
Estados multinacionais como Bélgica e, num futuro, talvez África do Sul consiga se
aproximar dele.
Desse modo, o autor propõe uma nova perspectiva de direitos humanos. Enfatiza
que é necessário repensar as formulações teóricas atuais e realizar um diálogo com
outras comunidades do planeta.
Para ele, os direitos humanos como “localismo globalizado” não conseguem garantir
a dignidade humana nas diversas regiões culturais do mundo. A “hermenêutica
diatópica” seria capaz de transformar os direitos humanos em uma “política
cosmopolita”. Este seria o projeto de multiculturalidade dos direitos humanos
apresentado por Boaventura que reconhece o caráter utópico de tal proposta “tão
utópico quanto o respeito universal pela dignidade humana”.
Por fim, Santos (2003) afirma que o multiculturalismo emancipatório ou progressista
pressupõe que o princípio da igualdade caminha em par com o princípio do
13. reconhecimento da diferença, ou seja, todos têm direito a ser iguais quando a
diferença inferioriza e a ser diferentes quando a igualdade descaracteriza.
Sendo assim, os autores Piovesan e Santos corroboram sobre a necessidade de
politicas de igualdade que reconheçam a diferença e enfatizam sobre a importância
de se adotar medidas promocionais que transformem os direitos humanos em uma
politica cosmopolita, orientada a construção de uma sociedade democrática, plural,
humana, que articule politicas de igualdade com politicas de identidade. (CANDAU,
2008, p. 54).
4. Considerações finais
No contexto hegemônico de globalização neoliberal em que vivemos, a
concretização de direitos humanos multiculturais ainda é muito complexa. Desse
modo, a perspectiva ocidental de direitos humanos precisa passar por uma
reconceituação, com vistas a garantir politicas de reconhecimento do direito a
diferença igualitárias.
O projeto universal de Direitos Humanos impôs a sociedade valores individuais.
Diante disso, muitas lutas emancipatórias e reivindicações multiculturais foram
estabelecidas no cenário mundial.
Nesse cenário, o multiculturalismo se configura então, como instrumento de
reconhecimento e a valorização da diversidade cultural.
Sendo assim, a luta pelo reconhecimento das diferenças, requer então, que os
espaços e as relações sociais capitalistas sofram transformações e substituições em
seus “topoi”, de acordo com Boaventura de Souza Santos, buscando a construção
de um espaço multicultural, permeado por lutas multiculturais, onde a igualdade
esteja aliada a diversidade, construídos com a participação de todos.
5. Referências
14. CANDAU, Vera Maria. Direitos humanos, educação e interculturalidade: as tensões
entre igualdade e diferença. Revista Brasileira de Educação, v.13, n.37, jan./abr.
2008. Pg. 45-56.
LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Editor, 1999.
MACHADO, Cristina Gomes. Multiculturalismo: muito além da riqueza e da
diferença. Rio de Janeiro: DP&A, 2002.
ONU. Assembléia Geral das Nações Unidas de 1948. Declaração Universal dos
Direitos Humanos. Disponível em: <http://www.dudh.org.br/declaracao/> Acesso
em: 06 nov. 2014.
PIOVESAN, Flavia C. Ações afirmativas da perspectiva dos Direitos Humanos.
Cadernos de Pesquisa, v.35, n.124, p.43-55, jan./abr.2005
_________, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 7ª
ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 116- 118.
SANTOS, Boaventura de Sousa. Por uma concepção multicultural de Direitos
Humanos. In: Reconhecer para libertar: os caminhos do cosmopolitismo cultural.
Rio de Janeiro: Civlizacao Brasileira, 2003.
__________. NUNES, João Arriscado. Introdução: para ampliar o cânone do
reconhecimento, da diferença e da igualdade. In: Reconhecer para libertar: os
caminhos do cosmopolitismo multicultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2003.