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Na manhã de 26 de agosto de 1660, a França está em festa: o jovem e recém-empossado Rei Luís
XTV faz sua entrada triunfal em Paris. Enfim, o país emerge da sangrenta época de hostilidades durante
a qual seis exércitos se enfrentaram sobre seu solo. Ao lado do rei, o cardeal e ministro Mazarino
também marcha vitorioso. O casamento que engendrou para o rei com a infanta espanhola Maria Teresa
consagra a aliança com a nação vizinha e importante rival. A paz se consolida... ou quase. Nas cidades e
no campo, o povo, grato pelo fim dos conflitos, esquece as desventuras para aclamar o novo rei e sua
rainha.
Todos têm motivo para festejar, menos Angélica. Enquanto a França comemora o advento de uma
nova era, para ela tem início um período de sofrimento e privações. Seu marido, desaparecido numa
nuvem de mistério, está preso incomunicável na Bastilha, onde aguarda julgamento. A ordem de prisão
foi assinada pelo próprio rei. Em segredo, Joffrey, o marido, corre o risco de ser esquecido para sempre
nas masmorras da famigerada fortaleza-presídio.
"O amor", sibila o devasso marquês, "é o preço cobrado às damas formosas nos corredores do
Louvre."
De um momento para outro, Angélica viu-se arrancada do esplendor da corte de Luís XIV e atirada no
mais negro infortúnio. O marido a quem tanto amava caíra em desgraça perante a Inquisição e
desaparecera nas masmorias da Bastilha, tendo todos os seus bens confiscados.
Com o coração partido, abandonada à própria sorte numa Paris estranha e hostil, a garota rebelde de
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Monteloup esvaía-se na dor de seu desamparo. Por conhecer um terrível segredo de Estado, tornara-se
alvo de uma conspiração, que visava silenciá-la. Seus inimigos eram poderosos e ela estava sozinha.
Do desespero nascia uma nova Angélica, sem as doçuras e ingenuidades do passado. Agora, resistente
à adversidade e cruel com os homens, seria implacável como a fatalidade que decidira seu destino.
O suplício de Angélica
Anne e Serge Golon
Título: O suplício de Angélica
Autor: Anne e Serge Golon
Título original:
Dados da Edição: Editora Nova Cultural 1989
Publicação original:
Gênero: Romance Histórico
Digitalização e correção: Nina
Estado da Obra: Corrigida
Primavera de 1660. Angélica e o marido, o Conde Joffrey
de Peyrac, haviam deixado o Palácio da Gaia Ciência,
em Toulouse, e seguido em direção à cidadezinha de
Saint-Jean-de-Luz, na fronteira espanhola ao sul da França.
Ali, às margens do Rio Bidassoa, assistiriam, junto com
toda a nobreza francesa, ao casamento de Luís XIV com a
infanta Maria Teresa, filha de Filipe IV da Espanha.
Em sua comitiva, além de Florimond, o filhinho de um
ano de idade, o casal levara a indispensável ama Margarida,
o criado negro Kuassi-Ba, quatro músicos e o cabeleireiro
Francisco Binet. Também os acompanhavam, à frente do
restante da criadagem, o Marquês Bernardo d'Andijos,
primeiro gentil-homem da casa, e o Barão Cerbalaud.
OS CORREDORES DO LOUVRE (maio a setembro de 1660)
CAPÍTULO I
Recepção do rei em Saint-Jean-de-Luz
—É demais! Estou consumida de dor e ainda tenho que estar rodeada de pessoas néscias. Se não
tivesse consciência de minha
posição, lançar-me-ia do alto deste balcão para pôr fim à minha existência!
Essas palavras amargas, emitidas com voz lancinante, fizeram com que Angélica corresse para o
balcão de seu próprio aposento. Viu, inclinada sobre o corrimão de uma sacada fronteira, uma mulher
alta, em traje de noite, com o rosto mergulhado num lenço.
Uma dama aproximou-se da que continuava soluçando, mas a outra começou a agitar os braços como
um moinho de vento.
— Idiota! Idiota! Deixe-me em paz! Graças à sua estupidez nunca estarei pronta. Aliás, não tem
nenhuma importância. Estou de luto, resta-me apenas encerrar-me na minha dor. Que me importa estar
penteada como um espantalho?
Esguedelhou sua basta cabeleira e mostrou o rosto regado de lágrimas. Era uma mulher de uns trinta
anos, com belos traços aristocráticos, mas um tanto emurchecida.
— Se a Sra. de Valbon está doente, quem vai pentear-me? — insistiu, dramaticamente. — Todas
vocês têm as mãos mais pesadas que um urso da feira de Saint-Germain!
— Senhora!... — interveio Angélica.
Os dois balcões eram muito próximos um do outro, naquela rua estreita de Saint-Jean-de-Luz, com
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palacetes repletos de corte-saos. Cada um se inteirava do que acontecia nos alojamentos visi-nhos.
Entretanto, mal rompia a aurora, cor de aniseta, já a cidade zumbia como uma colmeia.
— Senhora — insistiu Angélica —, posso ser-lhe útil? Vejo que está com dificuldades com o seu
toucado. Tenho aqui um cabeleireiro hábil, com seus ferros e diversos pós. Está à sua disposição. A
dama enxugou o nariz longo e vermelho e soltou profundo suspiro.
— Você é sumamente amável, minha cara. Aceito seu oferecimento. Nada pude conseguir de
minhas criadas esta manhã. A chegada dos espanhóis tornou-as tão loucas como se se encontrassem
num campo de batalha de Flandres. E no entanto pergunto-lhe: que é o rei da Espanha?
— É o rei da Espanha — disse Angélica rindo.
— Mas se formos ver sua família, não vale a nossa em nobreza. Já se sabe, estão carregados de
ouro, mas são comedores de rába-nos, mais antipáticos do que corvos.
— Oh, senhora! Não me esfrie o entusiasmo. Estou ansiosa por conhecer todos esses príncipes!
Dizem que o Rei Filipe IV e sua filha, a infanta, vão chegar hoje à margem espanhola.
— E possível. Em todo caso, eu não poderei saudá-los, pois nesta marcha não acabarei de me
arrumar.
— Tenha paciência, senhora. Dê-me só o tempo necessário para vestir-me decentemente e lhe
mandarei o meu cabeleireiro.
Angélica voltou precipitadamente ao seu aposento, onde reinava indescritível desordem. Margarida e
as outras criadas acabavam de dar os últimos retoques ao luxuoso traje de sua patroa. Os baús estavam
abertos, bem como os estojos de jóias, e Florimond, com as nádegas à mostra, engatinhava feliz entre
aqueles esplendores.
"Preciso que Joffrey me diga que jóias devo usar com este traje de tecido de ouro", pensou Angélica,
tirando o chambre e vestindo uma roupa simples e um manto.
No pavimento térreo encontrou o Sieur Francisco Binet, que havia passado a noite frisando o cabelo
de algumas damas tolosa-nas, amigas de Angélica, e até das criadas que desejavam embelezar-se.
Apanhou sua bacia de cobre, para o caso de ter de barbear algum cavaleiro, e sua caixa de pentes,
ferros, pomadas e trancas postiças e, acompanhado de um rapaz que levava o aquecedor, entrou atrás de
Angélica no prédio vizinho.
Este estava ainda mais cheio que o palacete em que o Conde de Peyrac havia sido acolhido por uma
parenta afastada.
Angélica reparou na bonita libre dos domésticos e pensou que a dama chorosa devia ser pessoa de alta
linhagem. Na dúvida, fez uma profunda reverência quando se encontrou diante dela.
— Você é encantadora — disse a dama com ar tristonho, enquanto
o cabeleireiro dispunha seus instrumentos sobre um tamborete. — Se não fosse por sua causa, eu teria
estragado o rosto de tanto chorar.
— Este não é um dia para se chorar — protestou Angélica.
— Que quer, minha cara? Não sinto entusiasmo por essas comemorações.
Fez um pequeno gesto de desconsolo.
— Não viu meu traje negro? Acabo de perder meu pai.
— Oh! Sinto-o muito...
— Tanto nos detestávamos e discutíamos que isso aumenta o meu pesar. Mas que aborrecimento por
estar de luto justamente agora! Conhecendo o caráter maligno de meu pai, suspeito que...
Interrompeu-se para mergulhar o rosto no cone de papelão que Binet lhe apresentou enquanto lhe
enchia a cabeleira de pó perfumado. Angélica espirrou.
— ... suspeito que o fez de propósito — continuou a dama tirando o rosto do cone.
. — Fez; de propósito? O quê, senhora?
— Morrer, é claro! Mas não importa. Esqueço tudo. Digam o que disserem, sempre tive uma alma
generosa. E meu pai morreu cristãmente... É um grande consolo. O que me desgosta é que tenham
levado seu corpo para Saint-Denis com apenas alguns guardas e alguns capelães, sem pompa nem
despesa... Parece-lhe admissível?
— De maneira alguma — confirmou Angélica, que começava a ter medo de cometer uma tolice.
Aquele nobre enterrado em Saint-Denis não podia pertencer senão à família real. A menos que - não
houvesse entendido bem...
— Se eu estivesse lá, as coisas se teriam passado de outro modo, pode crer — concluiu a dama,
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erguendo altivamente o queixo. —Gosto do fausto e que cada um procure honrar sua linhagem.
Calou-se para se mirar no espelho que Francisco Binet lhe apresentava de joelhos, e seu rosto se
iluminou.
— Está ótimo! — exclamou. — Penteado perfeito e encantador! Seu cabeleireiro é um artista,
querida. Não ignoro, entretanto, que tenho um cabelo difícil de pentear.
— Vossa Alteza tem o cabelo fino, mas flexível e abundante — disse o cabeleireiro em tom doutorai.
— Com uma cabeleira dessa qualidade é que se podem compor os mais belos penteados.
— Deveras? O senhor me lisonjeia. Vou mandar que lhe dêem cem escudos. Senhoras!... Senhoras!
É absolutamente necessário que este homem frise o cabelo das pequenas.
De um quarto vizinho, onde parolavam damas de honor e camareiras, vieram as "pequenas", duas
criaturas na idade ingrata.
— Suas filhas, sem dúvida, senhora? — perguntou Angélica.
— Não, minhas irmãzinhas. São insuportáveis. Olhe a menor; só tem de bonito a cútis, e encontrou
um meio de se fazer picar por essas moscas a que chamam pernilongos. Veja como está inchada. E
ainda por cima chora.
— Sem dúvida está triste pela morte do pai.
— Nada disso. Mas disseram-lhe muitas vezes que se casaria com o rei. Só a chamavam
"rainhazinha". E agora sofre porque ele se casa com outra.
Enquanto o cabeleireiro se ocupava das adolescentes, ouviu-se um rumor de passos na estreita escada,
e um senhor jovem apareceu na ombreira. Era de muito baixa estatura, com um rosto de boneca a
emergir de um espumoso papo de rendas. Levava também folhos de renda nas mangas e nos joelhos.
Apesar da hora matinal, estava trajado com grande esmero.
— Minha prima — disse com voz amaneirada —, ouvi dizer que havia em seu apartamento um
cabeleireiro que faz maravilhas.
— Ah! Filipe, você é mais astuto que uma mulher bonita, quando se trata de colher notícias desta
natureza! Diga-me, ao menos, que me acha bela.
O cavaleiro franziu os lábios vermelhos e carnudos, e, semicerrando os olhos, examinou o penteado.
— Devo reconhecer que esse artista tirou de seu rosto melhor partido do que se poderia esperar —
disse com insolência temperada por um sorriso coquete.
Voltou à antecâmara e inclinou-se sobre a balaustrada.
— De Guiche, meu querido, suba. É aqui mesmo.
No gentil-homem que entrava, um belo moço muito trigueiro e de compleição bem-feita, Angélica
reconheceu o Conde de Guiche, filho mais velho do Duque de Gramont, governador de Béarn. Filipe
tomou o braço do Conde de Guiche e inclinou-se terna-mente sobre seu ombro.
— Oh, como estou feliz! Certamente vamos ser os mais bem penteados da corte. Péguilin e o
Marquês d'Humières empalidecerão de inveja. Vi-os pressurosos à procura de seu barbeiro, que Vardes
lhes arrebatara graças a uma bolsa recheada. Esses gloriosos capitães dos gentis-homens de bico de
corvo vão se ver obrigados a comparecer diante do rei com o mento feito ouriço de castanha.
Lançou um risinho agudo, passou a mão pelo queixo barbeado e, depois, com gesto gracioso,
acariciou a face do Conde de Guiche. Apoiava-se no jovem com enlevo e dirigia para ele um olhar
langoroso. O Conde de Guiche, sorrindo com fatuidade, recebia aquelas homenagens sem o menor
acanhamento.
Angélica nunca tinha visto dois homens entregarem-se a tais manifestações, o que a deixava meio
constrangida. Aquilo tampouco devia agradar à dona do apartamento, pois súbito exclamou:
— Oh! Filipe, não venha entregar-se aqui a tais denguices! Sua mãe me acusaria de favorecer seus
instintos perversos. Depois daquela festa em Lyon, em que nos fantasiamos, você, eu e a Srta. de
Villeroy, de camponesas bretãs, ela tem-me atormentado com as suas censuras. E não me diga que o
pequeno Péguilin se encontra em apuros, porque mandarei um homem buscá-lo. Vou ver se o encontro.
E o jovem mais notável que conheço, e muito o estimo.
A sua maneira ruidosa e impulsiva, precipitou-se de novo para o balcão, mas retrocedeu logo, com
uma das mãos sobre o volumoso peito.
— Ah, meu Deus, aí está ele!
— Péguilin? — indagou o pequeno gentil-homem.
— Não. É esse cavaleiro de Toulouse que me causa tanto medo. Angélica, por sua vez, chegou à
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sacada e viu o Conde de Pey-
rac, seu marido, que descia a rua acompanhado de Kuassi-Ba.
— Oh! É o Grande Coxo do Languedoc! — exclamou Filipe, que se havia reunido a elas. — Minha
prima, por que o teme? Tem os olhos dulcíssimos, a mão acariciadora e o espírito cintilante.
— Você fala como uma mulher — disse a dama com asco. — Parece que todas as mulheres estão
loucas por ele.
— Exceto você.
— Eu nunca me extraviei em sentimentalismos. Vejo o que vejo. Não lhe parece que esse homem
sombrio e claudicante, com esse mouro negro como o inferno, tem qualquer coisa de aterrador?
O Conde de Guiche punha olhares espantados em Angélica e por duas vezes chegou a abrir a boca.
Ela fez-lhe sinal para que nada dissesse. Aquele diálogo a divertia muito.
— Precisamente, você não sabe olhar para os homens com olhos de mulher — respondeu o jovem
Filipe. — Lembre que esse nobre negou-se a dobrar o joelho diante do Sr. d'Orléans e isso basta para
arrepiar-lhe.
— É verdade que demonstrou então rara insolência...
Naquele momento, Joffrey ergueu os olhos para o balcão. Deteve-se e, tirando o chapéu emplumado,
saudou várias vezes profundamente.
— Veja como é injusto o rumor público — disse o Petit Mon-sieur. — Dizem que esse homem é
cheio de orgulho e, no entanto... É possível saudar com mais graça? Que pensa disso, meu querido?
— O Sr. Conde de Peyrac é reconhecidamente cortês — apressou-se a responder De Guiche. —
Haja vista a maravilhosa recepção que tivemos em Toulouse.
— Ao rei até molestou um pouco. O que não impede que Sua Majestade esteja muito impaciente por
saber se a mulher do tal coxo é tão bela como dizem. Parece-lhe inconcebível que alguém o possa
amar...
Angélica retirou-se mansamente; levando para um lado Francisco Binet, beliscou-lhe a orelha.
— Seu amo está de volta e vai chamá-lo. Não se deixe comprar pelos escudos dessa gente; do
contrário, far-lhe-ei moer de pancadas.
— Fique tranqüila, senhora. Quando acabar o meu trabalho com esta jovem, saio correndo.
Angélica desceu e voltou para sua residência. Ia pensando que estimava o tal Binet, não só por seu
bom gosto e habilidade, mas também por sua astúcia sutil, por sua filosofia de subalterno. Dizia que
chamava "alteza" a todas as pessoas da nobreza para estar certo de não ofender a ninguém.
No quarto, cuja desordem tinha piorado, Angélica encontrou seu marido com uma toalha ao pescoço,
esperando já o barbeiro.
— Muito bem, daminha! — exclamou. — Estou vendo que você não perde tempo. Deixo-a meio
adormecida, para ir em busca de notícias e inteirar-me da ordem das cerimônias, e uma hora mais tarde
encontro-a familiarmente instalada em um balcão entre a Du-quesa de Montpensier e Monsieur, o irmão
do rei.
— A Duquesa de Montpensier! A Grande Mademoiselle! — exclamou Angélica. — Meu Deus!
Deveria tê-lo suspeitado quando falou de seu pai, enterrado em Saint-Denis.
Enquanto se despia, Angélica contou como tinha feito conhecimento fortuitamente com a célebre
frondista, a velha donzela do reino, que agora, falecido seu pai, Gastão d'Orléans, era a mais rica
herdeira da França.
— Suas irmãzinhas são apenas meias irmãs, as Srtas. de Valois e d'Alençon, que devem segurar a
cauda da rainha na cerimônia do casamento. Binet também as penteou.
O barbeiro surgiu esbaforido e começou a ensaboar o queixo de seu amo. Angélica estava de camisa,
mas ninguém reparava nisso. Tratava-se de acudir o mais rapidamente possível ao chamado do rei, que
pedia que todos os nobres de sua corte fossem saudá-lo naquela mesma manhã. Depois, absorvido nas
preocupações do encontro com os espanhóis, não teria tempo para as apresentações. Margarida, com a
boca cheia de alfinetes, passou a Angélica uma primeira saia de pesado tecido de ouro e depois uma
segunda, de renda de ouro, fina como teia de aranha e cujo desenho era acentuado por pedras preciosas.
— E você diz que o jovem efeminado é o irmão do rei? — interrogou Angélica. — Comportava-se
de maneira estranha com o Conde de Guiche. Dir-se-ía que estava apaixonado por ele. Oh, Joffrey! Crê
verdadeiramente que... que eles...
— Chama-se a isso amar à italiana — disse o conde rindo. — Nossos vizinhos do outro lado dos
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Alpes são tão refinados que não se contentam com os simples prazeres da natureza. Devemos-lhe, é
verdade, o renascimento das letras e das artes, mais um ministro velhaco, cuja manha nem sempre tem
sido inútil à França, mas devemos-lhes também a introdução desses costumes extravagantes. E pena que
os adote o único irmão do rei.
Angélica franziu o sobrolho.
— O príncipe disse que você tem a mão acariciadora. Gostaria de saber como ele o notou.
— Palavra? O Petit Monsieur gosta tanto de roçar-se nos homens que talvez em alguma ocasião me
tenha pedido que o ajudasse a endireitar a volta ou os punhos. Não perde oportunidade de se fazer
afagar.
— Ele falou de você em termos que quase me despertaram ciúme.
— Oh, meu bem! Se você começa a perturbar-se, logo as intrigas a afogarão. A corte é uma imensa
teia de aranha viscosa. Você se perderá nela, se não olhar as coisas com superioridade.
Francisco Binet, que era palrador como todos os de sua profissão, tomou a palavra:
— Ouvi dizer que o Cardeal Mazarino estimulou os gostos do Petit Monsieur para que ele não
fizesse sombra a seu irmão. Mandava que o vestissem de menina e fazia disfarçar da mesma maneira os
seus amiguinhos. Como irmão do rei, sempre se temeu que começasse a conspirar como o falecido Sr.
Gastão d'Orléans, que era tão insuportável.
— Você julga os príncipes muito severamente, barbeiro — disse Joffrey de Peyrac.
— O único bem que possuo é a minha língua, senhor conde. Minha língua e o direito de fazê-la
funcionar.
— Mentiroso! Tornei-o mais rico que o cabeleireiro do rei.
— E verdade, senhor conde. Mas não faço ostentação disso. Não é prudente despertar invejas.
Joffrey de Peyrac mergulhou o rosto em uma bacia de água de rosas para acalmar o ardor deixado pela
navalha. Seu rosto cicatrizado fazia que a operação fosse longa e delicada, e era necessária a mão leve
de Binet. Tirou o penteador e começou a vestir-se, auxiliado por seu camareiro e por Afonso.
Entrementes, Angélica havia enfiado um corpete de tecido de ouro e permanecia imóvel, enquanto
Margarida fixava o plastrão, verdadeira obra de arte de ouro filigranado entretecido com sedas. Uma
renda de ouro punha uma brilhante espuma em torno de seus ombros nus, dando a sua carne uma
palidez luminosa, como de porcelana translúcida. Com o tom rosado de suas faces, seus cílios e
supercílios sombreados, os cabelos ondulados que tinham o mesmo reflexo do vestido, a surpreendente
limpidez de seus olhos verdes, viu-se no espelho como um estranho ídolo feito inteiramente de matérias
preciosas: ouro, mármore, esmeraldas.
Margarida soltou de repente um grito e precipitou-se para Florimond, que levava à boca um diamante
de seis quilates...
— Joffrey, que adereço devo usar? As pérolas parecem-me demasiado modestas; os diamantes
excessivamente duros.
— Esmeraldas — respondeu o conde. — Em harmonia com os seus olhos. Todo esse ouro é
insolente, de um brilho um tanto pesado. Seus olhos o suavizam, dão-lhe vida. São precisos dois
pingentes e o colar de ouro e esmeraldas. Nos anéis poderá misturar alguns diamantes.
Inclinada sobre seus escrínios, Angélica absorveu-se na escolha das jóias. Ainda não estava entediada,
e tal profusão a arrebatava sempre.
Quando se voltou, o Conde de Peyrac colocava a espada em seu boldrié constelado de diamantes.
Olhou-o demoradamente, e um estremecimento insólito a percorreu.
— Creio que a Grande Mademoiselle não se equivoca inteiramente quando diz que você tem
aspecto aterrador.
— Seria trabalho inútil querer disfarçar meu infortúnio — disse o conde. — Se procurasse vestir-me
como um favorito, seria ridículo e lamentável. Trajo-me, portanto, de acordo com o meu rosto.
Angélica olhou aquele rosto. Era seu. Havia-o acariciado, conhecia-lhe os menores sulcos. Sorriu e
murmurou:
— Meu amor!
O conde estava inteiramente vestido de negro e prata. Seu manto de chamalote preto era velado por
uma renda de prata segura por pontos de diamantes. Deixava ver um gibão de brocado de prata ornado
com rendas negras de ponto delicadíssimo. As mesmas rendas em três folhos pendiam dos joelhos, sob
a rhingrave de veludo escuro. Os sapatos tinham fivelas de diamantes. A gravata, que não tinha forma
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de volta, mas de amplo laço, também era bordada de pequeníssimos diamantes. Nos dedos, uma infini-
dade de brilhantes e um enorme rubi.
O conde pôs na cabeça o chapéu de feltro com plumas brancas e perguntou se Kuassi-Ba se havia
encarregado dos presentes que deviam ser oferecidos ao rei para sua noiva.
O negro estava fora, em frente à porta, e era alvo da admiração de todos os basbaques, com seu gibão
de veludo cereja, seus amplos calções à turca e seu turbante, este e aqueles de cetim branco.
Transeuntes apontavam seu sabre curvo. Conduzia sobre uma al-mofada uma caixa de belíssimo
marroquim vermelho cravejado de ouro.
Duas cadeirinhas esperavam o conde e Angélica.
Foram rapidamente levados à habitação em que o rei, sua mãe e o cardeal estavam hospedados. Como
todas as de Saint-Jean-de-Luz, era uma estreita casa à espanhola, cheia de balaustradas e cor-rimões
espiralados de madeira dourada. Os cortesãos transbordavam pela praça, onde o vento do mar sacudia as
penas dos chapéus, trazendo em lufadas o cheiro salino do oceano.
Angélica sentiu o coração aos pulos quando transpôs os degraus da entrada.
"Vou ver o rei!", pensava. "A rainha-mãe! O cardeal!"
Quão perto dela tinha estado aquele jovem rei de que falava sua ama, assaltado pelas malvadas
multidões de Paris, em fuga através da França arruinada pela Fronda, levado de cidade em cidade, de
castelo em castelo, à mercê das facções dos príncipes, traído, abandonado, e finalmente vitorioso!
Agora colhia o fruto de suas lutas. E, ainda mais que o rei, a mulher que Angélica divisava no fundo da
sala, envolta em seus véus negros, com sua tez mate de espanhola, seu ar ao mesmo tempo distante e
afável, suas mãos pequenas e perfeitas, pousadas sobre o vestido escuro, a rainha-mãe, saboreava a hora
do triunfo.
Angélica e seu marido atravessaram a câmara, cujo soalho bri-
lhava. Dois negrinhos seguravam o manto da jovem, que era de um tecido de ouro frisado e cinzelado,
em contraste com o lamê brilhante da saia e do corpete. O gigante Kuassi-Ba os acompanhava. Havia
pouca luz e fazia muito calor devido à tapeçaria e à multidão. O primeiro gentil-homem da casa real
anunciou:
— Conde de Peyrac de Morens d'Irristru.
Angélica mergulhou numa reverência. Tinha o coração na garganta. Diante dela erguiam-se um vulto
negro e um vulto vermelho: a rainha-màe e o cardeal. "Joffrey deveria inclinar-se mais profundamente",
pensava. "Há pouco saudou tão belamente a Grande Mademoiselle. Mas, diante do mais poderoso,
apenas afasta um pouco o pé... Binet tem razão... Binet tem razão..."
Era tolice pensar assim no bom cabeleireiro e repetir que ele tinha razão. Por que isso?
Uma voz disse:
— Regozijamo-nos de vê-lo novamente, conde, e de poder cumprimentar... admirar sua esposa, da
qual já nos haviam falado tão bem. Mas, coisa contrária às normas, verificamos desta vez que o elogio
não alcança a realidade.
Angélica ergueu os olhos. Encontrou um olhar escuro e brilhante que a examinava com muita atenção:
o olhar do rei.
Vestido ricamente, o rei era de estatura mediana, mas conservava-se tão reto que parecia mais
imponente do que todos os seus cor-tesãos. Angélica notou-lhe a cútis ligeiramente marcada pela va-
ríola que o tinha acometido na infância. Tinha o nariz demasiadamente comprido, mas sua boca era
forte e acariciadora, sob a linha escura, apenas esboçada, de um pequeno bigode. A cabeleira castanha,
abundante, caindo em cachos, não devia nada aos artifícios das perucas. Tinha as pernas bem formadas
e as mãos harmoniosas. Sob as rendas e as fitas,.percebia-se um corpo flexível e vigoroso, adestrado nos
exercícios da caça e da ginástica.
"Minha ama diria: 'É um belo macho'", pensou Angélica. "Fazem bem em casá-lo."
Arrependeu-se logo de pensamentos tão vulgares naquele momento solene de sua existência.
A rainha-mãe quis ver o interior da caixa que Kuassi-Ba acabava de apresentar de joelhos, com a
fronte no solo, numa postura de rei mago.
Houve exclamações ante o precioso estojo de viagem, com suas caixinhas e pentes, tesouras,
colchetes, sinetes, tudo de ouro maciço e de concha de tartaruga. O oratório portátil encantou as damas
devotas do séquito da rainha-mãe. Esta sorriu e benzeu-se. O crucifixo e as duas imagens de santos
espanhóis, assim como a lamparina e o diminuto incensório, eram de ouro e prata dourada. Joffrey de
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Peyrac tinha mandado pintar por um artista da Itália 11 m rríptiro de macieira dourada que representava
as cenas da Paixão. As miniaturas eram finas, de cores delicadas. Ana d'Áustria declarou que a infanta
tinha fama de ser muito piedosa e não podia senão ficar encantada com o presente.
Voltou-se para o cardeal a fim de fazê-lo admirar as pinturas, mas este se entretinha a observar os
pequenos instrumentos do estojo, que fazia cintilar dando-lhes suaves voltas entre os dedos.
— Dizem que o ouro mana do côncavo de suas mãos, Sr. de Peyrac, como a fonte de uma rocha.
— A imagem é exata, Eminência — respondeu o conde calmamente. — Como a fonte de uma
rocha... mas de uma rocha que se teria minado com grande quantidade de mechas e de pólvora,
escavado até profundidades insuspeitadas, aluído, triturado, pulverizado. Então, efetivamente, à custa de
trabalho, suor e esforço, é possível que jorre o ouro, e até em abundância.
— Eis uma bela parábola sobre o trabalho que dá seus frutos. Não estamos acostumados a ouvir
pessoas de sua linhagem empregarem semelhante linguagem, mas confesso que isso não me desagrada.
Mazarino continuava sorrindo. Aproximou do rosto um espe-lhinho do estojo e lançou-lhe um rápido
olhar. Apesar dos cosméticos e pós com que tentava disfarçar sua pele amarelada, um suor de
debilidade brilhava em suas fontes, umedeçendo os anéis de seus cabelos sob o vermelho solidéu de
cardeal.
A enfermidade vinha-o esgotando havia longos meses. Ele pelo menos não tinha mentido quando
alegara motivo de saúde para não se apresentar em primeiro lugar perante o ministro espanhol Dom
Luís de Haro. Angélica surpreendeu um olhar da rainha-mãe ao cardeal, um olhar de mulher angustiada,
que se atormenta. Sem dúvida, tinha ardente desejo de dizer-lhe: "Não fale tanto, que se fatiga. Está na
hora de tomar a tisana".
Seria verdade que a rainha, tanto tempo desprezada por um esposo demasiadamente casto, havia
amado o italiano? Todo mundo o afirmava, mas ninguém tinha certeza. As escadas ocultas do Louvre
guardavam bem o seu segredo. Talvez somente um ser o conhecesse, e era aquele filho tenazmente
defendido: o rei. Nas cartas que trocavam, o cardeal e a rainha não o tratavam por Confidente?
Confidente de quê?
— Se houver uma oportunidade, gostaria de falar com o senhor acerca dos seus trabalhos — disse o
cardeal.
O jovem rei interveio com certa vivacidade:
— Eu também. O que me disseram deles despertou minha curiosidade.
— Estou à disposição de Vossa Majestade e de Vossa Eminência.
A audiência havia terminado. Angélica e seu marido foram saudar Monsenhor de Fontenac, que viram
entre as pessoas que acompanhavam o cardeal.
Depois dirigiram-se às altas personalidades e suas relações. Angélica tinha as costas doloridas por
causa das reverências, mas encontrava-se em tal estado de excitação e de prazer que não sentia nenhum
cansaço. Os cumprimentos que recebia não lhe deixavam dúvidas sobre o seu êxito. Era certo que ela e
o marido atraíam a atenção de todos.
Enquanto Joffrey conversava com o Marechal de Gramont, um jovem de pequena estatura mas de
semblante agradável postou-se diante de Angélica.
— Reconhece-me, ó deusa descida do carro do Sol?
— Certamente — exclamou encantada —, é Péguilin.
Imediatamente desculpou-se:
— Perdoe minha familiaridade, Sr. de Lauzun, mas, que quer? Por toda parte ouço falar de Péguilin.
Péguilin para cá, Péguilin para lá... Todos o têm tal afeição que, sem tê-lo visto novamente, acabei
aderindo.
— A senhora é adorável e enche de contentamento não só os meus olhos mas também o meu
coração. Sabia que é a mulher mais extraordinária de toda a reunião? Conheço damas que estão fazendo
em pedaços os seus leques e rasgando seus lenços, tal a inveja que lhes causou seu traje. Como estará
ataviada no dia das bodas, se começa assim?
— Oh! Nesse dia, apagar-me-ei ante o fausto dos cortejos. Mas hoje era a minha apresentação ao
rei. Ainda estou comovidíssima.
— Pareceu-lhe amável?
— Como é possível não achar amável o rei? — disse Angélica sorrindo.
— Vejo que a senhora já está bem inteirada do que se deve dizer e do que não se deve dizer na
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corte. Quanto a mim, continuo nela não sei por que milagre. Apesar de tudo, fui nomeado capitão da
companhia que denominam "os gentis-homens de bico de corvo".
— Admiro seu uniforme.
— Não me fica muito mal... O rei é um amigo encantador, mas, cuidado! E preciso não o arranhar
com muita força quando se brinca com ele.
Aproximou-se mais e disse-lhe ao ouvido:
— Sabia que por pouco não me encerram na Bastilha?
— Que foi que fez?
— Já não me recordo. Creio que tinha abraçado um pouco estreitamente a menina Maria Mancini,
da qual o rei estava loucamente enamorado. A ordem de prisão estava pronta, mas fui avisado a tempo e
atirei-me em lágrimas aos pés do rei e fi-lo rir tanto que ele me perdoou, e, em lugar de me mandar para
a negra prisão, nomeou-me capitão. Como pode ver, é um amigo encantador... quando não é nosso
inimigo.
— Por que está me dizendo isso? — perguntou subitamente Angélica.
Péguilin de Lauzun abriu o mais que pôde seus claros e expressivos olhos.
— Por nada, querida amiga.
Segurou-a familiarmente pelo braço e levou-a.
— Venha, quero apresentá-lo a uns amigos que desejam ardentemente conhecê-la.
Esses amigos, todos jovens, pertenciam ao séquito do rei. Angélica ficou encantada por se encontrar
assim ao nível das primeiras figuras da corte. Saint-Thierry, Brienne, Cavois, Ondedei, o Marquês
d'Humières, que Lauzun apresentou como seu inimigo habitual; Louvigny, segundo filho do Duque de
Gramont; todos lhe pareceram muito alegres e galantes, e estavam magnificamente vestidos. Viu
também De Guiche, ao qual continuava grudado o irmão do rei. Este lançou-lhe um olhar hostil.
— Oh, já a conheço! — disse.
E deu-lhe as costas.
— Não se ofenda, minha cara, com essas maneiras — cochichou Péguilin. — Para o Petit Monsieur
todas as mulheres são rivais, e De Guiche cometeu a imprudência de lhe dirigir um olhar amigável.
— Saiba que ele não quer que continuem a chamá-lo de Petit Monsieur — advertiu o Marquês
d'Humières. — Desde a morte de seu tio, Gastão d'Orléans, devemos chamá-lo simplesmente Monsieur.
Produziu-se um rebuliço na multidão, seguido de empurrões, e algumas mãos solícitas se estenderam
para proteger Angélica.
— Cuidado, senhores! — exclamou Lauzun levantando um dedo sentencioso. — Recordem-se de
uma espada célebre no Languedoc!
Mas os apertos eram tais que Angélica, rindo e um tanto confusa, não pôde evitar que a espremessem
entre alguns preciosos gibões enfitados e perfumados com pó de iris e âmbar.
Os oficiais da casa do rei pediam passagem para uma procissão de lacaios que conduziam bandejas e
terrinas de prata. Circulava o rumor de que Suas Majestades e o cardeal acabavam de retirar-se para
tomar uma colação e descansar das intermináveis apresentações.
Lauzun e seus amigos afastaram-se, reclamados por seu serviço.
Angélica procurou com os olhos seus conhecidos tolosanos. Havia temido encontrar-se diante da
fogosa Carmencita, mas inteirou-se de que o Sr. de Mérecourt, seu desventurado esposo, depois de
haver bebido o cálice até as fezes, se havia decidido, num assomo de dignidade, enviar sua mulher para
um convento.
Angélica começou a abrir caminho entre os grupos. O cheiro dos assados, misturado com os
perfumes, produzia-lhe enxaqueca. O calor era sufocante.
A jovem tinha bom apetite. Pensou que a manhã já devia estar muito adiantada e que, se não
encontrasse logo seu marido, voltaria sozinha ao seu hotel a fim de servir-se de um pouco de presunto e
de vinho.
As pessoas de sua província deviam ter-se reunido em casa de algumas delas para uma refeição. Não
via em redor senão rostos desconhecidos. Aquelas vozes sem acento causavam-lhe impressão inusitada.
Talvez, no transcurso dos anos passados no Lan-guedoc, houvesse também adquirido aquela maneira de
falar, cantante e rápida. Sentiu-se um tanto humilhada.
Foi parar em um canto, sob a escada, e sentou-se em um banco para tomar fôlego e abanar-se.
Decididamente, não era fácil sair daquelas casas à espanhola com seus corredores ocultos e suas portas
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falsas.
Precisamente a alguns passos, a parede recoberta de tapetes deixava aparecer uma fresta. Um cão que
vinha do outro aposento, com um osso de ave na boca, alargou a abertura.
Angélica lançou um olhar e viu a família real reunida em torno de uma mesa, em companhia do
cardeal, dos arcebispos de Bayonne e de Toulouse, do Marechal de Gramont e do Sr. de Lionne. Os
oficiais que serviam os príncipes entravam e saíam por outra porta.
O rei, em várias ocasiões, atirou para trás sua cabeleira e abanou-se com o guardanapo.
— O calor deste lugar estraga as melhores festas. __ A ilha dos Faisões é mais agradável. Sopra ali
uma brisa marinha _ disse o Sr. de Lionne.
— Aproveitarei muito pouco, porque, de acordo com a etiqueta espanhola, não devo ver minha
noiva até o dia do casamento.
— Mas irá para a ilha dos Faisões a fim de encontrar-se com o rei da Espanha, seu tio, que vai ser
seu sogro — disse-lhe a rainha. — Então firmar-se-á a paz.
Voltou-se para a Sra. de Motteville, sua dama de honor.
— Estou muito emocionada. Queria muitíssimo a meu irmão e freqüentemente troquei
correspondência com ele! Mas pense que eu tinha doze anos quando me separei dele, nesta mesma
margem, e que desde então não tornei a vê-lo.
Ouviram-se exclamações de enternecimento. Ninguém parecia recordar que esse mesmo irmão, Filipe
IV, havia sido o maior inimigo da França, e que sua correspondência com Ana d'Áustria havia feito o
Cardeal de Richelieu suspeitar dela por conluio e traição. Aqueles acontecimentos estavam distantes.
Agora todos renovavam a esperança que, cinqüenta anos antes, enchera os corações, quando às margens
daquele mesmo rio, o Bidassoa, se trocaram, entre os dois países, duas princesinhas de faces redondas,
afogadas em suas amplas golas enrocadas: Ana d'Áustria casava-se com o jovem Luís XIII, e Isabel da
França com o pequeno Filipe IV. A infanta Maria Teresa, que hoje esperavam, era filha daquela Isabel.
Angélica olhava com apaixonada curiosidade aqueles grandes do mundo em sua intimidade. O rei
comia com apetite, mas com dignidade; bebia pouco e várias vezes pediu que lhe pusessem água no
vinho.
— Palavra! — exclamou de súbito. — O mais extraordinário que vi esta manhã foi o estranho casal
vestido de negro e ouro de Tou-louse. Que mulher, meus amigos! Uma maravilha! Já me haviam dito,
mas não podia acreditar. E parece sinceramente enamorada dele. Na verdade, esse coxo me confunde.
— Confunde a todos os que se aproximam dele — disse o Arcebispo de Toulouse com acrimônia.
— Eu, que o conheço há vários anos, renuncio a compreendê-lo. Debaixo disso existe algo diabólico.
Ja volta a delirar", pensou Angélica, desanimada. Seu coração tinha pulsado agradavelmente às
palavras do rei, mas a intervenção do arcebispo revivia suas preocupações. O prelado não depunha as
armas.
Um dos gentis-homens do séquito do monarca disse com um risinho:
— Estar apaixonada pelo marido! Eis uma coisa bem ridícula. Seria bom que essa jovem
freqüentasse um pouco a corte. Fá-la-íamos perder esse tolo preconceito.
— Parece acreditar, senhor, que a corte é um lugar onde não existe outra lei senão o adultério —
protestou severamente Ana d'Àustria. — No entanto, é bom e natural que os esposos se amem. A coisa
não tem nada de ridículo.
— Mas isso é tão raro! — suspirou a Sra. de Motteville.
— Porque é raro casar-se alguém sob o signo do amor! — disse o rei em tom desiludido.
Houve um silêncio um tanto constrangido. A rainha-mãe trocou com o cardeal um olhar desolado.
Monsenhor de Fontenac ergueu uma das mãos com unção.
— Sire, não se entristeça. Se os caminhos da Providência são insondáveis, os do deusinho Eros não
o são menos. E, já que invoca um exemplo que parece tê-lo comovido, posso afirmar-lhe que esse nobre
e sua mulher nunca se tinham visto antes do dia do seu casamento, abençoado por mim na catedral de
Toulouse. Entretanto, depois de vários anos de união, coroados pelo nascimento de um filho, seu
recíproco amor fulgura diante dos olhos menos atentos.
Ana d'Áustria teve uma expressão agradecida, e o monsenhor ergueu altivamente o queixo. "Hipócrita
ou sincero?", pensava Angélica. A voz um tanto ceceosa do cardeal elevou-se de novo:
— Esta manhã pareceu-me estar em um teatro. Esse homem é feio, desfigurado, aleijado e, no
entanto, quando apareceu ao lado de sua esplêndida mulher, seguido por esse grande mouro de cetim
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branco, eu pensei: "Como são belos!"
— Isso nos distrai de tantos rostos aborrecíveis — disse o rei.
— É verdade que ele tem uma voz magnífica?
— É o que dizem e repetem.
O gentil-homem que havia falado tornou a chacotear:
— Sem dúvida, é uma história extraordinariamente comovedora, quase um conto de fadas. E preciso
vir ao Midi para ouvir semelhantes coisas.
— Oh! Está insuportável com essa mania de zombar de tudo!
— protestou mais uma vez a rainha-mãe. — Seu cinismo me desagrada, meu senhor.
O cortesão inclinou a cabeça e fingiu interessar-se pelo cão que roía um osso junto à porta. Vendo-o
dirigir-se para o lugar de seu retiro, Angélica levantou-se precipitadamente para afastar-se.
Deu alguns passos na antecâmara, mas o manto pesava-lhe muito e enganchou-se num dos puxadores
de um consolo.
Enquanto ela se inclinava para desembaraçar-se, o homem rechaçou o cão com o pé, saiu e fechou a
pequena porta disfarçada pela tapeçaria. Tendo desgostado a rainha-mãe, considerou prudente sair
sorrateiramente.
Avançou displicentemente, passou perto de Angélica e voltou-se para observá-la.
— Oh! É a mulher de ouro!...
Ela o olhou altivamente e procurou prosseguir seu caminho, mas ele barrou-lhe a passagem.
— Mais devagar! Deixe-me contemplar o fenômeno. E, então, a dama apaixonada por seu marido?
E que marido! Um verdadeiro Adônis!
Angélica o examinou com tranqüilo desprezo. Era mais alto que ela e muito bem compleicionado. Seu
rosto não era falto de beleza, mas a boca fina tinha uma expressão malvada, e seus olhos amendoados
eram amarelos com manchinh as escuras. Aquela cor indecisa, bastante vulgar, afeava-o um pouco.
Estava vestido com gosto e esmero. Sua peruca, de um louro quase branco, contrastava vivamente com
a juvenilidade de seus traços.
Angélica não pôde deixar de achá-lo bem-posto, mas disse friamente:
— Na realidade, dificilmente o senhor pode sofrer uma comparação com ele. Na minha terra, os
olhos como os seus são chamados "maçãs bichadas". Compreende o que quero dizer? E quanto aos
cabelos, os de meu marido pelo menos são verdadeiros.
Uma expressão de vaidade ferida ensombreceu a fisionomia do gentil-homem.
— E mentira! — exclamou. — Ele usa peruca.
— Dê-lhes um puxão, se tiver coragem!
Tinha-lhe tocado nos pontos sensíveis e desconfiou que ele usava peruca porque começava a
encalvecer. Mas logo ele recobrou o sangue-frio. Semicerrou os olhos até não serem mais que duas
fendas brilhantes.
— Então, procura ferir-me? Decididamente, é muita habilidade
para uma provincianazinha.
Lançou um olhar em torno; depois, segurando-a pelos pulsos, puxou-a para um canto.
— Deixe-me! — disse Angélica.
— Depois, minha bela. Agora temos que ajustar umas contazinhas.
Antes que ela pudesse prever-lhe o gesto, ele deitou-lhe a cabeça para trás e mordeu-lhe cruelmente os
lábios. Angélica soltou um grito. Sua mão moveu-se prontamente e caiu sobre a face do importuno.
Anos sacrificados às boas maneiras não haviam atenuado nela o fundo de violência rústica unida ao
vigor da saúde. Quando alguém despertava sua cólera, tornava a encontrar as mesmas reações que a
tinham feito lutar braço a braço com seus com-panheirinhos aldeões. Estalou a bofetada e ele
certamente viu estrelas, porque retrocedeu levando a mão ao rosto.
— Palavra, uma verdadeira bofetada de lavadeira!
— Deixe-me passar — repetiu Angélica —, se não quer que o desfigure tão completamente que não
poderá tornar a apresentar-se diante do rei!
O homem sentiu que ela cumpriria a promessa e recuou um passo.
— Oh! Gostaria de tê-la uma noite inteira em meu poder! — murmurou cerrando os dentes. —
Asseguro-lhe que ao amanhecer estaria domesticada, um verdadeiro frangalho.
— É isso — respondeu ela rindo. — Medite sobre sua desforra... enquanto segura a cara.
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Afastou-se, abrindo passagem rapidamente até a porta. Os apertos tinham diminuído, porque muitos
haviam ido comer alguma coisa.
Angélica, ofendida e humilhada, apertava com o lenço a boca ferida.
"Oxalá não se note demasiadamente!... Que responderei se Jof-frey me perguntar? É preciso evitar
que fure esse porco. A menos que ache graça... Seria o último a ter ilusões sobre os costumes desses
belos senhores do norte. Começo a compreender o que quer dizer quando fala de policiar as maneiras da
corte... Mas é uma tarefa a que, por minha parte, não gostaria de dedicar-me..."
Procurou descobrir sua cadeirinha e seus criados em meio ao bulício da praça.
Um braço deslizou sob o seu.
— Andava a procurá-la, querida — disse a Grande Mademoiselle, cuja alta figura acabava de surgir
a seu lado. — Agita-se-me o sangue pensando em todas as necedades que pronunciei esta manhã diante
de você sem saber quem era. Ai! Era um dia de festa, quando não se tem todas as comodidades, os
nervos se alteram e a língua fala sem que a gente o perceba.
— Vossa Alteza não tem por que preocupar-se. Não disse nada que não fosse verdade, embora não
lisõnjeiro. Não recordo senão suas últimas frases.
_- Você é a graça em pessoa. Estou encantada por tê-la como vizinha... Tornará a emprestar-me seu
cabeleireiro, não é? Tem tempo disponível? E se fôssemos trincar algumas uvas à sombra? Que lhe
parece? Esses espanhóis não chegam.
— Estou às ordens de Vossa Alteza — respondeu Angélica com uma reverência.
No dia seguinte pela manhã tiveram de ir ver o rei da Espanha comer na ilha dos Faisões. Toda a corte
se atropelava nas embarcações e molhava os lindos sapatos. As damas davam gritinhos, arrepanhando
as saias.
Angélica, vestida de verde e cetim branco bordado de prata, foi levada por Péguilin a sentar-se entre
uma princesa de semblante espiritual e o Marquês d'Humières. O Petit Monsieur, que estava entre os
espectadores, ria-se muito evocando o ar triste de seu irmão, obrigado a ficar na margem francesa. Luís
XIV não devia ver a infanta até que o matrimônio por procuração a houvesse tornado rainha na margem
espanhola. Só então iria à ilha dos Faisões para jurar a paz e levar sua fabulosa conquista. O matrimônio
verdadeiro seria celebrado em Saint-Jean-de-Luz pelo Bispo de Bayonne.
Deslizavam os barcos sobre a água tranqüila, pejados de cintilante carga. Atracaram. Enquanto
Angélica esperava sua vez de desembarcar, um dos senhores pôs o pé sobre o banco em que ela estava
sentada e com o alto tacão espremeu-lhe os dedos. Ela reteve um grito de dor. Levantando os olhos,
reconheceu o gentil-homem da véspera, que tão perversamente a molestara.
— É o Marquês de Vardes — disse a princesinha que estava a seu lado. — Naturalmente que o fez
de propósito.
— Um verdadeiro bruto! — lamentou Angélica. — Como se pode tolerar uma pessoa tão grosseira
no séquito do rei?
— Ele diverte o rei com sua insolência e, além disso, diante de Sua Majestade esconde as garras.
Mas tem fama na corte. Fizeram uma cançoneta sobre ele.
E pôs-se a cantarolar:
— Não precisa de pele de búfalo Para portar-se como um selvagem. Não esconde o sombrio focinho
Nem com a pompa nem com a roupagem. Quem diz "de Vardes" diz: "o selvagem".
— Cale-se, Henriqueta! — exclamou o irmão do rei. — Se a Sra. de Soissons a ouvir, ficará
indignada e irá queixar-se a Sua Majestade de que falam mal de seu favorito.
— Ora essa! A Sra. de Soissons já não tem valimento junto a Sua Majestade. Agora que o rei se
casa...
— Onde aprendeu, senhora, que uma esposa, embora seja a infanta, pode ter mais influência sobre
seu marido que uma antiga amante? — perguntou Lauzun.
— Oh, senhores! Oh, senhoras! — exclamou a Sra. de Mottevil-le. — Por favor! Parece-lhes
momento apropriado para tal conversa quando os grandes da Espanha já vêm ao nosso encontro?
Trigueira, seca, o rosto sulcado de rugas, misturava curiosamente seu escuro vestido e seus ares
pudibundos àquela carga de tagare-las. Talvez a presença da dama de honor de Ana d'Áustria não fosse
inteiramente fortuita. A rainha-mãe a teria encarregado de fiscalizar as palavras daquela juventude
louca, habitualmente inconsiderada, e que poderia ferir os melindres espanhóis.
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Angélica começava a cansar-se daquelas pessoas frívolas, maldizentes, e cujos vícios uma etiqueta
complicada dificilmente disfarçava.
Ouviu a morena Condessa de Soissons dizer a uma de suas amigas:
— Querida, encontrei dois corredores dos quais estou muito orgulhosa. Disseram-me que os bascos
eram mais ligeiros que o vento. Podem fazer, correndo, mais de vinte léguas por dia. Não lhes parece
que esse costume de fazer-se preceder por corredores que os anunciam e por cães que ladram e afastam
o populacho dá o ar mais importante do mundo?
Tais palavras fizeram Angélica recordar-se de que Joffrey, tão amante do fausto, não gostava,
contudo, daquela moda de corredores precedendo as carruagens.
E onde estaria ele?, pensou por associação de idéias.
Não o via desde a véspera. O conde havia voltado ao palacete a fim de trocar de roupa e barbear-se,
mas nesses momentos ela estava em casa da Grande Mademoiselle. Ela própria tivera de vestir-se três
ou quatro vezes a toda a pressa e muito nervosa. Não havia dormido senão poucas horas, mas as
libações de bom vinho que se faziam a cada momento lograram mantê-la desperta. Renunciava a
preocupar-se com Florimond; dentro de três ou quatro dias chegaria o momento de saber se as criadas
lhe haviam dado de co-
mer, em vez de correrem para admirar as carruagens e de se deixarem galantear pelos pajens e criados
do serviço do rei. Por outro lado, Margarida velava. Seu temperamento huguenote reprovava as festas e,
atenta a todos os cuidados que requeria a elegância de sua ama, dirigia severamente os domésticos que
tinha sob suas ordens.
Angélica viu finalmente Joffrey entre a multidão que se comprimia no interior da casa situada no
centro da ilha.
Caminhou até ele e tocou-o com o leque. O conde deixou cair sobre ela um olhar distraído.
— Ah! Está aqui.
— Joffrey, sinto terrivelmente sua falta. Parece que não lhe agrada ver-me. Converteu-se ao
preconceito que ridiculariza os esposos que se amam? Parece-me que se envergonha de mim.
Joffrey recobrou seu franco sorriso e estreitou-a pela cintura.
— Não, meu amor. Mas via-a em tão importante e agradável companhia...
— Oh, agradável! — fez Angélica passando um dedo sobre a mão esfolada. — Corro enorme perigo
de sair aleijada. Que fez desde ontem?
— Encontrei alguns amigos, falei com uns e outros. Viu o rei da Espanha?
— Ainda não.
— Entremos nesta sala. Estão preparando a mesa. Segundo a etiqueta espanhola, o rei deve comer
sozinho, seguindo um cerimonial muito complicado.
As paredes da sala estavam cobertas de tapetes que contavam em tons surdos, bronzeados, matizados
de vermelho e cinzento-azulado, a história do reino da Espanha. O aperto era enorme.
As duas cortes rivalizavam em luxo e magnificência. Os espanhóis levavam a palma sobre os
franceses em ouro e pedrarias, mas estes triunfavam pela forma e elegância dos trajes. Os jovens do
séquito de Luís XIV exibiam mantos de chamalote cinza cobertos de rendas de ouro seguras por pontos
cor de fogo e forrados de tecido de ouro. O gibão era de brocado de ouro. Os chapéus, guarnecidos de
plumas brancas, tinham a aba levantada de um lado e presa por um alfinete de diamantes.
Mostravam rindo os longos bigodes fora de moda dos grandes da Espanha e suas roupas carregadas de
bordados maciços e antiquados.
— Viu esses chapéus chatos com suas peninhas? — cochichou Péguilin a rir.
— E as damas? Uma série de velhas magricelas com os ossos salientes sob as mantilhas.
— Em seu país, as belas esposas estão sempre em casa, por trás das grades.
— Parece que a infanta ainda usa anquinhas com aros de ferro tão grandes que tem de pôr-se de lado
para passar pelas portas.
— E o justilho apertado a tal ponto que parece não ter seios, ela que dizem tê-los formosíssimos —
exagerou a Sra. de Motte-ville ajeitando algumas rendas sobre seu magro torso.
Joffrey de Peyrac deixou cair sobre ela seu olhar mais cáustico.
— Realmente, é preciso que os costureiros de Madri sejam muito pouco experientes para estragar de
tal maneira o que é belo, enquanto os de Paris são tão hábeis que realçam o que quase não existe.
Angélica beliscou-o por baixo da manga de veludo. Ele riu e beijou-lhe a mão com ar de
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cumplicidade. Ela suspeitou que ele ocultava uma preocupação, mas depois, distraída, não pensou mais
nisso. Subitamente todos se calaram. O rei da Espanha acabava de entrar. Angélica, que não era muito
alta, conseguiu subir em um escabelo.
— Parece uma múmia — disse Péguilin.
A cútis de Filipe IV parecia, efetivamente, de pergaminho. Aproximou-se da mesa com passos de
autômato. Seus grandes olhos tristes não piscavam. Seu queixo alongado sustinha um lábio vermelho
que, com a escassa cabeleira acobreada, acentuava seu aspecto doentio.
No entanto, cônscio de sua grandeza quase divina de soberano, não fazia gesto algum que não
correspondesse à exata obrigação da etiqueta. Tolhido pelas cadeias de seu poder, solitário em sua
pequena mesa, comia como se oficiasse.
Um rebuliço da multidão, que não cessava de aumentar, empurrou as primeiras filas para a frente. A
mesa real quase tombou.
A atmosfera tornou-se irrespirável e Filipe IV sentiu um mal-estar. Viram-no levar a mão à garganta e
afrouxar a gola de rendas. Mas em seguida voltou a assumir a postura herática como ator consciencioso
até o martírio.
— Quem diria que esse espectro fecunda com a mesma facilidade de um galo? — disse o
incorrígível Péguilin de Lauzun quando, terminada a refeição, saíram para o ar livre. — Seus filhos
naturais soltam vagidos pelos corredores de seu palácio, e sua segunda mulher não pára de trazer ao
mundo crianças raquíticas, que passam rapidamente do berço para o podredouro do Escoriai.
_ O último morreu durante a embaixada de meu pai em Madri quando foi pedir a mão da infanta —
disse Louvigny, segundo filho do Duque de Gramont. — Depois nasceu outro que tem apenas um sopro
de vida.
O Marquês d'Humières exclamou com entusiasmo:
_ Ele morrerá, e então quem será o herdeiro do trono de Carlos V? A infanta nossa rainha.
_ O senhor tem os olhos muito abertos e vê demasiadamente longe, marquês — retrucou, pessimista,
o Duque de Bouillon.
— Quem nos diz que tal porvir não foi previsto por Sua Eminência, o cardeal, e até por Sua
Majestade?
— Sem dúvida, sem dúvida, mas as ambições excessivas não são nada favoráveis à paz.
Com o longo nariz dirigido para o vento do mar, como se farejasse alguns odores suspeitos, o Duque
de Bouillon resmungou:
— A paz! A paz! Não levará dez anos para vacilar.
Não levou duas horas. Subitamente tudo pareceu perdido, pois correu o boato de que não haveria
casamento.
Dom Luís de Haro e o Cardeal Mazarino haviam esperado demasiadamente para ajustar os últimos
detalhes da paz e assentar alguns pontos nevrálgicos — aldeias, caminhos e fronteiras —'nos quais cada
um queria tirar vantagem aproveitando-se do entusiasmo das festas. Nem um nem outro queria ceder. A
guerra continuaria. Houve meio dia de expectativa angustiada. Fez-se intervir o deus Amor entre os dois
noivos, que nunca se tinham visto, e Ondedei pôde transmitir uma mensagem à infanta, em que lhe
comunicava a impaciência do rei por conhecê-la. Uma filha é onipotente sobre o coração de seu pai. Por
muito dócil que fosse, a infanta não tinha nenhum desejo de voltar a Madri, depois de haver estado tão
perto do Sol... Fez compreender a Filipe IV que ela queria seu marido, e a ordem das cerimônias,
perturbada um momento, foi restabelecida.
O matrimônio por procuração realizou-se na margem espanhola, em San Sebastián. A Grande
Mademoiselle levou Angélica. A filha de Gastão d'Orl éans, de luto por seu pai, não devia assistir a
celebração. Mas decidiu comparecer incógnita, isto é, amarrando um lenço de cetim em torno dos
cabelos e não usando pó.
A procissão através das ruas da cidade pareceu aos franceses uma estranha bacanal. Cem bailarinos
vestidos de branco, com guizos nas pernas, faziam peloticascom espadas; atrás, cinqüenta moços
mascarados faziam ressoar seus pandeiros. Seguiam-se três gigantes de vime vestidos de reis mouros e
tão altos que chegavam até o primeiro andar das casas, um enorme São Cristóvão, um espantoso dragão
maior que seis baleias e, por fim, sob um palio, o Santíssimo Sacramento, em uma custódia de ouro
gigantesca e diante da qual se ajoelhava a multidão.
Aquelas pantomimas barrocas, aquelas extravagâncias místicas estonteavam os estrangeiros.
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Na igreja, por trás do tabernáculo, uma escada se elevava até o teto, carregada de círios.
Angélica contemplava, deslumbrada, aquela sarça ardente. O forte cheiro do incenso acentuava a
atmosfera insólita, mourisca, da catedral. Na obscuridade das abóbadas e nas naves laterais via-se bri-
lharem as douradas e retorcidas colunas de três tribunas superpostas onde se amontoavam, de um lado,
os homens, e do outro, as damas.
A espera foi longa. Os padres desocupados conversavam com as francesas, e a Sra. de Motteville,
oculta na sombra, horrorizou-se mais uma vez das coisas que ouviu.
— Perdone. Déjemepasarl — disse uma rouca voz espanhola perto de Angélica.
Ela olhou ao redor e, baixando os olhos, viu uma criatura estranha. Era uma anã, tão gorda quanto
alta, e extremamente feia. Sua mão carnuda se apoiava no pescoço de um grande lebréu negro. Seguia-a
um anão, com roupas enfeitadas e uma ampla gola, mas a expressão de seu rosto era astuta, e, ao olhá-
lo, sentia-se vontade de rir.
As pessoas se afastaram para dar passagem ao diminuto par e ao animal.
— É a anã da infanta e seu bufão Tomasini — disse alguém. — Parece que os traz para a França.
— Para que necessita desses pigmeus? Na França não faltará do que rir-se.
— Ela diz que somente sua anã sabe preparar-lhe o chocolate com canela.
Lá em cima Angélica viu elevar-se uma figura pálida e imponente:
era Monsenhor de Fontenac que chegava a uma das tribunas de madeira dourada. Inclinou-se por cima
da balaustrada. Em seus olhos brilhava um fogo destruidor. Falava com alguém que Angélica não via.'
Subitamente alarmada, abriu caminho em direção do prelado. Joffrey de Peyrac, ao pé da escada,
levantava seu rosto irônico para o arcebispo.
— Recorde-se do "ouro de Toulouse" — dizia este último a meia-voz. — Quando Servílio Cipíão
saqueou os templos de Toulouse,
foi vencido como castigo de sua impiedade. Eis por que a expressão proverbial "ouro de Toulouse"
faz alusão às desgraças que trazem consigo as riquezas mal adquiridas.
O Conde de Peyrac continuava sorrindo.
__ Gosto do senhor — murmurou — e o admiro. Tem o candor e a crueldade dos puros. Vejo brilhar
em seus olhos as chamas da Inquisição. Então não me poupará?
— Adeus, senhor — disse o arcebispo com os lábios contraídos.
— Adeus, Foulques de Neuilly.
Os círios lançavam suas luzes sobre o rosto de Joffrey de Peyrac. Ele olhava ao longe.
— Que se passa agora? — cochichou Angélica.
— Nada, minha lindeza. Nossa eterna querela...
O rei da Espanha, pálido como um morto, adiantava-se pela nave central, sem aparato, levando a
infanta pela mão.
A princesa tinha uma brancura de pele conservada na penumbra dos austeros palácios madrilenhos,
olhos azuis, cabelos de seda pálida avolumados por madeixas postiças, ar submisso e tranqüilo. Mais
parecia flamenga que espanhola.
Ach aram horrível seu traje de lã branca muito pouco bordado.
O rei levou sua filha até o altar, onde ela se ajoelhou. Dom Luís de Haro, que a desposava em nome
do rei da França, estava a seu lado, mas bastante longe dela.
Quando chegou o instante do juramento, a infanta e Dom Luís estenderam o braço um para o outro,
sem se tocarem. Ao mesmo tempo, a infanta pôs a mão na de seu pai e beijou-o. Correram lágrimas
sobre as faces de marfim do soberano. A Grande Made-moiseile assoou-se ruidosamente.
CAPÍTULO II
As núpcias do rei — Desaparecimento do Conde de Peyrac
—Cantará para nós? — perguntou o rei.
Joffrey de Peyrac estremeceu. Dirigiu a Luís XIV um olhar altivo e mirou-o como teria feito com um
desconhecido que não lhe houvessem apresentado. Angélica tremeu e segurou-lhe a mão.
— Cante para mim — cochichou ela.
O conde sorriu e fez um sinal a Bernardo d'Andijos, que se precipitou para fora do salão.
Aproximava-se o término da reunião. Perto da rainha-mãe, do cardeal, do rei e de seu irmão, estava
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sentada a infanta, muito ere-ta, com os olhos baixos ante aquele esposo ao qual ia unir-se nas
cerimônias do dia seguinte. Sua separação da Espanha estava consumada. Filipe IV e seus bidalgos,
com o coração dilacerado, regressavam a Madri, deixando a infanta altiva e pura em penhor da nova
paz...
O pequeno violinista Giovanni atravessou as filas dos cortesãos e apresentou ao Conde de Peyrac sua
guitarra e sua máscara de veludo.
— Por que se mascara? — perguntou o rei.
— A voz do amor não tem semblante — respondeu Peyrac —, e quando sonham os belos olhos das
damas é preciso que nenhuma fealdade venha turbá-los.
Preludiou e começou a cantar, misturando canções antigas em língua d'oc e as copias de amor que
estavam na moda.
Por fim, erguendo sua alta figura, foi sentar-se perto da infanta e entoou um endiabrado refrão
espanhol, cortado por gritos roucos à maneira árabe, e no qual ardiam toda a paixão e o entusiasmo da
península Ibérica.
O inexpressivo rosto de nacar e rosa acabou por comover-se; as pálpebras da infanta se levantaram e
seus olhos brilharam. Certamente revivia pela última vez sua existência clausurada de pequena
divindade, entre suas aias e os anões que a faziam rir, existência calma e austera, mas familiar, em que
se jogavam cartas se recebiam visitas de religiosas que prediziam o futuro e se preparavam refeições de
confeitos e de bolos aromatizados com flor de laranjeira e violeta.
A infanta sentiu um pequeno susto ao ver em seu redor todos aqueles rostos franceses.
— O senhor nos encantou — disse o rei ao cantor. — Só desejo uma coisa, e é ter, amiúde, ocasião
de tornar a escutá-lo.
O olhar de Joffrey de Peyrac brilhou de modo estranho por trás da máscara.
— Ninguém o deseja mais que eu, sire. Mas tudo depende de Vossa Majestade, não é certo?
Angélica viu o soberano franzir ligeiramente o sobrolho.
— E verdade. Agrada-me ouvi-lo dizer isso, Sr. de Peyrac — fez um tanto secamente.
Ao voltar para casa, a uma hora muito avançada da noite, Angélica despiu-se apressadamente, sem
esperar a ajuda de uma criada, e jogou-se no leito soltando um suspiro.
— Estou derreada, Joffrey. Creio que ainda não estou preparada para a vida da corte. Como se
arranja essa gente para absorver tantos prazeres e ainda encontrar meio de se enganar mutuamente pela
noite?
O conde estendeu-se junto dela sem responder. Fazia tanto calor que o simples contato dos lençóis
incomodava. Pela janela aberta entrava a luz avermelhada das tochas que passavam pela rua, ilu-
minando até o fundo do leito, cujas cortinas haviam deixado erguidas. Em Saint-Jean-de-Luz
continuavam os preparativos para o dia seguinte.
— Se eu não dormir um pouco, cairei durante a cerimônia — disse Angélica bocejando.
Estirou-se e depois aconchegou-se ao corpo moreno e magro do marido.
Ele estendeu a mão, acariciou-lhe as ancas que luziam como alabastro na penumbra, seguiu a curva
flexível da cintura, encontrou os seios pequenos e firmes. Seus dedos fremiram, tornaram-se mais
expeditos, afagaram o ventre da mulher. Como ele tentasse uma carícia mais ousada, Angélica
protestou, meio adormecida:
— Oh, Joffrey, estou com tanto sono!
Ele não insistiu, e ela o olhou através dos cílios para ver se não estava zangado. Apoiado em um
cotovelo, ele a observava meio sorridente.
— Dorme, meu amor — cochichou.
Quando acordou, Angélica pôde acreditar que ele não se havia movido, porque continuava a
contemplá-la. Ela lhe sorriu.
O calor havia abrandado. Ainda estava escuro, mas o céu tomava uma coloração esverdeada, prelúdio
do deslumbramento da aurora. Um passageiro torpor aquietava a pequena cidade.
Ainda estremunhada, Angélica aproximou-se dele, e seus braços se encontraram, procurando uma
perfeita união.
Ele lhe ensinara o prolongado prazer, o hábil combate, com suas fintas, seus recuos, suas ousadias,
obra paciente em que os dois generosos corpos eram mutuamente transportados ao paroxismo do gozo.
Quando, afinal, se separaram, exaustos, saciados, o sol já ia alto no céu.
— Quem diria que temos em perspectiva um dia fatigante? — disse Angélica rindo.
Margarida bateu à porta.
— Senhora, senhora, está atrasada! Os coches já se dirigem para a catedral, e não vai encontrar
lugar para ver o cortejo.
O cortejo era pouco numeroso. Seis personagens iam a pé pelo caminho alcatifado.
Na frente marchava o Cardeal-Príncipe de Conti, brilhante e entusiasta, antigo herói da Fronda, cuja
presença naquele festivo dia confirmava de uma e outra parte a vontade de apagar as tristes recordações.
" Depois, o Cardeal Mazarino, em seu manto púrpura.
A certa distância avançava o rei em traje de brocado de ouro ornado de ampla renda negra. De um e
outro lado do soberano, o Marquês d'Humières e Péguilin de Lauzun, capitães das duas companhias de
gentis-homens de bico de corvo, empunhavam cada qual o bastão azul, insígnia de seu posto.
Seguia-lhes os passos a infanta, a nova rainha, tendo à direita Monsieur, irmão do rei, e à esquerda o
cavaleiro de honra, Sr. de Bernonville. O traje da rainha era de brocado de prata, e o manto de veludo
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violeta semeado de lírios. O manto, muito curto nos lados, tinha uma cauda com dez varas de
comprimento. Seguravam-no as jovens primas do rei, Srtas. de Valois e d'Alençon, e a Princesa de
Carignan. Duas damas sustentavam sobre a cabeça da soberana uma coroa fechada. O deslumbrante
grupo avançava com dificuldade pela rua estreita, ao longo da qual estavam formados suiços, guardas
franceses e mosqueteiros.
A rainha-mae, envolta em véus negros bordados de prata, seguia o par, rodeada de suas damas e de
seus guardas.
Fechando o préstito vinha a Srta. de Montpensier, a "grande estouvada do reino", o estorvo da corte,
vestida de negro, mas com vinte fileiras de pérolas.
O percurso até a igreja era curto; no entanto, produziram-se alguns incidentes. Viu-se muito bem que
Humières disputava com Péguilin.
Os dois capitães tomaram lugar na igreja de ambos os lados do rei. Com o Conde de Charost, capitão
de uma companhia de guardas, e o Marquês de Vardes, capitão-coronel dos cem suíços, acompanharam
o rei na oferenda.
Luís XIV tomou das mãos de Monsieur, que o havia recebido do grande mestre de cerimônia, um
círio com vinte luíses de ouro e o entregou a João d'01ce, Bispo de Bayonne.
Mademoiselle desempenhava em relação à jovem rainha Maria Teresa as mesmas funções de
Monsieur para com o rei.
— Não levei minha oferenda e fiz minhas reverências tão bem como qualquer outra pessoa? —
perguntou mais tarde a Angélica.
— Certamente, Vossa Alteza tinha muita majestade.
Madajioiselle envaideceu-se.
— Sirvo para as cerimônias e creio que minha pessoa, nessas ocasiões, ocupa seu posto tão bem
como meu nome no cerimonial.
Graças à sua proteção, Angélica pôde assistir de perto a todas as festividades subseqüentes: o
banquete e o baile. De noite tomou parte no longo desfile de cortesãos e nobres que foram inclinar-se,
um após outro, diante do grande leito em que se achavam estendidos lado a lado o rei e sua jovem
esposa.
Angélica viu a ambos imóveis como rígidas bonecas, deitados entre lençóis de renda, sob os olhares
da multidão.
Tanta etiqueta despojava de vida e calor o ato que ia realizar-se. Como aqueles esposos, que até ontem
não se conheciam, e que agora se achavam tesos em sua magnificência, engomados em sua dignidade,
poderiam voltar-se um para o outro a fim de estreitar-se quando a rainha-mãe, segundo o costume,
houvesse deixado cair sobre eles as cortinas do suntuoso leito? Teve pena da infanta impassível, que
diante de tantos olhares devia dissimular sua perturbação de moça. A menos que não sentisse emoção
alguma, figurante habituada desde a infância à servidão das representações. Não se
tratava senão de mais um rito. Podia-se confiar no sangue bour-bônico de Luís XIV para não
fracassar.
Ao descer a escada, os senhores e as damas trocavam pilhérias maliciosas. Angélica pensava em
Joffrey, que tinha sido tão carinhoso e paciente para com ela. Onde estaria Joffrey? Não o vira durante o
dia todo.
No vestíbulo da casa real, Péguilin de Lauzun aproximou-se dela. Estava um tanto sufocado.
— Onde está seu marido?
— Palavra que também o estou procurando.
— Quando o viu pela última vez?
— Separei-me dele esta manhã para ir à catedral com Mademoi-selle. Ele acompanhava o Sr. de
Gramont.
— Depois não o viu?
— Já lhe disse que não. Como está agitado! Que quer dele? Lauzun tomou-a pela mão.
— Vamos à residência do Duque de Gramont!
— Que está acontecendo?
Péguilin não respondeu. Ainda envergava seu belo uniforme, mas, contrariamente a seu costume, seu
rosto havia perdido a alegria.
Em casa do Duque de Gramont, o grão-senhor, sentado à mesa entre um grupo de amigos, disse-lhe
que o Conde de Peyrac se havia separado dele de manhã, depois da missa.
— Ia sozinho? — perguntou Lauzun.
— Sozinho? Sozinho? — resmungou o Duque. — Que quer dizer, meu rapaz? Será que existe uma
só pessoa em Saint-Jean-de-Luz que possa vangloriar-se de estar sozinha hoje? Peyrac não me confiou
suas intenções, mas posso dizer-lhe que seu mouro o acompanhava.
— Está bem — disse Lauzun.
— Deve estar com os gascões. O grupo está. se divertindo à grande em uma taberna do porto; a
menos que tenha aceitado o convite da Princesa Henriqueta da Inglaterra, que tencionava pedir-lhe que
cantasse para ela e suas damas.
— Venha Angélica! — disse Lauzun.
A Princesa Henriqueta era a simpática jovem perto da qual Angélica havia estado no barco por
ocasião da visita à ilha dos Fai-sões. A pergunta de Péguilin, sacudiu negativamente a cabeça:
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— Não, não está aqui. Enviei um de meus gentis-homens para buscá-lo, mas ele não o encontrou em
parte alguma.
— No entanto, seu mouro Kuassi-Ba é um indivíduo que a gente distingue sem dificuldade.
— Ninguém viu o mouro.
Na taberna A Baleia de Ouro, Bernardo d'Andijos levantou-se penosamente da mesa ao redor da qual
estava reunida a fina flor da Gascogne e do Languedoc. Não, ninguém tinha visto o Conde de Peyrac.
Deus era testemunha de que o tinham procurado, de que haviam chegado até a jogar pedras nos vidros
das janelas de sua habitação, na Rue de Ia Rivière. Haviam mesmo quebrado as vidraças da residência
de Mademoiselle. Mas não havia sombra de Peyrac.
Lauzun, com a mão no queixo, refletia.
— Procuremos De Guiche. O Petit Monsieur olhava com ternura para seu marido. Pode ser que o
tenha atraído a alguma festa íntima em casa de seu favorito.
Angélica seguia o duque através das ruelas entupidas de gente, iluminadas com tochas e lanternas
multicores. Entravam, interrogavam, saíam. As pessoas estavam à mesa, envolvidas pelo odor dos
manjares, pela fumaça de centenas de velas e pelo hálito dos criados que tinham passado o dia bebendo
nas fontes de vinho.
Nas encruzilhadas dançavam ao som de tamborins e castanho-las. Os cavalos relinchavam na
penumbra dos pátios.
O Conde de Peyrac havia desaparecido.
Angélica segurou bruscamente Péguilin e fê-lo virar-se para ela.
— Basta, Péguilin! Fale. Por que se inquieta de tal modo por meu marido? Sabe alguma coisa?
Ele suspirou e, levantando discretamente a peruca, enxugou a testa.
— Nada sei. Um gentil-homem do séquito do rei nunca sabe nada. Pode custar-lhe demasiado caro.
Mas faz tempo que venho suspeitando de um conluio contra seu marido.
Cochichou-lhe ao ouvido:
— Receio que tenham procurado prendê-lo.
— Prendê-lo? — repetiu Angélica. — Mas por quê? Com um gesto Péguilin demonstrou que
ignorava.
— Está louco — disse Angélica. — Quem pode dar a ordem de prendê-lo?
— O rei, evidentemente.
— O rei tem outras coisas mais importantes a fazer para que possa pensar em prender pessoas em
um dia como hoje. O que me diz não tem pés nem cabeça.
— Assim o espero. Ontem de noite fiz-lhe chegar uma palavra de advertência. Ainda tinha tempo de
saltar para o seu cavalo. Senhora, está bem certa de que ele passou a noite a seu lado?
— Sim, muito certa — disse, ruborizando-se um pouco.
— Ele não compreendeu. Brincou mais uma vez com o destino.
— Péguilin, você está me enlouquecendo! — exclamou Angélica sacudindo-o. — Creio que está
fazendo comigo uma brincadeira de mau gosto.
— Psiu!
Atraiu-a para si como homem acostumado a lidar com mulheres e encostou a face na dela para
tranqüilizá-la.
— Sou um rapaz muito mau, minha linda; mas uma coisa de que nunca serei capaz é de atormentar
seu coraçaozinho. Além disso, depois do rei, não há homem a quem eu mais queira do que ao Conde de
Peyrac. Não enlouqueça, minha amiga. Pode ser que tenha fugido a tempo.
— Mas afinal... — exclamou Angélica.
Lauzun fez um gesto imperioso.
— Mas afinal — repetiu baixo —, por que haveria o rei de querer prendê-lo? Sua Majestade falou-
lhe ontem mesmo com muita graça, e até ouvi-lhe palavras em que não ocultava a simpatia que Joffrey
lhe inspirava.
— Ora! Simpatia!... Razão de Estado... Influências... Não podemos, nós nobres cortesãos, dosar os
sentimentos do rei. Lembre-se de que foi discípulo de Mazarino, e que este se referia a ele deste modo:
"Demorará a pôr-se em marcha, mas'irá mais longe que os outros".
— Não acha que pode haver em tudo isso alguma intriga do Arcebispo de Toulouse, Monsenhor de
Fontenac?
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— Não sei nada... não sei nada — repetiu Péguilin.
Acompanhou-a até em casa e disse-lhe que iria buscar mais informações e viria vê-la de manhã.
Ao entrar, Angélica esperava ansiosamente que seu marido a estivesse aguardando, mas não
encontrou senão Margarida, que velava Florimond adormecido, e a velha parenta de Joffrey, que,
completamente esquecida no meio de tantas festas, se limitava a passear pelas escadas. As outras
domésticas tinham ido dançar na cidade.
Angélica deitou-se vestida no leito, depois de tirar unicamente os sapatos e as meias. Tinha os pés
inchados da louca corrida que dera com o Duque de Lauzun através da cidade. O cérebro girava-lhe sem
cessar.
— Amanhã refletirei — disse ela. E adormeceu pesadamente. Despertou-a um chamado que vinha
da rua.
— Médême! Médême!
A luz viajava sobre os telhados planos da pequena cidade. Do porto ainda chegavam gritos e cantos, e
também da grande praça, mas aquele bairro estava silencioso e quase todos dormiam, extremamente
fatigados.
Angélica precipitou-se para o balcão e divisou o negro Kuassi-Ba, de pé, ao luar.
— Médême, médême!...
— Espera. Desço para abrir.
Sem se calçar, desceu rapidamente, acendeu uma vela no vestí-bulo e abriu a porta.
O negro entrou com um salto flexível de animal. Seus olhos brilhavam estranhamente. Angélica viu
que ele tremia como se estivesse em transe.
— De onde veio?
— Lá de baixo — disse com um gesto vago. — Preciso de um cavalo. Imediatamente, um cavalo!
Seus dentes se descobriram numa careta selvagem.
— Atacaram meu amo — cochichou —, e eu não tinha o meu grande sabre. Oh! Por que não tinha o
meu grande sabre hoje?
— Como? Atacaram Joffrey, Kuassi-Ba? Quem o atacou?
— Não sei, senhora. Como o saberia eu, um pobre escravo? Um pajem lhe trouxe um papelzinho.
Meu senhor foi lá. Eu o seguia. Não havia gente no pátio daquela casa. Somente uma carruagem com
cortinas pretas. Saíram homens e o cercaram. Meu senhor puxou da espada. Vieram outros homens. Ele
foi golpeado e metido na carruagem. Eu gritava. Agarrei-me ao coche. Dois criados tinham subido atrás,
sobre o eixo. Bateram-me até que caí, mas derrubei um e estrangulei-o.
— Você o estrangulou?
— Com as minhas mãos, assim — disse o negro abrindo e tornando a cerrar as mãos como tenazes.
— Corri pela estrada. Fazia muito sol e tenho a língua maior que a cabeça, de tanta sede.
— Venha beber. Depois falará.
Foram para a estrebaria, onde o negro apanhou um balde e bebeu.
— Agora — disse enxugando os grossos lábios —, vou apanhar um cavalo e persegui-los. Matarei a
todos com o meu grande sabre.
Remexeu a palha e tirou sua pequena bagagem. Enquanto o escravo despia as vestes de cetim rasgadas
e cobertas de poeira para vestir uma libre mais simples, Angélica, com os dentes cerrados, entrou na
coxia e desatou o cavalo do mouro. Fragmentos de palha espetavam-lhe os pés descalços, mas ela não
os sentia. Parecia-lhe estar vivendo um pesadelo em que tudo ia devagar, demasia-
dâmente devagar... Corria para seu marido, estendia os braços para ele. Mas nunca mais poderia
encontrá-lo, nunca mais...
Viu partir à rédea solta o negro cavaleiro. Os cascos do animal fizeram saltar faíscas da rua calçada
com pedras arredondadas. De-crescia o ruído do galope no momento em que outro som nascia da
límpida manhã: o dos sinos anunciando as matinas para uma ação de graças.
Terminava a noite de núpcias reais. A Infanta Maria Teresa era rainha da França.
CAPITULO III
Viagem para Paris — Atentado contra a carruagem de Angélica — Hospitalidade de Hortênsia
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Atravessando campos e vergéis em flor, a corte retornava a Paris.
A longa caravana estendia entre os trigais novos seus coches de seis cavalos, seus carros pejados de
leitos, baús e tapetes, seus muares carregados, seus lacaios e seus guardas montados.
Nas vizinhanças das cidades, aproximavam-se na poeira as de-putações de magistrados municipais,
que levavam até a carruagem do rei as chaves sobre uma bandeja de prata ou uma almofada de veludo.
Assim desfilaram Bordeaux, Saintes, Poitiers, que Angélica, perdida naquele bulício, quase não
reconheceu.
Também ela ia para Paris, acompanhando a corte.
— Já que nada lhe dizem, proceda como se nada houvesse acontecido — aconselhara Péguilin.
Este multiplicava os "psíu!" e sobressaltava-se ao menor ruído.
— Seu marido tinha intenção de ir a Paris; vá, pois. Ali tudo se esclarecerá. Em suma, talvez não
passe tudo de um mal-entendido.
— Mas que sabe você, Péguilin?
— Nada, nada... Nada sei.
E afastou-se, com o olhar inquieto, para ir bufonear diante do rei.
Finalmente, Angélica, depois de ter pedido a Andijos e a Cerba-laud que a escoltassem, fez voltar
para Toulouse parte de sua equi-pagem. Reteve apenas um coche e outra viatura, bem como Margarida,
uma criadinha, embaladeira de Florimond, três lacaios e dois cocheiros. No último momento, o
cabeleireiro Binet e o pequeno violinista Giovanni suplicaram-lhe que os levasse.
— Se o senhor Conde nos estiver esperando em Paris e eu lhe falar, ficará muito descontente,
asseguro-lhe — dizia Francisco Binet.
— Conhecer Paris! Oh! conhecer Paris! — repetia o jovem músico. — Se conseguir encontrar o
professor de música do rei, esse Batista Lulli de quem tanto se fala, estou certo de que me aconselhará e
chegarei a ser um grande artista.
— Está bem, sobe, grande artista — acabou Angélica por ceder.
Continuava sorrindo, fingia despreocupação e agarrava-se às palavras de Péguilin: "Deve ser um mal-
entendido". Com efeito, afora o fato de que Peyrac se havia subitamente volatizado, nada parecia
mudado, nenhum rumor corria de que ele houvesse caído em desgraça.
A Grande Mademoiselle não perdia ocasião de falar amistosamente à jovem. Não teria podido fingir,
pois era pessoa muito ingênua e sem nenhuma hipocrisia.
Alguns perguntavam pelo Sr. de Peyrac com absoluta naturalidade. Angélica dizia-lhes que se lhe
antecipara a fim de organizar sua chegada.
Mas antes de deixar Saint-Jean-de-Luz procurou em vão encontrar-se com Monsenhor de Fontenac.
Este havia voltado para Toulouse.
Em alguns momentos parecia-lhe haver sonhado, iludia-se com falsas esperanças. Talvez Joffrey
estivesse em Toulouse...
Nos arredores de Dax, quando atravessavam as Landes, arenosas e escaldantes, um macabro incidente
despertou-a para a trágica realidade. Os habitantes de uma aldeia apresentaram-se e perguntaram se
alguns guardas poderiam ajudá-los em uma batida contra uma espécie de monstro negro e terrível que
ensangüentava a região.
Andijos galopou até o coche de Angélica e cochichou-lhe que sem dúvida se tratava de Kuassi-Ba.
Ela pediu para ver os aldeões. Eram pastores de ovelhas, trepados em andas que lhes permitiam
caminhar sobre o solo movediço das dunas. Eles confirmaram os temores de Angélica.
Sim, fazia dois dias que os pastores tinham ouvido gritos e disparos de arma de fogo na estrada, e
viram uma carruagem assaltada por um cavaleiro de rosto negro que brandia um sabre curvo como os
dos turcos. Felizmente as pessoas da carruagem tinham uma pistola. O homem negro foi ferido e fugiu.
— Que pessoas iam na carruagem? — perguntou Angélica.
— Não sabemos — responderam. — As cortinas estavam corridas e somente dois homens a
escoltavam. Deram-nos uma moeda
para que enterrássemos um deles, cuja cabeça o monstro havia de-cepado.
— Decepado a cabeça! — repetiu Andijos, aterrado.
— Sim, senhor, tanto que tivemos de ir buscá-la na vala para onde havia rolado.
Na noite seguinte, quando a maior parte dos viajantes estavam acampados nas aldeias dos arredores de
Bordeaux, Angélica sonhou de novo com o sinistro chamado:
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— Médême! Médême!
Agitou-se e acabou por despertar. Haviam-lhe feito a cama no único aposento de uma casa de
lavradores, cujos habitantes foram dormir no estábulo. O berço de Florimond estava junto à lareira.
Margarida e a pequena ama haviam-se deitado no mesmo enxergão.
Angélica viu que Margarida vestia uma saia.
— Aonde vai?
— E Kuassi-Ba, tenho certeza — cochichou a grandalhona.
Já Angélica tinha saltado do leito.
As duas abriram com precaução a porta. Por sorte a noite estava muito escura.
— Kuassi-Ba, entre! — cochicharam.
Algo se moveu, e um grande corpo vacilante tropeçou na solei-ra. Fizeram-no sentar em um banco. A
luz de uma vela, viram sua pele cinzenta e lacerada. Tinha as roupas manchadas de sangue. Ferido, fazia
três dias que vagava pelas charnecas.
Margarida remexeu os baús e fê-lo beber um bom trago de aguardente, após o que ele falou.
— Uma só cabeça, senhora. Só pude cortar uma cabeça.
— É o suficiente, asseguro-lhe —- disse Angélica com um leve sorriso.
— Perdi meu grande sabre e meu cavalo.
— Dar-lhe-ei outros. Não fale... Voltou a encontrar-nos, é o principal. Quando seu senhor o vir,
dirá: "Está bem, Kuassi-Ba!"
— Tornaremos a ver meu senhor?
— Voltaremos a vê-lo, eu lhe prometo.
Enquanto falava, Angélica tinha rasgado um pano para desfiá-lo. Temia que a bala houvesse ficado
dentro da ferida, situada perto da clavícula, mas descobriu outra ferida debaixo do braço, o que
mostrava que o projétil havia saído. Pôs aguardente sobre as duas feridas e atou-as fortemente.
— Que vamos fazer deste homem, senhora? — perguntou Margarida.
— Levá-lo conosco! Tornará a ocupar seu lugar no carro.
— Mas que irão dizer?
— "Quem" vai dizer? Acredita que as pessoas que nos rodeiam se preocupam com as façanhas do
meu negro?... Comer bem, ter bons cavalos de muda, alojar-se confortavelmente são suas únicas
preocupações. Ele ficará sob a cobertura, e em Paris, quando estivermos em nossa casa, as coisas se
arranjarão por si mesmas.
Repetiu, para se convencer intimamente:
— Compreende, Margarida? Tudo não passa de um mal-entendido.
O coche rodava agora através da floresta de Rambouillet. Angélica toscanejava, pois o calor era
terrível. Florimond dormia sobre os joelhos de Margarida. Subitamente o ruído de uma detonação seca
despertou a todos, que se sobressaltaram. Houve um violento choque. Angélica teve a visão de uma
profunda ravina. Levantando uma nuvem de pó, o coche tombou, fazendo um barulho tremendo.
Florimond berrava, meio esmagado pela criada. Ouviam-se os relinchos dos cavalos, os gritos do
postilhão e os estalos do chicote.
O mesmo ruído seco voltou a ser ouvido, e Angélica viu em um dos vidros da carruagem uma estrela
estranha, semelhante a um cristal de neve, com um orificiozinho no centro. Procurou erguer-se e tomar
Florimond nos braços.
De repente alguém arrancou a portinhola, e o rosto de Péguilin de Lauzun inclinou-se pela abertura.
— Ninguém ferido, pelo menos?
Com a emoção, Péguilin havia voltado a falar com seu acento meridional.
— Todos gritam, o que me faz imaginar que todos estão vivos — disse Angélica.
Tinha uma escoriação no antebraço, produzida por um fragmento de vidro, mas sem gravidade.
Entregou o menino ao duque. O Cavaleiro de Louvigny apareceu também, estendeu-lhe a mão e
ajudou-a a sair do coche. Quando pôs os pés na estrada, ela retomou precipitadamente Florimond e
esforçou-se por aquietá-lo. O agudo choro do bebê cobria todo o tumulto, e era impossível pronunciar
uma palavra.
Enquanto acarinhava o filho, Angélica viu que o coche do Duque de Lauzun se havia detido atrás de
seu carro de bagagens, bem como o da irmã de Lauzun, Carlota, Condessa de Nogent, e que os irmãos
21
Gramont, algumas damas, amigos e criados acorriam ao lugar do acidente.
— Mas, afinal, que aconteceu? — perguntou Angélica quando
Florimond lhe permitiu abrir a boca.
O cocheiro tinha um ar de espanto. Não era homem dos mais seguros: tagarela e jactancioso, tinha
sempre um refrão na boca e sobretudo, decidida inclinação pela garrafa.
— Tinha bebido e adormeceu?
— Não, senhora, asseguro-lhe. Tinha calor, é certo, mas dominava bem os animais. Os cavalos
seguiam como convinha. Mas de repente saíram dois homens de entre as árvores. Um deles tinha uma
pistola. Disparou para o ar, e foi isso que espantou os animais. Encabritaram-se e recuaram. Foi então
que a carruagem virou. Um dos homens tinha-os segurado pelo freio. Mas eu bati-lhe com o chicote o
mais que podia. O outro tornou a carregar a pistola. Aproximou-se e atirou no coche. Nesse momento
chegou o carro de bagagens e depois esses senhores a cavalo... Os dois homens fugiram...
— É uma curiosa história — disse Lauzun. — A floresta está vigiada, protegida. Os guardas
expulsaram dela todos os malfeitores por causa da passagem do rei. Que aspecto tinham esses
bandidos?
— Não sei, senhor duque. Não eram salteadores, disso estou certo. Estavam bem vestidos, bem
barbeados. O máximo que posso dizer é que pareciam criados de boa casa.
— Dois criados despedidos que enveredaram pelo mau caminho? — conjeturou De Guiche.
Uma pesada carruagem ia passando ao longo dos grupos e acabou por deter-se. A Srta. de
Montpensier pôs a cabeça pela por-tinhola.
— Mais uma vez vocês, os gascões, estão fazendo algazarra! Querem assustar os pássaros de lie de
France com suas vozes de trombeta?
Lauzun correu para ela multiplicando as saudações. Explicou-lhe o acidente de que acabava de ser
vítima a Sra. de Peyrac e disse-lhe que seria necessário muito tempo para reparar o coche e pô-lo em
condições de prosseguir viagem.
— Pois que suba, que suba para o nosso — exclamou a Grande Mademoiselle. — Meu pequeno
Péguilin, vá buscá-la. Venha, minha cara. Temos um banco desocupado. Estará à vontade com seu bebê.
Pobre anjo! Pobre tesouro!
Ela mesma ajudou Angélica a subir e instalar-se.
— Está ferida, minha pobre amiga. Na próxima parada, mandar-lhe-ei meu médico.
A jovem percebeu, confusa, que a pessoa que estava sentada ao fundo da carruagem, junto a Srta. de
Montpensier, não era outra senão a rainha-mâe.
— Que Vossa Majestade me desculpe.
— Não tem de que desculpar-se, senhora — respondeu Ana d'Áustria amavelmente. —
Mademoiselle tem cem vezes razão de convidá-la a viajar em nosso coche. O assento é confortável e
nele a senhora se refará melhor de suas emoções. O que me aborrece é o que me dizem acerca desses
homens armados que a assaltaram.
— Meu Deus, talvez esses homens acreditassem dirigir-se à pessoa do rei ou da rainha! —
exclamou a Srta. de Montpensier juntando as mãos.
— Seus coches vão cercados de guardas e creio que nada há que temer por eles. No entanto, falarei
com o tenente de polícia.
Angélica experimentava agora os efeitos do choque recebido. Sentia que estava ficando muito pálida
e, cerrando os olhos, encostou a cabeça no espaldar estofado de seu assento. O homem havia atirado
bem de perto na vidraça. Por milagre não havia ferido nenhum dos ocupantes do veículo. Apertou
contra o peito Florimond. Notou que ele havia emagrecido e considerou-se culpada. Estava cansado
daquelas viagens intermináveis. Desde que o haviam separado de sua ama e de seu negrinho, chorava
sem cessar e recusava o leite que Margarida ia buscar nas aldeias. Suspirava dormindo e havia lágrimas
suspensas dos longos cílios que sombreavam suas faces descoradas. Tinha uma boca pequenina,
redonda e vermelha como uma cereja. Suavemente, Angélica enxugou com seu lenço a branca fronte do
menino, orvalhada de suor.
A Grande Mademoiselle suspirou ruidosamente.
— Faz um calor de cozinhar o sangue!
— Há pouco, sob as árvores, estávamos melhor — disse Ana d'Áustria abanando seu grande leque
de tartaruga negra —, mas agora atravessamos um espaço em que a floresta foi devastada.
22
Houve um silêncio; depois, a Srta. de Montpensier assoou-se e enxugou os olhos. Tremiam-lhe os
lábios.
— Está sendo cruel, senhora, fazendo-me reparar no que, há instantes, me dilacera o coração. Não
ignoro que essa floresta me pertence, e que Monsieur, meu defunto pai, a fez falar de tal maneira, para
pagar suas despesas, que já nada resta. Pelo menos são cem mil escudos perdidos para mim e com os
quais poderia ter formosos diamantes e belas pérolas...
— Seu pai nunca teve muito discernimento em seus atos, minha cara.
__ Não indigna ver todas essas raízes à flor do solo? Se não estivesse na carruagem de Vossa
Majestade, poderia crer que me processam por crime de lesa-majestade, já que é costume destruir as
matas dos que cometem tais delitos.
__ É verdade que faltou pouco — disse a rainha-mãe.
Mademoiselle ruborizou-se até nos olhos.
— Vossa Majestade afirmou-me tantas vezes que sua memória tinha esquecido tudo! Não me atrevo
a compreender a que faz alusão.
— Reconheço que fiz mal em falar assim. Que quer? O coração é impulsivo, embora a razão queira
ser clemente. No entanto, sempre a estimei. Mas houve um tempo em que estive zangada com você.
Talvez a tivesse perdoado quanto ao caso de Orléans, mas, quanto ao da Porte de Saint-Antoine e do
canhão da Bastilha, ter-lhe-ia estrangulado se lhe houvesse posto a mão.
— Seria bem merecido, pois desgostei Vossa Majestade. Foi uma desdita para mim encontrar-me
com pessoas que me induziram por honra de dever a fazer o que fiz.
— E sempre difícil saber onde está nossa honra e onde o nosso dever — disse a rainha.
Suspiraram juntas, profundamente. Ao ouvi-las, Angélica dizia a si mesma que as querelas dos
grandes são bem parecidas com as dos pequenos. Mas onde nestas não haveria mais que um murro,
naquelas há um canhonaço. Onde nestas não haveria mais que ressentimento surdo entre vizinhos,
naquelas há um passado cheio de ódios misturados com intrigas perigosas. Diz-se que se olvida, sorri-se
ao povo, acolhe-se o Sr. de Conde para agradar aos espanhóis, acaricia-se o Sr. Fouquet para se obter
dinheiro dele, mas a lembrança dos agravos recebidos permanece no fundo dos corações.
Se as cartas contidas no cofrezinho esquecido na torrinha do castelo do Plessis viessem a público, não
bastariam para reavivar o grande incêndio, cujas chamas estavam apenas amortecidas?
Parecia a Angélica que havia ocultado o cofrezinho dentro de si mesma e que agora ele pesava como
chumbo sobre a sua vida. Continuava com os olhos cerrados. Tinha medo de que por eles vissem passar
imagens estranhas: o Príncipe de Conde inclinado sobre o frasquinho de veneno ou lendo a carta que
acabava de assinar: "... assumo perante Monseigneur Fouquet o compromisso de jamais subordinar-me
a outra pessoa que não ele..."
Angélica sentia-se só. Não podia confiar em ninguém^ Aquelas agradáveis relações cortesãs não
tinham nenhum valor. Ávidos de
proteção e de mercês, todos se afastariam dela ao menor sinal de desfavor. Bernardo d'Andijos era
dedicado, mas tão leviano! Quando transpusessem as muralhas de Paris, não voltaria a vê-lo. De braço
com sua amante, a Srta. de Montmort, andaria pelos bailes da corte, e, em companhia de gascões,
freqüentaria de noite as ta-bernas e as casas de jogo.
No fundo, isso não tinha importância. O principal era chegar a Paris. Ali voltaria a encontrar-se como
em terra firme. Angélica instalar-se-ia no belo palácio que o Conde de Peyrac possuía no Quartier Saint-
Paul. Depois iniciaria as investigações para saber de Joffrey.
— Estaremos em Paris antes do meio-dia — anunciou-lhe Andi-jos quando, na manhã seguinte,
Angélica tomava assento com Florimond em um coche que o marquês havia alugado para ela, pois o
seu estava muito danificado pelo acidente.
— Talvez encontre ali meu marido e tudo se explicará — disse Angélica. — Por que faz essa cara,
marquês?
— Porque pouco faltou para que a matassem ontem. Se a carruagem não houvesse tombado, o
segundo disparo do bandido a teria alcançado à queima-roupa. A bala entrou pelo vidro e eu a encontrei
no espaldar do fundo, exatamente no lugar em que devia estar sua cabeça.
— Já se vê que a sorte está do nosso lado! Talvez seja um pressá-rio feliz de acontecimentos
futuros.
Angélica já se supunha em Paris quando ainda atravessava os arrabaldes. Após franquear a Porte de
23
Saint-Honoré, ficou decepcionada com as ruas estreitas e lamacentas. O barulho não tinha a qualidade
sonora do de Toulouse, e pareceu-lhe mais estridente e mais áspero. Os pregões dos mercadores e,
sobretudo, os gritos dos cocheiros, dos lacaios que precediam os coches e dos portadores de cadeirinhas
destacavam-se sobre o fundo de um ruído surdo que a fez pensar no dos trovões que precedem as
tempestades. Havia intenso calor e mau cheiro.
A carruagem de Angélica; escoltada por Bernardo d'Andijos a cavalo e seguida pelo carro das
bagagens e dos dois lacaios montados, levou mais de duas horas para alcançar o Quartier Saint-Paul.
Por fim, entrou na Rue de Beautreillis e retardou a marcha.
A carruagem parou em frente, de uma grande porta-cocheira de madeira clara com aldravas e
fechaduras de bronze lavrado. Por trás do muro de pedras brancas estava o pátio de entrada e a casa
edifiçada ao gosto da época, com grandes pedras de cantaria, janelas altas com vidros claros e telhado
adornado com trapeiras e coberto de ardósias novas que brilhavam ao sol.
Um lacaio veio abrir a portinhola da carruagem.
__ É aqui, senhora — disse o Marquês d'Andijos.
Permanecia a cavalo e olhava o pórtico com ar aparvalhado.
Angélica desceu do coche e correu para a casinha que devia servir de moradia ao suíço que guardava
o edifício.
Puxou a sineta com raiva. Era inadmissível que ninguém tivesse vindo abrir a porta principal. A
campainha pareceu soar no deserto. Os vidros da pequena casa estavam sujos. Tudo parecia sem vida.
Só então reparou no curioso aspecto do portal, que Andijos continuava olhando como ferido por um
raio,
Aproximou-se. Cordéis vermelhos entrelaçados estendiam-se de lado a lado, seguros por grossos selos
de cera multicor. Uma folha de papel igualmente presa por selos de cera dizia:
"Câmara de Justiça do rei
Paris
1o
de julho de 1660"
Com a boca aberta de estupor, olhou sem compreender. Naquele instante entreabriu-se a pequena
porta da casinha e apareceu o rosto inquieto de um criado com a libre amarrotada. Vendo o coche, ele
fechou precipitadamente a porta. Após alguns momentos, tornou a abri-la e saiu com passo hesitante.
— Você é o porteiro? — perguntou a jovem.
— Sou... sim, senhora, sou eu. Batista... e reconheço a... a carruagem., de... de... meu... meu... meu
amo.
— Pare de gaguejar, imbecil — exclamou Angélica, batendo com o pé —, e diga-me logo onde está
o Sr. de Peyrac.
O criado olhou em redor com inquietação. A ausência de vizinhos pareceu acalmá-lo. Aproximou-se
mais, ergueu os olhos para Angélica e, de repente, ajoelhou-se diante dela sem deixar de lançar em
torno de si olhares angustiosos.
— Oh! minha pobre senhorazinha — exclamou. — Meu pobre amo!... Oh, que terrível desgraça!
— Mas fale de uma vez! Que aconteceu?
Sacudiu-o por um ombro, cheia de aflição.
~ Levante-se, idiota! Não entendo nada do que diz. Onde está meu marido? Morreu?
O homem levantou-se com dificuldade e murmurou:
— Dizem que está na Bastilha. A casa está selada. Respondo por ela com a vida. E a senhora,
procure fugir daqui enquanto é tempo.
A lembrança da famosa fortaleza-prisão da Bastilha, ao invés de transtornar Angélica, tranqüilizou-a
um pouco depois do espantoso temor que acabava de experimentar.
De uma prisão pode-se sair. Sabia que em Paris a prisão mais temida era a do Arcebispado, situada
abaixo do nível do Sena e onde, no inverno, os prisioneiros corriam o perigo de afogar-se, e que o
Châtelet e o Hospital Geral eram destinados às pessoas da plebe. A Bastilha era a prisão aristocrática. A
despeito de algumas sinistras lendas sobre as câmaras fortes de suas oito torres, era sabido que uma
estada entre àqueles muros não desonrava ninguém.
Angélica soltou um pequeno suspiro e esforçou-se por enfrentar a situação.
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Angelica a marquesa dos anjos   2 - o suplicio de angelica
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Angelica a marquesa dos anjos 2 - o suplicio de angelica

  • 1. Na manhã de 26 de agosto de 1660, a França está em festa: o jovem e recém-empossado Rei Luís XTV faz sua entrada triunfal em Paris. Enfim, o país emerge da sangrenta época de hostilidades durante a qual seis exércitos se enfrentaram sobre seu solo. Ao lado do rei, o cardeal e ministro Mazarino também marcha vitorioso. O casamento que engendrou para o rei com a infanta espanhola Maria Teresa consagra a aliança com a nação vizinha e importante rival. A paz se consolida... ou quase. Nas cidades e no campo, o povo, grato pelo fim dos conflitos, esquece as desventuras para aclamar o novo rei e sua rainha. Todos têm motivo para festejar, menos Angélica. Enquanto a França comemora o advento de uma nova era, para ela tem início um período de sofrimento e privações. Seu marido, desaparecido numa nuvem de mistério, está preso incomunicável na Bastilha, onde aguarda julgamento. A ordem de prisão foi assinada pelo próprio rei. Em segredo, Joffrey, o marido, corre o risco de ser esquecido para sempre nas masmorras da famigerada fortaleza-presídio. "O amor", sibila o devasso marquês, "é o preço cobrado às damas formosas nos corredores do Louvre." De um momento para outro, Angélica viu-se arrancada do esplendor da corte de Luís XIV e atirada no mais negro infortúnio. O marido a quem tanto amava caíra em desgraça perante a Inquisição e desaparecera nas masmorias da Bastilha, tendo todos os seus bens confiscados. Com o coração partido, abandonada à própria sorte numa Paris estranha e hostil, a garota rebelde de 1
  • 2. Monteloup esvaía-se na dor de seu desamparo. Por conhecer um terrível segredo de Estado, tornara-se alvo de uma conspiração, que visava silenciá-la. Seus inimigos eram poderosos e ela estava sozinha. Do desespero nascia uma nova Angélica, sem as doçuras e ingenuidades do passado. Agora, resistente à adversidade e cruel com os homens, seria implacável como a fatalidade que decidira seu destino. O suplício de Angélica Anne e Serge Golon Título: O suplício de Angélica Autor: Anne e Serge Golon Título original: Dados da Edição: Editora Nova Cultural 1989 Publicação original: Gênero: Romance Histórico Digitalização e correção: Nina Estado da Obra: Corrigida Primavera de 1660. Angélica e o marido, o Conde Joffrey de Peyrac, haviam deixado o Palácio da Gaia Ciência, em Toulouse, e seguido em direção à cidadezinha de Saint-Jean-de-Luz, na fronteira espanhola ao sul da França. Ali, às margens do Rio Bidassoa, assistiriam, junto com toda a nobreza francesa, ao casamento de Luís XIV com a infanta Maria Teresa, filha de Filipe IV da Espanha. Em sua comitiva, além de Florimond, o filhinho de um ano de idade, o casal levara a indispensável ama Margarida, o criado negro Kuassi-Ba, quatro músicos e o cabeleireiro Francisco Binet. Também os acompanhavam, à frente do restante da criadagem, o Marquês Bernardo d'Andijos, primeiro gentil-homem da casa, e o Barão Cerbalaud. OS CORREDORES DO LOUVRE (maio a setembro de 1660) CAPÍTULO I Recepção do rei em Saint-Jean-de-Luz —É demais! Estou consumida de dor e ainda tenho que estar rodeada de pessoas néscias. Se não tivesse consciência de minha posição, lançar-me-ia do alto deste balcão para pôr fim à minha existência! Essas palavras amargas, emitidas com voz lancinante, fizeram com que Angélica corresse para o balcão de seu próprio aposento. Viu, inclinada sobre o corrimão de uma sacada fronteira, uma mulher alta, em traje de noite, com o rosto mergulhado num lenço. Uma dama aproximou-se da que continuava soluçando, mas a outra começou a agitar os braços como um moinho de vento. — Idiota! Idiota! Deixe-me em paz! Graças à sua estupidez nunca estarei pronta. Aliás, não tem nenhuma importância. Estou de luto, resta-me apenas encerrar-me na minha dor. Que me importa estar penteada como um espantalho? Esguedelhou sua basta cabeleira e mostrou o rosto regado de lágrimas. Era uma mulher de uns trinta anos, com belos traços aristocráticos, mas um tanto emurchecida. — Se a Sra. de Valbon está doente, quem vai pentear-me? — insistiu, dramaticamente. — Todas vocês têm as mãos mais pesadas que um urso da feira de Saint-Germain! — Senhora!... — interveio Angélica. Os dois balcões eram muito próximos um do outro, naquela rua estreita de Saint-Jean-de-Luz, com 2
  • 3. palacetes repletos de corte-saos. Cada um se inteirava do que acontecia nos alojamentos visi-nhos. Entretanto, mal rompia a aurora, cor de aniseta, já a cidade zumbia como uma colmeia. — Senhora — insistiu Angélica —, posso ser-lhe útil? Vejo que está com dificuldades com o seu toucado. Tenho aqui um cabeleireiro hábil, com seus ferros e diversos pós. Está à sua disposição. A dama enxugou o nariz longo e vermelho e soltou profundo suspiro. — Você é sumamente amável, minha cara. Aceito seu oferecimento. Nada pude conseguir de minhas criadas esta manhã. A chegada dos espanhóis tornou-as tão loucas como se se encontrassem num campo de batalha de Flandres. E no entanto pergunto-lhe: que é o rei da Espanha? — É o rei da Espanha — disse Angélica rindo. — Mas se formos ver sua família, não vale a nossa em nobreza. Já se sabe, estão carregados de ouro, mas são comedores de rába-nos, mais antipáticos do que corvos. — Oh, senhora! Não me esfrie o entusiasmo. Estou ansiosa por conhecer todos esses príncipes! Dizem que o Rei Filipe IV e sua filha, a infanta, vão chegar hoje à margem espanhola. — E possível. Em todo caso, eu não poderei saudá-los, pois nesta marcha não acabarei de me arrumar. — Tenha paciência, senhora. Dê-me só o tempo necessário para vestir-me decentemente e lhe mandarei o meu cabeleireiro. Angélica voltou precipitadamente ao seu aposento, onde reinava indescritível desordem. Margarida e as outras criadas acabavam de dar os últimos retoques ao luxuoso traje de sua patroa. Os baús estavam abertos, bem como os estojos de jóias, e Florimond, com as nádegas à mostra, engatinhava feliz entre aqueles esplendores. "Preciso que Joffrey me diga que jóias devo usar com este traje de tecido de ouro", pensou Angélica, tirando o chambre e vestindo uma roupa simples e um manto. No pavimento térreo encontrou o Sieur Francisco Binet, que havia passado a noite frisando o cabelo de algumas damas tolosa-nas, amigas de Angélica, e até das criadas que desejavam embelezar-se. Apanhou sua bacia de cobre, para o caso de ter de barbear algum cavaleiro, e sua caixa de pentes, ferros, pomadas e trancas postiças e, acompanhado de um rapaz que levava o aquecedor, entrou atrás de Angélica no prédio vizinho. Este estava ainda mais cheio que o palacete em que o Conde de Peyrac havia sido acolhido por uma parenta afastada. Angélica reparou na bonita libre dos domésticos e pensou que a dama chorosa devia ser pessoa de alta linhagem. Na dúvida, fez uma profunda reverência quando se encontrou diante dela. — Você é encantadora — disse a dama com ar tristonho, enquanto o cabeleireiro dispunha seus instrumentos sobre um tamborete. — Se não fosse por sua causa, eu teria estragado o rosto de tanto chorar. — Este não é um dia para se chorar — protestou Angélica. — Que quer, minha cara? Não sinto entusiasmo por essas comemorações. Fez um pequeno gesto de desconsolo. — Não viu meu traje negro? Acabo de perder meu pai. — Oh! Sinto-o muito... — Tanto nos detestávamos e discutíamos que isso aumenta o meu pesar. Mas que aborrecimento por estar de luto justamente agora! Conhecendo o caráter maligno de meu pai, suspeito que... Interrompeu-se para mergulhar o rosto no cone de papelão que Binet lhe apresentou enquanto lhe enchia a cabeleira de pó perfumado. Angélica espirrou. — ... suspeito que o fez de propósito — continuou a dama tirando o rosto do cone. . — Fez; de propósito? O quê, senhora? — Morrer, é claro! Mas não importa. Esqueço tudo. Digam o que disserem, sempre tive uma alma generosa. E meu pai morreu cristãmente... É um grande consolo. O que me desgosta é que tenham levado seu corpo para Saint-Denis com apenas alguns guardas e alguns capelães, sem pompa nem despesa... Parece-lhe admissível? — De maneira alguma — confirmou Angélica, que começava a ter medo de cometer uma tolice. Aquele nobre enterrado em Saint-Denis não podia pertencer senão à família real. A menos que - não houvesse entendido bem... — Se eu estivesse lá, as coisas se teriam passado de outro modo, pode crer — concluiu a dama, 3
  • 4. erguendo altivamente o queixo. —Gosto do fausto e que cada um procure honrar sua linhagem. Calou-se para se mirar no espelho que Francisco Binet lhe apresentava de joelhos, e seu rosto se iluminou. — Está ótimo! — exclamou. — Penteado perfeito e encantador! Seu cabeleireiro é um artista, querida. Não ignoro, entretanto, que tenho um cabelo difícil de pentear. — Vossa Alteza tem o cabelo fino, mas flexível e abundante — disse o cabeleireiro em tom doutorai. — Com uma cabeleira dessa qualidade é que se podem compor os mais belos penteados. — Deveras? O senhor me lisonjeia. Vou mandar que lhe dêem cem escudos. Senhoras!... Senhoras! É absolutamente necessário que este homem frise o cabelo das pequenas. De um quarto vizinho, onde parolavam damas de honor e camareiras, vieram as "pequenas", duas criaturas na idade ingrata. — Suas filhas, sem dúvida, senhora? — perguntou Angélica. — Não, minhas irmãzinhas. São insuportáveis. Olhe a menor; só tem de bonito a cútis, e encontrou um meio de se fazer picar por essas moscas a que chamam pernilongos. Veja como está inchada. E ainda por cima chora. — Sem dúvida está triste pela morte do pai. — Nada disso. Mas disseram-lhe muitas vezes que se casaria com o rei. Só a chamavam "rainhazinha". E agora sofre porque ele se casa com outra. Enquanto o cabeleireiro se ocupava das adolescentes, ouviu-se um rumor de passos na estreita escada, e um senhor jovem apareceu na ombreira. Era de muito baixa estatura, com um rosto de boneca a emergir de um espumoso papo de rendas. Levava também folhos de renda nas mangas e nos joelhos. Apesar da hora matinal, estava trajado com grande esmero. — Minha prima — disse com voz amaneirada —, ouvi dizer que havia em seu apartamento um cabeleireiro que faz maravilhas. — Ah! Filipe, você é mais astuto que uma mulher bonita, quando se trata de colher notícias desta natureza! Diga-me, ao menos, que me acha bela. O cavaleiro franziu os lábios vermelhos e carnudos, e, semicerrando os olhos, examinou o penteado. — Devo reconhecer que esse artista tirou de seu rosto melhor partido do que se poderia esperar — disse com insolência temperada por um sorriso coquete. Voltou à antecâmara e inclinou-se sobre a balaustrada. — De Guiche, meu querido, suba. É aqui mesmo. No gentil-homem que entrava, um belo moço muito trigueiro e de compleição bem-feita, Angélica reconheceu o Conde de Guiche, filho mais velho do Duque de Gramont, governador de Béarn. Filipe tomou o braço do Conde de Guiche e inclinou-se terna-mente sobre seu ombro. — Oh, como estou feliz! Certamente vamos ser os mais bem penteados da corte. Péguilin e o Marquês d'Humières empalidecerão de inveja. Vi-os pressurosos à procura de seu barbeiro, que Vardes lhes arrebatara graças a uma bolsa recheada. Esses gloriosos capitães dos gentis-homens de bico de corvo vão se ver obrigados a comparecer diante do rei com o mento feito ouriço de castanha. Lançou um risinho agudo, passou a mão pelo queixo barbeado e, depois, com gesto gracioso, acariciou a face do Conde de Guiche. Apoiava-se no jovem com enlevo e dirigia para ele um olhar langoroso. O Conde de Guiche, sorrindo com fatuidade, recebia aquelas homenagens sem o menor acanhamento. Angélica nunca tinha visto dois homens entregarem-se a tais manifestações, o que a deixava meio constrangida. Aquilo tampouco devia agradar à dona do apartamento, pois súbito exclamou: — Oh! Filipe, não venha entregar-se aqui a tais denguices! Sua mãe me acusaria de favorecer seus instintos perversos. Depois daquela festa em Lyon, em que nos fantasiamos, você, eu e a Srta. de Villeroy, de camponesas bretãs, ela tem-me atormentado com as suas censuras. E não me diga que o pequeno Péguilin se encontra em apuros, porque mandarei um homem buscá-lo. Vou ver se o encontro. E o jovem mais notável que conheço, e muito o estimo. A sua maneira ruidosa e impulsiva, precipitou-se de novo para o balcão, mas retrocedeu logo, com uma das mãos sobre o volumoso peito. — Ah, meu Deus, aí está ele! — Péguilin? — indagou o pequeno gentil-homem. — Não. É esse cavaleiro de Toulouse que me causa tanto medo. Angélica, por sua vez, chegou à 4
  • 5. sacada e viu o Conde de Pey- rac, seu marido, que descia a rua acompanhado de Kuassi-Ba. — Oh! É o Grande Coxo do Languedoc! — exclamou Filipe, que se havia reunido a elas. — Minha prima, por que o teme? Tem os olhos dulcíssimos, a mão acariciadora e o espírito cintilante. — Você fala como uma mulher — disse a dama com asco. — Parece que todas as mulheres estão loucas por ele. — Exceto você. — Eu nunca me extraviei em sentimentalismos. Vejo o que vejo. Não lhe parece que esse homem sombrio e claudicante, com esse mouro negro como o inferno, tem qualquer coisa de aterrador? O Conde de Guiche punha olhares espantados em Angélica e por duas vezes chegou a abrir a boca. Ela fez-lhe sinal para que nada dissesse. Aquele diálogo a divertia muito. — Precisamente, você não sabe olhar para os homens com olhos de mulher — respondeu o jovem Filipe. — Lembre que esse nobre negou-se a dobrar o joelho diante do Sr. d'Orléans e isso basta para arrepiar-lhe. — É verdade que demonstrou então rara insolência... Naquele momento, Joffrey ergueu os olhos para o balcão. Deteve-se e, tirando o chapéu emplumado, saudou várias vezes profundamente. — Veja como é injusto o rumor público — disse o Petit Mon-sieur. — Dizem que esse homem é cheio de orgulho e, no entanto... É possível saudar com mais graça? Que pensa disso, meu querido? — O Sr. Conde de Peyrac é reconhecidamente cortês — apressou-se a responder De Guiche. — Haja vista a maravilhosa recepção que tivemos em Toulouse. — Ao rei até molestou um pouco. O que não impede que Sua Majestade esteja muito impaciente por saber se a mulher do tal coxo é tão bela como dizem. Parece-lhe inconcebível que alguém o possa amar... Angélica retirou-se mansamente; levando para um lado Francisco Binet, beliscou-lhe a orelha. — Seu amo está de volta e vai chamá-lo. Não se deixe comprar pelos escudos dessa gente; do contrário, far-lhe-ei moer de pancadas. — Fique tranqüila, senhora. Quando acabar o meu trabalho com esta jovem, saio correndo. Angélica desceu e voltou para sua residência. Ia pensando que estimava o tal Binet, não só por seu bom gosto e habilidade, mas também por sua astúcia sutil, por sua filosofia de subalterno. Dizia que chamava "alteza" a todas as pessoas da nobreza para estar certo de não ofender a ninguém. No quarto, cuja desordem tinha piorado, Angélica encontrou seu marido com uma toalha ao pescoço, esperando já o barbeiro. — Muito bem, daminha! — exclamou. — Estou vendo que você não perde tempo. Deixo-a meio adormecida, para ir em busca de notícias e inteirar-me da ordem das cerimônias, e uma hora mais tarde encontro-a familiarmente instalada em um balcão entre a Du-quesa de Montpensier e Monsieur, o irmão do rei. — A Duquesa de Montpensier! A Grande Mademoiselle! — exclamou Angélica. — Meu Deus! Deveria tê-lo suspeitado quando falou de seu pai, enterrado em Saint-Denis. Enquanto se despia, Angélica contou como tinha feito conhecimento fortuitamente com a célebre frondista, a velha donzela do reino, que agora, falecido seu pai, Gastão d'Orléans, era a mais rica herdeira da França. — Suas irmãzinhas são apenas meias irmãs, as Srtas. de Valois e d'Alençon, que devem segurar a cauda da rainha na cerimônia do casamento. Binet também as penteou. O barbeiro surgiu esbaforido e começou a ensaboar o queixo de seu amo. Angélica estava de camisa, mas ninguém reparava nisso. Tratava-se de acudir o mais rapidamente possível ao chamado do rei, que pedia que todos os nobres de sua corte fossem saudá-lo naquela mesma manhã. Depois, absorvido nas preocupações do encontro com os espanhóis, não teria tempo para as apresentações. Margarida, com a boca cheia de alfinetes, passou a Angélica uma primeira saia de pesado tecido de ouro e depois uma segunda, de renda de ouro, fina como teia de aranha e cujo desenho era acentuado por pedras preciosas. — E você diz que o jovem efeminado é o irmão do rei? — interrogou Angélica. — Comportava-se de maneira estranha com o Conde de Guiche. Dir-se-ía que estava apaixonado por ele. Oh, Joffrey! Crê verdadeiramente que... que eles... — Chama-se a isso amar à italiana — disse o conde rindo. — Nossos vizinhos do outro lado dos 5
  • 6. Alpes são tão refinados que não se contentam com os simples prazeres da natureza. Devemos-lhe, é verdade, o renascimento das letras e das artes, mais um ministro velhaco, cuja manha nem sempre tem sido inútil à França, mas devemos-lhes também a introdução desses costumes extravagantes. E pena que os adote o único irmão do rei. Angélica franziu o sobrolho. — O príncipe disse que você tem a mão acariciadora. Gostaria de saber como ele o notou. — Palavra? O Petit Monsieur gosta tanto de roçar-se nos homens que talvez em alguma ocasião me tenha pedido que o ajudasse a endireitar a volta ou os punhos. Não perde oportunidade de se fazer afagar. — Ele falou de você em termos que quase me despertaram ciúme. — Oh, meu bem! Se você começa a perturbar-se, logo as intrigas a afogarão. A corte é uma imensa teia de aranha viscosa. Você se perderá nela, se não olhar as coisas com superioridade. Francisco Binet, que era palrador como todos os de sua profissão, tomou a palavra: — Ouvi dizer que o Cardeal Mazarino estimulou os gostos do Petit Monsieur para que ele não fizesse sombra a seu irmão. Mandava que o vestissem de menina e fazia disfarçar da mesma maneira os seus amiguinhos. Como irmão do rei, sempre se temeu que começasse a conspirar como o falecido Sr. Gastão d'Orléans, que era tão insuportável. — Você julga os príncipes muito severamente, barbeiro — disse Joffrey de Peyrac. — O único bem que possuo é a minha língua, senhor conde. Minha língua e o direito de fazê-la funcionar. — Mentiroso! Tornei-o mais rico que o cabeleireiro do rei. — E verdade, senhor conde. Mas não faço ostentação disso. Não é prudente despertar invejas. Joffrey de Peyrac mergulhou o rosto em uma bacia de água de rosas para acalmar o ardor deixado pela navalha. Seu rosto cicatrizado fazia que a operação fosse longa e delicada, e era necessária a mão leve de Binet. Tirou o penteador e começou a vestir-se, auxiliado por seu camareiro e por Afonso. Entrementes, Angélica havia enfiado um corpete de tecido de ouro e permanecia imóvel, enquanto Margarida fixava o plastrão, verdadeira obra de arte de ouro filigranado entretecido com sedas. Uma renda de ouro punha uma brilhante espuma em torno de seus ombros nus, dando a sua carne uma palidez luminosa, como de porcelana translúcida. Com o tom rosado de suas faces, seus cílios e supercílios sombreados, os cabelos ondulados que tinham o mesmo reflexo do vestido, a surpreendente limpidez de seus olhos verdes, viu-se no espelho como um estranho ídolo feito inteiramente de matérias preciosas: ouro, mármore, esmeraldas. Margarida soltou de repente um grito e precipitou-se para Florimond, que levava à boca um diamante de seis quilates... — Joffrey, que adereço devo usar? As pérolas parecem-me demasiado modestas; os diamantes excessivamente duros. — Esmeraldas — respondeu o conde. — Em harmonia com os seus olhos. Todo esse ouro é insolente, de um brilho um tanto pesado. Seus olhos o suavizam, dão-lhe vida. São precisos dois pingentes e o colar de ouro e esmeraldas. Nos anéis poderá misturar alguns diamantes. Inclinada sobre seus escrínios, Angélica absorveu-se na escolha das jóias. Ainda não estava entediada, e tal profusão a arrebatava sempre. Quando se voltou, o Conde de Peyrac colocava a espada em seu boldrié constelado de diamantes. Olhou-o demoradamente, e um estremecimento insólito a percorreu. — Creio que a Grande Mademoiselle não se equivoca inteiramente quando diz que você tem aspecto aterrador. — Seria trabalho inútil querer disfarçar meu infortúnio — disse o conde. — Se procurasse vestir-me como um favorito, seria ridículo e lamentável. Trajo-me, portanto, de acordo com o meu rosto. Angélica olhou aquele rosto. Era seu. Havia-o acariciado, conhecia-lhe os menores sulcos. Sorriu e murmurou: — Meu amor! O conde estava inteiramente vestido de negro e prata. Seu manto de chamalote preto era velado por uma renda de prata segura por pontos de diamantes. Deixava ver um gibão de brocado de prata ornado com rendas negras de ponto delicadíssimo. As mesmas rendas em três folhos pendiam dos joelhos, sob a rhingrave de veludo escuro. Os sapatos tinham fivelas de diamantes. A gravata, que não tinha forma 6
  • 7. de volta, mas de amplo laço, também era bordada de pequeníssimos diamantes. Nos dedos, uma infini- dade de brilhantes e um enorme rubi. O conde pôs na cabeça o chapéu de feltro com plumas brancas e perguntou se Kuassi-Ba se havia encarregado dos presentes que deviam ser oferecidos ao rei para sua noiva. O negro estava fora, em frente à porta, e era alvo da admiração de todos os basbaques, com seu gibão de veludo cereja, seus amplos calções à turca e seu turbante, este e aqueles de cetim branco. Transeuntes apontavam seu sabre curvo. Conduzia sobre uma al-mofada uma caixa de belíssimo marroquim vermelho cravejado de ouro. Duas cadeirinhas esperavam o conde e Angélica. Foram rapidamente levados à habitação em que o rei, sua mãe e o cardeal estavam hospedados. Como todas as de Saint-Jean-de-Luz, era uma estreita casa à espanhola, cheia de balaustradas e cor-rimões espiralados de madeira dourada. Os cortesãos transbordavam pela praça, onde o vento do mar sacudia as penas dos chapéus, trazendo em lufadas o cheiro salino do oceano. Angélica sentiu o coração aos pulos quando transpôs os degraus da entrada. "Vou ver o rei!", pensava. "A rainha-mãe! O cardeal!" Quão perto dela tinha estado aquele jovem rei de que falava sua ama, assaltado pelas malvadas multidões de Paris, em fuga através da França arruinada pela Fronda, levado de cidade em cidade, de castelo em castelo, à mercê das facções dos príncipes, traído, abandonado, e finalmente vitorioso! Agora colhia o fruto de suas lutas. E, ainda mais que o rei, a mulher que Angélica divisava no fundo da sala, envolta em seus véus negros, com sua tez mate de espanhola, seu ar ao mesmo tempo distante e afável, suas mãos pequenas e perfeitas, pousadas sobre o vestido escuro, a rainha-mãe, saboreava a hora do triunfo. Angélica e seu marido atravessaram a câmara, cujo soalho bri- lhava. Dois negrinhos seguravam o manto da jovem, que era de um tecido de ouro frisado e cinzelado, em contraste com o lamê brilhante da saia e do corpete. O gigante Kuassi-Ba os acompanhava. Havia pouca luz e fazia muito calor devido à tapeçaria e à multidão. O primeiro gentil-homem da casa real anunciou: — Conde de Peyrac de Morens d'Irristru. Angélica mergulhou numa reverência. Tinha o coração na garganta. Diante dela erguiam-se um vulto negro e um vulto vermelho: a rainha-màe e o cardeal. "Joffrey deveria inclinar-se mais profundamente", pensava. "Há pouco saudou tão belamente a Grande Mademoiselle. Mas, diante do mais poderoso, apenas afasta um pouco o pé... Binet tem razão... Binet tem razão..." Era tolice pensar assim no bom cabeleireiro e repetir que ele tinha razão. Por que isso? Uma voz disse: — Regozijamo-nos de vê-lo novamente, conde, e de poder cumprimentar... admirar sua esposa, da qual já nos haviam falado tão bem. Mas, coisa contrária às normas, verificamos desta vez que o elogio não alcança a realidade. Angélica ergueu os olhos. Encontrou um olhar escuro e brilhante que a examinava com muita atenção: o olhar do rei. Vestido ricamente, o rei era de estatura mediana, mas conservava-se tão reto que parecia mais imponente do que todos os seus cor-tesãos. Angélica notou-lhe a cútis ligeiramente marcada pela va- ríola que o tinha acometido na infância. Tinha o nariz demasiadamente comprido, mas sua boca era forte e acariciadora, sob a linha escura, apenas esboçada, de um pequeno bigode. A cabeleira castanha, abundante, caindo em cachos, não devia nada aos artifícios das perucas. Tinha as pernas bem formadas e as mãos harmoniosas. Sob as rendas e as fitas,.percebia-se um corpo flexível e vigoroso, adestrado nos exercícios da caça e da ginástica. "Minha ama diria: 'É um belo macho'", pensou Angélica. "Fazem bem em casá-lo." Arrependeu-se logo de pensamentos tão vulgares naquele momento solene de sua existência. A rainha-mãe quis ver o interior da caixa que Kuassi-Ba acabava de apresentar de joelhos, com a fronte no solo, numa postura de rei mago. Houve exclamações ante o precioso estojo de viagem, com suas caixinhas e pentes, tesouras, colchetes, sinetes, tudo de ouro maciço e de concha de tartaruga. O oratório portátil encantou as damas devotas do séquito da rainha-mãe. Esta sorriu e benzeu-se. O crucifixo e as duas imagens de santos espanhóis, assim como a lamparina e o diminuto incensório, eram de ouro e prata dourada. Joffrey de 7
  • 8. Peyrac tinha mandado pintar por um artista da Itália 11 m rríptiro de macieira dourada que representava as cenas da Paixão. As miniaturas eram finas, de cores delicadas. Ana d'Áustria declarou que a infanta tinha fama de ser muito piedosa e não podia senão ficar encantada com o presente. Voltou-se para o cardeal a fim de fazê-lo admirar as pinturas, mas este se entretinha a observar os pequenos instrumentos do estojo, que fazia cintilar dando-lhes suaves voltas entre os dedos. — Dizem que o ouro mana do côncavo de suas mãos, Sr. de Peyrac, como a fonte de uma rocha. — A imagem é exata, Eminência — respondeu o conde calmamente. — Como a fonte de uma rocha... mas de uma rocha que se teria minado com grande quantidade de mechas e de pólvora, escavado até profundidades insuspeitadas, aluído, triturado, pulverizado. Então, efetivamente, à custa de trabalho, suor e esforço, é possível que jorre o ouro, e até em abundância. — Eis uma bela parábola sobre o trabalho que dá seus frutos. Não estamos acostumados a ouvir pessoas de sua linhagem empregarem semelhante linguagem, mas confesso que isso não me desagrada. Mazarino continuava sorrindo. Aproximou do rosto um espe-lhinho do estojo e lançou-lhe um rápido olhar. Apesar dos cosméticos e pós com que tentava disfarçar sua pele amarelada, um suor de debilidade brilhava em suas fontes, umedeçendo os anéis de seus cabelos sob o vermelho solidéu de cardeal. A enfermidade vinha-o esgotando havia longos meses. Ele pelo menos não tinha mentido quando alegara motivo de saúde para não se apresentar em primeiro lugar perante o ministro espanhol Dom Luís de Haro. Angélica surpreendeu um olhar da rainha-mãe ao cardeal, um olhar de mulher angustiada, que se atormenta. Sem dúvida, tinha ardente desejo de dizer-lhe: "Não fale tanto, que se fatiga. Está na hora de tomar a tisana". Seria verdade que a rainha, tanto tempo desprezada por um esposo demasiadamente casto, havia amado o italiano? Todo mundo o afirmava, mas ninguém tinha certeza. As escadas ocultas do Louvre guardavam bem o seu segredo. Talvez somente um ser o conhecesse, e era aquele filho tenazmente defendido: o rei. Nas cartas que trocavam, o cardeal e a rainha não o tratavam por Confidente? Confidente de quê? — Se houver uma oportunidade, gostaria de falar com o senhor acerca dos seus trabalhos — disse o cardeal. O jovem rei interveio com certa vivacidade: — Eu também. O que me disseram deles despertou minha curiosidade. — Estou à disposição de Vossa Majestade e de Vossa Eminência. A audiência havia terminado. Angélica e seu marido foram saudar Monsenhor de Fontenac, que viram entre as pessoas que acompanhavam o cardeal. Depois dirigiram-se às altas personalidades e suas relações. Angélica tinha as costas doloridas por causa das reverências, mas encontrava-se em tal estado de excitação e de prazer que não sentia nenhum cansaço. Os cumprimentos que recebia não lhe deixavam dúvidas sobre o seu êxito. Era certo que ela e o marido atraíam a atenção de todos. Enquanto Joffrey conversava com o Marechal de Gramont, um jovem de pequena estatura mas de semblante agradável postou-se diante de Angélica. — Reconhece-me, ó deusa descida do carro do Sol? — Certamente — exclamou encantada —, é Péguilin. Imediatamente desculpou-se: — Perdoe minha familiaridade, Sr. de Lauzun, mas, que quer? Por toda parte ouço falar de Péguilin. Péguilin para cá, Péguilin para lá... Todos o têm tal afeição que, sem tê-lo visto novamente, acabei aderindo. — A senhora é adorável e enche de contentamento não só os meus olhos mas também o meu coração. Sabia que é a mulher mais extraordinária de toda a reunião? Conheço damas que estão fazendo em pedaços os seus leques e rasgando seus lenços, tal a inveja que lhes causou seu traje. Como estará ataviada no dia das bodas, se começa assim? — Oh! Nesse dia, apagar-me-ei ante o fausto dos cortejos. Mas hoje era a minha apresentação ao rei. Ainda estou comovidíssima. — Pareceu-lhe amável? — Como é possível não achar amável o rei? — disse Angélica sorrindo. — Vejo que a senhora já está bem inteirada do que se deve dizer e do que não se deve dizer na 8
  • 9. corte. Quanto a mim, continuo nela não sei por que milagre. Apesar de tudo, fui nomeado capitão da companhia que denominam "os gentis-homens de bico de corvo". — Admiro seu uniforme. — Não me fica muito mal... O rei é um amigo encantador, mas, cuidado! E preciso não o arranhar com muita força quando se brinca com ele. Aproximou-se mais e disse-lhe ao ouvido: — Sabia que por pouco não me encerram na Bastilha? — Que foi que fez? — Já não me recordo. Creio que tinha abraçado um pouco estreitamente a menina Maria Mancini, da qual o rei estava loucamente enamorado. A ordem de prisão estava pronta, mas fui avisado a tempo e atirei-me em lágrimas aos pés do rei e fi-lo rir tanto que ele me perdoou, e, em lugar de me mandar para a negra prisão, nomeou-me capitão. Como pode ver, é um amigo encantador... quando não é nosso inimigo. — Por que está me dizendo isso? — perguntou subitamente Angélica. Péguilin de Lauzun abriu o mais que pôde seus claros e expressivos olhos. — Por nada, querida amiga. Segurou-a familiarmente pelo braço e levou-a. — Venha, quero apresentá-lo a uns amigos que desejam ardentemente conhecê-la. Esses amigos, todos jovens, pertenciam ao séquito do rei. Angélica ficou encantada por se encontrar assim ao nível das primeiras figuras da corte. Saint-Thierry, Brienne, Cavois, Ondedei, o Marquês d'Humières, que Lauzun apresentou como seu inimigo habitual; Louvigny, segundo filho do Duque de Gramont; todos lhe pareceram muito alegres e galantes, e estavam magnificamente vestidos. Viu também De Guiche, ao qual continuava grudado o irmão do rei. Este lançou-lhe um olhar hostil. — Oh, já a conheço! — disse. E deu-lhe as costas. — Não se ofenda, minha cara, com essas maneiras — cochichou Péguilin. — Para o Petit Monsieur todas as mulheres são rivais, e De Guiche cometeu a imprudência de lhe dirigir um olhar amigável. — Saiba que ele não quer que continuem a chamá-lo de Petit Monsieur — advertiu o Marquês d'Humières. — Desde a morte de seu tio, Gastão d'Orléans, devemos chamá-lo simplesmente Monsieur. Produziu-se um rebuliço na multidão, seguido de empurrões, e algumas mãos solícitas se estenderam para proteger Angélica. — Cuidado, senhores! — exclamou Lauzun levantando um dedo sentencioso. — Recordem-se de uma espada célebre no Languedoc! Mas os apertos eram tais que Angélica, rindo e um tanto confusa, não pôde evitar que a espremessem entre alguns preciosos gibões enfitados e perfumados com pó de iris e âmbar. Os oficiais da casa do rei pediam passagem para uma procissão de lacaios que conduziam bandejas e terrinas de prata. Circulava o rumor de que Suas Majestades e o cardeal acabavam de retirar-se para tomar uma colação e descansar das intermináveis apresentações. Lauzun e seus amigos afastaram-se, reclamados por seu serviço. Angélica procurou com os olhos seus conhecidos tolosanos. Havia temido encontrar-se diante da fogosa Carmencita, mas inteirou-se de que o Sr. de Mérecourt, seu desventurado esposo, depois de haver bebido o cálice até as fezes, se havia decidido, num assomo de dignidade, enviar sua mulher para um convento. Angélica começou a abrir caminho entre os grupos. O cheiro dos assados, misturado com os perfumes, produzia-lhe enxaqueca. O calor era sufocante. A jovem tinha bom apetite. Pensou que a manhã já devia estar muito adiantada e que, se não encontrasse logo seu marido, voltaria sozinha ao seu hotel a fim de servir-se de um pouco de presunto e de vinho. As pessoas de sua província deviam ter-se reunido em casa de algumas delas para uma refeição. Não via em redor senão rostos desconhecidos. Aquelas vozes sem acento causavam-lhe impressão inusitada. Talvez, no transcurso dos anos passados no Lan-guedoc, houvesse também adquirido aquela maneira de falar, cantante e rápida. Sentiu-se um tanto humilhada. Foi parar em um canto, sob a escada, e sentou-se em um banco para tomar fôlego e abanar-se. Decididamente, não era fácil sair daquelas casas à espanhola com seus corredores ocultos e suas portas 9
  • 10. falsas. Precisamente a alguns passos, a parede recoberta de tapetes deixava aparecer uma fresta. Um cão que vinha do outro aposento, com um osso de ave na boca, alargou a abertura. Angélica lançou um olhar e viu a família real reunida em torno de uma mesa, em companhia do cardeal, dos arcebispos de Bayonne e de Toulouse, do Marechal de Gramont e do Sr. de Lionne. Os oficiais que serviam os príncipes entravam e saíam por outra porta. O rei, em várias ocasiões, atirou para trás sua cabeleira e abanou-se com o guardanapo. — O calor deste lugar estraga as melhores festas. __ A ilha dos Faisões é mais agradável. Sopra ali uma brisa marinha _ disse o Sr. de Lionne. — Aproveitarei muito pouco, porque, de acordo com a etiqueta espanhola, não devo ver minha noiva até o dia do casamento. — Mas irá para a ilha dos Faisões a fim de encontrar-se com o rei da Espanha, seu tio, que vai ser seu sogro — disse-lhe a rainha. — Então firmar-se-á a paz. Voltou-se para a Sra. de Motteville, sua dama de honor. — Estou muito emocionada. Queria muitíssimo a meu irmão e freqüentemente troquei correspondência com ele! Mas pense que eu tinha doze anos quando me separei dele, nesta mesma margem, e que desde então não tornei a vê-lo. Ouviram-se exclamações de enternecimento. Ninguém parecia recordar que esse mesmo irmão, Filipe IV, havia sido o maior inimigo da França, e que sua correspondência com Ana d'Áustria havia feito o Cardeal de Richelieu suspeitar dela por conluio e traição. Aqueles acontecimentos estavam distantes. Agora todos renovavam a esperança que, cinqüenta anos antes, enchera os corações, quando às margens daquele mesmo rio, o Bidassoa, se trocaram, entre os dois países, duas princesinhas de faces redondas, afogadas em suas amplas golas enrocadas: Ana d'Áustria casava-se com o jovem Luís XIII, e Isabel da França com o pequeno Filipe IV. A infanta Maria Teresa, que hoje esperavam, era filha daquela Isabel. Angélica olhava com apaixonada curiosidade aqueles grandes do mundo em sua intimidade. O rei comia com apetite, mas com dignidade; bebia pouco e várias vezes pediu que lhe pusessem água no vinho. — Palavra! — exclamou de súbito. — O mais extraordinário que vi esta manhã foi o estranho casal vestido de negro e ouro de Tou-louse. Que mulher, meus amigos! Uma maravilha! Já me haviam dito, mas não podia acreditar. E parece sinceramente enamorada dele. Na verdade, esse coxo me confunde. — Confunde a todos os que se aproximam dele — disse o Arcebispo de Toulouse com acrimônia. — Eu, que o conheço há vários anos, renuncio a compreendê-lo. Debaixo disso existe algo diabólico. Ja volta a delirar", pensou Angélica, desanimada. Seu coração tinha pulsado agradavelmente às palavras do rei, mas a intervenção do arcebispo revivia suas preocupações. O prelado não depunha as armas. Um dos gentis-homens do séquito do monarca disse com um risinho: — Estar apaixonada pelo marido! Eis uma coisa bem ridícula. Seria bom que essa jovem freqüentasse um pouco a corte. Fá-la-íamos perder esse tolo preconceito. — Parece acreditar, senhor, que a corte é um lugar onde não existe outra lei senão o adultério — protestou severamente Ana d'Àustria. — No entanto, é bom e natural que os esposos se amem. A coisa não tem nada de ridículo. — Mas isso é tão raro! — suspirou a Sra. de Motteville. — Porque é raro casar-se alguém sob o signo do amor! — disse o rei em tom desiludido. Houve um silêncio um tanto constrangido. A rainha-mãe trocou com o cardeal um olhar desolado. Monsenhor de Fontenac ergueu uma das mãos com unção. — Sire, não se entristeça. Se os caminhos da Providência são insondáveis, os do deusinho Eros não o são menos. E, já que invoca um exemplo que parece tê-lo comovido, posso afirmar-lhe que esse nobre e sua mulher nunca se tinham visto antes do dia do seu casamento, abençoado por mim na catedral de Toulouse. Entretanto, depois de vários anos de união, coroados pelo nascimento de um filho, seu recíproco amor fulgura diante dos olhos menos atentos. Ana d'Áustria teve uma expressão agradecida, e o monsenhor ergueu altivamente o queixo. "Hipócrita ou sincero?", pensava Angélica. A voz um tanto ceceosa do cardeal elevou-se de novo: — Esta manhã pareceu-me estar em um teatro. Esse homem é feio, desfigurado, aleijado e, no entanto, quando apareceu ao lado de sua esplêndida mulher, seguido por esse grande mouro de cetim 10
  • 11. branco, eu pensei: "Como são belos!" — Isso nos distrai de tantos rostos aborrecíveis — disse o rei. — É verdade que ele tem uma voz magnífica? — É o que dizem e repetem. O gentil-homem que havia falado tornou a chacotear: — Sem dúvida, é uma história extraordinariamente comovedora, quase um conto de fadas. E preciso vir ao Midi para ouvir semelhantes coisas. — Oh! Está insuportável com essa mania de zombar de tudo! — protestou mais uma vez a rainha-mãe. — Seu cinismo me desagrada, meu senhor. O cortesão inclinou a cabeça e fingiu interessar-se pelo cão que roía um osso junto à porta. Vendo-o dirigir-se para o lugar de seu retiro, Angélica levantou-se precipitadamente para afastar-se. Deu alguns passos na antecâmara, mas o manto pesava-lhe muito e enganchou-se num dos puxadores de um consolo. Enquanto ela se inclinava para desembaraçar-se, o homem rechaçou o cão com o pé, saiu e fechou a pequena porta disfarçada pela tapeçaria. Tendo desgostado a rainha-mãe, considerou prudente sair sorrateiramente. Avançou displicentemente, passou perto de Angélica e voltou-se para observá-la. — Oh! É a mulher de ouro!... Ela o olhou altivamente e procurou prosseguir seu caminho, mas ele barrou-lhe a passagem. — Mais devagar! Deixe-me contemplar o fenômeno. E, então, a dama apaixonada por seu marido? E que marido! Um verdadeiro Adônis! Angélica o examinou com tranqüilo desprezo. Era mais alto que ela e muito bem compleicionado. Seu rosto não era falto de beleza, mas a boca fina tinha uma expressão malvada, e seus olhos amendoados eram amarelos com manchinh as escuras. Aquela cor indecisa, bastante vulgar, afeava-o um pouco. Estava vestido com gosto e esmero. Sua peruca, de um louro quase branco, contrastava vivamente com a juvenilidade de seus traços. Angélica não pôde deixar de achá-lo bem-posto, mas disse friamente: — Na realidade, dificilmente o senhor pode sofrer uma comparação com ele. Na minha terra, os olhos como os seus são chamados "maçãs bichadas". Compreende o que quero dizer? E quanto aos cabelos, os de meu marido pelo menos são verdadeiros. Uma expressão de vaidade ferida ensombreceu a fisionomia do gentil-homem. — E mentira! — exclamou. — Ele usa peruca. — Dê-lhes um puxão, se tiver coragem! Tinha-lhe tocado nos pontos sensíveis e desconfiou que ele usava peruca porque começava a encalvecer. Mas logo ele recobrou o sangue-frio. Semicerrou os olhos até não serem mais que duas fendas brilhantes. — Então, procura ferir-me? Decididamente, é muita habilidade para uma provincianazinha. Lançou um olhar em torno; depois, segurando-a pelos pulsos, puxou-a para um canto. — Deixe-me! — disse Angélica. — Depois, minha bela. Agora temos que ajustar umas contazinhas. Antes que ela pudesse prever-lhe o gesto, ele deitou-lhe a cabeça para trás e mordeu-lhe cruelmente os lábios. Angélica soltou um grito. Sua mão moveu-se prontamente e caiu sobre a face do importuno. Anos sacrificados às boas maneiras não haviam atenuado nela o fundo de violência rústica unida ao vigor da saúde. Quando alguém despertava sua cólera, tornava a encontrar as mesmas reações que a tinham feito lutar braço a braço com seus com-panheirinhos aldeões. Estalou a bofetada e ele certamente viu estrelas, porque retrocedeu levando a mão ao rosto. — Palavra, uma verdadeira bofetada de lavadeira! — Deixe-me passar — repetiu Angélica —, se não quer que o desfigure tão completamente que não poderá tornar a apresentar-se diante do rei! O homem sentiu que ela cumpriria a promessa e recuou um passo. — Oh! Gostaria de tê-la uma noite inteira em meu poder! — murmurou cerrando os dentes. — Asseguro-lhe que ao amanhecer estaria domesticada, um verdadeiro frangalho. — É isso — respondeu ela rindo. — Medite sobre sua desforra... enquanto segura a cara. 11
  • 12. Afastou-se, abrindo passagem rapidamente até a porta. Os apertos tinham diminuído, porque muitos haviam ido comer alguma coisa. Angélica, ofendida e humilhada, apertava com o lenço a boca ferida. "Oxalá não se note demasiadamente!... Que responderei se Jof-frey me perguntar? É preciso evitar que fure esse porco. A menos que ache graça... Seria o último a ter ilusões sobre os costumes desses belos senhores do norte. Começo a compreender o que quer dizer quando fala de policiar as maneiras da corte... Mas é uma tarefa a que, por minha parte, não gostaria de dedicar-me..." Procurou descobrir sua cadeirinha e seus criados em meio ao bulício da praça. Um braço deslizou sob o seu. — Andava a procurá-la, querida — disse a Grande Mademoiselle, cuja alta figura acabava de surgir a seu lado. — Agita-se-me o sangue pensando em todas as necedades que pronunciei esta manhã diante de você sem saber quem era. Ai! Era um dia de festa, quando não se tem todas as comodidades, os nervos se alteram e a língua fala sem que a gente o perceba. — Vossa Alteza não tem por que preocupar-se. Não disse nada que não fosse verdade, embora não lisõnjeiro. Não recordo senão suas últimas frases. _- Você é a graça em pessoa. Estou encantada por tê-la como vizinha... Tornará a emprestar-me seu cabeleireiro, não é? Tem tempo disponível? E se fôssemos trincar algumas uvas à sombra? Que lhe parece? Esses espanhóis não chegam. — Estou às ordens de Vossa Alteza — respondeu Angélica com uma reverência. No dia seguinte pela manhã tiveram de ir ver o rei da Espanha comer na ilha dos Faisões. Toda a corte se atropelava nas embarcações e molhava os lindos sapatos. As damas davam gritinhos, arrepanhando as saias. Angélica, vestida de verde e cetim branco bordado de prata, foi levada por Péguilin a sentar-se entre uma princesa de semblante espiritual e o Marquês d'Humières. O Petit Monsieur, que estava entre os espectadores, ria-se muito evocando o ar triste de seu irmão, obrigado a ficar na margem francesa. Luís XIV não devia ver a infanta até que o matrimônio por procuração a houvesse tornado rainha na margem espanhola. Só então iria à ilha dos Faisões para jurar a paz e levar sua fabulosa conquista. O matrimônio verdadeiro seria celebrado em Saint-Jean-de-Luz pelo Bispo de Bayonne. Deslizavam os barcos sobre a água tranqüila, pejados de cintilante carga. Atracaram. Enquanto Angélica esperava sua vez de desembarcar, um dos senhores pôs o pé sobre o banco em que ela estava sentada e com o alto tacão espremeu-lhe os dedos. Ela reteve um grito de dor. Levantando os olhos, reconheceu o gentil-homem da véspera, que tão perversamente a molestara. — É o Marquês de Vardes — disse a princesinha que estava a seu lado. — Naturalmente que o fez de propósito. — Um verdadeiro bruto! — lamentou Angélica. — Como se pode tolerar uma pessoa tão grosseira no séquito do rei? — Ele diverte o rei com sua insolência e, além disso, diante de Sua Majestade esconde as garras. Mas tem fama na corte. Fizeram uma cançoneta sobre ele. E pôs-se a cantarolar: — Não precisa de pele de búfalo Para portar-se como um selvagem. Não esconde o sombrio focinho Nem com a pompa nem com a roupagem. Quem diz "de Vardes" diz: "o selvagem". — Cale-se, Henriqueta! — exclamou o irmão do rei. — Se a Sra. de Soissons a ouvir, ficará indignada e irá queixar-se a Sua Majestade de que falam mal de seu favorito. — Ora essa! A Sra. de Soissons já não tem valimento junto a Sua Majestade. Agora que o rei se casa... — Onde aprendeu, senhora, que uma esposa, embora seja a infanta, pode ter mais influência sobre seu marido que uma antiga amante? — perguntou Lauzun. — Oh, senhores! Oh, senhoras! — exclamou a Sra. de Mottevil-le. — Por favor! Parece-lhes momento apropriado para tal conversa quando os grandes da Espanha já vêm ao nosso encontro? Trigueira, seca, o rosto sulcado de rugas, misturava curiosamente seu escuro vestido e seus ares pudibundos àquela carga de tagare-las. Talvez a presença da dama de honor de Ana d'Áustria não fosse inteiramente fortuita. A rainha-mãe a teria encarregado de fiscalizar as palavras daquela juventude louca, habitualmente inconsiderada, e que poderia ferir os melindres espanhóis. 12
  • 13. Angélica começava a cansar-se daquelas pessoas frívolas, maldizentes, e cujos vícios uma etiqueta complicada dificilmente disfarçava. Ouviu a morena Condessa de Soissons dizer a uma de suas amigas: — Querida, encontrei dois corredores dos quais estou muito orgulhosa. Disseram-me que os bascos eram mais ligeiros que o vento. Podem fazer, correndo, mais de vinte léguas por dia. Não lhes parece que esse costume de fazer-se preceder por corredores que os anunciam e por cães que ladram e afastam o populacho dá o ar mais importante do mundo? Tais palavras fizeram Angélica recordar-se de que Joffrey, tão amante do fausto, não gostava, contudo, daquela moda de corredores precedendo as carruagens. E onde estaria ele?, pensou por associação de idéias. Não o via desde a véspera. O conde havia voltado ao palacete a fim de trocar de roupa e barbear-se, mas nesses momentos ela estava em casa da Grande Mademoiselle. Ela própria tivera de vestir-se três ou quatro vezes a toda a pressa e muito nervosa. Não havia dormido senão poucas horas, mas as libações de bom vinho que se faziam a cada momento lograram mantê-la desperta. Renunciava a preocupar-se com Florimond; dentro de três ou quatro dias chegaria o momento de saber se as criadas lhe haviam dado de co- mer, em vez de correrem para admirar as carruagens e de se deixarem galantear pelos pajens e criados do serviço do rei. Por outro lado, Margarida velava. Seu temperamento huguenote reprovava as festas e, atenta a todos os cuidados que requeria a elegância de sua ama, dirigia severamente os domésticos que tinha sob suas ordens. Angélica viu finalmente Joffrey entre a multidão que se comprimia no interior da casa situada no centro da ilha. Caminhou até ele e tocou-o com o leque. O conde deixou cair sobre ela um olhar distraído. — Ah! Está aqui. — Joffrey, sinto terrivelmente sua falta. Parece que não lhe agrada ver-me. Converteu-se ao preconceito que ridiculariza os esposos que se amam? Parece-me que se envergonha de mim. Joffrey recobrou seu franco sorriso e estreitou-a pela cintura. — Não, meu amor. Mas via-a em tão importante e agradável companhia... — Oh, agradável! — fez Angélica passando um dedo sobre a mão esfolada. — Corro enorme perigo de sair aleijada. Que fez desde ontem? — Encontrei alguns amigos, falei com uns e outros. Viu o rei da Espanha? — Ainda não. — Entremos nesta sala. Estão preparando a mesa. Segundo a etiqueta espanhola, o rei deve comer sozinho, seguindo um cerimonial muito complicado. As paredes da sala estavam cobertas de tapetes que contavam em tons surdos, bronzeados, matizados de vermelho e cinzento-azulado, a história do reino da Espanha. O aperto era enorme. As duas cortes rivalizavam em luxo e magnificência. Os espanhóis levavam a palma sobre os franceses em ouro e pedrarias, mas estes triunfavam pela forma e elegância dos trajes. Os jovens do séquito de Luís XIV exibiam mantos de chamalote cinza cobertos de rendas de ouro seguras por pontos cor de fogo e forrados de tecido de ouro. O gibão era de brocado de ouro. Os chapéus, guarnecidos de plumas brancas, tinham a aba levantada de um lado e presa por um alfinete de diamantes. Mostravam rindo os longos bigodes fora de moda dos grandes da Espanha e suas roupas carregadas de bordados maciços e antiquados. — Viu esses chapéus chatos com suas peninhas? — cochichou Péguilin a rir. — E as damas? Uma série de velhas magricelas com os ossos salientes sob as mantilhas. — Em seu país, as belas esposas estão sempre em casa, por trás das grades. — Parece que a infanta ainda usa anquinhas com aros de ferro tão grandes que tem de pôr-se de lado para passar pelas portas. — E o justilho apertado a tal ponto que parece não ter seios, ela que dizem tê-los formosíssimos — exagerou a Sra. de Motte-ville ajeitando algumas rendas sobre seu magro torso. Joffrey de Peyrac deixou cair sobre ela seu olhar mais cáustico. — Realmente, é preciso que os costureiros de Madri sejam muito pouco experientes para estragar de tal maneira o que é belo, enquanto os de Paris são tão hábeis que realçam o que quase não existe. Angélica beliscou-o por baixo da manga de veludo. Ele riu e beijou-lhe a mão com ar de 13
  • 14. cumplicidade. Ela suspeitou que ele ocultava uma preocupação, mas depois, distraída, não pensou mais nisso. Subitamente todos se calaram. O rei da Espanha acabava de entrar. Angélica, que não era muito alta, conseguiu subir em um escabelo. — Parece uma múmia — disse Péguilin. A cútis de Filipe IV parecia, efetivamente, de pergaminho. Aproximou-se da mesa com passos de autômato. Seus grandes olhos tristes não piscavam. Seu queixo alongado sustinha um lábio vermelho que, com a escassa cabeleira acobreada, acentuava seu aspecto doentio. No entanto, cônscio de sua grandeza quase divina de soberano, não fazia gesto algum que não correspondesse à exata obrigação da etiqueta. Tolhido pelas cadeias de seu poder, solitário em sua pequena mesa, comia como se oficiasse. Um rebuliço da multidão, que não cessava de aumentar, empurrou as primeiras filas para a frente. A mesa real quase tombou. A atmosfera tornou-se irrespirável e Filipe IV sentiu um mal-estar. Viram-no levar a mão à garganta e afrouxar a gola de rendas. Mas em seguida voltou a assumir a postura herática como ator consciencioso até o martírio. — Quem diria que esse espectro fecunda com a mesma facilidade de um galo? — disse o incorrígível Péguilin de Lauzun quando, terminada a refeição, saíram para o ar livre. — Seus filhos naturais soltam vagidos pelos corredores de seu palácio, e sua segunda mulher não pára de trazer ao mundo crianças raquíticas, que passam rapidamente do berço para o podredouro do Escoriai. _ O último morreu durante a embaixada de meu pai em Madri quando foi pedir a mão da infanta — disse Louvigny, segundo filho do Duque de Gramont. — Depois nasceu outro que tem apenas um sopro de vida. O Marquês d'Humières exclamou com entusiasmo: _ Ele morrerá, e então quem será o herdeiro do trono de Carlos V? A infanta nossa rainha. _ O senhor tem os olhos muito abertos e vê demasiadamente longe, marquês — retrucou, pessimista, o Duque de Bouillon. — Quem nos diz que tal porvir não foi previsto por Sua Eminência, o cardeal, e até por Sua Majestade? — Sem dúvida, sem dúvida, mas as ambições excessivas não são nada favoráveis à paz. Com o longo nariz dirigido para o vento do mar, como se farejasse alguns odores suspeitos, o Duque de Bouillon resmungou: — A paz! A paz! Não levará dez anos para vacilar. Não levou duas horas. Subitamente tudo pareceu perdido, pois correu o boato de que não haveria casamento. Dom Luís de Haro e o Cardeal Mazarino haviam esperado demasiadamente para ajustar os últimos detalhes da paz e assentar alguns pontos nevrálgicos — aldeias, caminhos e fronteiras —'nos quais cada um queria tirar vantagem aproveitando-se do entusiasmo das festas. Nem um nem outro queria ceder. A guerra continuaria. Houve meio dia de expectativa angustiada. Fez-se intervir o deus Amor entre os dois noivos, que nunca se tinham visto, e Ondedei pôde transmitir uma mensagem à infanta, em que lhe comunicava a impaciência do rei por conhecê-la. Uma filha é onipotente sobre o coração de seu pai. Por muito dócil que fosse, a infanta não tinha nenhum desejo de voltar a Madri, depois de haver estado tão perto do Sol... Fez compreender a Filipe IV que ela queria seu marido, e a ordem das cerimônias, perturbada um momento, foi restabelecida. O matrimônio por procuração realizou-se na margem espanhola, em San Sebastián. A Grande Mademoiselle levou Angélica. A filha de Gastão d'Orl éans, de luto por seu pai, não devia assistir a celebração. Mas decidiu comparecer incógnita, isto é, amarrando um lenço de cetim em torno dos cabelos e não usando pó. A procissão através das ruas da cidade pareceu aos franceses uma estranha bacanal. Cem bailarinos vestidos de branco, com guizos nas pernas, faziam peloticascom espadas; atrás, cinqüenta moços mascarados faziam ressoar seus pandeiros. Seguiam-se três gigantes de vime vestidos de reis mouros e tão altos que chegavam até o primeiro andar das casas, um enorme São Cristóvão, um espantoso dragão maior que seis baleias e, por fim, sob um palio, o Santíssimo Sacramento, em uma custódia de ouro gigantesca e diante da qual se ajoelhava a multidão. Aquelas pantomimas barrocas, aquelas extravagâncias místicas estonteavam os estrangeiros. 14
  • 15. Na igreja, por trás do tabernáculo, uma escada se elevava até o teto, carregada de círios. Angélica contemplava, deslumbrada, aquela sarça ardente. O forte cheiro do incenso acentuava a atmosfera insólita, mourisca, da catedral. Na obscuridade das abóbadas e nas naves laterais via-se bri- lharem as douradas e retorcidas colunas de três tribunas superpostas onde se amontoavam, de um lado, os homens, e do outro, as damas. A espera foi longa. Os padres desocupados conversavam com as francesas, e a Sra. de Motteville, oculta na sombra, horrorizou-se mais uma vez das coisas que ouviu. — Perdone. Déjemepasarl — disse uma rouca voz espanhola perto de Angélica. Ela olhou ao redor e, baixando os olhos, viu uma criatura estranha. Era uma anã, tão gorda quanto alta, e extremamente feia. Sua mão carnuda se apoiava no pescoço de um grande lebréu negro. Seguia-a um anão, com roupas enfeitadas e uma ampla gola, mas a expressão de seu rosto era astuta, e, ao olhá- lo, sentia-se vontade de rir. As pessoas se afastaram para dar passagem ao diminuto par e ao animal. — É a anã da infanta e seu bufão Tomasini — disse alguém. — Parece que os traz para a França. — Para que necessita desses pigmeus? Na França não faltará do que rir-se. — Ela diz que somente sua anã sabe preparar-lhe o chocolate com canela. Lá em cima Angélica viu elevar-se uma figura pálida e imponente: era Monsenhor de Fontenac que chegava a uma das tribunas de madeira dourada. Inclinou-se por cima da balaustrada. Em seus olhos brilhava um fogo destruidor. Falava com alguém que Angélica não via.' Subitamente alarmada, abriu caminho em direção do prelado. Joffrey de Peyrac, ao pé da escada, levantava seu rosto irônico para o arcebispo. — Recorde-se do "ouro de Toulouse" — dizia este último a meia-voz. — Quando Servílio Cipíão saqueou os templos de Toulouse, foi vencido como castigo de sua impiedade. Eis por que a expressão proverbial "ouro de Toulouse" faz alusão às desgraças que trazem consigo as riquezas mal adquiridas. O Conde de Peyrac continuava sorrindo. __ Gosto do senhor — murmurou — e o admiro. Tem o candor e a crueldade dos puros. Vejo brilhar em seus olhos as chamas da Inquisição. Então não me poupará? — Adeus, senhor — disse o arcebispo com os lábios contraídos. — Adeus, Foulques de Neuilly. Os círios lançavam suas luzes sobre o rosto de Joffrey de Peyrac. Ele olhava ao longe. — Que se passa agora? — cochichou Angélica. — Nada, minha lindeza. Nossa eterna querela... O rei da Espanha, pálido como um morto, adiantava-se pela nave central, sem aparato, levando a infanta pela mão. A princesa tinha uma brancura de pele conservada na penumbra dos austeros palácios madrilenhos, olhos azuis, cabelos de seda pálida avolumados por madeixas postiças, ar submisso e tranqüilo. Mais parecia flamenga que espanhola. Ach aram horrível seu traje de lã branca muito pouco bordado. O rei levou sua filha até o altar, onde ela se ajoelhou. Dom Luís de Haro, que a desposava em nome do rei da França, estava a seu lado, mas bastante longe dela. Quando chegou o instante do juramento, a infanta e Dom Luís estenderam o braço um para o outro, sem se tocarem. Ao mesmo tempo, a infanta pôs a mão na de seu pai e beijou-o. Correram lágrimas sobre as faces de marfim do soberano. A Grande Made-moiseile assoou-se ruidosamente. CAPÍTULO II As núpcias do rei — Desaparecimento do Conde de Peyrac —Cantará para nós? — perguntou o rei. Joffrey de Peyrac estremeceu. Dirigiu a Luís XIV um olhar altivo e mirou-o como teria feito com um desconhecido que não lhe houvessem apresentado. Angélica tremeu e segurou-lhe a mão. — Cante para mim — cochichou ela. O conde sorriu e fez um sinal a Bernardo d'Andijos, que se precipitou para fora do salão. Aproximava-se o término da reunião. Perto da rainha-mãe, do cardeal, do rei e de seu irmão, estava 15
  • 16. sentada a infanta, muito ere-ta, com os olhos baixos ante aquele esposo ao qual ia unir-se nas cerimônias do dia seguinte. Sua separação da Espanha estava consumada. Filipe IV e seus bidalgos, com o coração dilacerado, regressavam a Madri, deixando a infanta altiva e pura em penhor da nova paz... O pequeno violinista Giovanni atravessou as filas dos cortesãos e apresentou ao Conde de Peyrac sua guitarra e sua máscara de veludo. — Por que se mascara? — perguntou o rei. — A voz do amor não tem semblante — respondeu Peyrac —, e quando sonham os belos olhos das damas é preciso que nenhuma fealdade venha turbá-los. Preludiou e começou a cantar, misturando canções antigas em língua d'oc e as copias de amor que estavam na moda. Por fim, erguendo sua alta figura, foi sentar-se perto da infanta e entoou um endiabrado refrão espanhol, cortado por gritos roucos à maneira árabe, e no qual ardiam toda a paixão e o entusiasmo da península Ibérica. O inexpressivo rosto de nacar e rosa acabou por comover-se; as pálpebras da infanta se levantaram e seus olhos brilharam. Certamente revivia pela última vez sua existência clausurada de pequena divindade, entre suas aias e os anões que a faziam rir, existência calma e austera, mas familiar, em que se jogavam cartas se recebiam visitas de religiosas que prediziam o futuro e se preparavam refeições de confeitos e de bolos aromatizados com flor de laranjeira e violeta. A infanta sentiu um pequeno susto ao ver em seu redor todos aqueles rostos franceses. — O senhor nos encantou — disse o rei ao cantor. — Só desejo uma coisa, e é ter, amiúde, ocasião de tornar a escutá-lo. O olhar de Joffrey de Peyrac brilhou de modo estranho por trás da máscara. — Ninguém o deseja mais que eu, sire. Mas tudo depende de Vossa Majestade, não é certo? Angélica viu o soberano franzir ligeiramente o sobrolho. — E verdade. Agrada-me ouvi-lo dizer isso, Sr. de Peyrac — fez um tanto secamente. Ao voltar para casa, a uma hora muito avançada da noite, Angélica despiu-se apressadamente, sem esperar a ajuda de uma criada, e jogou-se no leito soltando um suspiro. — Estou derreada, Joffrey. Creio que ainda não estou preparada para a vida da corte. Como se arranja essa gente para absorver tantos prazeres e ainda encontrar meio de se enganar mutuamente pela noite? O conde estendeu-se junto dela sem responder. Fazia tanto calor que o simples contato dos lençóis incomodava. Pela janela aberta entrava a luz avermelhada das tochas que passavam pela rua, ilu- minando até o fundo do leito, cujas cortinas haviam deixado erguidas. Em Saint-Jean-de-Luz continuavam os preparativos para o dia seguinte. — Se eu não dormir um pouco, cairei durante a cerimônia — disse Angélica bocejando. Estirou-se e depois aconchegou-se ao corpo moreno e magro do marido. Ele estendeu a mão, acariciou-lhe as ancas que luziam como alabastro na penumbra, seguiu a curva flexível da cintura, encontrou os seios pequenos e firmes. Seus dedos fremiram, tornaram-se mais expeditos, afagaram o ventre da mulher. Como ele tentasse uma carícia mais ousada, Angélica protestou, meio adormecida: — Oh, Joffrey, estou com tanto sono! Ele não insistiu, e ela o olhou através dos cílios para ver se não estava zangado. Apoiado em um cotovelo, ele a observava meio sorridente. — Dorme, meu amor — cochichou. Quando acordou, Angélica pôde acreditar que ele não se havia movido, porque continuava a contemplá-la. Ela lhe sorriu. O calor havia abrandado. Ainda estava escuro, mas o céu tomava uma coloração esverdeada, prelúdio do deslumbramento da aurora. Um passageiro torpor aquietava a pequena cidade. Ainda estremunhada, Angélica aproximou-se dele, e seus braços se encontraram, procurando uma perfeita união. Ele lhe ensinara o prolongado prazer, o hábil combate, com suas fintas, seus recuos, suas ousadias, obra paciente em que os dois generosos corpos eram mutuamente transportados ao paroxismo do gozo. Quando, afinal, se separaram, exaustos, saciados, o sol já ia alto no céu. — Quem diria que temos em perspectiva um dia fatigante? — disse Angélica rindo. Margarida bateu à porta. — Senhora, senhora, está atrasada! Os coches já se dirigem para a catedral, e não vai encontrar lugar para ver o cortejo. O cortejo era pouco numeroso. Seis personagens iam a pé pelo caminho alcatifado. Na frente marchava o Cardeal-Príncipe de Conti, brilhante e entusiasta, antigo herói da Fronda, cuja presença naquele festivo dia confirmava de uma e outra parte a vontade de apagar as tristes recordações. " Depois, o Cardeal Mazarino, em seu manto púrpura. A certa distância avançava o rei em traje de brocado de ouro ornado de ampla renda negra. De um e outro lado do soberano, o Marquês d'Humières e Péguilin de Lauzun, capitães das duas companhias de gentis-homens de bico de corvo, empunhavam cada qual o bastão azul, insígnia de seu posto. Seguia-lhes os passos a infanta, a nova rainha, tendo à direita Monsieur, irmão do rei, e à esquerda o cavaleiro de honra, Sr. de Bernonville. O traje da rainha era de brocado de prata, e o manto de veludo 16
  • 17. violeta semeado de lírios. O manto, muito curto nos lados, tinha uma cauda com dez varas de comprimento. Seguravam-no as jovens primas do rei, Srtas. de Valois e d'Alençon, e a Princesa de Carignan. Duas damas sustentavam sobre a cabeça da soberana uma coroa fechada. O deslumbrante grupo avançava com dificuldade pela rua estreita, ao longo da qual estavam formados suiços, guardas franceses e mosqueteiros. A rainha-mae, envolta em véus negros bordados de prata, seguia o par, rodeada de suas damas e de seus guardas. Fechando o préstito vinha a Srta. de Montpensier, a "grande estouvada do reino", o estorvo da corte, vestida de negro, mas com vinte fileiras de pérolas. O percurso até a igreja era curto; no entanto, produziram-se alguns incidentes. Viu-se muito bem que Humières disputava com Péguilin. Os dois capitães tomaram lugar na igreja de ambos os lados do rei. Com o Conde de Charost, capitão de uma companhia de guardas, e o Marquês de Vardes, capitão-coronel dos cem suíços, acompanharam o rei na oferenda. Luís XIV tomou das mãos de Monsieur, que o havia recebido do grande mestre de cerimônia, um círio com vinte luíses de ouro e o entregou a João d'01ce, Bispo de Bayonne. Mademoiselle desempenhava em relação à jovem rainha Maria Teresa as mesmas funções de Monsieur para com o rei. — Não levei minha oferenda e fiz minhas reverências tão bem como qualquer outra pessoa? — perguntou mais tarde a Angélica. — Certamente, Vossa Alteza tinha muita majestade. Madajioiselle envaideceu-se. — Sirvo para as cerimônias e creio que minha pessoa, nessas ocasiões, ocupa seu posto tão bem como meu nome no cerimonial. Graças à sua proteção, Angélica pôde assistir de perto a todas as festividades subseqüentes: o banquete e o baile. De noite tomou parte no longo desfile de cortesãos e nobres que foram inclinar-se, um após outro, diante do grande leito em que se achavam estendidos lado a lado o rei e sua jovem esposa. Angélica viu a ambos imóveis como rígidas bonecas, deitados entre lençóis de renda, sob os olhares da multidão. Tanta etiqueta despojava de vida e calor o ato que ia realizar-se. Como aqueles esposos, que até ontem não se conheciam, e que agora se achavam tesos em sua magnificência, engomados em sua dignidade, poderiam voltar-se um para o outro a fim de estreitar-se quando a rainha-mãe, segundo o costume, houvesse deixado cair sobre eles as cortinas do suntuoso leito? Teve pena da infanta impassível, que diante de tantos olhares devia dissimular sua perturbação de moça. A menos que não sentisse emoção alguma, figurante habituada desde a infância à servidão das representações. Não se tratava senão de mais um rito. Podia-se confiar no sangue bour-bônico de Luís XIV para não fracassar. Ao descer a escada, os senhores e as damas trocavam pilhérias maliciosas. Angélica pensava em Joffrey, que tinha sido tão carinhoso e paciente para com ela. Onde estaria Joffrey? Não o vira durante o dia todo. No vestíbulo da casa real, Péguilin de Lauzun aproximou-se dela. Estava um tanto sufocado. — Onde está seu marido? — Palavra que também o estou procurando. — Quando o viu pela última vez? — Separei-me dele esta manhã para ir à catedral com Mademoi-selle. Ele acompanhava o Sr. de Gramont. — Depois não o viu? — Já lhe disse que não. Como está agitado! Que quer dele? Lauzun tomou-a pela mão. — Vamos à residência do Duque de Gramont! — Que está acontecendo? Péguilin não respondeu. Ainda envergava seu belo uniforme, mas, contrariamente a seu costume, seu rosto havia perdido a alegria. Em casa do Duque de Gramont, o grão-senhor, sentado à mesa entre um grupo de amigos, disse-lhe que o Conde de Peyrac se havia separado dele de manhã, depois da missa. — Ia sozinho? — perguntou Lauzun. — Sozinho? Sozinho? — resmungou o Duque. — Que quer dizer, meu rapaz? Será que existe uma só pessoa em Saint-Jean-de-Luz que possa vangloriar-se de estar sozinha hoje? Peyrac não me confiou suas intenções, mas posso dizer-lhe que seu mouro o acompanhava. — Está bem — disse Lauzun. — Deve estar com os gascões. O grupo está. se divertindo à grande em uma taberna do porto; a menos que tenha aceitado o convite da Princesa Henriqueta da Inglaterra, que tencionava pedir-lhe que cantasse para ela e suas damas. — Venha Angélica! — disse Lauzun. A Princesa Henriqueta era a simpática jovem perto da qual Angélica havia estado no barco por ocasião da visita à ilha dos Fai-sões. A pergunta de Péguilin, sacudiu negativamente a cabeça: 17
  • 18. — Não, não está aqui. Enviei um de meus gentis-homens para buscá-lo, mas ele não o encontrou em parte alguma. — No entanto, seu mouro Kuassi-Ba é um indivíduo que a gente distingue sem dificuldade. — Ninguém viu o mouro. Na taberna A Baleia de Ouro, Bernardo d'Andijos levantou-se penosamente da mesa ao redor da qual estava reunida a fina flor da Gascogne e do Languedoc. Não, ninguém tinha visto o Conde de Peyrac. Deus era testemunha de que o tinham procurado, de que haviam chegado até a jogar pedras nos vidros das janelas de sua habitação, na Rue de Ia Rivière. Haviam mesmo quebrado as vidraças da residência de Mademoiselle. Mas não havia sombra de Peyrac. Lauzun, com a mão no queixo, refletia. — Procuremos De Guiche. O Petit Monsieur olhava com ternura para seu marido. Pode ser que o tenha atraído a alguma festa íntima em casa de seu favorito. Angélica seguia o duque através das ruelas entupidas de gente, iluminadas com tochas e lanternas multicores. Entravam, interrogavam, saíam. As pessoas estavam à mesa, envolvidas pelo odor dos manjares, pela fumaça de centenas de velas e pelo hálito dos criados que tinham passado o dia bebendo nas fontes de vinho. Nas encruzilhadas dançavam ao som de tamborins e castanho-las. Os cavalos relinchavam na penumbra dos pátios. O Conde de Peyrac havia desaparecido. Angélica segurou bruscamente Péguilin e fê-lo virar-se para ela. — Basta, Péguilin! Fale. Por que se inquieta de tal modo por meu marido? Sabe alguma coisa? Ele suspirou e, levantando discretamente a peruca, enxugou a testa. — Nada sei. Um gentil-homem do séquito do rei nunca sabe nada. Pode custar-lhe demasiado caro. Mas faz tempo que venho suspeitando de um conluio contra seu marido. Cochichou-lhe ao ouvido: — Receio que tenham procurado prendê-lo. — Prendê-lo? — repetiu Angélica. — Mas por quê? Com um gesto Péguilin demonstrou que ignorava. — Está louco — disse Angélica. — Quem pode dar a ordem de prendê-lo? — O rei, evidentemente. — O rei tem outras coisas mais importantes a fazer para que possa pensar em prender pessoas em um dia como hoje. O que me diz não tem pés nem cabeça. — Assim o espero. Ontem de noite fiz-lhe chegar uma palavra de advertência. Ainda tinha tempo de saltar para o seu cavalo. Senhora, está bem certa de que ele passou a noite a seu lado? — Sim, muito certa — disse, ruborizando-se um pouco. — Ele não compreendeu. Brincou mais uma vez com o destino. — Péguilin, você está me enlouquecendo! — exclamou Angélica sacudindo-o. — Creio que está fazendo comigo uma brincadeira de mau gosto. — Psiu! Atraiu-a para si como homem acostumado a lidar com mulheres e encostou a face na dela para tranqüilizá-la. — Sou um rapaz muito mau, minha linda; mas uma coisa de que nunca serei capaz é de atormentar seu coraçaozinho. Além disso, depois do rei, não há homem a quem eu mais queira do que ao Conde de Peyrac. Não enlouqueça, minha amiga. Pode ser que tenha fugido a tempo. — Mas afinal... — exclamou Angélica. Lauzun fez um gesto imperioso. — Mas afinal — repetiu baixo —, por que haveria o rei de querer prendê-lo? Sua Majestade falou- lhe ontem mesmo com muita graça, e até ouvi-lhe palavras em que não ocultava a simpatia que Joffrey lhe inspirava. — Ora! Simpatia!... Razão de Estado... Influências... Não podemos, nós nobres cortesãos, dosar os sentimentos do rei. Lembre-se de que foi discípulo de Mazarino, e que este se referia a ele deste modo: "Demorará a pôr-se em marcha, mas'irá mais longe que os outros". — Não acha que pode haver em tudo isso alguma intriga do Arcebispo de Toulouse, Monsenhor de Fontenac? 18
  • 19. — Não sei nada... não sei nada — repetiu Péguilin. Acompanhou-a até em casa e disse-lhe que iria buscar mais informações e viria vê-la de manhã. Ao entrar, Angélica esperava ansiosamente que seu marido a estivesse aguardando, mas não encontrou senão Margarida, que velava Florimond adormecido, e a velha parenta de Joffrey, que, completamente esquecida no meio de tantas festas, se limitava a passear pelas escadas. As outras domésticas tinham ido dançar na cidade. Angélica deitou-se vestida no leito, depois de tirar unicamente os sapatos e as meias. Tinha os pés inchados da louca corrida que dera com o Duque de Lauzun através da cidade. O cérebro girava-lhe sem cessar. — Amanhã refletirei — disse ela. E adormeceu pesadamente. Despertou-a um chamado que vinha da rua. — Médême! Médême! A luz viajava sobre os telhados planos da pequena cidade. Do porto ainda chegavam gritos e cantos, e também da grande praça, mas aquele bairro estava silencioso e quase todos dormiam, extremamente fatigados. Angélica precipitou-se para o balcão e divisou o negro Kuassi-Ba, de pé, ao luar. — Médême, médême!... — Espera. Desço para abrir. Sem se calçar, desceu rapidamente, acendeu uma vela no vestí-bulo e abriu a porta. O negro entrou com um salto flexível de animal. Seus olhos brilhavam estranhamente. Angélica viu que ele tremia como se estivesse em transe. — De onde veio? — Lá de baixo — disse com um gesto vago. — Preciso de um cavalo. Imediatamente, um cavalo! Seus dentes se descobriram numa careta selvagem. — Atacaram meu amo — cochichou —, e eu não tinha o meu grande sabre. Oh! Por que não tinha o meu grande sabre hoje? — Como? Atacaram Joffrey, Kuassi-Ba? Quem o atacou? — Não sei, senhora. Como o saberia eu, um pobre escravo? Um pajem lhe trouxe um papelzinho. Meu senhor foi lá. Eu o seguia. Não havia gente no pátio daquela casa. Somente uma carruagem com cortinas pretas. Saíram homens e o cercaram. Meu senhor puxou da espada. Vieram outros homens. Ele foi golpeado e metido na carruagem. Eu gritava. Agarrei-me ao coche. Dois criados tinham subido atrás, sobre o eixo. Bateram-me até que caí, mas derrubei um e estrangulei-o. — Você o estrangulou? — Com as minhas mãos, assim — disse o negro abrindo e tornando a cerrar as mãos como tenazes. — Corri pela estrada. Fazia muito sol e tenho a língua maior que a cabeça, de tanta sede. — Venha beber. Depois falará. Foram para a estrebaria, onde o negro apanhou um balde e bebeu. — Agora — disse enxugando os grossos lábios —, vou apanhar um cavalo e persegui-los. Matarei a todos com o meu grande sabre. Remexeu a palha e tirou sua pequena bagagem. Enquanto o escravo despia as vestes de cetim rasgadas e cobertas de poeira para vestir uma libre mais simples, Angélica, com os dentes cerrados, entrou na coxia e desatou o cavalo do mouro. Fragmentos de palha espetavam-lhe os pés descalços, mas ela não os sentia. Parecia-lhe estar vivendo um pesadelo em que tudo ia devagar, demasia- dâmente devagar... Corria para seu marido, estendia os braços para ele. Mas nunca mais poderia encontrá-lo, nunca mais... Viu partir à rédea solta o negro cavaleiro. Os cascos do animal fizeram saltar faíscas da rua calçada com pedras arredondadas. De-crescia o ruído do galope no momento em que outro som nascia da límpida manhã: o dos sinos anunciando as matinas para uma ação de graças. Terminava a noite de núpcias reais. A Infanta Maria Teresa era rainha da França. CAPITULO III Viagem para Paris — Atentado contra a carruagem de Angélica — Hospitalidade de Hortênsia 19
  • 20. Atravessando campos e vergéis em flor, a corte retornava a Paris. A longa caravana estendia entre os trigais novos seus coches de seis cavalos, seus carros pejados de leitos, baús e tapetes, seus muares carregados, seus lacaios e seus guardas montados. Nas vizinhanças das cidades, aproximavam-se na poeira as de-putações de magistrados municipais, que levavam até a carruagem do rei as chaves sobre uma bandeja de prata ou uma almofada de veludo. Assim desfilaram Bordeaux, Saintes, Poitiers, que Angélica, perdida naquele bulício, quase não reconheceu. Também ela ia para Paris, acompanhando a corte. — Já que nada lhe dizem, proceda como se nada houvesse acontecido — aconselhara Péguilin. Este multiplicava os "psíu!" e sobressaltava-se ao menor ruído. — Seu marido tinha intenção de ir a Paris; vá, pois. Ali tudo se esclarecerá. Em suma, talvez não passe tudo de um mal-entendido. — Mas que sabe você, Péguilin? — Nada, nada... Nada sei. E afastou-se, com o olhar inquieto, para ir bufonear diante do rei. Finalmente, Angélica, depois de ter pedido a Andijos e a Cerba-laud que a escoltassem, fez voltar para Toulouse parte de sua equi-pagem. Reteve apenas um coche e outra viatura, bem como Margarida, uma criadinha, embaladeira de Florimond, três lacaios e dois cocheiros. No último momento, o cabeleireiro Binet e o pequeno violinista Giovanni suplicaram-lhe que os levasse. — Se o senhor Conde nos estiver esperando em Paris e eu lhe falar, ficará muito descontente, asseguro-lhe — dizia Francisco Binet. — Conhecer Paris! Oh! conhecer Paris! — repetia o jovem músico. — Se conseguir encontrar o professor de música do rei, esse Batista Lulli de quem tanto se fala, estou certo de que me aconselhará e chegarei a ser um grande artista. — Está bem, sobe, grande artista — acabou Angélica por ceder. Continuava sorrindo, fingia despreocupação e agarrava-se às palavras de Péguilin: "Deve ser um mal- entendido". Com efeito, afora o fato de que Peyrac se havia subitamente volatizado, nada parecia mudado, nenhum rumor corria de que ele houvesse caído em desgraça. A Grande Mademoiselle não perdia ocasião de falar amistosamente à jovem. Não teria podido fingir, pois era pessoa muito ingênua e sem nenhuma hipocrisia. Alguns perguntavam pelo Sr. de Peyrac com absoluta naturalidade. Angélica dizia-lhes que se lhe antecipara a fim de organizar sua chegada. Mas antes de deixar Saint-Jean-de-Luz procurou em vão encontrar-se com Monsenhor de Fontenac. Este havia voltado para Toulouse. Em alguns momentos parecia-lhe haver sonhado, iludia-se com falsas esperanças. Talvez Joffrey estivesse em Toulouse... Nos arredores de Dax, quando atravessavam as Landes, arenosas e escaldantes, um macabro incidente despertou-a para a trágica realidade. Os habitantes de uma aldeia apresentaram-se e perguntaram se alguns guardas poderiam ajudá-los em uma batida contra uma espécie de monstro negro e terrível que ensangüentava a região. Andijos galopou até o coche de Angélica e cochichou-lhe que sem dúvida se tratava de Kuassi-Ba. Ela pediu para ver os aldeões. Eram pastores de ovelhas, trepados em andas que lhes permitiam caminhar sobre o solo movediço das dunas. Eles confirmaram os temores de Angélica. Sim, fazia dois dias que os pastores tinham ouvido gritos e disparos de arma de fogo na estrada, e viram uma carruagem assaltada por um cavaleiro de rosto negro que brandia um sabre curvo como os dos turcos. Felizmente as pessoas da carruagem tinham uma pistola. O homem negro foi ferido e fugiu. — Que pessoas iam na carruagem? — perguntou Angélica. — Não sabemos — responderam. — As cortinas estavam corridas e somente dois homens a escoltavam. Deram-nos uma moeda para que enterrássemos um deles, cuja cabeça o monstro havia de-cepado. — Decepado a cabeça! — repetiu Andijos, aterrado. — Sim, senhor, tanto que tivemos de ir buscá-la na vala para onde havia rolado. Na noite seguinte, quando a maior parte dos viajantes estavam acampados nas aldeias dos arredores de Bordeaux, Angélica sonhou de novo com o sinistro chamado: 20
  • 21. — Médême! Médême! Agitou-se e acabou por despertar. Haviam-lhe feito a cama no único aposento de uma casa de lavradores, cujos habitantes foram dormir no estábulo. O berço de Florimond estava junto à lareira. Margarida e a pequena ama haviam-se deitado no mesmo enxergão. Angélica viu que Margarida vestia uma saia. — Aonde vai? — E Kuassi-Ba, tenho certeza — cochichou a grandalhona. Já Angélica tinha saltado do leito. As duas abriram com precaução a porta. Por sorte a noite estava muito escura. — Kuassi-Ba, entre! — cochicharam. Algo se moveu, e um grande corpo vacilante tropeçou na solei-ra. Fizeram-no sentar em um banco. A luz de uma vela, viram sua pele cinzenta e lacerada. Tinha as roupas manchadas de sangue. Ferido, fazia três dias que vagava pelas charnecas. Margarida remexeu os baús e fê-lo beber um bom trago de aguardente, após o que ele falou. — Uma só cabeça, senhora. Só pude cortar uma cabeça. — É o suficiente, asseguro-lhe —- disse Angélica com um leve sorriso. — Perdi meu grande sabre e meu cavalo. — Dar-lhe-ei outros. Não fale... Voltou a encontrar-nos, é o principal. Quando seu senhor o vir, dirá: "Está bem, Kuassi-Ba!" — Tornaremos a ver meu senhor? — Voltaremos a vê-lo, eu lhe prometo. Enquanto falava, Angélica tinha rasgado um pano para desfiá-lo. Temia que a bala houvesse ficado dentro da ferida, situada perto da clavícula, mas descobriu outra ferida debaixo do braço, o que mostrava que o projétil havia saído. Pôs aguardente sobre as duas feridas e atou-as fortemente. — Que vamos fazer deste homem, senhora? — perguntou Margarida. — Levá-lo conosco! Tornará a ocupar seu lugar no carro. — Mas que irão dizer? — "Quem" vai dizer? Acredita que as pessoas que nos rodeiam se preocupam com as façanhas do meu negro?... Comer bem, ter bons cavalos de muda, alojar-se confortavelmente são suas únicas preocupações. Ele ficará sob a cobertura, e em Paris, quando estivermos em nossa casa, as coisas se arranjarão por si mesmas. Repetiu, para se convencer intimamente: — Compreende, Margarida? Tudo não passa de um mal-entendido. O coche rodava agora através da floresta de Rambouillet. Angélica toscanejava, pois o calor era terrível. Florimond dormia sobre os joelhos de Margarida. Subitamente o ruído de uma detonação seca despertou a todos, que se sobressaltaram. Houve um violento choque. Angélica teve a visão de uma profunda ravina. Levantando uma nuvem de pó, o coche tombou, fazendo um barulho tremendo. Florimond berrava, meio esmagado pela criada. Ouviam-se os relinchos dos cavalos, os gritos do postilhão e os estalos do chicote. O mesmo ruído seco voltou a ser ouvido, e Angélica viu em um dos vidros da carruagem uma estrela estranha, semelhante a um cristal de neve, com um orificiozinho no centro. Procurou erguer-se e tomar Florimond nos braços. De repente alguém arrancou a portinhola, e o rosto de Péguilin de Lauzun inclinou-se pela abertura. — Ninguém ferido, pelo menos? Com a emoção, Péguilin havia voltado a falar com seu acento meridional. — Todos gritam, o que me faz imaginar que todos estão vivos — disse Angélica. Tinha uma escoriação no antebraço, produzida por um fragmento de vidro, mas sem gravidade. Entregou o menino ao duque. O Cavaleiro de Louvigny apareceu também, estendeu-lhe a mão e ajudou-a a sair do coche. Quando pôs os pés na estrada, ela retomou precipitadamente Florimond e esforçou-se por aquietá-lo. O agudo choro do bebê cobria todo o tumulto, e era impossível pronunciar uma palavra. Enquanto acarinhava o filho, Angélica viu que o coche do Duque de Lauzun se havia detido atrás de seu carro de bagagens, bem como o da irmã de Lauzun, Carlota, Condessa de Nogent, e que os irmãos 21
  • 22. Gramont, algumas damas, amigos e criados acorriam ao lugar do acidente. — Mas, afinal, que aconteceu? — perguntou Angélica quando Florimond lhe permitiu abrir a boca. O cocheiro tinha um ar de espanto. Não era homem dos mais seguros: tagarela e jactancioso, tinha sempre um refrão na boca e sobretudo, decidida inclinação pela garrafa. — Tinha bebido e adormeceu? — Não, senhora, asseguro-lhe. Tinha calor, é certo, mas dominava bem os animais. Os cavalos seguiam como convinha. Mas de repente saíram dois homens de entre as árvores. Um deles tinha uma pistola. Disparou para o ar, e foi isso que espantou os animais. Encabritaram-se e recuaram. Foi então que a carruagem virou. Um dos homens tinha-os segurado pelo freio. Mas eu bati-lhe com o chicote o mais que podia. O outro tornou a carregar a pistola. Aproximou-se e atirou no coche. Nesse momento chegou o carro de bagagens e depois esses senhores a cavalo... Os dois homens fugiram... — É uma curiosa história — disse Lauzun. — A floresta está vigiada, protegida. Os guardas expulsaram dela todos os malfeitores por causa da passagem do rei. Que aspecto tinham esses bandidos? — Não sei, senhor duque. Não eram salteadores, disso estou certo. Estavam bem vestidos, bem barbeados. O máximo que posso dizer é que pareciam criados de boa casa. — Dois criados despedidos que enveredaram pelo mau caminho? — conjeturou De Guiche. Uma pesada carruagem ia passando ao longo dos grupos e acabou por deter-se. A Srta. de Montpensier pôs a cabeça pela por-tinhola. — Mais uma vez vocês, os gascões, estão fazendo algazarra! Querem assustar os pássaros de lie de France com suas vozes de trombeta? Lauzun correu para ela multiplicando as saudações. Explicou-lhe o acidente de que acabava de ser vítima a Sra. de Peyrac e disse-lhe que seria necessário muito tempo para reparar o coche e pô-lo em condições de prosseguir viagem. — Pois que suba, que suba para o nosso — exclamou a Grande Mademoiselle. — Meu pequeno Péguilin, vá buscá-la. Venha, minha cara. Temos um banco desocupado. Estará à vontade com seu bebê. Pobre anjo! Pobre tesouro! Ela mesma ajudou Angélica a subir e instalar-se. — Está ferida, minha pobre amiga. Na próxima parada, mandar-lhe-ei meu médico. A jovem percebeu, confusa, que a pessoa que estava sentada ao fundo da carruagem, junto a Srta. de Montpensier, não era outra senão a rainha-mâe. — Que Vossa Majestade me desculpe. — Não tem de que desculpar-se, senhora — respondeu Ana d'Áustria amavelmente. — Mademoiselle tem cem vezes razão de convidá-la a viajar em nosso coche. O assento é confortável e nele a senhora se refará melhor de suas emoções. O que me aborrece é o que me dizem acerca desses homens armados que a assaltaram. — Meu Deus, talvez esses homens acreditassem dirigir-se à pessoa do rei ou da rainha! — exclamou a Srta. de Montpensier juntando as mãos. — Seus coches vão cercados de guardas e creio que nada há que temer por eles. No entanto, falarei com o tenente de polícia. Angélica experimentava agora os efeitos do choque recebido. Sentia que estava ficando muito pálida e, cerrando os olhos, encostou a cabeça no espaldar estofado de seu assento. O homem havia atirado bem de perto na vidraça. Por milagre não havia ferido nenhum dos ocupantes do veículo. Apertou contra o peito Florimond. Notou que ele havia emagrecido e considerou-se culpada. Estava cansado daquelas viagens intermináveis. Desde que o haviam separado de sua ama e de seu negrinho, chorava sem cessar e recusava o leite que Margarida ia buscar nas aldeias. Suspirava dormindo e havia lágrimas suspensas dos longos cílios que sombreavam suas faces descoradas. Tinha uma boca pequenina, redonda e vermelha como uma cereja. Suavemente, Angélica enxugou com seu lenço a branca fronte do menino, orvalhada de suor. A Grande Mademoiselle suspirou ruidosamente. — Faz um calor de cozinhar o sangue! — Há pouco, sob as árvores, estávamos melhor — disse Ana d'Áustria abanando seu grande leque de tartaruga negra —, mas agora atravessamos um espaço em que a floresta foi devastada. 22
  • 23. Houve um silêncio; depois, a Srta. de Montpensier assoou-se e enxugou os olhos. Tremiam-lhe os lábios. — Está sendo cruel, senhora, fazendo-me reparar no que, há instantes, me dilacera o coração. Não ignoro que essa floresta me pertence, e que Monsieur, meu defunto pai, a fez falar de tal maneira, para pagar suas despesas, que já nada resta. Pelo menos são cem mil escudos perdidos para mim e com os quais poderia ter formosos diamantes e belas pérolas... — Seu pai nunca teve muito discernimento em seus atos, minha cara. __ Não indigna ver todas essas raízes à flor do solo? Se não estivesse na carruagem de Vossa Majestade, poderia crer que me processam por crime de lesa-majestade, já que é costume destruir as matas dos que cometem tais delitos. __ É verdade que faltou pouco — disse a rainha-mãe. Mademoiselle ruborizou-se até nos olhos. — Vossa Majestade afirmou-me tantas vezes que sua memória tinha esquecido tudo! Não me atrevo a compreender a que faz alusão. — Reconheço que fiz mal em falar assim. Que quer? O coração é impulsivo, embora a razão queira ser clemente. No entanto, sempre a estimei. Mas houve um tempo em que estive zangada com você. Talvez a tivesse perdoado quanto ao caso de Orléans, mas, quanto ao da Porte de Saint-Antoine e do canhão da Bastilha, ter-lhe-ia estrangulado se lhe houvesse posto a mão. — Seria bem merecido, pois desgostei Vossa Majestade. Foi uma desdita para mim encontrar-me com pessoas que me induziram por honra de dever a fazer o que fiz. — E sempre difícil saber onde está nossa honra e onde o nosso dever — disse a rainha. Suspiraram juntas, profundamente. Ao ouvi-las, Angélica dizia a si mesma que as querelas dos grandes são bem parecidas com as dos pequenos. Mas onde nestas não haveria mais que um murro, naquelas há um canhonaço. Onde nestas não haveria mais que ressentimento surdo entre vizinhos, naquelas há um passado cheio de ódios misturados com intrigas perigosas. Diz-se que se olvida, sorri-se ao povo, acolhe-se o Sr. de Conde para agradar aos espanhóis, acaricia-se o Sr. Fouquet para se obter dinheiro dele, mas a lembrança dos agravos recebidos permanece no fundo dos corações. Se as cartas contidas no cofrezinho esquecido na torrinha do castelo do Plessis viessem a público, não bastariam para reavivar o grande incêndio, cujas chamas estavam apenas amortecidas? Parecia a Angélica que havia ocultado o cofrezinho dentro de si mesma e que agora ele pesava como chumbo sobre a sua vida. Continuava com os olhos cerrados. Tinha medo de que por eles vissem passar imagens estranhas: o Príncipe de Conde inclinado sobre o frasquinho de veneno ou lendo a carta que acabava de assinar: "... assumo perante Monseigneur Fouquet o compromisso de jamais subordinar-me a outra pessoa que não ele..." Angélica sentia-se só. Não podia confiar em ninguém^ Aquelas agradáveis relações cortesãs não tinham nenhum valor. Ávidos de proteção e de mercês, todos se afastariam dela ao menor sinal de desfavor. Bernardo d'Andijos era dedicado, mas tão leviano! Quando transpusessem as muralhas de Paris, não voltaria a vê-lo. De braço com sua amante, a Srta. de Montmort, andaria pelos bailes da corte, e, em companhia de gascões, freqüentaria de noite as ta-bernas e as casas de jogo. No fundo, isso não tinha importância. O principal era chegar a Paris. Ali voltaria a encontrar-se como em terra firme. Angélica instalar-se-ia no belo palácio que o Conde de Peyrac possuía no Quartier Saint- Paul. Depois iniciaria as investigações para saber de Joffrey. — Estaremos em Paris antes do meio-dia — anunciou-lhe Andi-jos quando, na manhã seguinte, Angélica tomava assento com Florimond em um coche que o marquês havia alugado para ela, pois o seu estava muito danificado pelo acidente. — Talvez encontre ali meu marido e tudo se explicará — disse Angélica. — Por que faz essa cara, marquês? — Porque pouco faltou para que a matassem ontem. Se a carruagem não houvesse tombado, o segundo disparo do bandido a teria alcançado à queima-roupa. A bala entrou pelo vidro e eu a encontrei no espaldar do fundo, exatamente no lugar em que devia estar sua cabeça. — Já se vê que a sorte está do nosso lado! Talvez seja um pressá-rio feliz de acontecimentos futuros. Angélica já se supunha em Paris quando ainda atravessava os arrabaldes. Após franquear a Porte de 23
  • 24. Saint-Honoré, ficou decepcionada com as ruas estreitas e lamacentas. O barulho não tinha a qualidade sonora do de Toulouse, e pareceu-lhe mais estridente e mais áspero. Os pregões dos mercadores e, sobretudo, os gritos dos cocheiros, dos lacaios que precediam os coches e dos portadores de cadeirinhas destacavam-se sobre o fundo de um ruído surdo que a fez pensar no dos trovões que precedem as tempestades. Havia intenso calor e mau cheiro. A carruagem de Angélica; escoltada por Bernardo d'Andijos a cavalo e seguida pelo carro das bagagens e dos dois lacaios montados, levou mais de duas horas para alcançar o Quartier Saint-Paul. Por fim, entrou na Rue de Beautreillis e retardou a marcha. A carruagem parou em frente, de uma grande porta-cocheira de madeira clara com aldravas e fechaduras de bronze lavrado. Por trás do muro de pedras brancas estava o pátio de entrada e a casa edifiçada ao gosto da época, com grandes pedras de cantaria, janelas altas com vidros claros e telhado adornado com trapeiras e coberto de ardósias novas que brilhavam ao sol. Um lacaio veio abrir a portinhola da carruagem. __ É aqui, senhora — disse o Marquês d'Andijos. Permanecia a cavalo e olhava o pórtico com ar aparvalhado. Angélica desceu do coche e correu para a casinha que devia servir de moradia ao suíço que guardava o edifício. Puxou a sineta com raiva. Era inadmissível que ninguém tivesse vindo abrir a porta principal. A campainha pareceu soar no deserto. Os vidros da pequena casa estavam sujos. Tudo parecia sem vida. Só então reparou no curioso aspecto do portal, que Andijos continuava olhando como ferido por um raio, Aproximou-se. Cordéis vermelhos entrelaçados estendiam-se de lado a lado, seguros por grossos selos de cera multicor. Uma folha de papel igualmente presa por selos de cera dizia: "Câmara de Justiça do rei Paris 1o de julho de 1660" Com a boca aberta de estupor, olhou sem compreender. Naquele instante entreabriu-se a pequena porta da casinha e apareceu o rosto inquieto de um criado com a libre amarrotada. Vendo o coche, ele fechou precipitadamente a porta. Após alguns momentos, tornou a abri-la e saiu com passo hesitante. — Você é o porteiro? — perguntou a jovem. — Sou... sim, senhora, sou eu. Batista... e reconheço a... a carruagem., de... de... meu... meu... meu amo. — Pare de gaguejar, imbecil — exclamou Angélica, batendo com o pé —, e diga-me logo onde está o Sr. de Peyrac. O criado olhou em redor com inquietação. A ausência de vizinhos pareceu acalmá-lo. Aproximou-se mais, ergueu os olhos para Angélica e, de repente, ajoelhou-se diante dela sem deixar de lançar em torno de si olhares angustiosos. — Oh! minha pobre senhorazinha — exclamou. — Meu pobre amo!... Oh, que terrível desgraça! — Mas fale de uma vez! Que aconteceu? Sacudiu-o por um ombro, cheia de aflição. ~ Levante-se, idiota! Não entendo nada do que diz. Onde está meu marido? Morreu? O homem levantou-se com dificuldade e murmurou: — Dizem que está na Bastilha. A casa está selada. Respondo por ela com a vida. E a senhora, procure fugir daqui enquanto é tempo. A lembrança da famosa fortaleza-prisão da Bastilha, ao invés de transtornar Angélica, tranqüilizou-a um pouco depois do espantoso temor que acabava de experimentar. De uma prisão pode-se sair. Sabia que em Paris a prisão mais temida era a do Arcebispado, situada abaixo do nível do Sena e onde, no inverno, os prisioneiros corriam o perigo de afogar-se, e que o Châtelet e o Hospital Geral eram destinados às pessoas da plebe. A Bastilha era a prisão aristocrática. A despeito de algumas sinistras lendas sobre as câmaras fortes de suas oito torres, era sabido que uma estada entre àqueles muros não desonrava ninguém. Angélica soltou um pequeno suspiro e esforçou-se por enfrentar a situação. 24