O documento apresenta trechos de uma longa entrevista entre Jorginho Guinle, um playboy, e Rose Marie Muraro, uma feminista. Eles discutem os anseios do movimento feminista e como eles variam entre culturas e sistemas econômicos. Rose explica que a opressão da mulher está ligada à propriedade privada e à necessidade de homens para a guerra e trabalho. Ela acredita que a luta continuará por igualdade total.
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SUMÁRIO
O playboy e a feminista
Guerra entre homens e mulheres
A nova desordem amorosa
A ira sagrada de Rose
A emergência do andrógino
Homem não é homem, mulhomem; mulher não é mulher, homlher.
Ser feminista é padecer num paraíso
Do feminismo à vivência da totalidade
Último suspiro do mundo
Famosa feminista fala sobre amor, sexo, família e casamento
Homem da era moderna recria a manipulação sobre a mulher
Playboy entrevista Rose Marie Muraro
“Sou porra-louca”
O feminismo em busca do equilíbrio
A impotência como fenômeno sociológico
É preciso dar consciência política ao povo brasileiro
Do matricentrismo à androginia – Em busca do homem-mãe
Uma rosa pela causa
A defesa do feminino, acima de tudo!
Rose Marie Muraro denuncia: Paulo Francis é híbrido
O Pasquim (ainda com fama de machista) abre alas pra Rose Marie
Muraro
Rose Marie Muraro contraria Leila Diniz: “homem não deve ser
durão“
Ser homem é muito chato
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O playboy e a feminista – Jorginho Guinle e Rose Marie Muraro
Reportagem de Tarlis Batista – Manchete 12-12-198?
Um homem, uma mulher. Um grã-fino e uma feminista. Ele,
querendo saber; ela, querendo explicar. Jorginho —
confessadamente — dando uma de curioso. Rose Marie —
abertamente — dando outra de aliciadora. Moral da história: não um
novo par na noite do Rio, mas a mais nova dupla de amigos desta
cidade. O que nos leva à conclusão de que o Chacrinha é quem tem
razão: Quem não se comunica, se trumbica’’ (e não Aristóteles, que
achava natural haver escravos e senhores, e natural que a mulher
fosse inferior ao homem). Ninguém se espante se Jorginho Guinle,
homem de muitas — bota muitas nisso! — mulheres, desfralde, de
repente, a bandeira das feministas. E passe o resto da vida com
aquela que será sua última. Numa transa cultural, nada biológica.
Jorge — Afinal, Rose Marie, quais os anseios feministas? Geram
valores
universais ou são relativos, ou seja, na dependência de uma
adaptação às
diferentes culturas?
Rose Marie — É um negócio muito sério. Feminismo não é um
produto de importação: cresce de acordo com a relação econômica
das populações com os meios de produção e a relação que um país
tem com os países centrais. Logo, o feminismo no Terceiro Mundo
não pode ser igual ao feminismo nos Estados Unidos. Nem tudo
que é bom para a mulher americana é bom para a mulher
brasileira...
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Jorge — Ah, já entendi: existe apenas um valor universal, que é a
igualdade dos sexos. O resto são adaptações, né?
Rose Marie — Em termos, em termos. Vou tentar dar a você uma
idéia da razão pela qual chegamos a isso: antes de inventarem a
maneira de se fundir o metal e, com isso, surgirem os primeiros
instrumentos de arar a terra etcétera e tal — que determinou a
fixação do homem à terra —, as culturas eram estanques, nômades.
Em algumas culturas, a mulher tinha importância, em outras, não.
Então, não havia um padrão, uma regra geral. O trabalho era
dividido entre os dois sexos, mas se podia dizer, como hoje, que os
princípios masculinos e femininos é que governavam o mundo. A
chamada briga de foice começou quando o homem teve de lutar
pelas terras, na divisão com seus vizinhos. Era a lei do mais forte.
E foi aí que a mulher entrou pelo cano. E, nesse sentido, o
feminismo tem uma coisa comum, porque isso vem até ao
capitalismo mais avançado. E a mulher entra pelo cano porque é
ela quem tem de parir filhos para que haja mais homens para os
exércitos, mais homens cultivando a terra. Surge daí aquela
ideologia que a mulher introjeta, a de
ter nascido para ser mãe, esposa, dona-de-casa. Quando o
capitalismo avançou, no século 20, precisou outra vez da mulher,
pois estão sendo produzidas mais máquinas do que machos; ou
seja, o braço da mulher se torna fundamental.
Jorge — Por acaso você está entrando numa dúvida minha: é
possível a plena realização dos anseios feministas dentro de um
sistema capitalista?
Rose Marie — É exatamente nesse sentido que a mulher se torna
necessária, mais uma vez. Ela vem com toda aquela carga de
preconceitos e se sente inferior, não se qualifica e se conforma em
5. 5
ter salários menores do que o homem. No entanto, por volta dos
anos 60, quando realmente se tornou necessária a presença da
mulher na força de trabalho, aconteceu um movimento feminista
universal. Mas, voltando àquela minha declaração anterior: nos
países periféricos, a luta de classes é maior do que nos países
centrais. Por exemplo: nos Estados Unidos 80% das pessoas
podem comer; o inverso do que acontece no Brasil. A luta de
classes, aqui, é violentíssima, portanto. Então, o feminismo aqui
tem de atender a outra altíssima percentagem de mulheres que não
têm nem o direito de ser mães, porque seus filhos morrem por falta
de comida.
“Uma luta dentro de uma luta”
Elas ganham quase nada ou nada ganham e ficam, assim, sem
condições de sustentar as 25 milhões de crianças (abandonadas)
que existem por aí. Mais da metade delas são mulheres com filhos
e sem maridos. Sem homens. A tradicional família, mãe, pai e
filhos, é um luxo da classe média. E o feminismo veio para
denunciar tudo isso: nós fazemos a reivindicação da mulher, como
mulher, dentro da luta de classes.
Jorge — A conclusão a que posso chegar, então, é a de que a
mulher vai ter de lutar muito, ainda: uma luta dentro de uma luta.
Rase Marie — E como ela é baseada na lei do mais forte...
Jorge — Mesmo dentro do socialismo que, pelo menos
teoricamente, reina sobre uma harmoniosa sociedade de classes
sem lutas?
Rase Marie — O socialismo tenta erradicar a luta de classes de
maneira artificial e não mexe na condição da mulher. Continua com
6. 6
a sociedade patriarcal, onde a criança nasce sabendo que a mãe
não tem tantos privilégios quanto o pai. A luta das feministas nos
países socialistas, agora, é no sentido de derrubar a sociedade
patriarcal. E isso numa sociedade onde todos têm comida mas não
têm participação nos seus destinos políticos.
Jorge — Não sei se você percebeu, mas estou tentando fazer aqui o
papel de entrevistador. Você me permite?
Rose Marie — Quero é que você saiba de minha surpresa diante de
indagações vindas de um burguês, portanto, tecnicamente fazendo
parte da classe dominante, sobre problemas de lutas de classes. E
sempre muito agradável levar os problemas de uma classe
dominada para a classe dominante. E foi exatamente por isso que
aceitei participar deste encontro. Não pensei em badalação. Queria
era ver como funcionava a cabeça do burguês.
Jorge — Espero que tenha gostado. Mas gostaria de saber uma
coisa: os valores tradicionais que ainda norteiam o comportamento
da mulher eram — e ainda são — ditados pelas religiões. Como sou
materialista, para mim todos os credos são tão absurdos que
chegam até a um nível constrangedor, para uma mente científica
moderna. A religião não seria prejudicial à libertação da mulher?
Rose Marie — A classe burguesa domina a natureza através da
tecnologia. Mas essa tecnologia não vai até os camponeses,
aqueles que — segundo o poeta/diplomata João Cabral de Mello
Neto — morrem de emboscada antes dos 20 e de velhice precoce
antes dos 30. Então, para eles, a única saída é acreditar em poderes
sobrenaturais, as religiões funcionando em termos de ópio.
Jorge — Essa é a política da Igreja. Estou me referindo ao aspecto
prático da questão.
7. 7
Rose Marie — Eu chego lá. A religião muçulmana foi libertária
também em seu sentido político. Os budistas dizem que o
socialismo representa um triunfo de Buda. E isso me faz pensar
sobre a natureza das religiões, que dão um sentido de vida para as
populações carentes, em diversas épocas da história.
Jorge — E você não acha isso um falso sentido de vida?
Rose Marie — Acho.
Jorge — Para eles, a verdade é uma só.
Rose Marie — A religião não nega a verdade em sua essência. E
está se transformando no grande impulso das lutas libertárias. Não
serve só como ópio; no fundo, é uma defensora da vida.
Jorge — Só se for agora. Porque até há bem pouco tempo não era.
Rose Marie — Olha, não estou me colocando como uma pessoa
religiosa. Vou na corrente política da religião por ser ela a única
enterrada no inconsciente do povo, sendo, portanto, o único
caminho capaz de levantá-lo. E, no ponto em que percebe isso,
toma a dianteira. Nisso, estou com elas.
Jorge — Seria uma posição meramente tática?
Rose Marie — Apenas uma questão de sobrevivência. Na minha
cabeça, em termos de processo histórico, todas as religiões estão
encostando no socialismo. Mesmo nos países desenvolvidos,
algumas correntes protestantes estão junto com as correntes
católicas.
Jorge — Taí, essa eu não sabia!
Rose Marie — Nos Estados Unidos, a religião está junto ao poder. O
capitalismo tem origem no protestantismo: a ideologia protestante
era a que valorizava o trabalho. Qualquer pecado seria justificado
pelo trabalho. Num certo sentido, materialista, portanto. É muito
difícil, então, que um tipo assim de religião saia de sua
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cumplicidade com a classe dominante e venha, como um todo, ficar
ao lado dos dominados. Muito difícil, mas não impossível. A única
impossibilidade que vejo é de acontecer isso com a classe
burguesa.
Jorge — Alguns tentam, pelo menos. Mas a verdade é que o mundo
foi feito pelos mais fortes, num contexto essencialmente
competitivo. Acontece que os pensadores gregos não eram fortes
(a maioria era até homossexual), Cristo não era forte.
Rose Marie — Cristo foi um intelectual orgânico do oprimido. Assim
como Aristóteles era um intelectual orgânico do opressor.
“Cristo veio romper essa hierarquia”
Jorge — Mas a essência do cristianismo é a humildade...
Rose Marie — ... depois a concretude. Cristo morreu naquelas
condições e Aristóteles não morreu assim. Com toda a sua
abstração, Aristóteles legitimou a civilização competitiva baseada
na lei do mais forte; Cristo veio romper essa hierarquia.
Jorge — Ele foi o primeiro existencialista.
Rose Marie — Não só isso, como foi o primeiro a morrer
concretamente, por um problema de defesa dos dominados.
Jorge — Era um homem fraco.
Rose Marie — Era.
Jorge — Todos eles eram fracos. Os existenciais helênicos, Cristo,
Freud...
Rose Marie — ... mas você está falando nos grandes reformadores
do mundo!
Jorge — Para mostrar que as transformações, em sua maioria, não
foram feitas por homens fortes.
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Rose Marie — As estruturas econômicas, sociais e políticas foram
feitas para favorecer as pirâmides.
Jorge — Acentuo que, no campo das grandes invenções, o homem
se destaca. O mesmo no campo das grandes idéias filosóficas. A
Matemática, as artes em geral. Isso prova a existência de uma
inteligência superior, em relação à mulher? Ou existe alguma outra
explicação?
Rose Marie — É a estrutura psíquica.
Jorge — Cérebro não tem sexo.
Rose Marie — Mas a psique tem.
Jorge — Não se esqueça de que sou um materialista.
Rose Marie — A mulher pode criar mais, por ter menos medo do
homem. Não criava — e ainda não cria o suficiente — por ter sido
oprimida em termos econômicos. As mulheres de hoje, já com
outra relação familiar, estão criando, são cientistas. É preciso
romper o complexo de Édipo para que a mulher possa entrar no
simbólico — dominado pelo homem — e fazer um
redimensionamento dele. É possível mudar muita coisa. Uma das
grandes bandeiras das feministas é fazer o
homem voltar para dentro de casa, para cuidar dos filhos com as
próprias mãos; para que ele tenha uma relação de amor com o filho
e impeça esse filho de romper a sua relação com o afeto. Isso é
muito ruim para a humanidade. Deu nessas guerras todas que o
mundo viu e participou, horrorizado.
Jorge — As mulheres devem ter uma liberdade sexual igual à dos
homens? E de que maneira você encara essa liberdade? Onde
entra o amor nisso tudo?
Rose Marie — Acho que a mulher deve invadir os terrenos dos
homens. Quem rompe a relação amor—prazer é o homem. Como
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ele continua com os instintos — o de procriação, entre outros —
sexualiza essa excitação. E dessexualiza os afetos. Ou seja, os
laços entre o amor e o afeto são rompidos pelo homem, que só
consegue ter atração por mulheres jovens, mulheres que sejam
diferentes de sua mãe. Isso é uma monstruosidade. A mulher faz
exatamente o contrário, vai ao encontro do homem: sexualiza o
afeto. E será errado a mulher assumir uma posição masculina. O
negócio é fazer o homem voltar até aquele ponto onde o domínio
masculino afeta todo o seu comportamento futuro. Então ele vai
reunir amor e afeto numa só mulher. A atração através do olho não
é biológica, é cultural.
Jorge — Disso eu tenho plena certeza.
Rose Marie — E a mulher só tem uma fase da vida em que, ao ser
submetida à atração visual, consegue bons resultados: entre os 20
e os 30 anos.
Jorge — E a luta das mulheres para ampliar esses limites chega a
ser patética.
Rose Marie — Em Nova Iorque, por exemplo, eles erotizam o ser,
não mais a forma dos seios ou outro detalhe qualquer. E a situação
mudou depois da luta dos movimentos feministas, que tem milhões
de adeptos. As pessoas começam a se enfeiar, determinando
novos padrões de atração. Os nossos padrões são profundamente
caretas e demodés. Essas boites daqui me lembram Hollywood dos
anos 40. Você não concorda?
Jorge — Concordo. Estão 40 anos atrasadas.
Rose Marie — É tudo muito ridículo. Outra coisa: só acreditarei em
nudismo quando tivermos velhos, meninas, grávidas, todos,
deserotizando o corpo. Como existe na Europa e dentro de outras
culturas. Só então a mulher notará que a castração que traz desde
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a infância — a inveja do pênis — não representa qualquer privilégio
para o homem. Agora me diga uma coisa: como é que você,
Jorginho, com todo esse bom grau de lucidez, consegue viver num
ambiente que é justamente o oposto daquilo que você pensa?
Jorge — Minha vida interior é muito mais curtida do que a exterior,
fútil, que levo.
Rose Marie — Então porque leva?!
Jorge — É uma coisa meio irracional. Mas é. Habituei-me a ser
assim, é difícil mudar.
Rose Marie — É uma providência a pensar: a recompensa que você
terá, no momento em que passar a assumir sua dimensão humana
por inteiro.
Jorge — Penso, na metade do dia; divirto-me na outra metade. Tiro
uma média. Se é que se pode chamar de diversão algumas
reuniões a que compareço.
Rose Marie — Uma vida esquizofrenizada.
Jorge — Como comer caviar todos os dias.
Rose Marie — E será que não dava para juntar as duas vidas?
Jorge — Pretendo, quando for possível, escrever um livro. Não sei
quando isso será. Só sei que não será sobre minha vida, minhas
mulheres. Quero escrever um livro sério. Já tenho algumas idéias
até.
Rose Marie — Não duvido. Suas perguntas estão entre as mais
inteligentes que já me foram feitas.
Jorge — Isso é um elogio enorme.
Rose Marie — Se você conseguisse se relacionar com outros tipos
de mulheres — mais desafiadoras, que fizessem brotar de dentro
de você tanta coisa...
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Jorge — É um conselho perfeito. Você tocou no ponto na hora
exata, porque tenho pensado muito exatamente nisso. Muito
obrigado! Mas você precisa me apresentar a essas pessoas, que
não conheço.
Rose Marie — Deixa comigo!
Ela aceitou o encontro, não por badalação, mas porque queria ver
como era a cabeça do burguês. Sorrisos brotaram, então, no
elegante apartamento de Jorginho, no Flamengo.
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Guerra entre homens e mulheres
O GLOBO – Domingo, 16 de fevereiro de 1992
Marcos Tardin
Rose Marie Muraro, é uma das pioneiras na discussão da
questão da mulher no Brasil, continua disposta a polemizar. Nesta
terça-feira, 18, ela lança mais um petardo contra os machistas: A
mulher no terceiro milênio”, pela Editora Rosa dos Tempos. O
lançamento acontecerá durante o evento “Sexualidade no terceiro
milênio”, a partir das 20h30m no Teatro da Galeria, no Flamengo.
No livro, Muraro faz uma retrospectiva da história da
humanidade e afirma que na maior parte do tempo homens e
mulheres viveram em harmonia entre si e com a natureza. Foi a
partir do mito judaico-cristão do patriarcado que a mulher passou a
ser sistematicamente desvalorizada, e o mundo entrou em
decadência ética. Otimista, ela acredita que as perspectivas para o
futuro são boas, desde que se volte aos valores da solidariedade e
da partilha entre os sexos.
O GLOBO – Qual foi a sua intenção ao escrever “A mulher no
terceiro milênio”?
ROSE MARIE MURARO – As pessoas não sabem do que estão
falando nas discussões sobre a mulher. Tenho 500 livros sobre a
condição da mulher, que juntei durante dez anos. Li todos. Pouco a
pouco as idéias vieram, mas os textos que li fazem uma história
descritiva e não uma análise de perspectivas de futuro. Não sou
historiadora profissional, mas militante dos movimentos sociais de
mulheres. Minha intenção foi mostrar que as intelectuais não
entendem bem o problema porque não sabem apontar para onde
14. 14
devemos ir; e as militantes jamais saberão de onde vieram. Tentei
juntar as duas coisas.
O GLOBO – De acordo com seu livro, o mito judaico-cristão do
patriarcado a partir do Gênese é uma das causas dos males da
sociedade moderna?
MURARO – De acordo com a evolução da espécie humana, os
mitos também vão evoluindo. Primeiro tem o da Grande Deusa,
depois o do Deus que toma o trono de uma Deusa. Numa terceira
fase, é o mito do andrógino. O último e mais importante é o do
Deus macho que cria o mundo sozinho. É o mito judaico-cristão,
criado para que a mulher fosse desqualificada, pois ela vinha
sendo valorizada pelas religiões andróginas. O grande mal que o
Gênese fez foi santificar o que Freud descreve no livro sobre a
castração: o homem transgride a lei do pai e culpa a mulher. A
hegemonia masculina é reforçada economicamente, porque numa
civilização que exige força a mulher é a mais fraca e não pode
negociar com o homem. Essa estrutura psíquica, que já existia, é
santificada pelo mito. Enquanto existir o Deus patriarcal não existe
maneira de reverter o processo. A única maneira é destronar esse
Deus e fazer com que ele volte a ser o Deus primitivo do próprio
Gênese, na sua versão mais antiga, de um Deus andrógino.
O GLOBO – O livro mostra que no decorrer dos milênios as
relações entre os seres humanos variaram de acordo com a relação
deles com o meio ambiente. Como isso pode ser alterado?
MURARO – O Jardim do Éden nada mais é do que a lembrança da
cultura de coleta, quando grupos pequenos precisavam se juntar
diante de uma natureza poderosíssima. A opressão vem com a
caça. Na competição de hoje, o homem é hegemônico. Se
avaliarmos o patriarcado nos últimos anos, vemos que dois terços
15. 15
da humanidade passam fome para que um terço coma além do que
necessita. Isso pode ser revertido se voltarmos aos valores
arcaicos da solidariedade e partilha. As mulheres, que ainda têm
esse princípio, devem participar mais. Algumas mudanças já estão
em curso nos países da social-democracia, como na Escandinávia.
Quanto mais atrasado o país, mais vertical, autoritário, coercitivo e
patriarcal ale é. Mas já estamos na sociedade do pós-patriarcado; já
começamos a criar meninas não mais para serem oprimidas e
meninos não mais para serem opressores: mudou a estrutura
psíquica.
O GLOBO – O matriarcado ainda existe?
MURARO – Que matriarcado? Nunca vi. Quando a mulher manda na
família é porque ela não manda nada no mundo público. Ela
supercompensa neuroticamente mandando nos filhos. É uma
supermãe na família e uma idiota no mundo público. Toda
supermãe é otária. Não é matriarcado nenhum, só faz atrapalhar a
formação psíquica dos filhos. As supermães só podem existir no
mundo patriarcal. No momento em que ela se realiza deixa de ser
supermãe.
O GLOBO – Como a AIDS alterou a relação de poder entre os
sexos?
MURARO – A grande descoberta dos anos 70 foi que um
comportamento progressista na área econômica corresponderia a
um avanço na área da sexualidade, e os dois levariam a uma
mudança de estrutura econômica. Por isso foi feita toda uma
campanha para a extrema-direita voltar ao poder e veio a AIDS,
para fazer voltar o comportamento sexual conservador. Mas isso
também pode ser uma chave para encontrar novas formas de
sexualidade. A AIDS pode ser um detonador para uma reflexão
16. 16
mais profunda sobre os padrões de poder na sexualidade. Na
medida que a AIDS impede o exercício da sexualidade nas formas
antigas, ou você refaz formas ainda mais estereotipadas ou busca
novas formas em que a emoção fique integrada com a sexualidade.
É preciso afeto e diminuir o número de parceiros. A sexualidade
dissociada leva à “galinhagem”, condição sine qua non para ser
patriarcal, violento, manipulador. A AIDS é um feitiço que virou
contra o feiticeiro. Ela pode fazer com que a pessoa se integre e
crie os filhos de maneira diferente e assim consiga reverter a
violência como valor da sexualidade desintegrada.
O GLOBO – Quais as características do comportamento sexual dos
brasileiros?
MURARO – Só é possível um verdadeiro orgasmo quando a
sexualidade não está atrelada à produção econômica. No caso dos
camponeses e operários, as mulheres são oprimidíssimas e
normalmente não têm orgasmo. O orgasmo também não existe nas
classes dominantes, em que a mulher fica violentada dentro da sua
posição social: quer continuar com as mordomias e finge orgasmo.
Orgasmo só é possível na camada cada vez maior, mas não muito
grande, em que homem e mulher têm liberdade econômica e se
juntam porque se amam. Aí tem orgasmo como expressão total da
sexualidade e não como descarga de tensão. Eu não consigo ter
orgasmo quando estou com grandes tensões de dinheiro. O
homem tem. Mas é uma coisa totalmente superficial. É aquela
ejaculaçãozinha idiota.
O GLOBO – Quais as perspectivas femininas da instituição
familiar?
MURARO – É mais importante do que parece. De dez anos para cá
nós acabamos com as dissociação entre o mundo público e
17. 17
privado. É fato do fim do século XX. Tenho mais esperança agora
do que há 20 anos. A perspectiva a médio prazo é você Ter filhos
mais humanos, menos destrutivos, mais ecológicos, na medida que
a velha família morre e é substituída pela nova.
O GLOBO – A senhora faz algumas críticas a Lévi-Strauss e Freud...
MURARO – Lévi-Strauss é um idiota machista. Ele não conheceu as
pesquisas mais recentes sobre as sociedades primitivas que são
citadas no meu livro. Ele falava que os homens trocavam as
mulheres entre si como mercadorias. Isso só aconteceu nas
sociedades de caça. Na sociedade de coleta não era assim. Na
maior parte da história da humanidade não havia troca. Freud dizia
que o ser humano vem da orla primitiva, em que os filhos comem
os pais. Isso é projeção patriarcal no passado. A verdade é que os
homens no princípio eram gentis, solidários, ternos integrados. E
para justificar um mundo patriarcal você tinha que Ter um mito
patriarcal, como o Gênese. Toda pesquisa antropológica de Freud é
profundamente ridícula.
O GLOBO – A senhora prega a necessidade de “mudança da
cabeça de homens e mulheres”. Como é isso?
MURARO – Através da família no primeiro ano de vida. Tudo o que
vivemos no primeiro anos de vida é indelével. Em segundo lugar,
comum uma educação não diferenciada, que agora está
começando a entrar em moda, onde os estereótipos femininos e
masculinos são atacados na sua raiz, com outros tipos de
brinquedos e representações da família. Em terceiro lugar vem a
mídia, que faz da revolução sexual uma brincadeira entre homens e
mulheres. Não acredito em revolução feita com violência do dia
para noite. A revolução silenciosa, com a mudança das estruturas e
das cabeças, á muito mais poderosa.
18. 18
O GLOBO – O que a senhora acha do crescimento do esoterismo?
MURARO – Quando você não tem mais perspectiva histórica,
começa a pensar na libertação sexual e em dar a volta por cima
pelo transcendental. Antes de 1964, quando havia perspectiva
histórica no Brasil, ninguém pensava em sexualidade e esoterismo.
O GLOBO – Qual é a relação de mulher e envelhecimento?
MURARO – Quanto mais velha, mais erótica e mais sábia a gente
fica. Quem vence o estereótipo da feminilidade vence
tranqüilamente o da velhice. Não trocava meus 61 anos pelos 30.
O GLOBO – A geração de mulheres que encarou relações sexuais
com vários parceiros nos anos 70 é feliz hoje?
MURARO – É mais feliz do que a que não encarou. Eu só sinto
culpa por não ter começado antes.
O GLOBO – Como a virgindade será encarada no terceiro milênio?
MURARO – O problema não é de virgindade, é de cabeça. Ela vai
ser vivida individualmente, sem nenhum padrão social. O mesmo
se aplica à homossexualidade, transexualidade e à trissexualidade.
O GLOBO – O mito de que os brasileiros são “bons de cama” tem
fundamento? E as brasileiras?
MURARO – Nunca dormi com uma brasileira. Na medida que você
está tomado pela paixão tudo é bom. Um homem que não é bom de
cama fica ótimo. Esse negócio de bom de cama é de quem não
ama, de quem é dissociado.
A condição feminina no capitalismo avançado
Trecho do livro “A mulher no terceiro milênio”
Depois da Segunda Guerra Mundial, as mulheres americanas
passam por um choque. Durante os anos de esforço de guerra, são
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obrigadas a entrar para a força de trabalho, onde aprendem a agir
no domínio público e também a desenvolver qualificações até
então desconhecidas. E quando os homens voltam da guerra, as
mulheres são não só incentivadas como obrigadas a voltar para
casa a fim de devolver a eles os seus empregos.
Durante toda a década de 50, são bombardeadas com uma
ideologia baseada em Freud de que a mulher verdadeira é a dona-
de-casa e a boa mãe, isto é, aquela que não compete com o
homem, a que não se masculiniza.
Por “coincidência”, esta vem a ser a década em que de fato os
Estados Unidos assumem o papel de primeira potência mundial.
Para Ter pleno emprego, o sistema produtivo trabalha a pleno
vapor, e acaba havendo uma superprodução. Esta não pode ser
escoada, a menos que o consumo aumente. Assim a propaganda
começa a bombardear as mulheres, estimulando-as a consumir.
Quebram-se deste modo os padrões de austeridade do século XIX,
e a sociedade produtiva passa a se tornar uma sociedade de
consumo.
A família passa, então, a não ser apenas o lugar da
reprodução da força de trabalho, mas a unidade de consumo.
Nessa época, aproximadamente 70% de todo o consumo são feitos
pelas mulheres, o que permite ao país continuar tendo um sistema
produtivo cada vez mais desenvolvido.
Mas, na década de 60, as coisas não parecem estar indo bem
com essa mulher que parece ter tudo. A jovem psicóloga Betty
Friedan corre o país entrevistando as mulheres ricas ou de classe
média que moram nos subúrbios, onde estão as casas mais
prósperas das grandes cidades, e percebe que a quase totalidade
delas sofre de um mal sem nome. Essa frustração sem objeto é que
20. 20
as impele a consumir e a ter casos extra-conjugais, a fim de
diminuir o seu tédio.
E a psicóloga chega à conclusão de que a origem dessa
neurose nada mais é do que a não utilização de todas as
capacidades humanas dessas mulheres. Ricas, tendo recebido
educação universitária ou treinamento profissional, elas não se
sentem felizes sendo só as “verdadeiras mulheres” que a
sociedade exigia.
Treze anos antes, uma jovem filósofa francesa, Simone de
Beauvoir, lança em Paris seu livro “O segundo sexo”. Era o
primeiro estudo consistente sobre a condição da mulher no
patriarcado. Com isso, Beauvoir se tornou para as mulheres o que
Marx fora para os operários ao criar uma teoria sobre sua
opressão.
21. 21
A nova desordem amorosa
O GLOBO – 30-12-1990
Sheila Kaplan
“Um novo projeto de mundo”. Pode soar pretensioso, mas é
assim que a escritora, militante feminista e editora Rose Marie
Muraro define o tema de seu novo livro, “Os seis meses em que fui
homem”, e também a linha editorial da Rosa dos Tempos, editora
que criou no mês passado em sociedade com Laura Civita, Ruth
Escobar, Neuma Aguiar e Sérgio Machado. Uma das primeiras a
estudar, no Brasil, os problemas da condição feminina — foi ela
quem publicou, em 1983, “Sexualidade da mulher brasileira”, uma
das pesquisas mais completas no país sobre o assunto — Rose
Marie agora parte de sua experiência pessoal para discutir as bases
de uma nova sociedade, na qual o homem e a mulher “possam
enfim romper a incomunicabilidade há séculos instalada entre os
sexos”. Nessa entrevista, Rose Marie Muraro fala sobre o seu livro
e explica por que acredita que as relações entre os sexos estão se
transformando.
O GLOBO — O que aconteceu nesses seis meses de que fala o
título do seu livro?
ROSE —- Em 1986, a polêmica do Vaticano com a Igreja
Progressista resultou na minha demissão da editora Vozes, onde
eu trabalhava desde 1969. Como me vi sem emprego, resolvi me
candidatar a deputada e de uma hora para outra eu me vi envolvida
nas malhas do poder político. Nesse mesmo período, convenci um
grande empresário a montar uma editora — a Espaço e Tempo — e
22. 22
entrei no jogo pesado do poder econômico. O resultado desta
experiência foi um câncer no útero, que operei no ano seguinte.
O GLOBO — As suas pesquisas no campo da sexualidade
ajudaram a superar esse trauma?
ROSE — Se não tivesse feito a pesquisa sobre sexualidade e poder
(“Sexualidade da mulher brasileira”), acho que teria morrido,
porque não estaria preparada para entender o grau em que nossas
vidas são manipuladas pelo fator econômico. Não teria
compreendido que o corpo é a máquina que faz o sistema
funcionar, e a sexualidade o combustível — seja no capitalismo,
seja no socialismo. Só dá para superar isso quando você
desconstrói o corpo da repressão e reconstrói o corpo do desejo.
Se eu não tivesse uma ótima relação com meu corpo — por ter
passado por todas as terapias existentes, que é o caminho da
classe média — seguramente não teria sobrevivido.
O GLOBO — Em seu livro, a senhora faz uma análise que parte do
pessoal e chega ao social. A abrangência na relação com o mundo
é uma característica feminina?
ROSE — É uma nova característica feminina. Porque,
tradicionalmente, o feminino trata do micro, e o masculino do
macro. Mas, no livro “Os seis meses em que fui homem”, eu vou do
micro ao macro, abrangendo essas duas dimensões. Uso uma
metodologia nova, que busca integrar no mesmo pensamento
desde as experiências mais corriqueiras da vida cotidiana até as
reflexões teóricas mais abstratas. Eu definiria “Os seis meses em
que fui homem” como um livro que traz um novo projeto de mundo
a partir da experiência da mulher nas duas últimas décadas, no
Brasil e no mundo.
23. 23
O GLOBO — Os universos masculino e feminino são, de fato,
incomunicáveis, como a senhora afirma no livro?
ROSE — De dez mil anos para cá, sim, mas agora estes dois
universos estão começando a se comunicar. A separação foi uma
contingência da relação de dominação entre os sexos. A origem da
incomunicabilidade está na infância. O amor, para o homem, é
ligado à morte — porque ele teme a castração imaginária por parte
do pai, por causa do seu amor à mãe. No momento em que o
menino se identifica sexualmente, ele fica sem amor nenhum. Teme
o pai e rejeita a mãe. Escolhe, então, o amor-de-si, que, em termos
vulgares, poderia ser traduzido como o egoísmo. A mulher, como já
vem castrada, não tem medo de perder nada. Ligada à mãe e
depois ao pai, está duplamente acompanhada. Então, identifica-se
sexualmente no amor do outro. Daí o desencontro radical. O
homem, por medo da morte, separa amor e sexo. Escolhe, para
casar, uma mulher que ame mais ou menos, que seja funcional
para ser a mãe de seus filhos. Ele acha que, se estiver muito
apaixonado, será dominado. Já a mulher tende à integração: quanto
mais ama, maior é seu desejo.
O GLOBO — Então a senhora concorda com as afirmações de
Freud quanto à castração feminina?
ROSE — Recorro a Freud, como recorro a Marx, porque as
descobertas do inconsciente e das classes sociais são um
patrimônio da humanidade. O que eu questiono em Freud é o
conteúdo do inconsciente. Com o avanço da ciência,
principalmente da antropologia, na segunda metade deste século,
já se sabe que o imaginário é todo fabricado culturalmente. Freud
escreveu, em “O mal-estar da civilização”, que a natureza havia
sido ingrata à mulher porque não lhe dera um pênis. A natureza! Ele
24. 24
dizia que a castração era biológica. Eu digo que ela é cultural. No
sistema patriarcal, a mulher realmente é castrada.
O GLOBO — Como se dá atualmente o mecanismo de submissão
da mulher?
ROSE — O mecanismo sócio-econômico é uma projeção do desejo.
A identificação com o amor do outro dá à mulher uma vivência do
seu corpo muito mais profunda e gratificante do que a do homem.
Só que isso não é valorizado pelo mercado. No terreno social, essa
mesma característica faz com que a mulher aceite quando
barganham com ela. E, quando aparece o sucesso, ela entra em
pânico, porque acha que sucesso e felicidade são excludentes —
enquanto para o homem sucesso e felicidade são a mesma coisa.
O GLOBO — A década de 90 traz novidades em relação à
emancipação feminina?
ROSE — É preciso deixar bem claro que meu livro não é sobre a
emancipação da mulher, mas sobre a emancipação da humanidade.
Tenho convicção de que já estamos no começo do pós-patriarcado.
O homem da geração mais jovem — e isso de uns 20 anos para cá
—- vem emancipando o seu desejo. Ele já percebe que o projeto de
vida indicado pelo sistema é vazio e repressor. Os homens, afinal,
são os que mais perderam. As mulheres, por exemplo, podem ter
prazer com o corpo todo, e eles não têm acesso a isso. Restringir
meu livro a questão da mulher é trair tudo o que eu vivi.
O GLOBO — O que justifica a nota otimista com que a senhora
encerra o livro?
ROSE — Como eu acompanhei atentamente as últimas quatro
décadas, noto entre os mais jovens a superação crescente do
abismo entre a sensibilidade masculina e a feminina. A mulher está
mais criativa, e o homem mais sensível. Em várias partes do
25. 25
mundo, a guerra entre os sexos está fora de moda. O que está em
moda é a volta de uma relação de união com a natureza e entre os
sexos. Há maior consciência de que, sem isso, a espécie se destrói,
e vamos todos para o brejo.
SheiIa Kaplan é repórter do Segundo Caderno
“Até agora pudemos perceber como os corpos e a
sexualidade de homens e mulheres são fabricados pelo sistema e o
lucro que isso traz em termos mundiais. Agora, podemos dar um
passo adiante: se corpos e sexualidade são fabricados, seria
possível uma fabricação do próprio inconsciente? E, caso fosse,
como interagiria ele com o sistema? Seria o inconsciente
determinado pelo econômico? Ou, em outras palavras: seria o
econômico a infra-estrutura de tudo, como queria Marx? Mais
perguntas se apresentam: como interagem sexualidade e classe
social? E se a sexualidade varia de classe a classe, não
poderíamos colocar a hipótese de que o econômico também é
determinado pela sexualidade?
Se isso for verdade, tanto o freudismo como o marxismo não
dão conta da realidade humana: Freud porque nega a influência do
econômico sobre a psique, afirmando que a estrutura que
descobriu é universal, e Marx porque não é capaz de retirar o
indivíduo das leis mecânicas e impessoais da história e da
economia.
Não se trata aqui de conciliar Freud e Marx num
freudomarxismo ingênuo, mas, sim, ver se algo novo pode
aparecer em nossa realidade de países de Terceiro Mundo, isto é,
27. 27
A ira sagrada de Rose
O GLOBO – Sábado, 23 de outubro de 1999
Elisabeth Orsini
Rose Marie Muraro não é exatamente o que a mídia acha que
ela é, uma feminista radical, obcecada. Ela é muito mais do que
isso. Seu olhar para o universo feminino é conseqüência de uma
atividade intelectual anterior muito mais profunda. Criada no reino
das ciências exatas, desde cedo compreendeu que o mundo, e sua
própria vida, só poderiam ser entendidos a partir do Teorema de
Gödel, segundo o qual todo conjunto só se explica num conjunto
superior, num universo muito mais amplo que, se reduzido, desfoca
a verdade para sempre. No dia 17 de novembro, Rose lança na casa
Rui Barbosa, “Memórias de uma mulher impossível”(Record), em
que traça um painel das mais relevantes tendências culturais e
sociais da Segunda metade do século XX no Brasil.
Autora defende o adultério por amor
E é a partir dessa ótica “gödeliana” que ela tenta entender (e
explicar) o sentido de uma vida inteira dedicada à luta contra a
opressão. Um eterno combate, que a levou a trilhar caminhos bem
diferentes através de suas experiências com as drogas, o sexo, a
loucura, o câncer e a militância na ação católica com Dom Hélder
Câmara, que a tornou uma inflamada “Hélder’s girl”.
- Nós tínhamos a mesma sede de justiça – afirma Rose – Esse
desejo de lutar contra a opressão nasceu na minha própria família
onde eu sempre vi os mais frios derrotando os mais humanos.
Desde que nasci senti na pele o que era a lógica fria do capital.
28. 28
No livro, que abre a feira de Porto Alegre no próximo dia 30,
Rose Marie faz duras críticas à igreja – “a maioria dos genocídios
destes últimos dois mil anos foi feita em nome de Deus e
considerada justa” – e estimula o adultério quando ele acontece
por amor:
- O que é melhor: trair o marido ou a mulher ou entrar em
depressão e contrair um câncer? – pergunta Rose.
- A sexualidade não é só genital, mas o corpo inteiro. Se
conseguir que o leitor se convença disso Rose Marie já se dá por
satisfeita. Em “Memórias de uma mulher impossível” aos 68 anos,
ela lembra que a sexualidade de corpo inteiro é maldita e reprimida
pelo sistema. E afirma que, quando o macho descobrir essa
sexualidade, não venderá mais a alma ao sistema, porque será
plenamente resolvido:
- Assim, acabaria a obsessão do trabalho, da sexualidade
genital, do consumo da riqueza, da briga por ela, da competição, da
violência, da dominação. Enquanto o corpo reprimido conhece o
prazer da sexualidade localizada, o corpo liberto conhece o êxtase
do Eros, que ilumina tudo, até o trabalho, que passa a ser então
ação transformadora.
Para Rose, sua inquietação resulta na criação
Rose Marie Muraro nasceu cega – com uma vista enxerga
apenas 5% e com a outra não enxerga nada. Aos 5 anos, o médico
a proibiu de continuar na escola. Na infância, quase morreu várias
vezes. Grande parte da sua família morreu de infarto. Há pouco
tempo, fez um exame e descobriu que suas artérias eram
transparentes por causa do colesterol altíssimo – duas vezes e
meia a mais do que o permitido. E quando perguntou ao médico se
29. 29
não deveria estar morta há muito por causa disso, ouviu, surpresa:
“Devia, mas a senhora é uma mulher feliz e é a raiva que mata”.
Rose detestou a resposta. Afinal, vive dizendo que nunca foi e
que não quer ser feliz. Para ela, a felicidade é burra e sua
inquietação resulta em criação:
- Entender o mundo também é uma maneira de vê-lo.
Concordo com Toni Morrison, que ganhou o prêmio Nobel, quando
ela diz que a felicidade é a procura de uma totalidade que só
acontece com as pessoas que não foram felizes. Para ela, ser feliz é
muito chato e muito pouco, porque fecha o ser humano para a
totalidade, que é ordem e desordem, felicidade e infelicidade. No
meu caso, se eu quisesse ser feliz, não teria a vida “tão estranha”
que tive, teria me acomodado na felicidade.
A inquietação de Rose Marie começou a partir do desejo de
entender a realidade à sua volta e com a abertura para o desejo de
criar:
- Esta criação foi, para mim, sempre mais satisfatória que
qualquer felicidade pessoal. O orgasmo da criação é mais intenso
que o orgasmo sexual, mas só entende isso quem cria. Por isso, a
vida inteira fui atraída pelo impossível. Só o impossível abre o
novo. Só o impossível cria.
A ira de Rose também não poupa os Estados Unidos, onde,
em 1977, conta Ter conhecido “uma das mulheres mais lúcidas”
que já encontrou na vida: a rabina, lésbica e doutora em religião,
Rebeca Alpert, da Universidade de Temple. Depois de cinco meses
de pesquisa, Rose arriscou: “Parece-me que o povo americano
reprimiu sua profundidade em troca de poder e riqueza”. Rose
lembra que a resposta teve o impacto de um soco no estômago.
30. 30
“Então vocês fizeram a aposta do doutor Fausto, venderam a alma
ao diabo?” – perguntou. Rebeca respondeu apenas “Yes”.
- Naquela hora comecei a entender a globalização – diz a
autora. – Foi aí que vi como são os mecanismos internos da
opressão, aquilo que eu pensei que acontecia só na minha família
era um fenômeno mundial. Fiquei horrorizada com a frieza e a
racionalidade insana daquela cultura.
Membro da família Gebara – que em árabe significa corajoso –
desde cedo Rose Marie estudou em escolas caríssimas. Quando a
família chegou a São Paulo, ela freqüentou o colégio de freiras
Assunção onde conviveu com famílias da classe dominante
paulista, como Matarazzo, Morgante e Monteiro de Barros. Com a
morte do pai acabou perdendo tudo.
- O dinheiro de meu pai ficou nas mãos do meu tio mais
jovem, e também o mais ambicioso – diz Rose, lembrando que nos
anos 40 a família Gebara chegou a faturar US$ 20 milhões por mês.
O desejo de justiça nasceu por causa das brigas de família
que acabaram deixando sua mãe sem um tostão:
- Foi aí que comecei a optar pelos oprimidos. Do fundo do
meu ser brotou uma ira sagrada que guiaria minha ação a vida
inteira.
Nessa época, ela aprendeu que a qualidade de vida de uma
pessoa nada tinha a ver com dinheiro, muito pelo contrário.
- O dinheiro impedia a vida de atingir seus níveis mais
profundos – analisa. – Concluí, então, que a minha escolha foi
acertada. Eu havia optado pela vida.
Por causa da deficiência visual, Rose não podia brincar com
as outras meninas e acabou se isolando num mundo de histórias
31. 31
de Monteiro Lobato e novelas de rádio – por volta dos 8 anos
chegou a ouvir 22 por semana.
- Só consegui superar a contradição entre as novelas e a
realidade depois que entrei para a universidade. E como me achava
feia, por causa dos óculos de lentes grossas, não namorava. Com
medo de ser rejeitada tive muitos amores platônicos e acabei
ganhando o apelido de no time for love, alusão a um filme com
Claudette Colbert.
Os ídolos dom Hélder Câmara e Leonardo Boff
Dom Hélder Câmara sai engrandecido dessas memórias. Eles
trabalharam juntos na Ação Católica durante 14 anos. Rose era
uma entusiasmada “Hélder’s girl” , um bando de moças, quase 20,
que passaram a vida trabalhando com dom Hélder, lançando as
bases do que seria a grande resistência contra a opressão no
século XX:
- Ele não comia, não bebia, rezava o tempo todo, não dormia e
tinha um amor profundo! Dom Hélder tinha um celibato interno. Ele
era totalmente sublimado. Só tinha uma paixão: o ser humano. Era
puro fogo. Ele é um dos grandes santos deste século.
Para Rose, a grande cabeça teórica da América Latina
atualmente é o teólogo Leonardo Boff, que sistematizou o que dom
Hélder Câmara fez intuitivamente.
- Ele mostrou que a espiritualidade pura serve ao sistema há
cinco mil anos. Para Boff, a única espiritualidade que transforma o
sistema é aquela engajada nas estruturas políticas. Ele diz que a
ética é essencialmente política mas o grande problema é que no
sistema capitalista ela é impossível. Quem for ético perde, morre –
diz.
32. 32
Em “Memórias de uma mulher impossível”, Rose fala ainda
das decepções que teve com Darcy Ribeiro e Gustavo Corção (“de
pensador católico ele se transformou num jornalista reacionário e
medíocre”); do encontro com o marido Aldo, em Roma; da alegria
com o nascimento dos filhos; do namoro com um homossexual
americano que durou apenas 15 dias; das sofridas sessões de
análise; da militância política; da importância que o Instituto Vila-
Lobos teve em sua vida; dos poemas (vários deles incluídos no
livro). Ela conta, ainda, os episódios que resultaram em sua
expulsão da Editora Vozes:
- Para a Igreja conservadora me tirar de lá foram necessários
25 anos até acharem um motivo, e eu dei esse motivo: a publicação
de meu livro “Por uma erótica cristã”, de 1985, que vendeu 10 mil
exemplares em apenas três meses.
Rose se permite ainda contar uma “fofoca” do filósofo
Michael Foucault.
- Ele era pervertido, sexual e intelectualmente, um louco
varrido – garante. – Quando esteve no Brasil, em 74, fui assistir a
uma palestra dele que falava sobre as raízes da História da loucura.
Eu estava ao lado do psicanalista Hélio Pellegrino e comecei a fazer
uma pergunta. Foucault se levantou e quase me agrediu. Fiquei
morta de vergonha, porque achei que ele tinha alguma coisa contra
mim. Fui embora.
O começo da amizade com Clarice Lispector
Amiga de Clarice Lispector, ela conta como se conheceram,
em 1974. Clarice tinha lido “Äutomação e o futuro do homem” e
escreveu um artigo no “Jornal do Brasil” comentando o livro.
Curiosa para conhecer Rose, ela convidou-a para ir à sua casa.
33. 33
Surpresa, a autora aceitou o convite com uma pequena condição:
antes gostaria de ler algum livro de Clarisse, o que nunca tinha
feito. A própria Clarisse, “com aquela voz fanhosa”, indicou “A
paixão segundo GH”. Ao ler as 200 páginas que contavam a
indecisão de uma mulher que estava indecisa se iria ou não comer
uma barata, Rose ficou deslumbrada:
- Foi a coisa mais linda que já li, porque ela apresentava
aquele ato de repugnância como sendo uma transcendência da
própria condição humana para chegar a um nível superior de
sabedoria. Tenho certeza de que Clarisse morreu porque sua
energia não arrebentou todos os limites.
Ironia do destino. A certa altura dessas memórias, a feminista
radical Rose Marie Muraro confessa que deve sua vida a três
homens:
- A frei Ludovico, por tudo que sou hoje; a meu analista, que
me salvou a vida; e a meu marido, que não fez nada e, por isso
mesmo, me obrigou a fazer tudo.
34. 34
A emergência do andrógino
Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, Sábado, 06 de maio de 1972
Eles formavam um par único. Ela, de calças brancas e malha branca.
Ele, de calças brancas e túnica branca. Cabelos longos. Pareciam
dois pássaros dançando. Ninguém sabia quem era ali o homem ou a
mulher.
À saída da universidade, rapazes de cabelos compridos e de
calça Lee, moças de cabelos curtos e de calça Lee. Se não fosse a
barba dos rapazes, também seriam indistinguíveis.
Longe vão os tempos em que a figura tarzanica de cabelos
raspados de Rock Hudson e a peituda da Sofia Loren eram o máximo
em sensualidade...
Essa mudança das características sexuais especializadas
tarzã/violão para o mundo indiferenciado do unissex são prenúncio
de mudanças mais profundas. Em que consistem elas?
A própria palavra sexo vem do latim secare, que quer dizer
dividir, cortar. Em todos estes 10 mil anos de História, homens e
mulheres foram separados em sexos distintos por funções, tabus,
barreiras sociais e históricas.
Contudo, nem sempre as coisas se passaram desta maneira.
Nas sociedades primitivas, homem e mulher trabalhavam juntos e
juntos cuidavam dos filhos. Havia tribos em que homens e mulheres
eram dionisíacos e doces (Bali) ou em que ambos eram agressivos e
violentos (como em Mundugunor), outras, em que a mulher era o ser
forte, outras em que, ainda, era o ser mais fraco. Os antropólogos
estão cansados de escrever o fato de que não há invariâncias
culturais nítidas no comportamento dos sexos. Apenas a procriação
35. 35
e a menstruação, isto é, as condições anatômicas, permanecem
invariantes.
Ainda mais, além dessas sociedades arcaicas, a intuição
primordial de quase todas as religiões une em suas origens o homem
e a mulher num único ser.
De Platão a Jung
Conta Platão que este andrógino — o ser total — que existia
nos primórdios do mundo possuía duas cabeças, quatro braços e
quatro pernas.
O que se encontra, em geral, são as deformações da androginia,
seja pelas relações neuróticas, que vimos acima, seja, também, pelas
deformações dentro de cada ser humano.
Quando, por exemplo, o homem só tem desenvolvida a sua
parte masculina, é duro, abstrato, pouco afetivo. Ele reprime a
sensibilidade. É o caso típico do machão que conhecemos.
A este corresponde a mulher que só desenvolve a sua parte
feminina, reprimindo a masculina. É o caso típico da mulher do
machão: burra e submissa, ou então da femme fatale, também burra,
mas manipuladora do seu sexo e das fraquezas do homem. Tal como
a Marlene Dietrich do Anjo Azul. Neste filme ela é uma dançarina de
cabaré que acaba por seduzir um professor seríssimo. Este vem a
perder seu status para seguí-la e torna-se o palhaço do cabaré, que
ela manipula como quer.
Nos extremos opostos estão a mulher que desenvolve a sua
parte masculina em prejuízo da feminina. É o arquétipo da bruxa,
com a afetividade enterrada e a agressividade solta (Betty Friedan?).
O homem sem agressividade e com a anima superdesenvolvida é a
bicha desmunhecada.
36. 36
Estes quatro tipos de seres humanos e seus compostos
dificilmente poderão chegar à androginia, porque há neles toda uma
parte reprimida.
Os condicionamentos culturais
Há, ainda, o caso do homossexualismo feminino e masculino. A
rigor, o homossexualismo seria um desequilíbrio da androginia (tal
como o concebe Platão, por exemplo). Mas, nas condições atuais da
sociedade patriarcal repressora, como veremos adiante, as pessoas
mais sensíveis são as que quebram mais facilmente tornando-se
marginais, desajustadas e apresentando desvios de comportamento,
entre os quais o homossexualismo.
Era tão forte que ameaçava o poder dos deuses. Assim, Júpiter,
enciumado, resolveu cortá-los ao meio a fim de que ficassem
eternamente procurando juntar-se e, desta forma, não atrapalhassem
mais a ação divina.
Quanto ao Cristianismo, diz a Bíblia que Deus criou o homem à
sua imagem e os fez macho e fêmea. O que implica a própria
androginia de Deus. E a queda no paraíso, o pecado original seria a
queda do andrógino, a sua cisão em sexos. Mais tarde, São Paulo
diria: “Não há mais nem homem nem mulher: somos um em Cristo.”
(Galatas 3/28).
A partir daí cabala, alquimia, os místicos protestantes e depois
os pensadores: Goethe, Nietzsche, Rilke e finalmente, Jung e Norman
Brown. Jung é o primeiro a sintetizar cientificamente tantas e tão
variadas instituições naquilo que viria, depois, a ser o centro mesmo
de sua teoria psicanalítica.
37. 37
Segundo ele, o homem possui dentro de si uma parte feminina,
que corresponde mais ou menos à sensibilidade e a que chamou de
anima, e a mulher possui também uma parte masculina, que seria
sua atividade e independência, o seu pensamento, a que chamou de
animus.
Concretamente, a anima era a introjeção das vivências
primárias que cada homem tem da mulher e, depois, projeta em todas
as mulheres; e. vice-versa, o animus é a experiência do homem que,
depois, a mulher vai projetar em todos os homens.
Assim, para Jung, o inconsciente coletivo é, antes de tudo,
essencialmente andrógino.
E na comunicação entre os sexos (que se passa no nível
consciente e também no inconsciente), estão em jogo quatro
entidades e não apenas duas. Isto Jung costuma representar no
seguinte gráfico:
Em outras palavras: enquanto no nível consciente um homem
está se relacionando com a mulher, a anima dele está se
relacionando com o animus dela no nível inconsciente. Por exemplo:
quando a mulher concebe inconscientemente, segundo suas
vivências de infância, o homem como protetor, há afinidade entre
homem e mulher quando este concebe a mulher como um ente a ser
protegido. E, por outro lado, quando o homem concebe a mulher
como devoradora, só há afinidade quando o homem é inseguro de si
mesmo e a mulher pode dominá-lo.
HOMEM MULHER
ANIMA ANIMUS
38. 38
Este tipo de equilíbrio por carência é neurótico e não leva à
androginia. A androginia só se dá quando há um equilíbrio entre os
quatro vértices do quadrado (homem, mulher, anima, animus).
Isto é, quando a parte masculina da mulher se equilibra com a
parte feminina do homem e a parte masculina do homem se equilibra,
ao mesmo tempo, com a parte feminina da mulher. É uma relação
muito complexa, e, também, muito difícil de ser conseguida.
Por isso, creio que, atualmente, o homossexualismo é uma
busca caótica e velada da totalidade da androginia. O homossexual é
muito mais sensível à totalidade do que, por exemplo, o machão e os
outros tipos que descrevemos acima, que nem sequer têm
consciência da existência dessa totalidade.
No mundo andrógino, quando as repressões forem menores,
quando homem e mulher puderem comunicar-se em sua totalidade,
quando forem um só, desaparecerá o medo psicológico do homem
pela mulher e vice-versa, e a sua conseqüente defesa que é o
homossexualismo. Este, como condicionamento cultural,
desaparecerá, e os casos biológicos são raríssimos. O
condicionamento cultural termina com a sociedade patriarcal
(esquizofrênica).
Há ainda um outro tipo, o hermafrodita, indivíduo que possui os
dois sexos anatomicamente, que é outro caso raríssimo. Este é
considerado por PIatão e as religiões arcaicas como uma aberração
humana e não como um caso de androginia (veja-se Mircea Eliade
em seu livro sobre o andrógino).
Em suma, a complexidade de todos esses tipos psicológicos
mostra-nos que, para chegar ao ser humano total, é necessário uma
harmonia interior que é atualmente muito difícil de conseguir. Mas,
por quê?
39. 39
O tempo da cisão
Foi a sociedade patriarcal, autoritária e de classes, nascida com
a invenção dos métodos de arar a terra e a conseqüente invenção do
alfabeto fonético (veja-se McLuhan e Marcuse), que iniciou as
primeiras cisões no homem. No mundo pré-histórico ele vivia uma
vida integral. Não tinha consciência de si mesmo, a não ser pela tribo
a que pertencia. Já no período histórico, o homem cinde-se dentro de
si e se cinde, por isto, também dos outros seres humanos em sexos,
em classes, em castas, e, finalmente, cinde-se do mundo.
Em grego a palavra esquizofrenia quer dizer alma partida
(schizo, partida e phrenos, alma) e o seu sintoma básico é uma cisão,
uma fragmentação, isto é, um isolamento neurótico do
esquizofrênico, tanto do mundo, dos outros como de si próprio (o
que Jung chama de “a perda da própria alma”).
Deste modo pode-se dizer que qualquer relação de cisão é uma
relação esquizofrênica. Por exemplo: o individualismo burguês, a
separação em classes ou a divisão em sexos distintos entre o
homem e a mulher.
A vivência do sexo, pois, como a conhecemos hoje, nada mais é
do que uma vivência esquizofrênica dentro de um mundo
esquizofrênico. E o andrógino que concebemos como uma relação
de integração, não pode existir dentro de um contexto de
esquizofrenia.
Em termos de sociedade, a relação esquizofrênica é expressa
pela relação dominante/dominado. Essa relação supõe uma parte
passiva e outra predominante. É esquizofrênica por que é
psicologicamente unilateral. Ela é sempre aprisionadora, tanto nos
planos das relações sócio-econômicas (exploração dos mais fracos),
40. 40
como no individual (aprisionamento do homem tradicional pela
mulher fatal ou pelo grude da mulher dependente e vice-versa...).
A relação andrógina é, ao contrário, uma relação libertadora. Ela
supõe, para existir, partes autônomas, iguais em certos aspectos e
diferentes em outros, que possam unir-se ou separar-se quando for
preciso, sem prejuízo para um nem para outro, porque cada um tem
em si mesmo o seu centro de decisão.
A esquizofrenia assumida
Em termos sócio-econômicos essa relação de integração ainda
é fato do futuro (ruptura da relação dominante/dominado e sua
substituição por um planejamento integrado, etc.). No plano
individual, apenas agora ela começa a esboçar-se.
Seu primeiro passo básico é assumirmos a esquizofrenia dentro
de nós mesmos. Um ser humano que se assume como
esquizofrênico (isto é, dividido) dentro de uma sociedade
esquizofrênica, tem consciência de suas divisões internas (e
externas), denuncia-as, e luta contra elas; esse já está a um passo da
normalidade. Apenas aquele que se considera normal, dentro de uma
sociedade com critérios de sanidade que são decentes, este, sim, é o
verdadeiro esquizofrênico, pois a primeira condição para que a
esquizofrenia exista é que as cisões estejam todas fora da
consciência do sujeito.
Assim, a relação andrógina começa a existir entre o homem e a
mulher, por exemplo, no caso em que esta percebe a sua dominação
pelo homem e questiona-o para poder libertar-se dela e sair da
dependência. Outro caso existe quando o homem percebe que a
proximidade verdadeira da mulher, em sua condição cultural de
41. 41
dominador, é muito ameaçadora, foge, mas, ao questionar-se, volta
em outras bases, consciente de sua fraqueza, pronto para enfrentar
os perigos da relação criadora.
O começo da relação integrada é, pois, o questionamento de si
mesmo e de tudo. Mas, só o começo.
Em níveis mais avançados, quem nos dá a pista sobre o
andrógino é Norman Brown, baseado em Freud: Em “Life against
Death (a ser editado brevemente pela Vozes com o nome de Vida
contra a morte), diz ele (p. 132):
“Nos níveis mais profundos, o ideal andrógino do inconsciente
reflete a aspiração do corpo humano de superar os dualismos que
constituem suas neuroses; em última análise, reunificar as forças de
Eros e da Morte.”
É um esforço do corpo. A civilização esquizofrênica ocidental
em que vivemos reprimiu a maior parte das dimensões do corpo do
homem, reduzindo-o a uma só: à de máquina produtora. Produzir,
produzir, produzir seja econômica, seja sexualmente,
intelectualmente... é a lei da grande civilização anal a que
pertencemos.
A desrepressão das zonas reprimidas do corpo trazida à
consciência científica e depois humana em geral, através, em
primeiro lugar, dos poetas e místicos, e depois da psicanálise, é,
pois, a grande pista para a emergência do andrógino.
Quando nos referimos à desrepressão do corpo, imediatamente
pensa-se em desrepressão do sexo. Talvez, de certa forma, esta
desrepressão corporal total caminhe em sentido contrário da
desrepressão sexual/genital. Trata-se, antes, da desrepressão da
parte sensorial humana embotada pela necessidade de produzir (o
sexo, como o concebemos hoje, é uma forma de produção).
42. 42
A reunificação do homem com ele mesmo, do homem com o
outro e com o mundo leva à reunificação das forças de vida e de
morte que nos habitam a todos. A reunificação, o andrógino, é, pois,
a resolução de todas as neuroses, de todos os conflitos do homem
com o homem. A recomeçar pela ressurreição de nossas próprias
percepções, do nosso corpo e do corpo do outro.
43. 43
Homem não é homem, mulhomem; mulher não é mulher, homlher
Jary, ? maio de 1972
Rose Marie Muraro ficou conhecida depois que trouxe a líder
feminista Betty Friedam ao Brasil. E muitos esperavam que ela
formasse um movimento semelhante por aqui. Mas, para ela, todas
as lutas devem adotar a perspectiva da contracultura, posição que
vai defender no I Congresso Nacional de Mulheres, de 26 a 30 de
abril, no Rio. Rose, 39 anos, casada, tem 6 filhos. São dela: A
mulher na Construção do Mundo Futuro; 6 lições: A Automação e o
Futuro do Homem; Libertação Sexual da mulher. É chefe do
departamento editorial da Editora Vozes, que em 71 ganhou o título
de editora do ano (1970) da Câmara Brasileira do Livro.
— Por que colocar a luta da mulher na perspectiva da
contracultura?
— A mulher é a grande oprimida da sociedade patriarcal. A própria
sociedade de classes repousa, em primeiro lugar, na dominação da
mulher pelo homem, que impede o homem de perceber que ele
também é um dominado. Na era tecnológica, a civilização patriarcal
foi mais questionada do que em todos os 10 mil anos de sua
existência: através da disseminação da informação técnico-
científica, chegou ao nível da consciência da humanidade, como
um todo, a noção da estrutura dominante-dominado. Por exemplo,
a noção de subdesenvolvimento tem menos de 20 anos e já está
mudando as estruturas políticas e econômicas, muito mais do que
elas foram mudadas antes. Então existe uma consciência global da
humanidade, de 20 anos para cá, e veio se afirmando cada vez mais
uma estrutura dominante-dominado em termos planetários. Antes
44. 44
só havia uma consciência de luta de classes, que era a mais
aparente; hoje o homem tem consciência de que a luta de classes é
apenas uma expressão menor diante da estrutura global, daí só se
pode falar em uma luta de culturas: a cultura dominante e a
contracultura. E todas as lutas contra a opressão constituem uma
luta global a que hoje chamam de contracultura. Não existem mais
países, nem sexos, idades, nem raças, nem classes em luta. Existe
sim uma mentalidade dominante e uma mentalidade dominada, que
está adquirindo consciência numa velocidade incrível e planetária,
no mundo inteiro, nos países capitalistas e nos países socialistas,
na África primitiva e na Europa desenvolvida. Assim a luta do
jovem que se recusa a ser propriedade da família, e a luta da
mulher que se recusa a ser propriedade do homem, nos mesmos
termos em que os países subdesenvolvidos se recusam a ser
propriedade dos países desenvolvidos, são expressões específicas
dessa luta de culturas.
— O que existe de comum nessas lutas?
— É a ruptura da relação dominante-dominado, que leva consigo a
luta pela recuperação do corpo. Quando um pobre descobre que
pode ter acesso a uma vida melhor, com mais comida, e a mulher
descobre que pode ter uma vida sexual mais plena, e o jovem
descobre a vivência plena dos sentidos e da inteligência - tudo isso
tem uma base comum que é a recuperação da vida do corpo em
todas as dimensões. O que o antigo sistema negava era a vida
plena em benefício de uma dura luta pela sobrevivência, porque
não era fácil conseguir comida no mundo tradicional dominado por
uma economia de escassez. Nesse mundo até a condição de
escravo era um privilégio. Quer ver? A mulher que procriava 15
45. 45
filhos austeramente tinha comida. O servo do senhor e da terra
podia não ganhar nada, mas tinha comida. Só não sobreviviam
aqueles que não estavam ligados à terra, ao sistema econômico: os
párias - esses morriam ou no próximo inverno ou no período de
escassez. A humanidade só sobreviveu na sua fração privilegiada.
O corpo neste mundo de escassez era disciplinado, reprimido. Só
era usada uma de suas dimensões: produzir, produzir sempre, para
garantir a sobrevivência. Só na era tecnológica é que esse
esquema, que veio do reino biológico (Darwin - e a lei do mais
apto), foi rompido. Pouco a pouco o tecnológico vai dominando o
biológico: por exemplo, a lei do mais forte acaba no mundo
tecnológico.
— Por quê?
— Porque a tecnologia nada mais é que o domínio das leis da
natureza. Conhecendo os mecanismos dessa mesma natureza, o
homem, por assim dizer, evita o método da tentativa-e-erro e passa
para uma espécie de programação da natureza. Assim não está
mais sob o domínio dela, mas a tem sob o seu controle, pouco a
pouco. Então só quando é possível a economia de abundância é
que o homem rode se revoltar. Nenhum Marx podia existir antes do
século XIX. E isso porque não havia operários. Os operários eram
os não-privilegiados, que pela primeira vez na história da
humanidade podiam viver da tecnologia. Antes da I Revolução
Industrial que libertou o homem da terra, não havia operários para
se revoltar. E só hoje pode existir um Norman Brown clamando a
vivência total do corpo, porque só hoje há condições para isso:
condições econômicas. Hoje então a primeira grande luta é pela
46. 46
sobrevivência física do corpo e a segunda grande luta é pela
recuperação total dele.
— Mas o que é a vivência total do corpo?
— É atingir a plena humanidade, uma vez garantida a vida. No
mundo tradicional o homem era obrigado a trabalhar, a ganhar
dinheiro, a mulher ficava só procriando filhos, havia uma moral de
austeridade baseada numa psicologia da repressão. A repressão
do corpo era necessária em condições muito duras de
sobrevivência. A repressão não era só sexual, mas de todos os
instintos que não tivessem uma aplicação funcional, como por
exemplo, a parte sensorial: a beleza para os olhos, a música para
os ouvidos, os bons sabores, as percepções internas também, a
criatividade poética; e também as partes sombrias - o medo infantil,
a violência, que o sistema obrigava a só exercer contra os mais
fracos; a sensibilidade emocional, as emoções... Todos nós temos
um Hitler e um Sade dentro de nós, ao lado de um Jesus Cristo. Só
seremos plenamente humanos quando desreprimirmos todos
esses componentes do nosso ser. O patriarca, por exemplo,
reprimia as emoções, a mulher tradicional reprimia a inteligência e
também era assexuada. O jovem reprimia a criatividade, ele era
passivo, .vivia obedecendo. Essas são as grandes reivindicações
do mundo tecnológico, por isso elas vão juntas com as
reivindicações pela sobrevivência própria dos povos
subdesenvolvidos. Cada vez que reprimimos, negamos,
escondemos um instinto ou uma emoção ou a criatividade, nós nos
dividimos interiormente. Isto supõe que nós sejamos dentro de nós
ao menos dois: um repressor e um reprimido. É assim que o
sistema dominante-dominado externo leva todos nós à
47. 47
esquizofrenia, que é o mesmo sistema dominante-dominado
internalizado; e esquizofrenia etimologicamente quer dizer alma
dividida ou partida. A luta de hoje é pelas reintegrações, pela
superação da esquizofrenia, tanto externa quanto interna, isto é,
pela desrepressão do corpo em primeiro lugar, e depois pela
justiça para todos. Isto mais tarde vai se transformar em outro tipo
de sistema que não será mais o sistema dominante-dominado em
termos políticos e econômicos, e sim um sistema de partes
autônomas e integradas. O sistema dominante-dominado supõe
que haja um centro de decisões e partes periféricas não autônomas
e passivas, quer dizer, um que manda e outros que obedecem. Um
sistema integrado supõe todas as partes autônomas diferentes e
uma decisão comumente assumida, o que só pode acontecer
quando todas as partes forem iguais de igual força. Estamos
querendo dizer que o rompimento da esquizofrenia leva à uma
sociedade mais justa, pelo menos a médio prazo. A ruptura da
esquizofrenia dentro de nós supõe que a gente rompa também a
esquizofrenia que nos separa um do outro. Por exemplo, as
relações atuais entre o homem e mulher são esquizofrênicas, da
mesma forma que as relações entre o jovem e o sistema (os pais)
também são esquizofrênicas. Para que essas relações deixem de
ser esquizofrênicas é preciso que haja uma integração homem-
mulher e jovem-adulto, e não a relação dominante-dominado atual.
— E essa integração, como é?
— Em primeiro lugar é preciso que o homem desreprima a parte
feminina que tem dentro dele, e a mulher faça o mesmo com a parte
masculina que tem dentro dela. Isto é, o homem desreprima a
sensibilidade e a mulher desreprima a inteligência e a criatividade.
48. 48
Este tipo de ser novo não é mais o homem e a mulher como
conhecemos tradicionalmente, mas sim outro tipo a que
chamaremos de andrógino, isto é, o homem-mulher e mulher-
homem. O andrógino rompe com a esquizofrenia, é a resolução de
todas as neuroses individuais, porque a neurose é o conflito que
vem da repressão e do antagonismo dentro de nós, que é
antinatural. Os animais não têm repressão, eles são unos - o
instinto não se choca com a cabeça. Eles não são esquizofrênicos.
— Você não acha inevitável a repressão, desde que o homem vive
em sociedade?
— Acho. O primeiro grande repressor é a família. A primeira
dualidade vem do fato de a criança ser obrigada a ter uma longa
dependência dos pais durante a infância, dependência objetiva, de
comer, de vestir. Ao mesmo tempo a psique infantil se desenvolve
a partir da vivência do prazer em estado puro, da onipotência, do
narcisismo. A criança vive uma união intensissíma com a mãe e aí
conhece o amor, onde ela tem tudo o que quer. Podemos dizer,
com os cristãos, que a criança prova o fruto da árvore da vida,
como Adão, sente que ele é bom e nunca mais se esquece, até o
final da vida. Mas a realidade mostra que é um pecado e ela é
expulsa do paraíso, contudo o seu desejo é voltar àquela plenitude
de prazer. E ela procura a felicidade pela vida afora. Os cristãos
dizem que o céu é o gozo sem mistura de dor, e Deus é o ato puro,
a felicidade perfeita. A realidade dura, contudo - voltando ao nosso
primeiro pensamento mostra que nem só de prazer vive o homem,
e a experiência da dependência, onde a criança é obrigada a fazer o
que não quer, vivida junto com a da onipotência, é a primeira
49. 49
grande dualidade que dilacera o ser humano. E nenhum ser
humano pôde ainda fugir disso.
— Então, não há solução?
— Há sim. Essa solução foi uma das grandes descobertas da era
tecnológica, através da psicanálise, que é uma das grandes
invenções desta era. Ninguém pode fugir da dualidade prazer-
realidade e portanto vida e morte. O que a gente pode fazer é não
jogar uma contra a outra, como faz o esquizofrênico. O
esquizofrênico vive esse antagonismo; quando ele reprime a morte
(a dor), ele reprime também a vida. O que a gente pode fazer é jogar
dialeticamente com as duas forças, isto é, pôr uma a serviço da
outra, sintetizá-las, entende? Uni-las, ter um eu suficientemente
forte para aceitar a vida e a morte juntas, integrar tudo. Por
exemplo, a ansiedade (que leva à possessividade) nada mais é do
que o medo de perder o prazer (ou o amor), portanto ela é a revolta
contra a morte, que é a separação, a rejeição. No momento em que
perdemos essa ansiedade, isto é, quando perdemos o medo de
perder, nesse momento estamos unindo a vida e a morte, estamos
aceitando o risco, estamos aceitando a separação das coisas, das
pessoas, como algo natural. Nesse momento estamos nos
aceitando como seres independentes e únicos, portanto
individuais, plenamente humanos. E os outros sentem a força da
possessividade e fogem dela, como fogem da morte, porque têm
medo de ser devorados. Outro exemplo é quando a pessoa
dissimula o medo agredindo; em vez de ganhar o outro, ela perde.
Assim vamos pela vida afora tentando reunificar aquilo que em nós
era antagônico.
50. 50
— Como?
— Através da consciência, tomando aos poucos a consciência
desses mecanismos e vivendo os seus opostos. Por exemplo,
assumir o medo em vez de agredir, assumir o medo em vez de ser
possessivo, etc. Nas condições atuais isso é a luta de uma vida
inteira, mas se conseguirmos levá-la a termo seremos no final das
contas um ser unificado, sem antagonismos, isto é, seremos por
fora aquilo que somos em profundidade, teremos um ego
suficientemente forte para aceitar a vida e a morte. Se na família
fosse dada suficiente aceitação à criança, esta não formaria a
personalidade desde cedo, ela diria “estou com medo” quando
tivesse medo, e poderia ir pela vida afora sem fixações neuróticas
no passado, porque ela tem o lastro de aceitação e saberia viver o
presente sem fugir nem pro passado nem pro futuro.
— Fugir para o futuro significa ter medo da morte, da rejeição, da
separação, e portanto encher a vida de tarefas, trabalhos, fazer
história, ganhar dinheiro não só para comer, mas por ambição.
Tudo isso para não aceitar o fato de que a vida é vazia, no fundo.
Porque a pessoa que assim age tem um buraco insaciável no
fundo, um buraco que ela nega. Outra maneira de negar esse vazio
é fugir pro passado, querer repetir a cada momento a experiência
de prazer não-vivida na infância, através de novidades uma atrás da
outra. Quer dizer, viver o presente significa ao mesmo tempo não
buscar o novo nem imergir, ou mergulhar no tempo
neuroticamente, mas entrar dentro do buraco. À medida que vamos
entrando nele, ele vai desaparecendo, vamos entrando dentro de
nós e encontrando forças sempre novas dentro do velho. Por
exemplo, na relação a dois, homem-mulher, quando mesmo
gostando profundamente um do outro, um dos parceiros procura
51. 51
compulsivamente outros subparceiros, ele está agindo
neuroticamente. ao passo que quando assume a relação a dois,
sem rotina, ele encontra sempre o novo no velho. Viver o presente
é muito, também (outro exemplo), viver o que pintar, né?, sem
forçar a realidade.
— Vamos concretizar isso aí em relação a mulher hoje no Brasil.
— Eu não gosto de falar só em mulher. Mas essa pergunta tem
sentido porque não vejo no momento condições de uma relação
autêntica do homem e da mulher; só uma relação esquizofrênica,
como esquizofrênico é todo o sistema, certo? Por exemplo, o
homem que não assume o medo arcaico da mulher (da mãe
devoradora) e só consegue se relacionar com uma mulher inferior a
ele, como é o caso geral, então ele entra numa relação de
dominação. O inverso, quando a mulher é que domina o homem,
também é uma relação esquizofrênica, antagonística. A
discriminação no trabalho, nas leis, etc - acho um saco enumerar
isso - é uma expressão social dessa esquizofrenia geral. Há dois
tipos de feminismo: um antigo, dentro do sistema e que favorece o
sistema, e que põe a mulher contra o homem, é uma expressão
neurótica do ressentimento do pólo dominado - esse só faz
aumentar o antagonismo. Mais esquizofrenia! Mas há outro que usa
a opressão da mulher dentro de uma luta mais global e sintetiza
dialeticamente essa luta pela justiça. É nesse sentido que eu me
coloco. E isso supõe reivindicações, estrutura, pesquisas, novas
leis.
— E que tipo de reivindicações mais urgentes poderiam ser feitas?
52. 52
— Aquelas que permitem a profissionalização da mulher ou o
equipamento coletivo da sociedade para permitir às mães saírem
de casa para trabalhar, essas coisas óbvias. Mas à medida que a
mulher sai de casa, vai se modificando a relação entre os sexos, vai
se modificando a estrutura da família e toda a estrutura da
sociedade. E uma parada! Acho que nesse fim de século a
sociedade patriarcal vai pras cucuias! E viva o mundo do
andrógino!
— E você tem sentido, durante as suas viagens pelo Brasil. uma
disponibilidade das mulheres para se organizarem?
— Sim, incrível! Principalmente entre os jovens. Homens e
mulheres! Porque essa luta é uma luta da sociedade inteira e não
política nem ideológica, ela é antes antropológica. Ela existe em
todos os países, seja do ocidente seja do leste, e também nos
países socialistas, onde a mulher é culturalmente discriminada.
— Qual é a importância que você vê no I Congresso Nacional de
Mulheres?
— É a primeira vez no Brasil que se reúne, com toda a cobertura de
imprensa e da opinião pública, o que se fez no Brasil de pesquisa
sobre a condição da mulher. De um ano para cá está havendo uma
revolução cultural no que se refere à relação homem-mulher e à
participação da mulher na sociedade. Os estereótipos estão
mudando muito rapidamente, até demais! O homem já consegue
encarar a mulher como parceira em certos trabalhos antes malditos
(manequim, atriz, televisão, etc.). Em termos sexuais ela também é
livre. No Brasil inteiro muita gente tá fazendo o seu mestrado,
doutorado sobre problemas relativos a essa mudança toda. E
53. 53
incrível como está mudando a consciência do povo em relação a
esse tipo de problema. Por isso acho que esse congresso vai trazer
coisas muito novas e surpreendentes.
— A tese que vou apresentar chama-se “A Mulher na Era
Tecnológica”, em que provo quantitativamente (o quanto é
possível) que a mulher de 20 anos hoje é mais diferente de sua mãe
de 40 do que esta da sua antecessora pré-histórica. Isto no plano
individual. No plano sócio-econômico vejo que há uma verdadeira
luta a ser levada, e coloco essa luta no plano da contracultura. É
perfeitamente possível entender a noção de cultura e contracultura.
Hoje ela já é aceita inclusive na ciência, na antropologia cultural, na
sociologia e na ciência política. Já é uma noção consagrada. Eu
mesma estou editando na Editora Vozes a série das mais sérias
nos Estados Unidos, que é a série de “Contracultura”, começando
pelo livro de Theodore Roszak que é “On the Making of a Counter-
Culture”, que se chamará “A Contracultura”. Esse fenômeno existiu
sempre, desde que existiram culturas. Mas agora, que o mundo
está se acelerando, esse fenômeno é muito mais visível. Norman
Brown, por exemplo, aparece nessa série de contracultura. Os
mestrados de faculdade também estão adotando esse termo. Então
pra mim contracultura é criatividade contínua, é sempre encontrar
meios de contestar aquilo que está errado no sistema dominante
para que ele também vá se transformando. E isso existe desde que
existe o homem. Eu estou sempre em perpétua mutação, eu nunca
estou sempre com as mesmas posições, estou sempre mudando
de acordo com a mudança do mundo.
— Como é que tem sido a repercussão das suas conferências e
viagens de divulgação pela Editora Vozes?
54. 54
— Eu estive fazendo a implantação da editora no Brasil. Fui a
Fortaleza, Campina Grande, Recife, Belo Horizonte, muitas vezes a
São Paulo, Florianópolis, Curitiba, Porto Alegre... Isso durou seis
meses, os últimos seis meses do ano passado. Os temas das
conferências eram sempre sobre a sociedade tecnológica, que é o
toma que eu estudo. E as pessoas estranhavam porque fui eu que
trouxe a Betty Friedan ao Brasil, mas eu falava coisas totalmente
diferentes. E essas conferências estavam incrivelmente sempre
cheias de jovens, e meio à meio homens e mulheres. Em Fortaleza
falei pra 400, 500 pessoas reunidas. É impressionante a fome no
interior do Brasil por essas coisas que estão acontecendo mais no
Rio e São Paulo. E como isso é maravilhoso, como isso prova que
a juventude é planetária! Mesmo no sul, que é uma região mais
reprimida, quando eu estava com a juventude era diferente.
— Em que que você se modificou nesse contato com os jovens?
— A juventude é quase outra espécie humana, quer dizer, eles são
os mutantes da nova Humanidade. Então a juventude de hoje é
muito mais afetiva, muito mais inteligente por causa dos estímulos
que ela recebeu da sociedade tecnológica - televisão, essas coisas.
Então quando vocês tiverem um filho, vocês vão passar amor pra
esse filho. Então todo aquele papo de complexo de Édipo, de
estrutura psíquica com superego, aquilo vai se modificar. A própria
estrutura psíquica da criança do futuro vai ser muito diferente da
estrutura psíquica que vocês ainda não tiveram, que eu chamo de
comunidade concreta universal, quer dizer, todo mundo misturado
com todo mundo, que eu vejo um pouco no nordeste. No momento
em que muda a relação pais e filhos aí todo mundo mistura com
todo mundo.
55. 55
— Nessas viagens pelo Brasil eu entrei em contato com o pessoal
mais representativo e vi que a revolução cultural estava em
marcha, porque tinha mais de 30 pessoas fazendo mestrado ou
doutoramento em trabalhos relacionados com o comportamento da
mulher, desde o comportamento político até a sexualidade da
mulher. E isso de um ano pra cá. E esses trabalhos são muito
surpreendentes. Essas teses serão todas publicadas.
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Ser feminista é padecer num paraíso
Depois do Waldick Soriano, Rose Marie Muraro é a mulher mais
entrevistada do País. Deus me livre ouvi-Ia repetir tudo o que ela já
disse a todo mundo. E, pior, ainda, ela me ouvir repetir o que tenho
dito contra o movimento das mulheres. O trato foi feito. É bate-
papo. Só não valem palavrão e vida pessoal. Eu tinha boa vontade.
Ela tinha uísque. Foi um bom encontro - em que nada ficou
acertado, em que as distorções continuaram ou não - mas valeu a
pena. Ela é boa praça. Quem pensar que vai ler uma entrevista
séria, que mude de página: Conversa descontraída, nada mais.
Mas, garanto que nessa conversa, a Rose Marie foi muito mais ela
do que nas outras que eu li. Minha mulher leu a matéria, quando
batida a máquina, e me disse: “Pára de falar no joelho dela.” Não
pude evitar. É o meu caráter.
RAUL GIUDICELLI
— Vem cá, minha filha, qual é a tua idade ?
— 39 anos, bem vividos.
— Essa entrevista já começa com uma mentira.
— Juro. E tenho cinco filhos. Um de 19, outro de 17, outro de 14,
um de 12 e outro de cinco.
— Mesmo marido?
— Claro. Graças a Deus. E ele chega aí daqui a pouco pra te tomar
satisfações.
— Por que graças a Deus? Conheço pessoas que têm filhos de
maridos diferentes e são felizes. Ao que me consta iam bem,
Graças a Deus.
— Sei lá. Foi tudo muito legal. Foi um casamento andrógino.
57. 57
— Pois é. Depois a gente discute isso.
— Mas vamos ver o que é que você sabe das coisas. Esse negócio
de cursos, faculdade etc.
— Eu fiz um Curso Superior de Física e fugi do colégio, três meses
antes de me formar, para me casar.
— Opa, então homem é bom.
— Homem é ótimo.
— Então a gente começa a se entender.
— Tá legal. Como é que você se meteu nesse negócio de
movimento feminista?
— Foi incrível. Foi incrível.
Abro um parênteses para dizer que Rose Marie Muraro tem dois
charmes. Minto. Tem vários. Mas os dois maiores são seus joelhos.
E ela passa o tempo puxando a saia para baixo. Toquei no assunto
e ela me disse que a culpa é de uma cicatriz que possui numa das
pernas. Pensei comigo, e lhe disse, que homem adora cicatriz. Na
perna, então nem se fala. Mas ela não crê e - e aqui morre a líder
feminista - puxa a saia para abaixo do joelho e não mostra a cicatriz
que todo mundo quer ver.
— Foi um relatório das Nações Unidas. Ele contava a história de
quatro países africanos. Esses países, quando foram
descolonizados, mandaram para a Europa as elites masculinas.
Eles voltavam, formados em mil coisas, faziam obras, barragens,
esses negócios de cidades, estradas, negócio muito brilhante. Mas
o povo continuava naquela superstição, naquela ignorância,
naquela vida tribal. De repente, foram algumas mulheres para a
Europa e, quando elas voltaram, ensinaram o povo a plantar,
58. 58
higiene e a ter filhos, comer e, pouco a pouco, eu percebi que havia
um lugar específico para a mulher. E um lugar vazio, um lugar que
ninguém tinha tomado.
— Mas há tantas camas vazias.
— Puxa, pára de piada e vamos falar sério.
— Falar sério é falar em cama. Quem fala em reforma agrária, em
leis sociais é ministro ou mulher barbada.
— Eu li essas coisas todas há uns oito ou nove anos. E nunca mais
esse relatório da ONU saiu da minha cabeça.
— Deus do céu. Oito anos com um relatório da ONU na cabeça? E o
Alain Delon, e o Vasco e Flamengo, e os Cem Anos de Solidão -
tudo isso por aí. E você, relatório em punho...
— Puxa, você só pensa nisso. Quando eu tive meu emprego numa
editora de livros, comecei a pesquisar sobre isso. E depois
verifiquei que em outros países as mulheres eram convocadas para
esse trabalho de infra-estrutura do desenvolvimento.
Rose Marie Muraro fala com sua filha Verônica, que não gostou de
mim. É uma doce menina, chocada, talvez, pelo gravador, pela fama
da mãe que tem e pela minha cara de secretário particular de Stalin.
— que o mundo está mal construído e que obriga a mulher a sair de
casa.
— Essa sua frase é maravilhosa. Então o mundo está mal
construído porque a mulher tem que sair de casa? Oba, oba. Você
está na minha?
Fiquei pensando se isso e privilégio da mulher. E o homem
também não? E o elefante? e a zebra? E a própria barata que
inspirou Kafka e assusta as meninas da redação?
59. 59
— Eu dou a vida e conservo a vida no emprego que tenho. Eu ajudo
a emergir uma cultura brasileira. Eu vou trabalhar, não como
homem, nem como mulher. Eu inspiro homens e mulheres a
escrever.
— Estarei diante da Madame de Sevigné?
Isso é gozação. Mas Rose Marie Muraro fala sério e eu fico
olhando para ela. Mas, como me informa que só tem cinco por
cento de visão, fico atrás da cicatriz que também não consigo ver.
Uma pena.
— Eu ajudo. Eu inspiro. Eu ajudo como mulher. Eu estou nessa
profissão como mulher. Nessa editora eu ajudo as pessoas que têm
experiência no Brasil de problemas brasileiros, em nível
Universitário e eu as incentivo a fazer uma cultura brasileira. É um
trabalho de chinês. Por isso estou muito contente com o prêmio
que a nossa editora recebeu, ano passado, de melhor editora do
ano - a única que tem 70 por cento de autores brasileiros.
— Mas vamos parar com esse papo cultural e tratar do que importa,
mesmo, que é a posição da mulher no lar, na cama, no trabalho.
Nós podemos discutir duzentas horas sobre o problema da mulher
da Índia, do Paquistão e por aí afora. Mas vamos ao básico. No meu
jornal, todo dia tem mulher cheia do problemas, incômodos,
complicações, filhos que vão nascer, que quase vão nascer, que
nem chegam a nascer, trompas - crise que não acaba mais. E não
vêm ao trabalho. E faltam. E a gente faz o serviço delas - as doces
mulheres que querem igualdade de direitos e desigualdade de
vantagens.
— Por isso, para mim, a sociedade ideal é...
60. 60
— Já sei, a andrógina.
— Isso, mesmo. Andrógina. O grande problema é que os filhos não
vêem o pai. O pai é o grande ausente.
— Mas em que casa? Na sua? Na minha, não. E nem na dos meus
amigos.
— Na minha, também, não. O que me preocupa é o lar-médio, onde
o homem sai quando a criança está dormindo e volta quando ela já
foi dormir.
Fico pensando que lar-médio é esse. Ao que me conste, criança
enche o pai acordando cedo, antes dele, e nunca quer ir pra cama,
quando ele chega. E o anedotário mundial há dois mil anos.
— A gente tem que fazer com que isso chegue a todos.
— Muraro que esse negócio de “isso tem que chegar a todos” não
tem nada a ver com o problema. Se, ela e eu, somos privilegiados, a
própria palavra privilégio mostra que somos os “escolhido por
Deus”. Não há congresso feminista que faça um homem beber
menos, trabalhar mais. E Congresso algum produzirá um joelho
bonito.
Mas ela não pára.
— Esse tabu de que tudo está entregue à mulher, e o homem não
tem nada com o lar, está errado. Não, não existe isso. A criança não
tem uma figura masculina com quem se identificar. E ali ela é
devorada pela mãe. Aquele negócio do super-mãe. Você entende,
não entende?
61. 61
Nem cheguei a dizer sim ou não porque chegou Verônica. Uma
doce menina de seis anos, que comeu todos os meus salgadinhos,
que atrapalhou a entrevista, que falou alto, que pulou no colo da
Rose Marie Muraro, a anti-super-mãe, a doce e mentirosa Rose, que
a beijou como qualquer super-mãe, que a abraçou, como qualquer
super-mãe, que a afagou, como qualquer super-mãe, que, a
perdoou como qualquer super-mãe e que, como qualquer super-
mãe achou natural que a sua filha, a doce Verônica, fosse menina
como todas as filhas do mundo. A anti-super-mãe era a própria
super-mãe.
— Nunca essa de homem ir para a cozinha. Nós desejamos e a
integração total.
— Mas você não acha que mulher que não sabe fazer um filé
mignon não vale nada? Uma salada? Um frango assado?
— Acho que mulher deve saber fazer de tudo.
— E, o homem, vice-versa. Sem androginismo.
— A grande falha é essa. Esse medo que o homem tem da mulher...
— Como é? Repete...
— Esse negócio de que o homem tem que dominar a mulher - isso
foi incucado com a cultura que ele recebeu. Aquele negócio de que
homem não chora. Que é duro, entende? - essas cessas.
— Mas, meu amor, é isso mesmo. Tem mesmo. O negócio não é de
quem é mais forte ou mais fraco, de quem está por cima ou abaixo.
Mas há dois mil anos as mulheres estão por baixo. E não têm
reclamado. Salva assumas. É uma questão de posição.
— Talvez, talvez.
62. 62
Rose Marie Muraro, a anti-super-mãe, dá outro beijo na filha,
rouba a metade dos meus salgadinhos e confessa que tem medo
de barata.
— Para os homens, de um modo geral, vocês todas não passam do
umas desajustadas, meio masculinas, isto é, metade homem e a
outra metade, também - um misto de sofragismo com safadeza.
— Bom, é uma opinião errada.
— Talvez. Mas, embora errada, é geral. Para os homens vocês são
todas umas lésbicas.
— Você me acha com cara de lésbica?
— Não. E já que seu marido saiu, eu acho você ótima.
— Mas se vocês desejam corrigir essa distorção, não devem falar
em androginismo, que ninguém sabe o que quer dizer mas que,
quando sabem, deixa muito mal o movimento de vocês.
— Mas androginia não é o que você está pensando. É a presença
do homem e da mulher. O andrógino, digamos, é o ser completo.
Mas feito de um homem e uma mulher.
— Bom, mas não é isso que diz o Aurélio Buarque de Holanda,
nosso mais eminente dicionarista. Para ele o negócio é outro.
— Mas o Aurélio Buarque de Holanda não entende nada de
andróginas.
— OK. Ficamos assim combinados. Vamos mudar o dicionário.
Andrógina é um ser completo. Você é andrógina. Seu marido é
andrógino. São dois seres andróginos - um masculino e outro
feminino. Um completando o outro. Certo?
— Certo.
— Você é católica?
— Sou.
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— E andrógina?
— Sim. E essa definição vem desde Platão, vem de Cristo.
— Calma, minha senhora, de Cristo. não.
— Sim, do Gêneses. Deus criou o homem e a mulher à sua imagem.
— Pelo amor de Deus. A sua imagem é uma coisa. Isso tem um
sentido ético, moral. Não há relacionamento, nem cama.
— Deus tem em si o homem e a mulher. E eu não quero, dizer que
Deus seja homem ou mulher. Ele é as duas coisas.
— Calma. Embora você fique chateada posso lhe informar que
Deus é homem. Mulher foi a Virgem Maria. Qualquer dúvida é só ler
a Bíblia. A propósito, você é católica, mesmo?
— Se Deus é homem, o problema é seu.
— OK. Então, a Virgem Maria é homem.
— O problema ainda é seu. O assunto volta. A mulher livre. Lembro
a Rose Marie Muraro que o conceito que nós todos, homens, temos
desse movimento é o de que ele se apóia, se baseia, se firma, se
ampara mais na libertinagem do que na liberdade. Liberdade para
que?
— Esse negócio de liberdade, nesses termos, é uma das coisas
mais velhas do mundo. Você sabe o nome dele, não sabe?
— Sei. Pensei que você não soubesse.
— Eu sei. A mulher livre é exatamente oposta à mulher libertina.
— Então, nesse movimento só se vão salvar umas quatro ou cinco.
— A mulher livre é aquela que tem dentro dela seu centro de
decisão.
?
— Nunca fui a uma boate.
Peço que ela repita.
— Nunca fui a uma boate.
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— É uma pena, meu bem.
Ela me diz que o barulho das boatos a incomoda. Lembro que
há boates silenciosas, rosto colado, mãos dadas. E lá vem outra
frase surpreendente.
— Boate me dá sono.
— Pois é isso. O que está faltando a você é a mão dada de
madrugada.
— Mas eu tenho muita mão dada, de madrugada, com meu marido.
Não ousei contestar.
Mas ela insistiu que só há barulho em boate. Insisti em que há
boates tranqüilas. É ir ver a Waleska, na Fossanova. E mais uma
frase.
— Você está vendo a minha falta de cultura noturna?
— Noturna ou humana?
— Não, senhor. Noturna. O barulho me cansa.
— Isso é fase do Le Bateau. Já acabou.
— Puxa, já acabou? Estou uns ano em defasagem.
— Um ano, minha senhora? Um século.
Como em bate-papo vale palavrão ela pensou num mas não
disse. Mas continuou. E pede que eu não a interrompa.
— A diferença entre liberdade e libertinagem é fundamental. Isso eu
já disse. A libertinagem existe, desde, que existe essa cultura
patriarcal. A mulher, sendo mais fraca, precisa se vender. Ela
precisa, de uma maneira ou de outra, arranjar status. E o homem
compra a mulher. E toda a mulher que tem esse tipo de
comportamento, ela está no tipo de comportamento o mais
tradicional que existe. Mas eu sei que há mulheres - não sei se são
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essas que você encontra no fundo das noites - que estão
procurando ter urna certa experiência afetiva para escolher, com
maturidade, seu companheiro.
Sei que é covarde dar intervalos a este bate-papo. Mas meu mau
caráter é mais forte quando eu imagino o tipo de maturidade que
uma mulher pode adquirir, de pileque, dentro da noite, para
escolher seu companheiro. Ela não escolhe nada. A não ser a
bebida. Ou o hotel da Barra.
— A mulher tem um certo direito do convívio e de escolher um
homem com o qual ela, realmente, vai montar urna vida. Existe um
outro tipo de mulher. Aquela que já descobriu essa vida e você
dificilmente a encontra na madrugada, a não ser com o homem que
ela já escolheu, e com maturidade. Eu não posso esquecer as mais
prejudicadas do mundo que são aquelas que se vendem. Eu não
preciso me vender. Eu sou competente. Mas sei que sou urna
privilegiada. Mas, não a menina que ganha 480 contos por mês e,
para ter uma vida um pouquinho melhor, tem que se vender.
— Vender?
— Não no sentido que você está imaginando. Falo em promoção,
em se valorizar, em precisar.
— E a ternura? E os prin?
diagramadora, na Última Hora, a Pipsi, que é uma doce menina.
Tem seus 20 anos. Tem um joelhinho lindo. E você, por exemplo,
desde que eu cheguei aqui, fica puxando o vestido pra baixo, com
vergonha dele Por que você não anda de longo? Vocês são
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engraçadas. Usam saia curta e ficam puxando a saia pra baixo. Isso
não é maroto?
— É que eu tenho uma cicatriz.
— Mas homem adora cicatriz. Se não fosse assim, mulher que
fizesse cesariana perdia o marido. Mas volto à diagramadora. Ela
vai casar dia 9, daqui a dois dias. Toda a redação está apaixonada
por ela. Embora seja uma graça, o que inspira essa ternura total é o
jeito dela. Ninguém .pensa em conquistá-la no sentido dramático da
palavra. A gente gosta dela. Gosta dela. Há outras mais bonitas,
mais boas e meros difíceis. Mas ela inspira isso na gente. E ela
quer casar e ter filhos. É andrógina?
— Essa menina é um caso típico. Esse é um caso supremo de
feminilidade. Ternura é amor e desejo, os dois juntos. É andrógina.
— Mas então por que você trouxe ao Brasil aquela bruxa norte-
americana, uma espécie de Simone de Beauvoir sem curso
ginasial? A Betty Friedam?
— Mas eu não a conhecia bem. Fiquei muito assustada com a
agressividade dela. Suas idéias causaram uma revolução cultural.
Mas ela é uma pessoa que não atrai. Não é andrógina.
— Eu acho que ela, pelo menos, deveria fazer a barba.
Ai começou a zorra. Brincamos muito, fizemos mil piadas até que
Rose Marie Muraro, quando eu defendia a tese, mais uma vez, de
que mulher só deve trabalhar quando precisa, isto é, para ajudar o
marido e a vida econômica da família - escorregou.
— Bom, em parte você tem razão. Eu tenho uma nostalgia imensa
de sair. E saio de casa, me sentindo culpada.
— Repete, Rose, repete.
— Saio de casa sofrendo horrores, com saudades dos meus filhos.
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Finalmente, a confissão. 1
Ela acha que é assim
Sou andrógina no sentido de que homem e mulher são um só ser. E
se completam.
Deus é homem e mulher ao mesmo tempo.
Homem é ótimo.
O pai, é o grande ausente. Sou contra a supermãe.
Você me acha com cara de lésbica?
O Aurélio Buarque não entende nada de androginia.
IA mulher livre é exatamente oposta à mulher libertina.
Eu nunca fui a uma boate.
Estou há um ano em defasagem.
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Do feminismo à vivência da totalidade
Diário do Nordeste - Fortaleza, Ceará – Domingo, 27 de março de
1994.
Rose M. Bezerra da Editoria do Caderno 3
Ela esteve presente na I Feira Brasileira do Livro de Fortaleza
e, como não poderia deixar de ser, provocou reboliço,
principalmente, pelos debates incitados pelo grupo que formou
com César Romão, Anna Sharp e Baby Consuelo – os cosmocratas.
Sempre na dianteira de seu tempo, Rose Marie Muraro, física que
largou a universidade no último ano, e feminista que lidera o
movimento desde a primeira vinda de Betty Friedam ao Brasil, hoje
acolhe uma proposta de vida mais abrangente, que aponta para a
vivência da totalidade e suas múltiplas dimensões. Muraro, admite
ter superado todos os estigmas da sociedade patriarcal, por isso
mesmo não quer mais ser rotulada disso e daquilo: “Ninguém é
reduzível a uma única dimensão; além do feminismo, procuro viver
todas as dimensões da realidade. Por favor, deixem-me viver a
totalidade.” Produzindo atualmente um livro sobre tecnologia, em
que não aparece a palavra mulher, e treinando no momento
lideranças na Petrobrás e Embratel, com bases no novo modelo
descentralizador e esférico, Rose Marie Muraro concedeu essa
entrevista, em sua rápida passagem por Fortaleza. Abaixo, trechos
da entrevista.
Caderno 3 - Temos presenciado hoje você e suas diversas
dimensões. Você se vê como um ser em mutação constante?