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Nietzsche e suas horríveis doenças
Clademir Araldi
Na edição de n. 42 dos Nietzsche-Studien (NS) foram publicados dois
artigos acerca da doença de Nietzsche: 1) de R. Schiffter, “Fr. Nietzsches
Krankheiten – eine unendliche Geschichte” e 2) de Th. Klopstock, “Fr.
Nietzsche und seine Krankheiten: kein ausreichender Anhalt für MELAS”. Trata-
se de duas contraposições ao diagnóstico fornecido por Christiane Koszka, no
artigo dos Nietzsche-Studien 39 (2010): „MELAS (Mitochondriale
Enzephalomyopathie, Laktazidose und Schlaganfall-ähnliche Episoden) – Eine
Neue Diagnose von Nietzsches Krankheit“. Nesse artigo, a autora defende que
o diagnóstico de síndrome de MELAS (mitochondrial encephalomyopathy with
lactic acidosis and stroke-like episodes) é o mais apropriado para os sintomas e
o transcurso da doença de Nietzsche. Apresentaremos de modo sucinto 1) o
diagnóstico proposto por Koszka, no contexto de outros diagnósticos
alternativos apresentados nas últimas décadas, para depois 2) apresentar as
contraposições nos dois artigos recentes dos NS para, por fim, 3) propor um
deslocamento da discussão: não mais focar sobre o diagnóstico preciso das
doenças de Nietzsche, mas reforçar a questão, qual seja, em que sentido e em
que momento as doenças de Nietzsche influenciaram decisivamente em sua
filosofia, especialmente no ano de 1888.
1. MELAS – Um diagnóstico alternativo, entre outros.
A síndrome de MELAS, descrita pela primeira vez em 1984, é uma
doença mitocondrial multissistêmica e neurodegenerativa, transmitida pela
linha materna. Christiane Koszka procura atribuir muitos dos sintomas típicos
desta doença genética aos sintomas típicos das doenças de Nietzsche, desde
sua infância: enxaqueca, acompanhada de vômitos, anisocoria, reumatismo,
complicações gastro-intestinais, tonturas, distúrbios maníaco-depressivos,
alucinações visuais e acústicas, miopia, distúrbios da fala e da consciência...
(cf. Koszka, NS 39, p. 577). Esses são os principais sintomas das doenças de
Nietzsche, entre os 4 e os 44 anos de vida, ou seja, até o colapso psíquico em
Turim. As capacidades físicas e mentais de Nietzsche decaíram
progressivamente de 1889 a 1900, até a demência, a paralisia e a cegueira
completa. Em resumo: o transcurso típico da doença de Nietzsche condiz com
o diagnóstico de uma síndrome de MELAS, tendo em vista: 1) o início precoce
da doença, no período escolar; 2) a transmissão genética da doença por parte
da mãe e 3) os sintomas e complicações típicos dessa doença em Nietzsche.
(p. 577). Assim, ela contesta o diagnóstico de neurossífilis, tendo em vista que
o transcurso da doença por mais de dez anos é muito improvável no caso da
sífilis.
Como bem notou Thomas Klopstock, o diagnóstico proposto por Koszka
é mais hipótese entre várias oferecidas nas últimas décadas: i) distúrbio afetivo
bipolar seguido de uma demência vascular (conforme Kolle, 1965); ii) uma
forma hereditária de demência fronto-temporal (proposta por Orth & Trimble em
2006); iii) um tumor cerebral progressivo (diagnóstico de Owen, conforme
Schaller e Binder, 2007) e iv) CADASIL, doença genética que produz múltiplos
infartos (acrônimo para arteriopatia cerebral autossômica dominante com
infartos subcorticais e leucoencefalopatia, conforme Devreese e D. e K.
Hemelsoet, 2008) (cf. Klopstock, NS 42 , p. 294). Para o doutor em medicina,
coordenador do MitoNET (Deutsches Netzwerk für mitochondriale
Erkrankungen), assim como os diagnósticos supracitados, também o de
Christiane Koszka sofre do mesmo problema: são especulações, pois não há
elementos suficientes para prová-los.
2. Não há provas suficientes para o diagnóstico de síndrome de MELAS –
e para nenhum outro diagnóstico...
No sentido de apontar para a falta de provas para o diagnóstico de
MELAS, Fr. Klopstock enumera, numa tabela, os principais sintomas das
doenças de Nietzsche. Boa parte desses sintomas não se relacionam com a
síndrome, assim como é improvável que boa parte deles se refiram a ela. (p.
296 – 297) Mas o mais importante, segundo ele, é que a síndrome completa de
MELAS não poderia se instaurar até os 44 anos de vida, no auge da força
criativa e intelectual de Nietzsche (cf. p. 296).
Nessa mesma direção seguem as críticas de Roland Schiffter ao
diagnóstico da síndrome de MELAS, tal como foi proposto por Christiane
Koszka. Roland reafirma o diagnóstico de O. Biswanger, que foi também o de
de P. Möbius e de K. Jaspers, qual seja, Nietzsche, depois de passar por
muitos períodos de doença e de sofrimento, foi acometido de uma paralisia
progressiva, que seria a consequência da sífilis (cf. Schiffter, NS 42, p. 284).
Ele admite, contudo, que não há provas empíricas suficientes para esse
diagnóstico.
Mais interessante, no entanto, é a descrição feita por Schiffter das
muitas doenças ao longo da vida de Nietzsche. Desde o período escolar até
1888, Nietzsche sofreu de “ataques típicos de enxaqueca”, ligados a vômitos,
sensibilidade à luz e ao sentimento de estar doente. Os problemas de visão,
como a miopia e a anisocoria, também começaram na infância, causando
muitas dores de cabeça. A inflamação crônica da retina e o estrabismo, por sua
vez, causaram incômodos e tribulações desde a juventude. A partir de 1875,
segundo Schiffter, podem ser diagnosticadas complicações gastro-intestinais
crônicas em Nietzsche. Aliam-se a isso as dores reumáticas, as perturbações
do sono e a “superexcitação nervosa”, das quais muito Nietzsche se queixava.
Nesse quadro complexo, é preciso ainda considerar a configuração psíquica
dos sofrimentos de Nietzsche, suas neuroses e seus períodos depressivos. O
modo como Nietzsche observava, interpretava e analisava suas doenças, seus
estudos de medicina, seriam típicos de um hipocondríaco (cf. Schiffter, NS 42,
p. 284 - 286). A constituição psíquica de Nietzsche e seu modo de reagir à
doença, às resistências externas e internas teriam uma forte influência em suas
doenças físicas, ou seja, haveria uma interação psicossomática.
Schiffter defende o diagnóstico da paralisia progressiva, ligada à
neurossífilis. Apesar de os sintomas decorrentes da sífilis se manifestarem num
período de 5 a 10 anos, eles pode ocorrer raramente até 20 anos após a
infecção. Como não havia tratamento, a paralisia progressiva se desenvolve,
via de regra, progressivamente num período de 2 a 5 anos; mas o
desenvolvimento de uma psicose maníaca, um dos sintomas finais, poderia
levar até 15 anos (2013, p. 287). Nietzsche seria assim uma ‘exceção das
exceções’. Mas isso é também uma suposição, pois não é fornecido um
diagnóstico concreto.
Em relação ao caráter especulativo dos diagnósticos propostos (Sífilis,
MELAS), é relevante apontar para a conclusão de Klopstock: “Desde a
perspectiva da ciência da natureza, outras especulações sobre a “verdadeira”
causa das doenças de Nietzsche serão supérfluas, até que elas não possam
ser provadas ou refutadas, p. ex., por meio de pesquisas genéticas” (Klopstock,
NS 42, p. 296). Como essas comprovações não estão disponíveis, e talvez
nunca estejam, não é filosoficamente proveitoso dedicar muito tempo a essas
especulações. Considero mais proveitoso tratar da relação entre a doença e a
filosofia de Nietzsche, a partir de uma sugestão de R. Schiffter.
3. A doença de Nietzsche influenciou decisivamente em sua filosofia?
Nietzsche foi um pensador que sofreu terrivelmente, que procurou na
literatura médica, em farmácias e onde ele podia, em si e fora de si, meios para
tratar de suas doenças. A suposição da sífilis (apesar dos sintomas horríveis da
fase avançada dessa doença) ajuda a aliviar o incômodo da constatação
escarnecedora de que o filósofo dionisíaco teria morrido ‘quase virgem’. O
diagnóstico da síndrome de MELAS, no entanto, é ainda mais incômodo: para
um filósofo que tanto valorizou a constituição fisiológica, as realidades
fisiológicas e a hereditariedade, desenvolver uma doença neurodegenerativa,
herdada da mãe, é horrível, para quem possuía vários ascendentes
‘maluquinhos’ na linha materna. Essas hipóteses não são de muita valia para
compreender o destino trágico do filósofo Nietzsche.
R. Schiffter faz uma observação instigante, no sentido de relacionarmos
o tipo psicológico de Nietzsche com sua filosofia: até a virada do ano de 1887
para 1888, não há nenhum sintoma neurológico confiável para a doença que
ele teria a partir do início de 1889. A personalidade de Nietzsche, até o início
de 1888 seria marcada pela alternância entre períodos de intensa criação e
fases depressivas; o entusiasmo, o pathos, o sentir-se eleito para uma tarefa
muito elevada, a inspiração e os pensamentos sublimes seriam alternados por
“auto-observações hipocondríacas” e por muitas dores físicas (cf. Schiffter, p.
288). Recordemos: o ano de 1888 é de intenso labor e entusiasmo, que
resultou na elaboração de vários livros (desde O caso Wagner até Ecce homo),
e de muitos escritos não publicados: “Agora ele chega a uma embriagadora e
imperceptível disposição eufórica básica; ele se sente sadio e forte, não tem
mais dores, uma intensificação pulsional persistente o conduz a uma força de
criação irreprimível” (p. 288). Esse entusiasmo criativo de Nietzsche, a meu
ver, não brota de um corpo que teria conquistado (mesmo que provisoriamente)
a “grande saúde”, mas é expressão de um quadro patológico complexo.
Nietzsche, ‘powermaniac’1
, pressente já a iminência de seu esgotamento
fisiológico e psíquico. De modo heroico, ele procura dar uma unidade e um
sentido à sua obra – e à sua vida também. Entretanto, as suas obras de agosto
a dezembro de 1888 são frágeis trincheiras se comparadas ao grande projeto,
à tarefa filosófica que ele havia proposto desde 1885, A transvaloração dos
valores, a Vontade de Poder, a Filosofia do eterno retorno, ou como quer que a
chamemos. Giorgio Colli (que era um tanto pessimista-schopenhaueriano ao
comentar os últimos escritos de Nietzsche) chamou a atenção para o
esgotamento dos recursos teóricos e para um final um tanto sombrio, nos
escritos nietzschianos do último quadrimestre de 1888. O abandono do projeto
da Vontade de poder, seguindo nesse sentido, seria muito mais a admissão de
uma impotência, do que a derradeira guinada para a afirmação dionisíaca da
existência. Nietzsche tenta transfigurar suas doenças, seus sofrimentos físico-
psíquicos e todos os seus ensaios filosóficos, através de recursos retóricos e
artísticos. No Ecce homo podemos encontrar belos exemplos de como
Nietzsche tenta estilizar e dar um sentido à sua existência – como o maior
filósofo que já pisou neste planeta. O mestre em transtrocar perspectivas,
desde a doença e desde a perspectiva da saúde, seria “sadio no fundamento”.
Isso porque ele teria encontrado os remédios certos para a sua cura, para o
seu restabelecimento. Mas é preciso trazer à tona outras perspectivas, e
comparar essas obras (publicadas ou destinadas à publicação) com as cartas e
os escritos não publicados desse período. Nos últimos, vemos não o filósofo-
artista, vencedor de Deus e do nada, mas o pensador solitário, que se depara
com a mais horrível doença da vontade humana: o niilismo.
1
Tive essa impressão ao ouvir a música de Rammstein, no final de Nymphomaniac, de Lars von Trier, na
Berlinale.
É bem verdade que Nietzsche superestimou as causas e os efeitos do
niilismo em seu tempo. Mas o modo como ele pensou e vivenciou o niilismo
“dentro, fora, ao lado e abaixo de si” foi quiçá mais forte do que toda a
efervescência e entusiasmo de seu pensamento afirmativo. Ninguém em seu
tempo foi mais ‘genial’ do que Nietzsche, no final do novecento, em
diagnosticar o niilismo enquanto vontade de nada, a partir de si mesmo e dos
valores do mundo moderno. Não temos nenhum “diagnóstico concreto” para
afirmar que há causas fisiológicas doentias atuantes nos escritos do último ano
de produção filosófica. (Apesar disso, tendo a concordar com Paul Rée, que
era inclusive médico, no sentido de que há algo patológico – uma vaidade
“patológica, irritantemente doentia” nos escritos e na vida de Nietzsche dessa
época). Que diferença em relação à serenidade com que Nietzsche propôs a
arte filosófica de viver em A gaia ciência! Mas a tensão crescente entre a
urgência de estabelecer um novo sentido para a existência - e a expansão da
crise niilista dos valores não proporcionou a Nietzsche a “grande saúde”, nem o
ápice de sua filosofia em 1888. Parece-me que Nietzsche escolheu os meios
certos (solidão, isolamento, autoglorificação, trabalho árduo numa grandiosa
tarefa) para novos ensaios filosóficos, - mas também para levar seu corpo
frágil, com sua frágil saúde, até o colapso. Por mais trágico que isso seja, por
mais que Nietzsche não desejasse uma vida longa, mas sem grandes emoções
ou criações, é oportuno colocar a questão: todo esse entusiasmo e euforia de
criação dos últimos meses de 1888 trouxe algo de filosoficamente superior e
decisivo em relação ao que o filósofo produziu anteriormente? É preciso,
assim, pensar – no interior da filosofia de Nietzsche - no que brotou a partir da
doença de Nietzsche, e o que a doença colocou irremediavelmente a perder.
Berlim, 26 de fevereiro de 2014.

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Artigo de Clademir Araldi: "Nietzsche e suas terríveis doenças"

  • 1. Nietzsche e suas horríveis doenças Clademir Araldi Na edição de n. 42 dos Nietzsche-Studien (NS) foram publicados dois artigos acerca da doença de Nietzsche: 1) de R. Schiffter, “Fr. Nietzsches Krankheiten – eine unendliche Geschichte” e 2) de Th. Klopstock, “Fr. Nietzsche und seine Krankheiten: kein ausreichender Anhalt für MELAS”. Trata- se de duas contraposições ao diagnóstico fornecido por Christiane Koszka, no artigo dos Nietzsche-Studien 39 (2010): „MELAS (Mitochondriale Enzephalomyopathie, Laktazidose und Schlaganfall-ähnliche Episoden) – Eine Neue Diagnose von Nietzsches Krankheit“. Nesse artigo, a autora defende que o diagnóstico de síndrome de MELAS (mitochondrial encephalomyopathy with lactic acidosis and stroke-like episodes) é o mais apropriado para os sintomas e o transcurso da doença de Nietzsche. Apresentaremos de modo sucinto 1) o diagnóstico proposto por Koszka, no contexto de outros diagnósticos alternativos apresentados nas últimas décadas, para depois 2) apresentar as contraposições nos dois artigos recentes dos NS para, por fim, 3) propor um deslocamento da discussão: não mais focar sobre o diagnóstico preciso das doenças de Nietzsche, mas reforçar a questão, qual seja, em que sentido e em que momento as doenças de Nietzsche influenciaram decisivamente em sua filosofia, especialmente no ano de 1888. 1. MELAS – Um diagnóstico alternativo, entre outros. A síndrome de MELAS, descrita pela primeira vez em 1984, é uma doença mitocondrial multissistêmica e neurodegenerativa, transmitida pela linha materna. Christiane Koszka procura atribuir muitos dos sintomas típicos desta doença genética aos sintomas típicos das doenças de Nietzsche, desde sua infância: enxaqueca, acompanhada de vômitos, anisocoria, reumatismo, complicações gastro-intestinais, tonturas, distúrbios maníaco-depressivos, alucinações visuais e acústicas, miopia, distúrbios da fala e da consciência... (cf. Koszka, NS 39, p. 577). Esses são os principais sintomas das doenças de
  • 2. Nietzsche, entre os 4 e os 44 anos de vida, ou seja, até o colapso psíquico em Turim. As capacidades físicas e mentais de Nietzsche decaíram progressivamente de 1889 a 1900, até a demência, a paralisia e a cegueira completa. Em resumo: o transcurso típico da doença de Nietzsche condiz com o diagnóstico de uma síndrome de MELAS, tendo em vista: 1) o início precoce da doença, no período escolar; 2) a transmissão genética da doença por parte da mãe e 3) os sintomas e complicações típicos dessa doença em Nietzsche. (p. 577). Assim, ela contesta o diagnóstico de neurossífilis, tendo em vista que o transcurso da doença por mais de dez anos é muito improvável no caso da sífilis. Como bem notou Thomas Klopstock, o diagnóstico proposto por Koszka é mais hipótese entre várias oferecidas nas últimas décadas: i) distúrbio afetivo bipolar seguido de uma demência vascular (conforme Kolle, 1965); ii) uma forma hereditária de demência fronto-temporal (proposta por Orth & Trimble em 2006); iii) um tumor cerebral progressivo (diagnóstico de Owen, conforme Schaller e Binder, 2007) e iv) CADASIL, doença genética que produz múltiplos infartos (acrônimo para arteriopatia cerebral autossômica dominante com infartos subcorticais e leucoencefalopatia, conforme Devreese e D. e K. Hemelsoet, 2008) (cf. Klopstock, NS 42 , p. 294). Para o doutor em medicina, coordenador do MitoNET (Deutsches Netzwerk für mitochondriale Erkrankungen), assim como os diagnósticos supracitados, também o de Christiane Koszka sofre do mesmo problema: são especulações, pois não há elementos suficientes para prová-los. 2. Não há provas suficientes para o diagnóstico de síndrome de MELAS – e para nenhum outro diagnóstico... No sentido de apontar para a falta de provas para o diagnóstico de MELAS, Fr. Klopstock enumera, numa tabela, os principais sintomas das doenças de Nietzsche. Boa parte desses sintomas não se relacionam com a síndrome, assim como é improvável que boa parte deles se refiram a ela. (p. 296 – 297) Mas o mais importante, segundo ele, é que a síndrome completa de MELAS não poderia se instaurar até os 44 anos de vida, no auge da força criativa e intelectual de Nietzsche (cf. p. 296).
  • 3. Nessa mesma direção seguem as críticas de Roland Schiffter ao diagnóstico da síndrome de MELAS, tal como foi proposto por Christiane Koszka. Roland reafirma o diagnóstico de O. Biswanger, que foi também o de de P. Möbius e de K. Jaspers, qual seja, Nietzsche, depois de passar por muitos períodos de doença e de sofrimento, foi acometido de uma paralisia progressiva, que seria a consequência da sífilis (cf. Schiffter, NS 42, p. 284). Ele admite, contudo, que não há provas empíricas suficientes para esse diagnóstico. Mais interessante, no entanto, é a descrição feita por Schiffter das muitas doenças ao longo da vida de Nietzsche. Desde o período escolar até 1888, Nietzsche sofreu de “ataques típicos de enxaqueca”, ligados a vômitos, sensibilidade à luz e ao sentimento de estar doente. Os problemas de visão, como a miopia e a anisocoria, também começaram na infância, causando muitas dores de cabeça. A inflamação crônica da retina e o estrabismo, por sua vez, causaram incômodos e tribulações desde a juventude. A partir de 1875, segundo Schiffter, podem ser diagnosticadas complicações gastro-intestinais crônicas em Nietzsche. Aliam-se a isso as dores reumáticas, as perturbações do sono e a “superexcitação nervosa”, das quais muito Nietzsche se queixava. Nesse quadro complexo, é preciso ainda considerar a configuração psíquica dos sofrimentos de Nietzsche, suas neuroses e seus períodos depressivos. O modo como Nietzsche observava, interpretava e analisava suas doenças, seus estudos de medicina, seriam típicos de um hipocondríaco (cf. Schiffter, NS 42, p. 284 - 286). A constituição psíquica de Nietzsche e seu modo de reagir à doença, às resistências externas e internas teriam uma forte influência em suas doenças físicas, ou seja, haveria uma interação psicossomática. Schiffter defende o diagnóstico da paralisia progressiva, ligada à neurossífilis. Apesar de os sintomas decorrentes da sífilis se manifestarem num período de 5 a 10 anos, eles pode ocorrer raramente até 20 anos após a infecção. Como não havia tratamento, a paralisia progressiva se desenvolve, via de regra, progressivamente num período de 2 a 5 anos; mas o desenvolvimento de uma psicose maníaca, um dos sintomas finais, poderia levar até 15 anos (2013, p. 287). Nietzsche seria assim uma ‘exceção das
  • 4. exceções’. Mas isso é também uma suposição, pois não é fornecido um diagnóstico concreto. Em relação ao caráter especulativo dos diagnósticos propostos (Sífilis, MELAS), é relevante apontar para a conclusão de Klopstock: “Desde a perspectiva da ciência da natureza, outras especulações sobre a “verdadeira” causa das doenças de Nietzsche serão supérfluas, até que elas não possam ser provadas ou refutadas, p. ex., por meio de pesquisas genéticas” (Klopstock, NS 42, p. 296). Como essas comprovações não estão disponíveis, e talvez nunca estejam, não é filosoficamente proveitoso dedicar muito tempo a essas especulações. Considero mais proveitoso tratar da relação entre a doença e a filosofia de Nietzsche, a partir de uma sugestão de R. Schiffter. 3. A doença de Nietzsche influenciou decisivamente em sua filosofia? Nietzsche foi um pensador que sofreu terrivelmente, que procurou na literatura médica, em farmácias e onde ele podia, em si e fora de si, meios para tratar de suas doenças. A suposição da sífilis (apesar dos sintomas horríveis da fase avançada dessa doença) ajuda a aliviar o incômodo da constatação escarnecedora de que o filósofo dionisíaco teria morrido ‘quase virgem’. O diagnóstico da síndrome de MELAS, no entanto, é ainda mais incômodo: para um filósofo que tanto valorizou a constituição fisiológica, as realidades fisiológicas e a hereditariedade, desenvolver uma doença neurodegenerativa, herdada da mãe, é horrível, para quem possuía vários ascendentes ‘maluquinhos’ na linha materna. Essas hipóteses não são de muita valia para compreender o destino trágico do filósofo Nietzsche. R. Schiffter faz uma observação instigante, no sentido de relacionarmos o tipo psicológico de Nietzsche com sua filosofia: até a virada do ano de 1887 para 1888, não há nenhum sintoma neurológico confiável para a doença que ele teria a partir do início de 1889. A personalidade de Nietzsche, até o início de 1888 seria marcada pela alternância entre períodos de intensa criação e fases depressivas; o entusiasmo, o pathos, o sentir-se eleito para uma tarefa muito elevada, a inspiração e os pensamentos sublimes seriam alternados por “auto-observações hipocondríacas” e por muitas dores físicas (cf. Schiffter, p.
  • 5. 288). Recordemos: o ano de 1888 é de intenso labor e entusiasmo, que resultou na elaboração de vários livros (desde O caso Wagner até Ecce homo), e de muitos escritos não publicados: “Agora ele chega a uma embriagadora e imperceptível disposição eufórica básica; ele se sente sadio e forte, não tem mais dores, uma intensificação pulsional persistente o conduz a uma força de criação irreprimível” (p. 288). Esse entusiasmo criativo de Nietzsche, a meu ver, não brota de um corpo que teria conquistado (mesmo que provisoriamente) a “grande saúde”, mas é expressão de um quadro patológico complexo. Nietzsche, ‘powermaniac’1 , pressente já a iminência de seu esgotamento fisiológico e psíquico. De modo heroico, ele procura dar uma unidade e um sentido à sua obra – e à sua vida também. Entretanto, as suas obras de agosto a dezembro de 1888 são frágeis trincheiras se comparadas ao grande projeto, à tarefa filosófica que ele havia proposto desde 1885, A transvaloração dos valores, a Vontade de Poder, a Filosofia do eterno retorno, ou como quer que a chamemos. Giorgio Colli (que era um tanto pessimista-schopenhaueriano ao comentar os últimos escritos de Nietzsche) chamou a atenção para o esgotamento dos recursos teóricos e para um final um tanto sombrio, nos escritos nietzschianos do último quadrimestre de 1888. O abandono do projeto da Vontade de poder, seguindo nesse sentido, seria muito mais a admissão de uma impotência, do que a derradeira guinada para a afirmação dionisíaca da existência. Nietzsche tenta transfigurar suas doenças, seus sofrimentos físico- psíquicos e todos os seus ensaios filosóficos, através de recursos retóricos e artísticos. No Ecce homo podemos encontrar belos exemplos de como Nietzsche tenta estilizar e dar um sentido à sua existência – como o maior filósofo que já pisou neste planeta. O mestre em transtrocar perspectivas, desde a doença e desde a perspectiva da saúde, seria “sadio no fundamento”. Isso porque ele teria encontrado os remédios certos para a sua cura, para o seu restabelecimento. Mas é preciso trazer à tona outras perspectivas, e comparar essas obras (publicadas ou destinadas à publicação) com as cartas e os escritos não publicados desse período. Nos últimos, vemos não o filósofo- artista, vencedor de Deus e do nada, mas o pensador solitário, que se depara com a mais horrível doença da vontade humana: o niilismo. 1 Tive essa impressão ao ouvir a música de Rammstein, no final de Nymphomaniac, de Lars von Trier, na Berlinale.
  • 6. É bem verdade que Nietzsche superestimou as causas e os efeitos do niilismo em seu tempo. Mas o modo como ele pensou e vivenciou o niilismo “dentro, fora, ao lado e abaixo de si” foi quiçá mais forte do que toda a efervescência e entusiasmo de seu pensamento afirmativo. Ninguém em seu tempo foi mais ‘genial’ do que Nietzsche, no final do novecento, em diagnosticar o niilismo enquanto vontade de nada, a partir de si mesmo e dos valores do mundo moderno. Não temos nenhum “diagnóstico concreto” para afirmar que há causas fisiológicas doentias atuantes nos escritos do último ano de produção filosófica. (Apesar disso, tendo a concordar com Paul Rée, que era inclusive médico, no sentido de que há algo patológico – uma vaidade “patológica, irritantemente doentia” nos escritos e na vida de Nietzsche dessa época). Que diferença em relação à serenidade com que Nietzsche propôs a arte filosófica de viver em A gaia ciência! Mas a tensão crescente entre a urgência de estabelecer um novo sentido para a existência - e a expansão da crise niilista dos valores não proporcionou a Nietzsche a “grande saúde”, nem o ápice de sua filosofia em 1888. Parece-me que Nietzsche escolheu os meios certos (solidão, isolamento, autoglorificação, trabalho árduo numa grandiosa tarefa) para novos ensaios filosóficos, - mas também para levar seu corpo frágil, com sua frágil saúde, até o colapso. Por mais trágico que isso seja, por mais que Nietzsche não desejasse uma vida longa, mas sem grandes emoções ou criações, é oportuno colocar a questão: todo esse entusiasmo e euforia de criação dos últimos meses de 1888 trouxe algo de filosoficamente superior e decisivo em relação ao que o filósofo produziu anteriormente? É preciso, assim, pensar – no interior da filosofia de Nietzsche - no que brotou a partir da doença de Nietzsche, e o que a doença colocou irremediavelmente a perder. Berlim, 26 de fevereiro de 2014.