A peça da Cia. do Latão traça a história da produção artística brasileira desde o período pré-golpe até os dias atuais, iluminando a progressiva mercantilização da arte. Através de recriações do CPC, Cinema Novo, Tropicalismo e TV, a peça mostra como a lógica do mercado foi se sobrepondo às tensões políticas e estéticas das vanguardas artísticas. No debate, analistas discutem como a peça atualiza as referências históricas e coloca em foco a questão
José bragança de miranda da interactividade (crítica da nova mimésis tecnol...
Teatro da História
1. Teatro
ÓPERA DOS VIVOS.
OU NÃO
O novo espetáculo da Cia. do Latão traça um amplo painel
crítico sobre a história da produção artística nacional,
iluminando o eixo de sua afirmação de mercado, mas
desconsidera as tensões internas dessa hegemonia
por Leandro Saraiva
APESAR DO JÁ costumeiro rigor pós-Golpe, seguido dos rearranjos as opções mundiais aparecem de dez em
estético, intelectual e político de seus implicados na “adaptação” ao período dez linhas, a propósito de tudo”, como
espetáculos, basta uma rápida olhada na militar e da formação da nossa sociedade diz Schwarz sobre o período.
estrutura básica da nova peça do Latão de consumo (ou de consumo vicário),
para perceber que se trata de um esforço saltando, numa teleologia irônica, direta- CINEMA NOVO, DE NOVO
especialmente ousado e ambicioso. mente para os estúdios imperiais da “TV A&'-)&'BB5'3=>#$-)&C(D/3&5'&'3&>)#E)&5'
O ato I, “Sociedade Mortuária”, re- Tudo”, para a qual toda a história parece e algo do estilo – câmera na mão, cortes
encena a história da Liga Camponesa de convergir (e se anular). descontínuos, planos curtos, alternados
Sapé, surgida a partir de uma associação Mas será que se trata, propriamente, com acúmulos de tempo, –, é o da urgên-
entre os trabalhadores para o rateio das de uma recapitulação expositiva, de uma cia de Terra em transe. Mas em Tempo
despesas de enterro de seus mortos, aula empirista de história da cultura? Morto o protagonista é o jovem empre-
numa aproximação à produção do CPC Basta atentar um pouco para os rear- sário. Quem oscila é o burguês, versão
(Centro Popular de Cultura). ranjos formais de cada ato, em relação do Fuentes de Glauber, aqui trazida ao
!"#$%&'$&()&*'+',$'-)&./0$#'1,#' aos “originais”, para perceber que não centro: sua linguagem, tensionada pelo
retoma, com brilho estilístico, a matriz é bem disso que se trata. O diálogo de furacão da história, não é a da poesia,
cinemanovista utilizando-se de trama e fundo é com o clássico ensaio de Roberto como a de Paulo Martins, mas a dos
personagens de Terra em transe (Glauber Schwarz, “Cultura e política 1964-1969” negócios. O que o arrasta para o círculo
2&34-5'6789:5';,<0=>4->?&'&;'3&>@=)&;' (em O pai de família e outros ensaios), já ?-' -()#' #;1,#(?=;)-' F&' )#-)(&' #' &' /0$#'
de classe e as ambiguidades pessoais e em si mesmo sintetizante e interpretativo, 1,#'#0#'1,#('/>->3=-(:'+'&'#>G&0G=$#>)&'
culturais do momento de vitória golpista sob um ponto de vista marcado pelo com Júlia, uma atriz engajada e, no lugar
e de realinhamento reacionário da bur- interesse político de esquerda. Ópera do embate trágico, tudo se desfaz como
guesia nacional. dos vivos desdobra, e traz para o pre- uma aventura. O transe do Golpe é então
“Privilégio dos mortos”, o ato III,é sente, esta visão interessada e uma sutil representado pela perspectiva burguesa,
um show de música – de ótima música e permanente “distorção criativa” das desde o nosso presente, no qual “venceu
- no qual se confrontam Miranda, uma referências sumarizadas em cena. o sistema de Babilônia e o garção de
cantora engajada que, no Golpe, entrou No ato cepecista, a moldura é meta- costeleta”, como aponta com triste graça
em coma e agora reencontra um cenário linguística, com a ação sendo interrom- a frase de Oswald de Andrade citada por
muito transformado, e um grupo clara- pida por comentários épicos dos atores Schwarz no prefácio a O ornitorrinco, de
mente tropicalista, que se apresenta já sobre o caráter de estudo da montagem. Francisco de Oliveira. Deste ângulo da
plenamente adaptado às demandas do Essa atualização – que deixa entrever burguesia nacional, a produção artística
espetáculo de massa. o recorrente diálogo do Latão com o esquerdista – e, mais amplamente, as
O ato IV, “Morrer de Pé”, é contem- Movimento dos Trabalhadores Rurais reformas de modernização democrática
porâneo e narra um episódio de uma pro- Sem Terra (MST) – implica ainda em mu- – foi, literalmente, uma aventura com a
dução televisiva que evidencia o processo danças de estilo na encenação do drama 1,-0';#'@#()&,'%&(',$'$&$#>)&H'
industrial subjugando a criação artística. camponês, com motivações mais indivi- No debate que acompanhou este
A recapitulação CPC-Cinema Novo- duais dos personagens do que aquelas ato, Ismail Xavier ampliou o leque de
Tropicalismo-TV onipresente é acom- utilizadas pelo CPC, que trabalhou num pontos de atualização das referências
panhada dos estágios históricos corres- clima de época altamente politizado, expostas e discutidas na peça-filme.
pondentes, fazendo o quadro avançar implicando “uma certa abstração e velo- Lembrou que o Cinema Novo não se
do período pré-Golpe para o imediato cidade do novo teatro e cinema, em que fez à margem, e sim por meio da busca
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2. do sucesso no mercado regular das salas
de cinema, retirando rendimento estético
da tensão entre a vanguarda modernista
e o desejo de intervenção no presente,
com uma utopia política que era também
empenho na conquista de hegemonia no
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legiado – justamente por ser industrial
e ter mercado mundial – de combate
anticolonialista.
Essas considerações não contra-
dizem a leitura feita pelo Latão, mas
podem servir para um “deslocamento
do deslocamento” que Tempo Morto
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se transfere do poeta engajado para o
burguês, produzindo uma versão da obra
glauberiana que sublinha as contradições
de classe com as tintas do pragmatismo
burguês. O comentário de Ismail chama
a atenção para as dimensões também
pragmáticas, que se misturavam ao
projeto político e estético, das relações
entre artistas e mercado, que iam além
de uma miopia informada por uma má
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Schwarz associa à arte e à política do PC
pré-Golpe, e que o Latão reencena aqui
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burguês e a atriz engajada). Ou seja, havia
um projeto de mercado, enunciado, aliás,
muito claramente já em 1966, no artigo
“Cinema Novo e estruturas econômicas
tradicionais”, de Gustavo Dahl, que
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anos depois.
Obviamente, o Latão sabe disso, e se
prefere preservar Júlia das jogadas ambí-
guas de Paulo Martins (e dos cinemano-
vistas, que sentaram em todas as mesas
militares necessárias à consolidação da
L$<(-/0$#'#5'>&'/$'?&;'->&;'9N5'-)(--
G+;'?#0-'3&>1,=;)-(-$',$-';=C>=/3-)=G-'
fatia do público consumidor, ), o faz
para melhor construir, dentro da peça,
a progressão da mercantilização da arte,
que é o tema explícito do ato seguinte.
O ”Privilégio dos mortos” tem a
forma de um show tropicalista, que
tem como convidada especial, e foco de
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As performances e as músicas são mui-
to irônicas: “Borboleta Predestinada”,
com sua dança de parangolés, anuncia o
“desabrochar” dos astros tropicalistas,
se adaptando às demandas do show
Sociedade mortuária: os vivos e os
mortos se encontram no palco
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3. Tempo morto: a Cia. do Latão refaz Terra em transe como arqueologia encenada do presente
business; “As Entranhas do Monstro”, iluminados pela “luz fria” de formas Caetano cantou no Oscar e Gil assumiu
$-=;'-=>?-5'#>I(#>)-5'#'G#>3#5'&'?#;-/&' ultramodernas – um “achado”, dizia o o Ministério da Cultura. A apreciação
de fazer uma paródia da paródia pop autor, que introjetava, na forma estética, ?#;)-'=>)#(%(#)-WK&'?&')(&%=3-0=;$&'/3-'
tropicalista: consegue ser divertida e as ambiguidades entre lucidez crítica e mais clara se considerarmos o retrato
#/3=#>)#5' $-;' >#$' )->)&5' PD' 1,#5' %#0-' comercialismo, mimetizando (e também deste mundo-mercadoria, pintado na
estranheza forçada da imagem, expõe expondo ao sol) o congelamento im- parte seguinte da peça.
&'-()=IQ3=&'-0#C&(=M->)#'R'1,#'$=F;:)=/3-' posto pelo Golpe à dinâmica democrá- X' -)&' />-0' >-((-' ,$-' ;=),-WK&' #$'
a Indústria Cultural como o monstro (a tica que prometia superar a contradição 1,#'-'@,=?#M'#/3=#>)#'?-'=>?Y;)(=-'3,0-
música da cena choca, diverte, mas diz entre os setores pobres e atrasados e os tural se interrompe: durante a realização
pouco – o compositor do Latão, Martin ricos e atualizados do país. A versão do de um melodrama televisivo sobre “os
Eckerman, consegue dar uma volta a tropicalismo apresentada na peça nada tempos da ditadura”, um ator que os vi-
mais no avesso do avesso do avesso). E tem dessas ambiguidades, mas apresenta veu se rebela contra seu papel – mais por
há as falas do intelectual-cantor Cao (evi- apenas o cinismo bem informado pseu- motivos de verossimilhança psicológica
dentemente, Caetano), que alternam evo- domoderno. do personagem torturador do que por
cações irracionais e inversões brilhantes No debate sobre este ato, Francisco resistência política. E por um breve mo-
das diretrizes da cultura do engajamento, Alambert, ao contrário de Ismail, não mento a indústria pára, até conseguir de
espetacularizando a estética da fome. apresentou contrapontos, mas explicitou novo se impor - não por uma visão ideo-
e sublinhou uma tese que está na peça: o 0ZC=3-5''PD'?#;>#3#;;D(=-'3&$&'P,;)=/3-)=G-'
PARANGOLÉS AO VENTO tropicalismo, entendido como submissão –, mas apenas por fazer valer a força das
Aqui o ponto de vista atualizante faz ca- da arte crítica nacional à forma-merca- engrenagens da produção e das relações
ricatura do tropicalismo, a partir de suas doria, tornou-se tão hegemônico que se ?#')(-<-04&'(#=/3-?-;H'[,(->)#'#;)#'!<,C'
versões mais vendáveis e desdentadas. confunde, hoje, com o próprio campo ?&';=;)#$-*'?#;/0-$'/-%&;'?#'3(=;#'?#'
S34T-(M5' #$' 67875' @-C(-G-' -' =$-C#$' da produção artística nacional. Para ele, consciência dos trabalhadores culturais,
tropicalista como um instantâneo dos a vitória absoluta do tropicalismo tem desimportantes frente ao mastodôntico
arcaísmos do subdesenvolvimento, 3&$&' $-(3&' &' ->&' ?#' UNNV5' 1,->?&' poderio industrial.
O TRABALHO NA TELA
As predestinadas borboletas tropicalistas caminhando e cantando as entranhas do monstro Como disse Maria Rita Kehl, o tema
central é o trabalho da representação e a
alienação do trabalhador deste processo,
o artista. Frente a tal fechamento de hori-
zontes, segundo a analista, e como narra
também o Latão, a memória se torna
nostálgica e lírica, como acontece com
a canção de Miranda, tão viva no início
da peça, e reduzida a repertório antigo,
no circo da mercadoria contemporâneo.
Este rigoroso “teorema”, como cha-
mou Alambert, tem o mérito de colocar
em foco a questão central das relações de
trabalho da produção cultural, as histori-
cizando através de ensaios com formas
do passado, produzidas dentro de outro
quadro de relações. A operação, bastante
inteligente, obtém a façanha brechtiana
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que, aliás, Nelson Xaiver e João das Ne-
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4. fora do contexto industrial – uma gama mercantilização da arte nacional seria um
de formas de produção com as quais resultado e tanto. Mas uma parte, mesmo
a gestão de Gilberto Gil, no MinC, se que central, não vale pelo todo dinâmico.
relacionou aberta e criativamente. Como lembrou Marcos Napolitano no
O teorema de Ópera dos Vivos tem, debate com Alambert, se tudo é contra-
portanto, o mérito depor a nu a questão ditório, é preciso considerar o conjunto
das relações de produção das artes, mas de forças contrárias à mercantilização,
não aponta sua luz para as forças em inclusive no âmago da indústria cultural.
contradição com o eixo do poder e do Não é preciso muito marxismo para
capital. compreender que o mesmo processo
Claro, pode-se facilmente argumentar que concentra poder e capital na “TV
1,#'&')#&(#$-'?-'%#W-'<,;3-'?#/>=('&'G#- ",?&*'F#'-/>;:'%(&?,M')#>;#;'R'3&$&'
tor dominante do sistema cultural – o da as vividas inclusive por artistas inovado-
ves, artistas que viveram intensamente o res que nela trabalham –, e, como na era
período do engajamento e mantêm suas
posições políticas até hoje, fazem ques- Luz sobre a ?&' ?=C=)-0' /3-' $-=;' #G=?#>)#5' 3(#;3#$'
as forças produtivas, de um modo que
tão de reivindicar em seus depoimentos
(sobre este importante ponto, vale a mercantilização o capital tenta controlar, mas que lhe
escapa por todos os dedos.
pena ler as observações de Ismail no
livro Cinema brasileiro contemporâneo, da arte, e alguma ]=%#()(&/-(' !-' "^*' #' !&' )(&%=3--
lismo” até torná-los um DNA de toda
a vasta fauna e flora cultural talvez
1,#'I-0-';&<(#'&'/0$#.$-(3&'?&'/$'?&'
período moderno no cinema brasileiro, penumbra sobre seja construir uma imagem congelada,
Cabra marcado para morrer, que se inicia incapaz de reconhecer o que há, ainda,
como uma produção cooperativada entre
estudantes e camponeses e se conclui
as contradições senão de subversivo, pelo menos de
instigante, por exemplo, nos arranjos de
15 anos depois do Golpe, como obra sociedade do espetáculo, em suma – e não Caetano para clássicos da música norte-
(#@#E=G-'?#',$'?=(#)&('1,#5'3&$&')&?&;5' estas tensões periféricas. Esse entendi- americana (em A foreing sound), ou no
)&(>-(-.;#',$'%(&/;;=&>-0:H' mento foi defendido por Maria Rita Kehl trabalho de Furtado, ou, em outra ponta
e Eugênio Bucci no debate sobre a TV, do espectro social dos produtores, em
O CENTRO E AS CONTRADIÇÕES que engrossaram o caldo frankfurtiano ,$'/0$#'3&$&'_;'G&0)-;'?&'`#>#5'?&'
De fato, a atividade artística já foi outra ao caracterizarem a TV como uma forma cineasta huni kui Zezinho Yube, que
coisa, e a evidência disso, posta em de satisfação de desejos inconscientes, @-C(-' -' )#>;K&' #>)(#' )(-?=WK&' #' $#(-
cena, nos permite interrogar, em termos inconfessáveis e com simulacro oligopo- 3->)=0=M-WK&'?&;'%-?(#;'C(D/3&;'R'&;'
materialistas, o que é “fazer arte” hoje. lizado do espaço público – e tudo o que kene – de sua cultura.
A peça nos faz ver com mais clareza, estivesse fora desta caracterização seria As contradições continuam vibrando
inclusive, que muitos artistas têm tema- =>;=C>=/3->)#5'%&(1,#'$-(C=>-0H e tensionando a indústria cultural por to-
tizado a condição de produção da arte: Não fosse o Latão um grupo marxis- dos os lados, neste mundo feito – refeito
-'(#@#E=G=?-?#')&(>&,.;#'-)+',$'3-3&#)#' )-5'&')#&(#$-'4=;)Z(=3&'?-'-/($-WK&'?-' – pelos vivos e pelos mortos.
no documentário; o incrível sucesso mar-
ginal dos Racionais leva Mano Brown a
(#@#)=(';&<(#'&;'?=0#$-;'?#';,-'3(=-WK&' Eu vi um Brasil na tevê: no ato final assistir sentado a Morrer de pé
na genial “Negro Drama”; e até quem
trabalha na Globo, com Guel Arraes e
Jorge Furtado, faz repetidos trabalhos
sobre o trabalho e a condição do artista
(Romance, O homem que copiava, An-
chietanos, Clandestinos – só para citar
os mais evidentes).
À parte considerações de tema e de
(#@#E=G=?-?#'I&($-05'&')(-<-04&'-()Q;)=3&'
surge hoje de maneira nova e renovada,
em experiências que, ainda que não
devam suscitar ufanismos emancipáo-
rios, merecem consideração: pontos de
cultura, organizações em rede (como o
crucial Fora do Eixo, dos roqueiros, ou
o Circuitos Compartilhados, nas artes
plásticas), artistas de várias frentes que
lançam mão dos recursos digitais para
produzir e fazer circular o que produzem
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