2. O Amor, Meu Amor Nosso minha pele te veste
amor é impuro e ficas ainda mais despida.
como impura é a luz e a
água Pudesse eu ser tu
e tudo quanto nasce E em tua saudade ser a
e vive além do tempo. minha própria espera.
Minhas pernas são água, Mas eu deito-me em teu
as tuas são luz leito
e dão a volta ao universo Quando apenas queria
quando se enlaçam dormir em ti.
até se tornarem deserto e
escuro. E sonho-te
E eu sofro de te abraçar Quando ansiava ser um
depois de te abraçar para sonho teu.
não sofrer.
E levito, voo de semente,
E toco-te para em mim mesmo te
para deixares de ter corpo plantar
e o meu corpo nasce menos que flor: simples
quando se extingue no teu. perfume,
lembrança de pétala sem
E respiro em ti chão onde tombar.
para me sufocar
e espreito em tua claridade Teus olhos inundando os
para me cegar, meus
meu Sol vertido em Lua, e a minha vida, já sem leito,
minha noite alvorecida. vai galgando margens
até tudo ser mar.
Tu me bebes Esse mar que só há depois
e eu me converto na tua do mar.
sede.
Meus lábios mordem, Mia Couto, in "idades
meus dentes beijam, cidades divindades"
3. Se é Doce Se é doce no recente,
ameno Estio
Ver toucar-se a manhã de etéreas
flores,
E, lambendo as areias e os verdores,
Mole e queixoso deslizar-se o rio;
Se é doce no inocente desafio
Ouvirem-se os voláteis amadores,
Seus versos modulando e seus ardores
Dentre os aromas de pomar sombrio;
Se é doce mares, céus ver anilados
Pela quadra gentil, de Amor querida,
Que esperta os corações, floreia os
prados,
Mais doce é ver-te de meus ais vencida,
Dar-me em teus brandos olhos
desmaiados.
Morte, morte de amor, melhor que a
vida.
Bocage, in 'Sonetos'
4. Adeus Já gastámos as palavras pela era no tempo em que os meus olhos
rua, meu amor, eram realmente peixes verdes.
e o que nos ficou não chega Hoje são apenas os meus olhos.
para afastar o frio de quatro paredes. É pouco, mas é verdade,
Gastámos tudo menos o silêncio. uns olhos como todos os outros.
Gastámos os olhos com o sal das
lágrimas, Já gastámos as palavras.
gastámos as mãos à força de as Quando agora digo: meu amor,
apertarmos, já se não passa absolutamente nada.
gastámos o relógio e as pedras das E no entanto, antes das palavras gastas,
esquinas tenho a certeza
em esperas inúteis. que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
Meto as mãos nas algibeiras e não no silêncio do meu coração.
encontro nada.
Antigamente tínhamos tanto para dar um Não temos já nada para dar.
ao outro; Dentro de ti
era como se todas as coisas fossem não há nada que me peça água.
minhas: O passado é inútil como um trapo.
quanto mais te dava mais tinha para te E já te disse: as palavras estão gastas.
dar.
Adeus.
Às vezes tu dizias: os teus olhos são
peixes verdes. Eugénio de Andrade, in “Poesia e Prosa”
E eu acreditava.
Acreditava,
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.
Mas isso era no tempo dos segredos,
era no tempo em que o teu corpo era um
aquário,
5. O Espírito Nada a fazer amor, eu sou do
bando
Impermanente das aves friorentas;
E nos galhos dos anos desbotando
Já as folhas me ofuscam macilentas;
E vou com as andorinhas. Até quando?
À vida breve não perguntes: cruentas
Rugas me humilham. Não mais em
estilo brando
Ave estroina serei em mãos sedentas.
Pensa-me eterna que o eterno gera
Quem na amada o conjura. Além, mais
alto,
Em ileso beiral, aí espera:
Andorinha indemne ao sobressalto
Do tempo, núncia de perene primavera.
Confia. Eu sou romântica. Não falto.
Natália Correia, in “Poesia Completa”
6. Assim o Amor Assim o amor
Espantado meu olhar com teus cabelos
Espantado meu olhar com teus cavalos
E grandes praias fluidas avenidas
Tardes que oscilam demoradas
E um confuso rumor de obscuras vidas
E o tempo sentado no limiar dos campos
Com seu fuso sua faca e seus novelos
Em vão busquei eterna luz precisa
Sophia de Mello Breyner Andresen, in
―Obra Poética‖
7. Soneto Não pode Amor por mais que
as falas mude
exprimir quanto pesa ou quanto mede.
Se acaso a comoção falar concede
é tão mesquinho o tom que o desilude.
Busca no rosto a cor que mais o ajude,
magoado parecer aos olhos pede,
pois quando a fala a tudo o mais
excede
não pode ser Amor com tal virtude.
Também eu das palavras me arreceio,
também sofro do mal sem saber onde
busque a expressão maior do meu
anseio.
E acaso perde, o Amor que a fala
esconde,
em verdade, em beleza, em doce
enleio?
Olha bem os meus olhos, e responde.
António Gedeão, in ―Poesias
Completas‖
8. Amor o teu rosto à minha espera, o teu
rosto
a sorrir para os meus olhos, existe um
trovão de céu sobre a montanha.
as tuas mãos são finas e claras, vês-me
sorrir, brisas incendeiam o mundo,
respiro a luz sobre as folhas da olaia.
entro nos corredores de outubro para
encontrar um abraço nos teus olhos,
este dia será sempre hoje na memória.
hoje compreendo os rios. a idade das
rochas diz-me palavras profundas,
hoje tenho o teu rosto dentro de mim.
José Luís Peixoto, in "A Casa, A
Escuridão"
9. O Beijo Mata o Desejo Sabendo que deves ter
Milhões deles p'ra me dar,
Teria que enlouquecer
MOTE Para um beijo te roubar.
«Não te beijo e tenho E como em teus lábios
ensejo puros,
Para um beijo te roubar; Guardas tudo quanto
O beijo mata o desejo almejo,
E eu quero-te desejar.» Doutros desejos futuros
O beijo mata o desejo.
GLOSAS
Porque te amo de verdade, Roubando um, mil te daria;
'stou louco por dar-te um O que não posso é jurar
beijo, Que não te aborreceria,
Mas contra a tua vontade E eu quero-te desejar!
Não te beijo e tenho
ensejo. António Aleixo, in "Este
Livro que Vos Deixo..."
10. Visão (A J. M. Eça de Queiroz)
Eu vi o Amor — mas nos seus olhos baços
Nada sorria já: só fixo e lento
Morava agora ali um pensamento
De dor sem trégua e de íntimos cansaços.
Pairava, como espectro, nos espaços,
Todo envolto n'um nimbo pardacento...
Na atitude convulsa do tormento,
Torcia e retorcia os magros braços...
E arrancava das asas destroçadas
A uma e uma as penas maculadas,
Soltando a espaços um soluço fundo,
Soluço de ódio e raiva impenitentes...
E do fantasma as lágrimas ardentes
Caíam lentamente sobre o mundo!
Antero de Quental, in "Sonetos"
11. Seus Olhos Seus olhos - que eu
sei pintar
O que os meus olhos cegou –
Não tinham luz de brilhar,
Era chama de queimar;
E o fogo que a ateou
Vivaz, eterno, divino,
Como facho do Destino.
Divino, eterno! - e suave
Ao mesmo tempo: mas grave
E de tão fatal poder,
Que, um só momento que a vi,
Queimar toda a alma senti...
Nem ficou mais de meu ser,
Senão a cinza em que ardi.
Almeida Garrett, in 'Folhas
Caídas'
12. Cinismos
Eu hei de lhe falar lugubremente
Do meu amor enorme e massacrado,
Falar-lhe com a luz e a fé dum crente.
Hei de expor-lhe o meu peito descarnado,
Chamar-lhe minha cruz e meu Calvário,
E ser menos que um Judas empalhado.
Hei de abrir-lhe o meu íntimo sacrário
E desvendar a vida, o mundo, o gozo,
Como um velho filósofo lendário.
Hei de mostrar, tão triste e tenebroso,
Os pegos abismais da minha vida,
E hei de olhá-la dum modo tão nervoso,
Que ela há de, enfim, sentir-se constrangida,
Cheia de dor, tremente, alucinada,
E há de chorar, chorar enternecida!
E eu hei de, então, soltar uma risada.
Cesário Verde, in 'O Livro de Cesário Verde
13. O Amor É uma Companhia
O amor é uma companhia.
Já não sei andar só pelos caminhos,
Porque já não posso andar só.
Um pensamento visível faz-me andar mais
depressa
E ver menos, e ao mesmo tempo gostar
bem de ir vendo tudo.
Mesmo a ausência dela é uma coisa que
está comigo.
E eu gosto tanto dela que não sei como a
desejar.
Se a não vejo, imagino-a e sou forte como
as árvores altas.
Mas se a vejo tremo, não sei o que é feito
do que sinto na ausência dela.
Todo eu sou qualquer força que me
abandona.
Toda a realidade olha para mim como um
girassol com a cara dela no meio.
Alberto Caeiro, in "O Pastor Amoroso"
Heterónimo de Fernando Pessoa
14. Não Sei se é Amor que Tens, ou Amor que
Finges
Não sei se é amor que tens, ou amor que
finges,
O que me dás. Dás-mo. Tanto me basta.
Já que o não sou por tempo,
Seja eu jovem por erro.
Pouco os deuses nos dão, e o pouco é
falso.
Porém, se o dão, falso que seja, a dádiva
É verdadeira. Aceito,
Cerro olhos: é bastante.
Que mais quero?
Ricardo Reis, in "Odes"
Heterónimo de Fernando Pessoa
15. Esperança Tantas formas revestes, e
nenhuma
Me satisfaz!
Vens às vezes no amor, e quase te
acredito.
Mas todo o amor é um grito
Desesperado
Que apenas ouve o eco...
Peco
Por absurdo humano:
Quero não sei que cálice profano
Cheio de um vinho herético e
sagrado.
Miguel Torga, in 'Penas do
Purgatório'
16. Poeta Pede a Seu Amor que lhe
Escreva
Meu entranhado amor, morte que é
vida,
tua palavra escrita em vão espero
e penso, com a flor que se emurchece
que se vivo sem mim quero perder-te.
O ar é imortal. A pedra inerte
nem a sombra conhece nem a evita.
Coração interior não necessita
do mel gelado que a lua derrama.
Porém eu te suportei. Rasguei-me as
veias,
sobre a tua cintura, tigre e pomba,
em duelo de mordidas e açucenas.
Enche minha loucura de palavras
ou deixa-me viver na minha calma
e para sempre escura noite d'alma.
Federico García Lorca, in 'Poemas
17. Em Todas as Ruas te Encontro
Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco
conheço tão bem o teu corpo
sonhei tanto a tua figura
que é de olhos fechados que eu
ando
a limitar a tua altura
e bebo a água e sorvo o ar
que te atravessou a cintura
tanto tão perto tão real
que o meu corpo se transfigura
e toca o seu próprio elemento
num corpo que já não é seu
num rio que desapareceu
onde um braço teu me procura
Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco
Mário Cesariny, in "Pena Capital"
18. Soneto de Mal Amar
Invento-te recordo-te distorço
a tua imagem mal e bem amada
sou apenas a forja em que me forço
a fazer das palavras tudo ou nada.
A palavra desejo incendiada
lambendo a trave mestra do teu corpo
a palavra ciúme atormentada
a provar-me que ainda não estou morto.
E as coisas que eu não disse? Que não
digo:
Meu terraço de ausência meu castigo
meu pântano de rosas afogadas.
Por ti me reconheço e contradigo
chão das palavras mágoa joio e trigo
apenas por ternura levedadas.
Ary dos Santos, in 'O Sangue das
Palavras'
19. Crepuscular Há no ambiente um
murmúrio de queixume,
De desejos de amor, d'ais comprimidos...
Uma ternura esparsa de balidos,
Sente-se esmorecer como um perfume.
As madressilvas murcham nos silvados
E o aroma que exalam pelo espaço,
Tem delíquios de gozo e de cansaço,
Nervosos, femininos, delicados,
Sentem-se espasmos, agonias d'ave,
Inapreensíveis, mínimas, serenas...
_ Tenho entre as mãos as tuas mãos
pequenas,
O meu olhar no teu olhar suave.
As tuas mãos tão brancas d'anemia...
Os teus olhos tão meigos de tristeza...
_ É este enlanguescer da natureza,
Este vago sofrer do fim do dia.
Camilo Pessanha, in 'Clepsidra'
20. A Voz do Amor Nessa pupila rútila e
molhada,
Refúgio arcano e sacro da Ternura,
A ampla noite do gozo e da loucura
Se desenrola, quente e embalsamada.
E quando a ansiosa vista desvairada
Embebo às vezes nessa noite escura,
Dela rompe uma voz, que, entrecortada
De soluços e cânticos, murmura...
É a voz do Amor, que, em teu olhar
falando,
Num concerto de súplicas e gritos
Conta a história de todos os amores;
E vêm por ela, rindo e blasfemando,
Almas serenas, corações aflitos,
Tempestades de lágrimas e flores...
Olavo Bilac, in "Poesias"
21. Os Meus Versos Rasga esses versos que
eu te fiz, amor!
Deita-os ao nada, ao pó, ao
esquecimento,
Que a cinza os cubra, que os arraste o
vento,
Que a tempestade os leve aonde for!
Rasga-os na mente, se os souberes de
cor,
Que volte ao nada o nada de um
momento!
Julguei-me grande pelo sentimento,
E pelo orgulho ainda sou maior!...
Tanto verso já disse o que eu sonhei!
Tantos penaram já o que eu penei!
Asas que passam, todo o mundo as
sente...
Rasgas os meus versos... Pobre
endoidecida!
Como se um grande amor cá nesta vida