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DELTORA É UMA TERRA DE MONSTROS E MAGIA...
Lief, Barda e Jasmine saíram em uma perigosa-busca para encontrar as
sete pedras perdidas do mágico Cinturão de Deltora. Mas o seu reino somente será
libertado do poder do cruel Senhor das Sombras quando todas as pedras tiverem
sido recolocadas no Cinturão.
Quatro pedras foram encontradas. Agora, embora notícias perturbadoras
de casa tenham chegado até Lief e ele esteja ansioso por retornar, a busca precisa
prosseguir. Para encontrar a quinta pedra, os heróis devem se aventurar até quase
a fronteira das Terras das Sombras, e mergulhar na escuridão e no terror do reino
do monstruoso sapo Gellick — a Montanha do Medo.
SUMÁRIO
O refúgio
Antes do amanhecer
Intenções malignas
O plano
O inimigo
A decolagem
Kinrest
A montanha
Medo
A luta
Mistérios
A subida
Do lado de dentro
Gellick
Os gnomos do medo
Fazer ou morrer
A despedida
ATÉ AGORA...
Lief, de dezesseis anos, cumprindo uma promessa feita pelo pai antes de
seu nascimento, saiu em uma grande busca para encontrar as sete pedras
preciosas do mágico Cinturão de Deltora. As pedras — uma ametista, um topázio,
um diamante, um rubi, uma opala, um lápis-lazúli e uma esmeralda — foram
roubadas para permitir que o maligno Senhor das Sombras invadisse o reino.
Escondidas em terríveis locais por todo o reino, elas precisam ser recolocadas no
Cinturão a fim de que o herdeiro do trono seja encontrado, e a tirania do Senhor das
Sombras seja derrotada.
Os companheiros de Lief são, Barda, um homem que já foi guarda do
palácio, e Jasmine, uma garota selvagem e órfã da mesma idade de Lief, que
ambos conheceram em sua primeira aventura nas temíveis Florestas do Silêncio.
Em suas viagens, eles descobriram um movimento de resistência secreto
liderado por Perdição, um homem misterioso, com uma cicatriz no rosto, que os
salvou quando foram capturados pelos brutais Guardas Cinzentos do Senhor das
Sombras.
Até o momento, os três amigos encontraram quatro pedras: o topázio
dourado, símbolo da lealdade, que tem o poder de fazer os vivos entrarem em
contato com o mundo espiritual e de clarear a mente; o rubi, símbolo da felicidade,
cuja cor perde a intensidade na presença de ameaças, repele espíritos malignos e é
um antídoto para venenos; a opala, pedra da esperança, que oferece vagas
imagens do futuro; o lápis-lazúli, pedra celestial, que é um poderoso talismã.
A fim de encontrar a quinta pedra, eles devem viajar até muito perto da
fronteira da Terra das Sombras — para a lendária Montanha do Medo...
E agora, continue a leitura...
O dia havia sido bonito e claro e, naquele momento, um ar fresco os
envolvia. Tempo perfeito para uma caminhada, mas nada pode ser agradável
quando se está com sede, cansado e com medo. Lief avançava com dificuldade, a
cabeça curvada, os membros doloridos, e apenas vagamente ciente da presença
de Barda e Jasmine ao seu lado.
Os cantis estavam quase vazios. Desde que haviam deixado as Dunas, os
três amigos vinham sobrevivendo às custas de alguns goles de água por dia.
Contudo, a terra plana e marrom se estendia ao longe sem sinal algum de rio ou
córrego, e o céu, agora alaranjado pelo pôr-do-sol, era imenso e sem nuvens.
Lief caminhava de cabeça baixa para não ter que olhar a linha recortada do
horizonte. A Montanha do Medo ainda se encontrava distante, e os amigos levariam
semanas para atingi-la — se não morressem de sede antes, Lief pensou,
melancólico —, mas só de pensar nela, ele ficava cheio de medo. Saber que cada
passo o aproximava da fronteira da Terra das Sombras era mais aterrorizador
ainda.
Lief curvou os ombros e pensou admirado no garoto que deixara Del tão
cheio de entusiasmo diante da aventura que o esperava. Agora, aquele garoto lhe
parecia absurdamente jovem e aquela época, muito distante.
No entanto, não se passara tanto tempo — apenas alguns meses —, e
muita coisa havia sido conquistada nesse período. Quatro pedras brilhavam agora
no Cinturão de Deltora, oculto sob a camisa de Lief. Só faltava encontrar três pedras.
Ele sabia que deveria estar se sentindo feliz, esperançoso e triunfante, como
Jasmine. Em vez disso, lutava contra o desespero e a tristeza.
Pois, ao olhar para trás, parecia um milagre que as pedras tivessem se
mantido seguras e que ele e os companheiros tivessem sobrevivido aos terrores
que enfrentaram. Por quanto tempo mais duraria aquela boa sorte? O ânimo de Lief
diminuía ao pensar no que os aguardava.
Além disso, até aquele momento, eles haviam escapado à vigilância do
Senhor das Sombras, mas esse tempo certamente havia terminado. Perdição, o
homem com a cicatriz no rosto, líder da Resistência, havia dito que já se
espalhavam rumores sobre eles. E, se Perdição ouvira comentários, o mesmo
certamente acontecera com o Senhor das Sombras. No entanto, ali caminhavam
Lief, Barda e Jasmine sob o céu aberto, com Kree voando adiante deles. Que
importância tinha que ninguém soubesse seus nomes? A descrição era suficiente.
Lief saltou assustado e quase tropeçou quando um vulto negro bateu asas
ao lado de sua cabeça, mas era somente Kree que pousava no braço de Jasmine. O
pássaro grasnou. Filli colocou a cabeça cinza e peluda para fora do casaco de sua
dona e respondeu animadamente.
— Kree disse que há água mais adiante — Jasmine gritou. — Uma
pequena lagoa, talvez uma fonte, pois ele não conseguiu ver nenhum córrego por
perto. Fica num bosque perto da estrada.
A expectativa de tomar água fez com que todos apressassem o passo, e
não demorou para que Kree levantasse vôo outra vez e os conduzisse para fora da
estrada. Desviando-se de arbustos e rochas, eles o seguiram até finalmente chegar
a um bosque formado de árvores claras e de aspecto antigo.
E ali, de fato, bem no centro, encontrava-se uma pequena lagoa redonda
cercada de pedras brancas. Ansiosos, os companheiros correram em sua direção.
Então, eles viram uma placa de bronze presa a uma das pedras, com algumas
palavras gravadas, palavras que eles mal conseguiam ver na luz que enfraquecia:
FONTE DOS SONHOS
BEBA, GENTIL ESTRANHO
E SEJA BEM-VINDO
OS QUE TIVEREM INTENÇÕES
MALIGNAS, TENHAM CUIDADO.
Os amigos hesitaram. A fonte era clara e tentadora, e a sede era grande.
Contudo, a inscrição na placa de bronze deixou todos nervosos. Seria seguro tomar
aquela água?
— Jasmine, o que dizem as árvores? — Barda indagou. Ele já duvidara da
capacidade de Jasmine de conversar com plantas e animais, mas isso fora há muito
tempo.
— Elas não dizem nada — Jasmine informou olhando ao redor, a
expressão séria. — Elas estão em completo silêncio. Não entendo...
Lief estremeceu. O bosque era verde e tranqüilo e sob os seus pés crescia
uma grama verde e viçosa. O local parecia um pequeno paraíso no entanto, pairava
uma estranha sensação no ar. Ele passou a língua sobre os lábios secos.
— Talvez seja melhor não bebermos dessa fonte — ele disse relutante. —
Ela pode estar encantada... ou envenenada.
— Não temos intenções malignas — Barda protestou. — Acho que ela é
segura para nós.
Mas ele continuou onde estava e não se aproximou da fonte. Filli chilreava
impaciente no ombro de Jasmine.
— Todos estamos com sede, Filli — Jasmine murmurou. — Mas
precisamos esperar. Não temos certeza... Filli! Não!
A pequena criatura pulou para o chão e correu até a nascente, ignorando
os gritos de Jasmine. Rapidamente, mergulhou a cabeça na água cristalina e bebeu
sofregamente.
— Filli! — Jasmine chamou desesperada.
Porém, desta vez, Filli não lhe deu atenção, mergulhado que se encontrava
na alegria de matar a sua terrível sede.
E ele não passou mal, tampouco desfaleceu.
Kree foi o próximo a voar até a fonte. Ele também bebeu, afundando o bico
na água repetidas vezes. E também não apresentou nenhum efeito desfavorável.
Depois disso, Lief, Barda e Jasmine não conseguiram mais esperar e correram para
a nascente.
A água era fria e refrescante. Lief nunca provara algo tão bom. Em sua casa,
em Del, a água era igualmente fresca, mas sempre tinha um gosto de metal que a
bomba produzia.
Quando, finalmente, beberam até se saciar, os amigos encheram os cantis
até a borda, para o caso de terem de fugir depressa durante a noite. O bosque
parecia seguro, mas eles haviam aprendido que não era prudente confiar nas
aparências.
Sentaram-se na grama e comeram algo enquanto a Lua subia e as estrelas
apareciam no céu acima deles. Estava frio, mas eles preferiram não acender uma
fogueira. Até mesmo uma pequena chama pareceria um farol sinalizando a
presença deles. E também, por motivos de segurança, eles foram bem para debaixo
das árvores antes de desenrolar seus cobertores. Outras pessoas poderiam ter
conhecimento da fonte e aparecer para tomar água durante a noite.
— Ficamos muito cuidadosos — Jasmine bocejou, aconchegando-se
debaixo do cobertor. — Lembro-me de dias em que éramos mais ousados.
— Hoje as coisas são diferentes — Lief murmurou. — Agora estão
procurando por nós — ele concluiu, estremecendo.
Barda deu uma olhada para ele e virou-se rapidamente para ocultar o olhar
preocupado.
— Dormiremos em turnos. Eu fico de guarda agora — ele avisou. Kree
grasnou.
— Você também precisa dormir, Kree — Jasmine sorriu. — Você está muito
cansado e não pode nos vigiar a noite toda. Você e Filli e eu ficaremos de sentinela
juntos quando Barda nos acordar.
Ela se virou e fechou os olhos, a mão deslizando no pêlo macio de Filli.
Sonolento, Lief observou quando Kree começou a voar para um galho acima da
cabeça de sua dona. Então, o pássaro pareceu mudar de idéia, desceu e pousou na
grama. Ele saltitou para perto de Jasmine e ajeitou-se perto dela, enfiando a cabeça
sob a asa.
Lief sentiu uma leve centelha de medo.
— Barda — ele chamou baixinho. — Dê uma olhada em Kree. Barda,
agachado sob o cobertor que jogara nas costas para se aquecer, virou-se para
olhar.
— Por que ele está dormindo no chão e não num galho? — Lief sussurrou.
— Talvez ele não goste de árvores — Barda sussurrou em resposta. —
Jasmine disse que elas estavam em silêncio. E, de fato, elas são estranhas. Você
percebeu que elas são exatamente iguais?
Lief olhou ao redor e se deu conta de que Barda estava certo. Aquela era
uma das razões pelas quais as árvores pareciam tão estranhas. Todas tinham o
mesmo tronco reto e liso, os mesmos galhos apontando para o céu, o mesmo
conjunto de folhas pálidas. Ele sentiu um frio na espinha.
— Lief, pare de se preocupar, por favor! — Barda resmungou após um
instante. — Seja lá o que for que está preocupando Kree, não é suficiente para
impedi-lo de descansar. Sugiro que você siga o exemplo dele. Se não dormir, vai se
arrepender. Logo vai ser a sua vez de ficar de guarda.
Lentamente, Lief enrolou-se no cobertor e se deitou. Durante um ou dois
minutos, ele fitou o céu escuro pontilhado de estrelas, emoldurado pelas folhas
claras das estranhas árvores. Nenhuma brisa as balançava. Nenhum inseto
cricrilava. Não se ouvia nenhum som, exceto a respiração suave de Jasmine.
Suas pálpebras começaram a pesar, e logo ele não conseguia mantê-las
abertas, tampouco tentou. "Se Kree não está com medo de dormir, eu também não
vou ficar", ele pensou. "Afinal, o que pode nos acontecer enquanto Barda fica de
sentinela?"
Minutos depois, ele estava adormecido. Por esse motivo, não notou a
cabeça de Barda pender suavemente no peito, nem ouviu o leve ressonar do amigo.
E não sentiu o passar de pés silenciosos quando os moradores do bosque
se dirigiram à Fonte dos Sonhos.
Lief estava sonhando. O sonho parecia muito real. Ele estava parado junto
à velha bomba no quintal da ferraria. O quintal estava escuro e deserto.
"É noite", ele pensou. "Papai e mamãe certamente estão dentro de casa a
essa hora". Contudo, a casa também estava às escuras e, embora ele chamasse da
porta e depois da cozinha, ninguém respondeu.
Confuso, mas ainda não assustado, entrou na sala de estar. A luz da Lua
cheia brilhava pela janela. As cortinas estavam abertas, o que era estranho. E havia
objetos jogados no chão: livros e papéis espalhados por todo o canto. Seus pais
jamais os teriam deixado daquela maneira.
O quarto deles encontrava-se vazio, a cama em desordem e desfeita, e
roupas estavam caídas no chão. Sobre a cômoda, havia um vaso de flores mortas.
Isso lhe deu a certeza de que algo estava errado. Assustado, Lief correu para fora
mais uma vez. A Lua brilhava sobre o quintal vazio. O portão da ferraria oscilava e
exibia uma marca. Lief não conseguiu ver com exatidão do que se tratava e se
aproximou, o coração aos pulos. E, então, ele viu.
Lief despertou sobressaltado. O suor molhava-lhe a testa, sua respiração
estava acelerada, e as mãos, trêmulas. Ele disse para si mesmo que fora somente
um sonho, que não havia nada a temer.
Devagar, ele se deu conta de que o céu acima dele estava pálido e que as
estrelas haviam quase desaparecido. O dia estava amanhecendo. Ele dormira a
noite inteira. Mas será que Jasmine, que certamente assumira o segundo turno de
vigilância, se esquecera de chamá-lo?
Ele deu uma olhada na direção em que tinha visto a amiga se ajeitar para
dormir na noite anterior. Ela ainda se encontrava no mesmo lugar, respirando calma
e regularmente. Kree encontrava-se encolhido ao lado dela e, não muito longe, ele
viu Barda, as costas apoiadas numa árvore, a cabeça caída sobre o peito. Ele
também dormia profundamente.
Lief quase riu. Então, apesar dos planos sensatos, todos haviam dormido.
Talvez tivesse sido bom. Eles precisavam descansar e, de fato, nada os perturbara
durante a noite.
Lief sentia sede. Em silêncio, saiu de sob as cobertas, levantou-se e
caminhou entre as árvores até a fonte. Seus pés descalços não fizeram nenhum
ruído na grama macia. Ele percebeu outro detalhe incomum no bosque — as
árvores não deixavam cair folhas ou ramos.
Ele estava quase chegando na nascente quando ouviu um leve ruído na
água — alguém estava matando a sede.
A mão de Lief deslizou para o punho da espada. Ele fez menção de voltar,
pensando em Barda e Jasmine, mas encontrava-se tão próximo da fonte que lhe
pareceu tolice não espiar e descobrir quem entrara no bosque. Prendendo a
respiração, escondeu-se atrás da última árvore e olhou.
Um vulto gorducho inclinava-se sobre a água e bebia. Parecia algum tipo
de animal do tamanho de um cachorro grande, mas muito mais gordo do que
qualquer cão que Lief já tinha visto. Lief apertou os olhos e se esforçou para vê-lo
melhor na penumbra. A pele da criatura era de um castanho escuro e não parecia
ser coberta de pêlos. As orelhas eram pequenas e bem junto à cabeça. As pernas
traseiras eram curtas e atarracadas, e as patas dianteiras, delgadas. A pele nas
costas e nos lados tinha marcas estranhas, dobras e ondulações.
O que seria?
Lief deu um passo à frente e, no mesmo instante, a criatura endireitou o
corpo, virou-se e o viu.
O olhar de Lief encontrou olhos grandes e assustados, bigodes eriçados,
uma boca cor-de-rosa aberta e patinhas apertadas de medo, e uma estranha
sensação de prazer e paz o invadiu. Ele não compreendeu o sentimento, mas
soube, com certeza, que a criatura era inofensiva, gentil e estava muito assustada.
— Não tenha medo — ele disse em voz baixa e tranqüilizadora. — Não vou
machucar você.
A criatura continuou a fitá-lo, mas Lief teve a impressão de que parte do
medo deixou o olhar dela e foi substituído pela curiosidade.
— Não vou machucar você — Lief repetiu. — Sou um amigo.
— Como você se chama? — a criatura indagou com voz aguda. Lief deu um
salto violento, pois não lhe ocorrera que a criatura pudesse falar.
— Meu nome é Lief — ele respondeu, sem pensar.
— Eu sou Little, isto é, Prin, filha dos Kins — a criatura informou. Ela
endireitou o corpo e começou a andar cambaleante na direção de Lief, as pernas
curtas movendo-se com dificuldade na grama, as patas dianteiras dobradas, a boca
exibindo um sorriso doce e esperançoso.
Lief a olhava assombrado. Várias lembranças flutuavam em sua mente.
Não era de surpreender que tivesse sido invadido por aquela sensação de paz
quando viu o rosto de Prin pela primeira vez. Como não percebera antes quem ela
era?
Kin! As célebres criaturas voadoras que todas as crianças de Del
conheciam. Lief não tivera um Kin de brinquedo, Monty, com quem dormia quando
era pequeno? Sua mãe fizera Monty com um tecido macio recheado de palha e,
com o passar dos anos, a pequena criatura ficou gasta e rasgada. Hoje, ficava
escondida numa gaveta misturada a outros tesouros, longe do olhar zombeteiro dos
amigos. Contudo, antes fora um companheiro confiável e tranqüilizador que
carregava a todos os lugares. Quantas vezes, naqueles dias, Lief desejara que
Monty criasse vida?
E aquela criatura poderia ser a realização desse desejo, Lief pensou.
Poderia ser Monty que caminhava na direção dele na grama. Mas, não era fato que
lhe haviam dito que os gentis e delicados Kins haviam desaparecido há muito tempo
e que agora só existiam em velhas histórias e nas ilustrações dos livros?
Lief engoliu em seco e, por um instante, perguntou-se se ainda estava
sonhando. Mas Prin encontrava-se em pé diante dele, grande como a vida. Agora
ele podia ver que ela tinha pêlo sim, um pêlo curto e sedoso como musgo marrom.
As asas fechadas junto ao corpo eram cobertas pela mesma penugem aveludada.
Lief desejou acariciá-la e verificar se era tão macia quanto aparentava ser.
— Você quer brincar comigo, Lief? — Prin convidou, estremecendo os
bigodes e balançando o corpo para cima e para baixo. — Vamos brincar de
esconde-esconde?
Lief se deu conta de que ela era muito nova, e não poderia ser diferente,
pois, em pé, ela somente chegava à altura de seu ombro. Haviam lhe dito que os
Kins adultos eram tão grandes que, antigamente, as pessoas, ao vê-los voando no
céu, confundiam-nos com dragões e tentavam abatê-los a tiros.
— Onde está a sua família? — ele indagou, olhando ao redor. — Você não
devia pedir...?
— Eles ainda estão sonhando! — Prin informou zombeteira. — Eles só vão
acordar depois que o sol raiar, viu?
Ela apontou para o que Lief pensara serem grupos de imensas rochas
espalhadas ao redor e além das árvores. Para sua surpresa, Lief constatou que não
se tratava de rochas, mas de Kins, de tal modo enrodilhados que tudo o que se
podia ver eram as suas costas curvadas.
— Eu deveria ficar enrolada até eles acordarem — Prin explicou, baixando
a voz. — Mas não é justo, porque não tenho nada interessante para sonhar. Prefiro
brincar. Agora, você se esconde enquanto eu canto. Prometo que não vou
trapacear. Vou cantar devagar e vou fechar os olhos e também os ouvidos. Pronto?
Vá!
Ela colocou as patas sobre os olhos e começou a cantar.
— Você pode se esconder, mas eu vou achar. Meus olhos atentos vão
procurá-lo...
Lief logo percebeu que os pequenos Kins cantavam em vez de contar. No
final da canção, Prin abriria os olhos e esperaria que ele tivesse se escondido. Sem
querer desapontá-la, Lief fugiu depressa e se escondeu atrás de uma das árvores
na parte mais densa do bosque.
Não era um esconderijo muito bom, mas ele não queria se afastar muito de
onde Barda e Jasmine dormiam e, pelo menos, poderia mostrar à pequena Kin que
era um amigo.
Lief colou-se ao tronco da árvore e riu sozinho ao ouvir a voz estridente da
criaturinha terminando a canção.
— ... você pode se esconder, mas eu vou te achar, Bata as asas, e você vai
estar fora!
Você pode se esconder, mas eu vou te achar. Meus olhos atentos vão...ah!
A canção foi interrompida com um grito abafado e seguiu-se de uma
gargalhada alta e áspera.
— Peguei! — rugiu a voz. — Yo, me ajude! Ele está resistindo. Horrorizado,
Lief saiu do esconderijo atrás da árvore e retornou sorrateiramente para a fonte.
Dois Guardas Cinzentos encontravam-se curvados sobre um monte agitado no
chão. O monte era Prin.
Eles haviam jogado um casaco sobre a cabeça dela e agora estavam
amarrando-a com uma corda.
— Dê-lhe um chute, Carn 4 — o segundo guarda vociferou. — Assim ele
aprende.
Lief abafou um grito quando Carn 4 chutou o montículo com selvageria e
Prin parou de se mexer.
Lief deu um paso à frente e se sobressaltou quando alguém lhe agarrou o
braço. Era Barda, os olhos inchados de sono, acompanhado por Jasmine.
— Vamos embora, Lief — Barda sussurrou. — Eles vão descansar e comer.
Poderemos estar longe quando eles estiverem prontos para partir.
— Não posso ir — ele disse, sacudindo violentamente a cabeça, os olhos
fixos nos vultos junto à fonte. — Não posso deixá-los matar minha amiga.
Ele percebeu Barda e Jasmine trocarem olhares e soube que eles
certamente pensaram que havia perdido o juízo.
— Não tenho tempo para explicações. Onde estão as bolhas? Vá
buscá-las.
Sem nada dizer, Jasmine desapareceu entre as árvores. Talvez ela
considerasse Lief um tolo, mas não permitiria que ele enfrentasse os guardas com
somente uma espada para protegê-lo.
Seguido de perto por Barda, Lief começou a se aproximar da nascente,
correndo de uma árvore a outra até chegar perto de onde Prin se encontrava.
— Bistecas para o café da manhã — anunciou Carn 4. — Não há nada
melhor.
— Isso não é um porco — corrigiu o outro. — Olhe os pés dele.
— Seja lá o que for, é bem gordo. Vai ser uma boa refeição — Carn 4
endireitou as costas, foi até a fonte e destampou o cantil.
— Descobrimos essa nascente bem a tempo, Carn 5 — ele disse, virando
o cantil e sacudindo-o para mostrar que estava quase vazio.
— Eles fazem parte do grupo dos Carn — Lief ouviu Barda murmurar. —
Como...
— Eu sei — Lief respondeu em voz baixa. — Como os Guardas que nos
capturaram em Rithmere.
Ele segurava o punho da espada com a mão suada. Saberiam ou
adivinhariam aqueles dois o que acontecera com seus irmãos nas Dunas? Teriam
eles assumido de onde Carn 2 e 8 pararam para salvar seu grupo da desgraça?
Carn 5 caminhou até o colega na fonte, esfregando o nariz com as costas
da mão.
— Este lugar fede a carrapatos — queixou-se ele. Lief prendeu a
respiração.
— Mas não os nossos — Carn 4 curvou-se para encher o cantil. — Os
nossos dois e o seu amigo já seguiram o seu caminho. Aquele grandão feio
chamado Glock é muito lerdo. Pode-se sentir o cheiro de todos os passos que dá.
Ele não veio para cá.
O coração de Lief batia descompassadamente. Então, Perdição libertara
Glock e Neridah como planejara. Carn 4 e 5 devem ter sido os captores dos dois e
agora os estavam perseguindo como Carn 2 e 8 haviam seguido Lief e seus
companheiros após a sua fuga.
Ambos os guardas estavam voltados para a nascente. Aquele era o
momento de tentar tirar Prin dali. Lief olhou ansioso sobre o ombro. Onde estava
Jasmine com as bolhas?
— Vamos alcançá-los no cair da noite — Carn afirmou confiante,
ajoelhando-se ao lado do colega para encher o próprio cantil. — Eles e quem quer
que os tenha deixado fugir. E vamos fazer com que ele se arrependa...
— Vamos nos divertir um bocado com ele — o outro concordou.
Ambos riram e se inclinaram para beber, sorvendo a água ruidosamente.
Lief soube que não podia esperar e desperdiçar aquela oportunidade.
Ignorando a mão de Barda em seu ombro, disparou para fora do esconderijo,
apanhou o pacote flácido que era Prin e começou a arrastá-lo.
Logo em seguida, amaldiçoou-se por sua insensatez. Ele simplesmente
imaginara que Prin estava inconsciente, mas ela estava acordada, deitada imóvel,
paralisada pelo medo. Ao sentir mãos desconhecidas em seu corpo, gritou
aterrorizada.
No mesmo instante, os Guardas ergueram-se de um salto e se viraram,
ainda com água na boca, as bolhas e os estilingues já nas mãos molhadas. Eles
viram Lief inclinado sobre Prin e correram na direção deles aos gritos.
— Corra, Lief! — ele escutou Barda gritar, ao mesmo tempo em que
saltava para a frente e tentava puxá-lo para o bosque. Lief, porém, aterrorizado,
parecia preso ao chão.
Pois os Guardas estavam gritando, tropeçando, parando. De seus pés
saíam raízes que penetravam na terra como cobras e os prendiam ao solo. As
pernas se juntaram e transformaram-se num tronco sólido. Seus corpos, braços e
pescoços estenderam-se para o céu, e folhas descoradas brotaram da pele, que se
tornava uma casca macia.
E, em alguns instantes, duas árvores encontravam-se no lugar deles. Duas
árvores novas para o bosque — tão silenciosas, imóveis e perfeitas como todas as
outras.
Jasmine veio correndo com Filli chilreando assustado em seu ombro.
— As pedras estão criando vida! — ela exclamou ofegante. — E estão
vindo para cá!
Meia hora mais tarde, ainda atordoados, Lief, Barda e Jasmine
encontravam-se sentados em meio a um grupo de enormes Kins. Filli fitava as
criaturas com olhos arregalados. Prin, muito a contragosto, fora obrigada a se
abrigar na bolsa da mãe.
— Você precisa ficar protegida até acordarmos, pequenina! — a mãe
repreendeu. — Quantas vezes eu recomendei? Veja só o que aconteceu. Aqueles
malvados poderiam ter matado você!
— Eles tomaram a água, mãe — Prin resmungou do fundo da bolsa.
— Eu sabia que eles iam beber.
— Você não poderia saber que eles beberiam da água antes de feri-la — a
mãe replicou zangada. — Fique quieta. As suas costas estão muito machucadas.
— Nós também tomamos dessa água — exclamou Barda, cujo olhar
confuso passava das estranhas criaturas às árvores imóveis.
Prin espiou para fora da bolsa e torceu os bigodes.
— Quem não tem intenção de cometer o mal pode beber sem receber o mal
— ela cantarolou, certamente repetindo algo que aprendera.
A mãe a ignorou e virou-se para Barda.
— Nós soubemos que vocês tinham bom coração quando beberam da fonte
e não foram atingidos pelo mal — ela explicou com a voz lenta e grave. — Certos de
que não representavam uma ameaça para nós, sonhamos tranqüilamente a noite
toda, sem saber que nossa filhinha poderia colocar vocês em perigo pela manhã.
Nós sentimos muito.
— Foi o meu amigo que ajudou a pequena — Barda retrucou, curvando-se.
— Mas, de minha parte, foi um privilégio conhecê-los. Nunca imaginei que algum
dia veria um Kin.
— Hoje somos poucos — contou um velho Kin que se encontrava em pé ao
lado da mãe de Prin. — Desde que deixamos a nossa montanha...
— A Montanha do Medo! Vocês antes viviam lá, não é mesmo? Por que
partiram? — Lief interrompeu, incapaz de continuar em silêncio.
O velho Kin parou e fitou Barda, que sorriu.
— Como vocês vêem, também tenho jovens sob meus cuidados — ele se
desculpou, para aborrecimento de Lief. — Por favor, desculpe a interrupção e
prossiga.
— Os gnomos da Montanha do Medo sempre tentaram nos caçar —
contou a velha criatura. — Mas as suas flechas não nos faziam grande mal. Os
maiores perigos que enfrentávamos eram os Guardas Cinzentos e os monstros
Vraal que vinham das Terras das Sombras. Mas há muito tempo, alguma coisa
mudou...
A intensidade de sua voz diminuiu, e ele curvou a cabeça.
— Os gnomos começaram a usar veneno na ponta das flechas — a mãe de
Prin explicou, dando continuidade ao relato. — Era um veneno mortal que matava
rápida e dolorosamente. Perdemos muitos dos nossos — a voz dela se transformou
num sussurro. — Foi uma época terrível. Eu era muito jovem, então, mas me
lembro do que aconteceu.
Os demais Kins assentiram e sussurraram entre si. Obviamente, também
se lembravam.
— Finalmente, os poucos que restaram decidiram que não poderiam mais
ficar na Montanha — o velho Kin contou. — Esse bosque costumava ser nossa
moradia de inverno, um bom lugar para as crianças. Agora ficamos aqui o ano todo.
Hoje podemos visitar a nossa Montanha, ver as árvores Boolong, ouvir os riachos
ondulantes e sentir o doce cheiro do ar fresco somente em nossos sonhos.
Um sentimento de tristeza invadiu todo o grupo. Fez-se um longo silêncio,
e Jasmine, irrequieta, mexeu-se pouco à vontade.
— Tive um sonho estranho na noite passada — ela começou, tentando
alegrar um pouco a reunião. — Sonhei que vi Perdição. Ele se encontrava numa
caverna cheia de pessoas. O garoto Dain também estava lá, juntamente com
Neridah, Glock e muitos outros. Glock tomava sopa e a deixava escorrer queixo
abaixo. Eu os chamei, mas eles não me ouviram. Parecia tão real.
— Você não compreende? — o velho Kin perguntou, fitando-a. — Era real
— ele disse, apontando a fonte com uma das patas. — Esta é a Fonte dos Sonhos.
Você irá visitar qualquer coisa ou pessoa durante o sonho, na qual pensar enquanto
estiver bebendo.
— Nós visitamos nossa Montanha todas as noites — acrescentou a mãe de
Prin, quando Jasmine exibiu uma expressão incrédula. — É um grande consolo ver
como ela está agora. As árvores Boolong crescem fortes, muito mais do que antes.
É verdade que não podemos comer os seus frutos, mas, pelo menos, estamos lá
juntos.
— Eu não! — Prin contestou em voz alta. — Eu não posso sonhar com a
Montanha. Eu nunca a vi! Este é o único lugar que conheço, por isso não tenho
nada com que sonhar. Isso não é justo!
Sua mãe inclinou-se sobre ela e murmurou algumas palavras em seu
ouvido. Os outros adultos se entreolharam tristemente.
— O que vi em meu sonho era real? — Jasmine indagou espantada.
— Então Perdição, Neridah e Glock chegaram ao esconderijo da
Resistência em segurança! — Barda exclamou e olhou satisfeito para as duas
novas árvores junto à nascente. — E agora nenhum Guarda vai perturbá-los.
— Eu sonhei com Manus e os Ralad — ele sorriu. — Eu me encontrava
perto da fonte em sua cidade subterrânea. Eles cantavam, e tudo estava bem. É
muito bom saber disso.
Lief, contudo, permaneceu calado, entorpecido pelo susto. Ele estava se
lembrando do próprio sonho e, lentamente, enfrentava a certeza de que ele também
havia sido verdadeiro.
Aos poucos, a reunião dos Kins terminou, e cada uma das criaturas se
afastou para se alimentar da grama que crescia debaixo e ao redor das árvores.
— Grama é tudo o que temos aqui — a mãe de Prin explicou a Lief, Barda e
Jasmine, enquanto se afastava carregando seu pesado rebento na bolsa. — É
bastante nutritivo, mas estamos cansados de seu sabor adocicado e ansiamos por
comer os frutos e folhas das árvores Boolong. As folhas das árvores deste bosque
não são comestíveis. Elas não estão realmente vivas.
Kree, empoleirado no braço de Jasmine, grasnou enojado.
— Kree sempre soube que as árvores não eram como deveriam ser —
Jasmine contou, estremecendo ao olhar à sua volta. — Não é de surpreender que
elas sejam silenciosas. É horrível pensar nelas paradas aqui, inalteradas por
séculos.
— E que sorte termos passado pelo teste da fonte — Barda ajuntou
sombrio. — Ou estaríamos fazendo companhia a elas.
Lief não falara por um longo tempo. Quando, finalmente, o último Kin havia
partido, Jasmine virou-se para ele.
— O que aconteceu? — ela quis saber. — Está tudo bem.
— Não é verdade — Lief murmurou. — Os meus pais... — ele parou,
engolindo em seco, tentando desesperadamente conter as lágrimas.
— Jarred e Anna? — Barda exclamou atento. — O que você...? — de
repente, ao compreender, a sua expressão mudou e se encheu de medo.
— Você teve um sonho! — ele deduziu. — Lief...
— A ferraria está vazia — Lief confirmou devagar. — A marca do Senhor
das Sombras está no portão. Acho... acho que eles estão mortos.
Perplexo e consternado, Barda o fitou sem saber o que dizer, mas logo a
sua expressão mostrou firmeza.
— É muito provável que não estejam mortos, mas simplesmente presos —
ele consolou. — Não devemos perder as esperanças.
— Ser prisioneiro do Senhor das Sombras é pior do que a morte
— Lief murmurou. — Meu pai disse isso muitas vezes. Ele sempre me
advertiu... — as palavras ficaram presas em sua garganta, e ele cobriu o rosto com
as mãos.
Desajeitada, Jasmine deu-lhe um abraço, e Filli saltou em seu ombro e
roçou-lhe o rosto com o pêlo macio. Kree cacarejou tristemente. Barda, porém,
manteve-se afastado, lutando com o próprio medo e sofrimento.
Finalmente, Lief ergueu o olhar, o rosto muito pálido.
— Preciso voltar — ele anunciou.
— De jeito nenhum — Barda retrucou, sacudindo a cabeça.
— Preciso! — Lief insistiu zangado. — Como posso continuar sabendo o
que sei?
— Você só sabe que a ferraria está vazia — Barda argumentou com
suavidade. — Jarred e Anna podem estar nas masmorras do palácio em Del. Eles
podem estar na Terra das Sombras. Eles podem estar escondidos. Ou, como você
já disse, podem estar mortos. Seja qual for a resposta, você não pode ajudá-los.
Seu dever está aqui.
— Não me fale em dever! — Lief gritou. — Eles são meus pais!
— E são meus amigos! — Barda retrucou no mesmo tom de voz
inexpressivo. — Meus queridos e únicos amigos, Lief, desde antes de seu
nascimento. E sei o que eles lhe diriam se pudessem. Eles lhe diriam que a nossa
busca também é a busca deles e lhe implorariam para não abandoná-la.
A raiva de Lief arrefeceu e foi substituída por uma pesada tristeza. Ele fitou
o rosto de Barda e viu a dor por trás da máscara sombria.
— Você está certo — ele murmurou. — Me desculpe.
— Uma coisa é certa — tornou Barda, colocando uma das mãos no ombro
de Lief. — O tempo se tornou uma prioridade. Precisamos chegar à Montanha do
Medo o mais rápido possível.
— Não sei como podemos andar mais depressa do que temos feito até
agora — Jasmine argumentou.
— A pé não podemos — Barda concordou. — Mas tenho um plano. — A
sombra do sofrimento passou pelo rosto de Barda, mas, mesmo assim, ele
conseguiu exibir um leve sorriso. — Por que os Kins devem sonhar sobre seu lar em
vez de vê-lo com os próprios olhos? Por que andar se podemos voar?
Barda conversou com os Kins durante longo tempo e apresentou seus
melhores argumentos, mas foi somente no fim do dia que três deles finalmente
concordaram em carregar os companheiros até a Montanha do Medo.
Eles eram Merin, Ailsa e Bruna e estavam entre os maiores do grupo. Eram
todas fêmeas, pois somente as fêmeas tinham bolsas para levar passageiros.
As três concordaram por diferentes motivos: Merin, por ter saudades; Ailsa,
por causa do espírito aventureiro; e Bruna, por achar que tinha uma dívida para com
Lief por ter salvo Prin.
— Ela é muito querida para todos nós — Bruna explicou. — É o único filhote
que nasceu desde que nos mudamos para cá.
— Nós precisamos do ar da Montanha e das árvores Boolong para nos
desenvolver — Merin contou. — Aqui, apenas existimos. Em nossa Montanha,
podemos crescer e nos reproduzir. Deveríamos ter voltado há muito tempo.
— Para morrer? Você está dizendo uma grande tolice, Merin — censurou o
mais velho, que ficara muito zangado com a decisão das três sobre ir até a
Montanha. — Se você, Ailsa e Bruna forem em carne e osso à Montanha do Medo,
certamente serão mortas. E então haverá menos Kins, e teremos mais três mortes
para lamentar.
— De que adianta ficarmos aqui e morrermos lentamente? — disparou
Ailsa, erguendo as grandes asas. — Sem filhotes para dar continuidade à nossa
espécie, não temos futuro. Os Kins estão acabados. Prefiro morrer rapidamente por
uma boa causa a permanecer aqui. Temos os nossos sonhos, mas estou cansada
de sonhar! — Ailsa exclamou.
— E eu, que nunca posso sonhar! — Prin ajuntou. Ela correu para junto de
Ailsa e juntou as patas. — Leve-me à Montanha, Ailsa — ela implorou. — E então
eu também a terei conhecido e poderei acompanhá-las em seus sonhos.
— Você não pode ir, pequenina — Ailsa recusou. — Você é preciosa
demais. Mas pense nisso: você pode sonhar conosco e então verá onde estamos e
o que estamos fazendo. Isso não é tão bom quanto viajar?
Evidentemente, Prin não concordava, pois começou a se lamentar e chorar
sem dar atenção às ordens e pedidos da mãe. Finalmente, a mãe levou-a embora,
mas, mesmo quando estavam fora de vista, o som de suas vozes zangadas flutuava
por entre as árvores. Os demais Kins pareciam aflitos.
O velho Kin exibia uma expressão carrancuda.
— Viram o que fizeram? — ele resmungou para Barda, Lief e Jasmine. —
Estávamos felizes e tranqüilos antes de vocês aparecerem. Agora, estamos
zangados uns com os outros, e a pequenina está infeliz.
— Não é justo culpar os estranhos, Crenn — Bruna objetou. — Merin, Ailsa
e eu concordamos em ir à Montanha por nossa própria vontade.
— Isso é verdade — Merin concordou. — E a pequenina só disse o que vem
dizendo há anos, Crenn. E quanto mais ela crescer, mais ela repetirá essas
palavras. A vida dela aqui, sem companheiros da mesma idade, é monótona demais
para ela. Ela é muito parecida com Ailsa — entusiasmada e aventureira.
— E ela não tem sonhos para embalá-la como nós — Ailsa acrescentou.
Seus olhos brilhantes voltaram-se para Jasmine, Barda e Lief.
— Acho que devo agradecer aos visitantes por perturbar a minha paz. Este
dia fez com que eu me sentisse viva novamente.
Crenn sentou-se, endireitando o corpo. A sua face envelhecida, os bigodes
brancos, o olhar amortecido e cheio de saudade estavam voltados para a
Montanha. O sol havia mergulhado no horizonte quando ele finalmente falou.
— De fato, todas vocês estão dizendo a verdade — ele concordou relutante.
— E se está escrito que isso deve acontecer, que assim seja. Eu apenas rezo para
que vocês fiquem em segurança e lhes imploro para que se cuidem e voltem para
nós o mais depressa possível.
— É o que faremos — Ailsa prometeu e deu um sorriso para os que a
cercavam. — Agora vou beber da fonte, mas não beberei mais nada esta noite. E
então tirarei apenas um cochilo. Um de nós deve estar acordado para chamar os
demais amanhã cedo. Devemos partir antes do amanhecer.
Naquela noite, Lief sonhou outra vez. Ele planejara o sonho — tomara
bastante água e pensara nos pais enquanto o fazia. "Se estiverem mortos, será
melhor enfrentar o fato", pensou. "Se estiverem vivos, esta é a chance de descobrir
onde se encontram".
Quando ele e os companheiros se preparavam para dormir, pensar no que
ele estava prestes a descobrir o deixou silencioso e tenso. Ele nada disse a Barda
e Jasmine, mas, talvez, eles tivessem adivinhado o que ele planejava, pois
estavam igualmente silenciosos, desejando uma boa-noite a todos e nada dizendo
depois. Lief ficou agradecido, pois aquilo era algo que tinha que enfrentar sozinho e
falar a respeito não ajudaria em nada.
O sono demorou a chegar. Lief permaneceu acordado durante um longo
tempo, fitando o céu. E, finalmente, a sonolência causada pela água da fonte tomou
conta dele.
Desta vez, o sonho começou quase que imediatamente.
O cheiro foi a primeira coisa que notou — o cheiro de umidade e
decomposição. Depois, seguiram-se os sons — pessoas gemendo e chorando não
muito longe, as vozes abafadas que ecoavam, fantasmagóricas. Estava muito
escuro.
"Estou em um túmulo", ele pensou, com um estremecimento de horror. Mas
logo os seus olhos se acostumaram à escuridão, e ele se deu conta de que se
encontrava numa masmorra. Um vulto de cabeça baixa estava sentado no chão a
um canto.
Era seu pai.
Esquecendo completamente que se encontrava na cela apenas em espírito,
Lief o chamou, correu até a figura caída e segurou-lhe o braço. O pai continuou
curvado, infeliz, evidentemente nada ouvindo ou sentindo. Lágrimas quentes
brotaram nos olhos de Lief, e ele chamou mais uma vez. Desta vez, o pai virou e
ergueu a cabeça. Ele olhou diretamente para o filho, um olhar levemente perplexo
no rosto.
— Sim, pai, sim! Sou eu! — Lief gritou. — Ah, tente meu ouvir! O que
aconteceu? Que lugar é esse? A mamãe está...?
Contudo, o seu pai suspirava profundamente e curvava a cabeça outra vez.
— Sonho — ele murmurou para si mesmo.
— Não é um sonho! — Lief gritou. — Eu estou aqui! Pai...
Jarred ergueu a cabeça de repente. Uma chave girava na fechadura da
porta da cela. Lief virou-se quando a porta abriu com um rangido. Havia três vultos
ali parados: um homem alto e magro vestindo uma longa túnica, cercado por dois
guardas imensos que empunhavam tochas acesas. Por um momento, Lief foi
tomado pelo medo, convencido de que os seus gritos tinham sido ouvidos, mas
percebeu imediatamente que os recém-chegados estavam tão alheios à sua
presença quanto o seu pai.
— Pois então, Jarred! — o homem com a túnica apanhou a tocha da mão de
um dos guardas e foi até o centro da cela. Iluminado pela luz bruxuleante da chama,
o seu rosto parecia anguloso, os ossos da face estavam sombreados, e a boca fina
tinha uma expressão cruel.
— Prandine! — reconheceu o pai de Lief.
O coração de Lief bateu com um som surdo. Prandine? O conselheiro-chefe
do rei Endon, o servo secreto do Senhor das Sombras? Mas ele estava morto.
Certamente, ele...
— Prandine, não, ferreiro — o homem respondeu, sorrindo. — Aquele que
se chamava Prandine mergulhou, para a morte, da torre deste mesmo palácio, há
dezesseis anos, no dia em que o Mestre reclamou o seu reino. Prandine foi
descuidado — ou infeliz. Talvez você saiba algo sobre isso...
— Não sei de nada.
— Veremos. Mas, quando alguém morre, sempre há outra pessoa para
tomar o seu lugar. O Mestre gosta deste rosto e formato. Ele decidiu repeti-los em
mim. Meu nome é Fallow.
— Onde está a minha mulher?
Lief prendeu a respiração. O homem magro riu.
— Você gostaria de saber? Talvez eu lhe diga... se você responder às
minhas perguntas.
— Que perguntas? Por que fomos trazidos para cá? Não fizemos nada de
errado.
Fallow virou-se para a porta onde os guardas vigiavam.
— Saiam! — ele ordenou. — Vou interrogar o prisioneiro sozinho. Os
guardas assentiram e se retiraram.
Assim que a porta foi firmemente fechada, o homem magro apanhou algo
das dobras de sua túnica. Um pequeno livro azul-claro.
Era o livro 0 Cinturão de Deltora, que Jarred encontrara escondido na
biblioteca do palácio. O livro que o próprio Lief tantas vezes estudara enquanto
crescia e que lhe ensinara tanto sobre o poder do Cinturão e suas pedras.
Lief contorceu-se por vê-lo nas mãos do homem. Desejou poder arrancá-lo
das mãos de Fallow, salvar o pai do sarcasmo cruel. Mas ele não conseguia. Tudo o
que podia fazer era ficar ali e observar.
— Este livro foi encontrado em sua casa, Jarred — Falow dizia. — Como
foi parar lá?
— Não me lembro.
— Talvez eu possa ajudá-lo. Nós o conhecemos. Ele veio da biblioteca do
palácio.
— Quando jovem, vivi no palácio. Talvez eu o tenha levado comigo quando
parti. Isso foi há muito tempo. Eu não sei.
Fallow tamborilou no livro com os dedos ossudos. O sorriso cruel não
deixava o seu rosto.
— O Mestre acha que você nos enganou, Jarred — ele disse. — Ele acha
que você mantém contato com o seu tolo amigo, rei Endon, e que no final ajudou
para que ele, a sua estúpida mulher e a criança não nascida pudessem escapar.
O pai de Lief negou, balançando a cabeça.
— Endon foi tolo o bastante para acreditar que eu era um traidor — ele
contou em voz baixa e inalterada. — Endon nunca me pediria ajuda, nem eu a
daria
— Assim nós pensávamos. Mas agora não temos tanta certeza. Coisas
estranhas vêm ocorrendo no reino, ferreiro. Coisas que não agradam ao Mestre.
Lief viu um repentino lampejo de esperança nos olhos baixos do pai. Olhou
rápido para Fallow. Teria ele visto o mesmo que Lief?
Ele viu. Seus próprios olhos exibiam um brilho frio quando prosseguiu.
— Certos aliados, prezados pelo Mestre, foram cruelmente mortos.
Certos... bens... também valorizados pelo Mestre foram roubados -Fallow continuou.
— Suspeitamos que o rei Endon ainda esteja vivo. Suspeitamos que ele esteja
realizando um último e inútil esforço para reaver o trono. O que você sabe sobre
isso?
— Nada. Como todas as outras pessoas em Del, acho que Endon está
morto. Foi isso que nos disseram.
— De fato — Fallow fez uma pausa e, então, se inclinou para a frente de
modo que o seu rosto e a tocha ficassem muito próximos do homem sentado no
chão. — Onde está o seu filho, Jarred? — ele disparou.
Lief sentiu sua boca ficar seca. Ele observou o pai olhar para cima e sentiu
o coração apertado ao notar as profundas marcas de exaustão, dor e sofrimento no
amado rosto tão parecido com o dele.
— Lief deixou a nossa casa há vários meses. O ofício de ferreiro o
aborrecia. Ele preferiu correr desvairadamente pela cidade com os amigos. Não
sabemos onde ele se encontra. Por que quer saber o seu paradeiro? Ele partiu o
coração da mãe e o meu também.
O coração de Lief encheu-se de orgulho diante da coragem do pai. A voz
era alta e queixosa, a voz de um pai magoado, nada mais. O seu pai, sempre tão
sincero, estava mentindo como se tivesse nascido para aquilo, determinado a
proteger o filho e a sua causa a qualquer preço.
Fallow examinava atentamente a expressão desesperada. Teria sido
enganado, ou não?
— Dizem que um garoto da idade de seu filho é um dos três criminosos que
estão vagando pelo reino, tentando impedir os planos do Mestre — disse ele
lentamente. — Ele anda acompanhado por uma garota e um homem mais velho.
Um pássaro preto voa junto deles.
— Por que está me contando isso? — o homem no chão mexeu-se inquieto.
Ele parecia meramente impaciente, mas Lief, que o conhecia tão bem, sabia que ele
estivera ouvindo atentamente. Sem dúvida, estava se perguntando quem seriam a
garota e o pássaro preto. Ele nada sabia a respeito de Jasmine e Kree, ou o que
ocorrera nas Florestas do Silêncio.
— Esse garoto — Fallow prosseguiu — pode ser o seu filho. Você é um
aleijado e pode tê-lo enviado em alguma busca inútil no seu lugar. O homem... pode
ser Endon.
O pai de Lief riu. O seu riso parecia totalmente natural, e não poderia ser
diferente, pensou Lief. Era absurdo pensar em Barda ser confundido com o delicado
e cauteloso rei Endon.
Os lábios finos de Fallow formaram uma linha dura. Ele abaixou a chama da
tocha até que bruxuleasse perigosamente diante dos olhos do homem que ria.
— Tenha cuidado, Jarred — ele rosnou. — Não submeta a minha paciência
à prova. A sua vida está em minhas mãos. E não somente a sua.
O riso parou. Lief cerrou os dentes quando viu o pai curvar a cabeça mais
uma vez.
— Eu vou voltar — Fallow disse em voz baixa, dirigindo-se à porta. —
Pense no que eu disse. Na próxima vez, vou querer respostas. Se você fez o que
suspeitamos, o simples sofrimento não fará com que conte a verdade. Mas talvez o
sofrimento de alguém que você ama seja mais convincente.
Ele ergueu o punho e bateu na porta. Quando ela se abriu, ele saiu e
bateu-a atrás de si. A chave virou na fechadura.
— Pai! — Lief gritou para o vulto encolhido junto à parede. — Pai, não se
desespere. Encontramos quatro pedras e hoje iremos até a Montanha do Medo
para encontrar a quinta. Estamos agindo o mais depressa possível.
Mas o pai continuou sentado imóvel, fitando a escuridão sem nada ver.
— Eles estão vivos — ele sussurrou. — Vivos e vitoriosos.
Os olhos dele brilharam. Correntes chocalharam quando ele fechou os
punhos.
— Ah, Lief, Barda — boa sorte! Estou enfrentando minha luta aqui da
melhor forma possível. Vocês devem enfrentar a de vocês. Minhas esperanças e
orações os acompanham.
Lief acordou com o som de vozes quase ao amanhecer. Jasmine e Barda
já se movimentavam, pegavam as suas armas e prendiam as latas com as bolhas
aos cintos. Ailsa, Merin e Bruna voltavam da fonte. Lief ficou quieto, recordando o
sonho que tivera. Embora tenha, provavelmente, dormido muitas horas depois que
o sonho acabou, todos os detalhes estavam nítidos em sua mente.
Ele teve a impressão de que um terrível peso o empurrava para baixo. Era o
peso do perigo e do sofrimento do pai, que temia por Anna. E então ele se lembrou
do brilho no olhar de Jarred e de suas palavras finais.
Estou enfrentando a minha luta aqui da melhor forma possível. Vocês
devem enfrentar a de vocês...
— Jarred e Anna sempre souberam que isso poderia acontecer
— Barda encontrava-se parado ao lado dele com uma expressão triste e
cansada no rosto.
— Você viu meu pai? — Lief exclamou, erguendo-se de um salto.
— Você também?
Eles apanharam as cobertas, ajeitaram as mochilas nos ombros e
começaram a caminhar juntos até a nascente, conversando em voz baixa. Jasmine
os seguiu atenta.
— Sonhei assim que adormeci — Barda contou. — Eu sabia que você
planejava fazer o mesmo, Lief, mas eu queria ver com meus próprios olhos o que
estava acontecendo a Jarred. Não fiquei sabendo de muita coisa, mas eu o vi. Ele
estava sentado, acorrentado à parede de uma masmorra — os punhos de Barda se
fecharam diante da lembrança. — Eu nada pude fazer. Se, pelo menos, eu pudesse
ter contado...
— Ele sabe! — Lief exclamou. — Ele sabe que estamos tendo êxito. E isso
lhe deu esperança.
— Ele ouviu você?
— Não. Ele encontrou um outro meio.
Os amigos chegaram à fonte e, enquanto comiam rapidamente frutas secas
e biscoitos e bebiam água fresca, Lief contou da visita de Fallow à cela. Barda riu
tristemente quando ouviu que estava sendo confundido com o rei Endon.
— Minha querida e velha mãe ficaria orgulhosa de ouvir isso — ele disse.
— Então eles não notaram o desaparecimento do mendigo das portas da
ferraria?
— Não — Lief respondeu. — Ou, se perceberam, devem pensar que você
simplesmente mudou para outra parte da cidade — ele franziu o cenho. — Mas a
história é diferente comigo. Quando os problemas começaram, eles foram até a
ferraria por causa da história de meu pai. Eles descobriram que eu partira,
vasculharam a casa...
— E encontraram o livro — Barda murmurou. — Há muito tempo, eu disse
a Jarred para destruí-lo, mas ele não me ouviu. Ele disse que era muito importante
Lief ouviu um leve ruído atrás de si e se virou. Jasmine mexia em sua
mochila. Seus lábios estavam firmemente cerrados, o olhar triste. Ele achou que
sabia o porquê.
— Não tive nenhum sonho na noite passada — ela disse, respondendo à
pergunta não proferida. — Tentei visualizar o meu pai quando bebi água da fonte,
mas eu era tão pequena quando ele foi capturado que não consegui lembrar de seu
rosto. Ele é apenas uma imagem indistinta agora. Portanto, perdi minha chance.
— Sinto muito — Lief murmurou.
Jasmine deu de ombros e atirou a cabeça para trás.
— Talvez seja melhor assim. Meu pai está prisioneiro há tanto tempo...
Quem sabe o que ele está sofrendo? Saber que não posso fazer nada por ele
apenas iria me atormentar. É melhor pensar que ele está morto, como minha mãe.
Ela se virou bruscamente.
— É melhor nos apressarmos. Estamos perdendo tempo com essa
conversa inútil.
Ela se afastou, acompanhada de Kree. Barda e Lief embrulharam seus
pertences e a seguiram. Ambos sabiam do grande sofrimento que se ocultava por
trás das palavras ásperas de Jasmine e ambos desejaram poder ajudá-la.
Mas não havia nada a fazer. Nada a ser feito por Jasmine, seu pai ou os
pais de Lief, ou qualquer uma das milhares de vítimas da crueldade do Senhor das
Sombras. Exceto...
"Exceto o que iremos fazer agora", Lief pensou, ao se aproximar do local
perto do bosque em que as Kins e Jasmine aguardavam. "O Cinturão de Deltora é
a nossa missão. Quando estiver concluída, quando o herdeiro de Endon for
encontrado e o Senhor das Sombras, derrubado, todos os prisioneiros serão
libertados."
Os Kins aguardavam além das árvores, no topo de uma colina coberta de
grama, reunidos para se despedir dos viajantes, exceto Prin.
— A pequenina não veio — a mãe explicou. — Peço desculpas por ela.
Geralmente, ela não fica zangada por muito tempo, mas, desta vez, foi diferente. —
Desta vez, o desapontamento foi muito grande — Ailsa murmurou. — Pobre
pequenina, sinto por ela.
Merin olhou para o céu que clareava e virou-se para Barda.
— Eu sou a maior, então vou levá-lo — ela disse educada, evidentemente
ansiosa para partir.
Um tanto nervoso, Barda entrou na bolsa dela. Lief sorriu diante da cena e,
apesar de seus receios, muitos dos que a assistiam também riram.
— Que bebê grande você está carregando, Merin — a mãe de Prin brincou.
— E muito bonito!
Lief iria viajar com Ailsa e Jasmine, com Bruna, a menor das três. Eles
entraram em suas respectivas bolsas, enquanto Filli chilreava animado no ombro de
Jasmine. Ele certamente considerava os Kins maravilhosos e se mostrava
entusiasmado por se encontrar tão próximo de um deles.
A bolsa de Ailsa era quente e macia como veludo. No início, Lief teve receio
de que o seu peso pudesse machucá-la, mas logo percebeu que sua preocupação
era infundada.
— Um filhote de Kin é muito mais pesado do que você na época em que
deixa a bolsa da mãe para sempre — Ailsa esclareceu. — Fique bem confortável.
Contudo, conforto foi o que Lief menos sentiu logo depois. Ele se
perguntara como criaturas tão pesadas conseguiam levantar vôo e descobrir
pessoalmente foi uma experiência assustadora.
O método era bastante simples. Ailsa, Merin e Bruna ficaram em fila,
estenderam as grandes asas e então correram o mais depressa possível colina
abaixo. Seus passageiros, impiedosamente sacudidos, só podiam se segurar
ofegantes. E então viram o que havia adiante — elas corriam diretamente para a
beira de um penhasco.
Lief gritou e fechou os olhos quando Ailsa se lançou ao espaço.
Seguiram-se alguns momentos atordoados de pânico enquanto as imensas asas
batiam com força acima de sua cabeça. Logo depois, sentiu um impulso para o alto
e um golpe de ar frio no rosto e percebeu que o som do bater de asas se estabilizou
e atingiu um ritmo regular. Lief abriu os olhos.
A terra abaixo parecia uma colcha de retalhos adornada em vários pontos
com pequenas árvores e caminhos estreitos e sinuosos. Mais adiante, a Montanha
do Medo já parecia mais próxima, ainda envolta em névoa, mas aparentando ser
maior, mais escura e sinistra do que antes. Atrás dela, viam-se as concavidades da
cadeia de montanhas que marcavam a fronteira com a Terra das Sombras, que
também pareciam mais próximas.
— Em quanto tempo chegaremos à Montanha? — Lief gritou, tentado
fazer-se ouvir apesar do barulho do vento.
— Teremos que parar quando começar a escurecer — Ailsa informou. —
Mas, se o bom tempo continuar, chegaremos lá amanhã.
"Amanhã!" Lief pensou. "Amanhã saberemos, sejam quais forem as
conseqüências, se os gnomos da Montanha do Medo ainda vigiam os céus em
busca de Kins. Em caso positivo, isso significará a nossa morte. Os gnomos
derrubarão Ailsa, Merin e Bruna, e nós nos espatifaremos no solo com elas."
Lief estremeceu. Sua mão deslizou até o Cinturão preso à cintura e roçou
levemente as quatro pedras ali engastadas. Elas se aqueceram ao seu toque: o
topázio, para a lealdade, o rubi, para a felicidade, a opala para a esperança, e o
misterioso lápis-lazúli, a Pedra Celestial.
Certamente tudo ficaria bem, Lief disse a si mesmo. Certamente, aquelas
pedras, juntas, os manteriam em segurança. Mas mesmo enquanto procurava ter
esses pensamentos tranqüilizadores, palavras do Cinturão de Deltora passaram
rapidamente por sua mente.
Cada pedra possui sua própria magia, mas as sete juntas têm
uma força muito mais poderosa que a soma de suas partes. Somente o
Cinturão de Deltora completo, como foi inicialmente criado por Adin e usado
pelos seus verdadeiros herdeiros, tem o poder de derrotar o Inimigo.
A advertência era clara. As pedras que Lief e seus amigos tinham em mãos
até o momento poderiam ajudá-los a seu próprio modo, mas não poderiam
salvá-los.
Lief cuidou para que seus dedos não se demorassem sobre a opala, pois
não queria ter nenhuma visão do futuro. Se fosse assustadora, não queria vê-la. Ele
enfrentaria qualquer coisa que o destino lhes reservasse no momento certo.
Quando o sol mergulhou numa névoa vermelha, as Kins voaram em
círculos, diminuindo cada vez mais a altitude, à procura do local que haviam
escolhido para passar a noite.
— Ali há água, comida e abrigo — Ailsa contou a Lief. — É uma pequena
floresta onde, há muito tempo, sempre interrompíamos a nossa jornada entre a
Montanha e o bosque. Nós a chamamos de Kinrest.
Estava quase escuro quando elas pousaram no solo, batendo as asas com
força ao mergulharem entre as árvores altas para o macio abrigo abaixo.
Lief, Barda e Jasmine saltaram desajeitadamente para o chão e foram
invadidos por uma sensação estranha ao pisarem em terra firme novamente. Os
companheiros olharam ao redor. Kinrest era realmente um local tranqüilo.
Samambaias cercavam densamente o pequeno riacho que borbulhava ali perto e
cogumelos cresciam amontoados sob as árvores enormes. De algum lugar próximo,
vinha o som de uma cachoeira.
— Como as árvores cresceram! — espantou-se Merin excitada, limpando
folhas e galhos do pêlo. — Elas escondem totalmente o riacho. E, veja só, Ailsa, a
entrada da grande caverna em que costumávamos brincar está coberta de
samambaias.
— Tudo parece muito diferente — Ailsa concordou. — Não é de
surpreender que levássemos tanto tempo para encontrá-la. Deveríamos tê-la
visitado em sonhos há muito tempo em vez de ir sempre à Montanha.
Fatigados, Lief, Barda e Jasmine sentaram-se junto ao riacho e
observaram as três Kins começarem a explorar. Jasmine inclinou a cabeça para o
lado, atenta ao farfalhar das árvores.
— O que elas dizem? — Lief quis saber ansioso. — Estamos em segu-
rança?
— Acho que sim — Jasmine respondeu séria. — As árvores estão felizes
em rever as Kins. Muitas delas são centenárias e se lembram claramente de épocas
passadas. Mas também senti tristeza e medo nelas. Algo ruim aconteceu aqui.
Sangue foi derramado, e alguém de quem gostavam morreu.
— Quando? — Barda indagou, repentinamente alerta.
— Árvores como essas não falam do tempo como nós, Barda — Jasmine
explicou paciente. — A tristeza de que se lembram pode ter sido causada há um
ano ou vinte. Para elas, tudo significa a mesma coisa.
— Acho que é seguro acendermos uma pequena fogueira — ela sugeriu,
estremecendo. — As árvores certamente esconderão a luz. E eu preciso de algo
que me anime.
Os amigos encontravam-se agachados junto às chamas aconchegantes do
fogo e comiam frutas secas e fatias de bolo de mel e nozes, quando Ailsa os
chamou da escuridão além do córrego, com uma voz estranha. Erguendo-se de um
salto assustados, eles acenderam uma tocha e foram ter com ela e as demais Kins
junto a uma grande caverna totalmente coberta por samambaias.
— Estivemos explorando a nossa caverna — Ailsa disse em voz baixa. —
Costumávamos brincar aqui quando éramos crianças. Encontramos... algumas
coisas dentro dela. Achamos que vocês gostariam de ver o que é.
Os três companheiros seguiram-nas para o interior da caverna. A luz da
tocha bruxuleava sobre as paredes rochosas e o chão arenoso, mostrando os
objetos que lá se encontravam: algumas tigelas e panelas, uma caneca, alguns
velhos cobertores caídos em meio ao pó que antes fora um monte de folhas de
samambaias secas, uma trouxa de roupas velhas, uma cadeira feita de galhos
caídos, uma tocha apagada presa à parede...
— Alguém esteve morando aqui — deduziu Lief.
— E não foi há pouco tempo — Barda ajuntou, apanhando um cobertor e
deixando-o cair novamente numa nuvem de poeira. — Eu diria que foi há muitos
anos.
— Há mais uma coisa — Ailsa contou em voz baixa.
Ela os conduziu de volta à entrada da caverna e afastou as samambaias
que cresciam fortes num dos lados, revelando uma pedra achatada e coberta de
musgo, firmemente enterrada no chão como um marco.
— Há algo escrito nela — Bruna sussurrou.
Barda abaixou a tocha, e os três companheiros constataram que realmente
havia palavras cuidadosamente esculpidas na rocha.
AQUI JAZ PERDIÇÃO DE HILLS,
QUE ABRIGOU UM ESTRANHO DESPROTEGIDO
E ASSIM FOI AO ENCONTRO DA MORTE.
ELE SERÁ VINGADO.
— Estranho nome para ser encontrado numa lápide — Barda murmurou,
lançando um olhar significativo para Lief e Jasmine. — E acompanhado por uma
estranha mensagem.
Perplexo, Lief olhou fixamente para as palavras.
— Perdição de Hills está morto! — ele balbuciou. — Mas este túmulo é
antigo... deve ter uns dez anos, no mínimo, pelo aspecto da rocha. Então o homem
que conhecemos como Perdição...
— É outra pessoa — Jasmine concluiu com vivacidade, o rosto corado de
raiva. — Ele está usando um nome falso. Eu sabia que não podíamos confiar nele.
Pelo que sabemos, ele é um espião do Senhor das Sombras.
— Não seja tola! O fato de ele não usar seu nome verdadeiro não significa
nada — Barda resmungou. — Nós mesmos usávamos nomes falsos quando o
conhecemos.
— Ele tinha que manter a sua identidade em segredo. Por isso ele assumiu
o nome do homem que está enterrado neste lugar — Lief concluiu.
— Talvez um homem que ele traiu e assassinou — Jasmine ajuntou. —
Pois ele esteve aqui, posso sentir.
Barda não respondeu. Delicadamente, começou a limpar as samambaias
ao redor da pedra, e Lief inclinou-se para ajudá-lo. Jasmine permaneceu parada ao
lado deles, o olhar frio e zangado.
As três Kins olhavam sem saber o que fazer. Finalmente, Merin pigarreou e
juntou as patas.
— Está claro que a nossa descoberta lhes causou sofrimento e sentimos
por isso — ela disse com suavidade. — Comemos muitas folhas e tomamos água
no riacho. Agora vamos nos enrodilhar e dormir. Precisamos partir amanhã cedo.
Com essa deixa, ela, Bruna e Ailsa se afastaram e desapareceram na
escuridão. Logo depois, Barda e Lief terminaram seu trabalho e voltaram para o
outro lado do córrego, seguidos por uma silenciosa Jasmine. Quando chegaram
junto da fogueira, as três Kins encontravam-se encolhidas e juntas, como um monte
de grandes pedras e, aparentemente, dormiam profundamente.
Lief enrolou-se no cobertor e também procurou dormir. Contudo, de repente,
a floresta pareceu menos acolhedora do que antes. Um véu de tristeza pairava
sobre as árvores, e ruídos podiam ser ouvidos na escuridão: o quebrar de galhos e
o farfalhar de folhas, como se alguém, ou algo, os estivesse vigiando.
Ele não pôde evitar pensar no homem que se chamava Perdição. Apesar do
que dissera a Jasmine, ficara abalado com as palavras inscritas na lápide. Perdição
os ajudara e os salvara dos Guardas Cinzentos. Isso era um fato. Mas teria tudo
sido parte de uma conspiração maior? Uma conspiração para conquistar-lhes a
confiança? Para arrancar-lhes o segredo sobre a sua busca?
... o Inimigo é esperto e astuto, e diante de sua ira e cobiça, mil anos são
iguais a um piscar de olhos.
Teria sido por acaso que Perdição reapareceu em suas vidas? Ou estaria
ele obedecendo a ordens?
Não tinha importância. "Nós não lhe contamos nada", Lief pensou, puxando
o cobertor para mais perto de si. Mas ainda havia dúvidas que o perseguiam, a noite
parecia um peso, e a escuridão era cheia de mistério e ameaças.
Nesta noite, todos bebemos água no córrego, Lief disse a si mesmo. Não
fomos drogados pela Fonte dos Sonhos e acordaremos se o inimigo se aproximar.
Kree está vigilante, e Jasmine disse que as árvores acham que estamos em
segurança.
Mesmo assim, ele demorou a dormir. E, quando conseguiu, sonhou com
um túmulo solitário e um homem misterioso e cruel cuja face estava oculta por uma
máscara. Uma névoa espessa o rodeava, ora se fechando em volta dele, ora se
afastando.
Quem estaria atrás da máscara? Seria o homem amigo ou inimigo?
Os viajantes puseram-se a caminho outra vez, uma hora antes do
amanhecer. Ailsa, Bruna e Merin saltaram do topo da cachoeira, planando através
de um estreito vale para depois ganhar altura. Elas voavam muito rápido. As horas
passadas em Kinrest pareciam tê-las enchido de novas energias.
— É a água da fonte — Ailsa explicou a Lief. — Pela primeira vez, em
muitos anos, dormi sem sonhar ou, pelo menos, sem os sonhos especiais que ela
proporciona. Nesta manhã, estou me sentindo jovem outra vez.
— Eu, também — contou Bruna, que voava ao lado deles. — Embora eu
tenha ficado um pouco inquieta durante a noite. Pensei ter sentido a proximidade da
tribo e tive a sensação de que eles estavam tentando me dizer algo. É claro que não
pude ver ou ouvir nada e logo a impressão se foi.
Ela e Ailsa não conversaram mais, mas Lief, ao observar a Montanha do
Medo, que se tornava cada vez maior no horizonte, ficou preocupado. Os Kins
devem ter tentado arduamente se comunicar com Bruna para que ela sentisse a
presença deles. Teriam eles informações que precisavam contar? Notícias
alarmantes?
Ele fechou os olhos e tentou relaxar. Em breve, descobriria o que a
Montanha do Medo reservava para eles.
Ao meio-dia, a Montanha assomava diante deles — uma massa vasta e
escura que lhes enchia os olhos. A sua superfície recortada estava coberta de
rochas cruéis e árvores espinhentas de folhas verde-escuras. Nuvens se juntavam
ao redor de seu cume. Uma estrada partia sinuosa do sopé e desaparecia entre a
cadeia de picos mais além. A estrada para a Terra das Sombras, Lief imaginou com
um frio no estômago.
Era impossível ver entre as folhas das árvores densamente agrupadas e,
provavelmente, os gnomos já os tinham avistado. Talvez eles estivessem
escondidos, apontando flechas mortais, esperando que as três Kins ficassem ao
seu alcance. Os olhos de Lief se esforçaram para vislumbrar o brilho de metal ou
qualquer sinal de movimento. Ele nada conseguiu ver, mas ainda estava receoso.
— Esta é a hora perigosa — Ailsa avisou. — Preciso começar a dificultar a
tarefa dos gnomos de fazer pontaria. Aprendi isso há muito tempo, mas é algo que
não se esquece. Segure firme!
Ela começou a prescrever giros e a mergulhar no ar para, logo em seguida,
arremeter para cima e cair em seguida. Ofegante, segurando-se com firmeza, Lief
viu que Merin e Bruna seguiam Ailsa e executavam os mesmos movimentos
repentinos.
E o momento não poderia ter sido mais oportuno. Instantes depois, a
primeira flecha disparou na direção deles, não atingindo Ailsa por um triz. Um débil
coro de gritos esganiçados veio da montanha. Lief olhou para baixo e sentiu a pele
arrepiar. De repente, as rochas ficaram cobertas por criaturas de olhos fundos e
pele clara, todas exibindo caretas cruéis e empunhando arcos. Repentinamente,
centenas de flechas dispararam na direção deles, como uma chuva mortal.
Ailsa voava para baixo, para cima e para a direita desviando-se das flechas,
mas sem deixar de se aproximar de seu objetivo. O grupo chegava cada vez mais
perto da Montanha, até que tiveram a sensação de que as copas das árvores se
apressavam ao encontro deles e que parecia impossível uma das flechas não
atingir o alvo.
— Todos os gnomos se encontram no alto, perto de sua fortaleza! — Bruna
gritou. — Vamos mais para baixo, amigas, para onde as árvores Boolong são mais
densas. Eles não vão se arriscar ali.
O ar estava tomado pelos gritos altos e estridentes dos gnomos e pelos
suaves grunhidos das Kins enquanto elas dirigiam os imensos corpos numa
direção ou outra. Lief pôde ouvir o bater do coração de Ailsa e, vagamente, os gritos
de Barda e de Jasmine, instando Merin e Bruna a prosseguir.
— Cubra o rosto — Ailsa ordenou. E, com um estrondo, ela atingiu a copa
das árvores, despedaçando folhas e galhos e derrubando tudo em seu trajeto para o
solo.
— Lief, você está bem?
Com o corpo dolorido, Lief descobriu o rosto e piscou para os olhos
escuros e ansiosos de Ailsa. Ele engoliu em seco.
— Estou muito bem, obrigado — ele gemeu. — Tão bem quanto se pode
estar depois de passar por uma árvore espinhenta.
— Não foi minha melhor aterrissagem — Ailsa concordou compreensiva. —
Mas aqui não há clareiras entre as árvores Boolong. É por isso que estamos a salvo
dos gnomos. Eles não gostam de espinhos.
Eu também não gosto muito deles — resmungou Barda, que se encontrava
sentado no chão ao lado de Jasmine e inspecionava vários arranhões feios nas
costas das mãos. Ele se levantou e foi até um pequeno riacho que borbulhava ali
perto e começou a banhar os ferimentos.
Merin e Bruna haviam mergulhado entre as densas árvores retorcidas que
se projetavam sobre o fio de água e puxavam, alegremente, pequenos frutos
escuros de entre as folhas espinhentas, que nasciam em todos os troncos, e
mastigavam-nos como se fossem doces.
— Então essas são as árvores Boolong — Barda comentou. — Não posso
dizer que sejam agradáveis. Nunca vi espinhos como esses.
— Eles não nos machucam — Ailsa contou. Ela apanhou algumas das
folhas presas ao pêlo aveludado, enfiou-as na boca e mastigou com prazer, apesar
dos longos espinhos afiados que nasciam em suas bordas.
— Quando vivíamos aqui, não existiam tantas árvores Boolong e havia
muitas trilhas sinuosas entre elas — ela continuou com a boca cheia. — Os
córregos eram largos e havia clareiras por toda parte. Sem precisar nos alimentar,
as árvores cresceram e se espalharam de uma forma maravilhosa. As frutas estão
cheias de sementes, que é o que as torna tão saborosas.
Acima deles, ouviu-se o ribombar de um trovão. Ailsa parou de mastigar,
farejou o ar e correu até onde Merin e Bruna ainda se banqueteavam com os frutos.
— Precisamos ir — os amigos a ouviram chamar. — Uma tempestade se
aproxima. Encham as bolsas com frutos. Nós os levaremos para casa, para os
outros.
— Os gnomos devem estar com a pedra — Jasmine deduziu. — Mas não
sei como poderemos escalar até a fortaleza deles por esta floresta — ela murmurou.
— Se tentarmos, seremos despedaçados. Só estamos sentados aqui agora porque
as Kin esmagaram a vegetação e criaram uma clareira quando aterrissaram.
— Talvez possamos abrir caminho com fogo — Lief sugeriu.
Kree grasnou, Filli chilreou nervosamente, e Jasmine sacudiu a cabeça.
— Isso seria perigoso demais — ela opinou. — Nunca poderíamos
controlar um incêndio numa floresta grande como esta. E poderíamos ser
facilmente queimados.
As três Kins, com as bolsas abauladas pelos frutos e galhos repletos de
folhas espinhentas, aproximaram-se deles com uma expressão de quem tinha
discutido.
— Viemos nos despedir — Ailsa disse. — Precisamos partir agora para
estarmos longe quando a tempestade cair. Tempestades aqui são violentas e
podem durar dias.
— Não deveríamos deixar nossos amigos sozinhos tão depressa — Merin
exclamou. — Há muita coisa que eles desconhecem.
— Merin, prometemos a Crenn que voltaríamos o mais rápido possível —
Bruna lembrou, torcendo os bigodes. — Se ficarmos isoladas aqui...
— Isso não vai acontecer — Merin exclamou. — Este é nosso lar. É aqui
que deveríamos ficar para sempre. Percebi isso quando chegamos — os olhos dela
brilhavam de entusiasmo. — Deveríamos ficar e os demais podem se unir a nós. Os
gnomos não podem nos fazer mal aqui, na parte mais baixa da montanha.
— Merin, nós pousamos com segurança por milagre — Ailsa argumentou,
suspirando. — Você quer que nossos amigos corram esse perigo? Quantos você
acha que iriam sobreviver?
— E mesmo que somente metade conseguisse chegar, — Bruna
acrescentou — as árvores Boolong ficariam reduzidas à quantidade normal dentro
de poucos anos. As trilhas ficariam abertas novamente, os gnomos voltariam, e a
matança recomeçaria.
— É cruel — Merin sussurrou de cabeça baixa. — Mas Lief, Barda e
Jasmine perceberam que ela sabia que as amigas tinham razão.
Acima deles, os trovões rugiam. Ailsa fitou o céu nervosa.
— Há uma rocha enorme perto daqui — ela disse depressa. — Eu a vi
quando aterrissamos. Se decolarmos de lá, sairemos mais depressa. Vai ser uma
tarefa árdua, mas acho que somos fortes o bastante para chegar até lá.
Seguidas de Lief, Barda e Jasmine, as três Kins abriram caminho entre as
árvores e logo atingiram as rochas de onde se podia ver o céu aberto. Nuvens
escuras se aproximavam do sul.
— As nuvens irão nos esconder depois que levantarmos vôo — Ailsa disse.
— E, se eu estiver certa, os gnomos não vão estar olhando para cá. Eles vão estar
com a atenção voltada mais para cima, imaginando que mais de nós irão chegar.
— Então, adeus, amigas — Barda se despediu. — Nunca poderemos
agradecer o que fizeram por nós.
— Não precisam agradecer — Bruna respondeu. — Nós estamos mais
felizes por termos visto o nosso lar outra vez, mesmo que por tão pouco tempo.
Tudo que pedimos é que vocês tenham cuidado para que possamos nos rever
algum dia.
As três se inclinaram, fazendo com que suas cabeças tocassem a testa de
Lief, Barda e Jasmine. Em seguida, viraram-se, estenderam as asas e lançaram-se
para o céu.
Durante alguns momentos tensos em que as asas bateram vigorosamente,
elas lutaram para não cair de volta no solo. Os companheiros observavam num
silêncio ansioso, certos de que, a qualquer momento, os gnomos iriam ouvir o bater
de asas, olhar para baixo, atirar...
Mas tudo correu bem. Não houve gritos, tampouco flechas sendo lançadas
no ar, e finalmente as Kins se estabilizaram e começaram a voar de volta. Os
contornos de seus corpos ficaram cada vez mais nebulosos à medida que as
nuvens se fechavam ao redor delas. E então elas desapareceram.
Barda se virou com um suspiro de alívio e começou a descer os rochedos.
Lief estava prestes a segui-lo quando vislumbrou algo com o canto do olho. Ele
olhou para o alto e, para sua surpresa, viu um vulto escuro emergindo vacilante das
nuvens acima de suas cabeças.
— Uma das Kins está retornando — ele sussurrou. — Mas por que está tão
alto? Ah, não!
Os três amigos olharam para o alto horrorizados e viram a Kin voando às
cegas e entrando diretamente na linha de fogo dos gnomos. Não se tratava de Ailsa,
Merin ou Bruna. Era...
— Prin! — Lief gemeu aterrorizado.
A pequena Kin viu a clareira de árvores quebradas criada pela ater-
rissagem anterior e voou em sua direção, as asas batendo fracamente. No
momento seguinte, ouviu-se um grito estridente e triunfante e uma gargalhada vinda
de um ponto mais elevado da Montanha. Algo disparava pelo ar, e Prin começou a
cair e a cair, cora uma flecha no peito.
Com gritos de horror, Lief, barda e Jasmine desceram das rochas e
correram até a clareira. Prin lutava debilmente no chão junto ao córrego. As suas
asas encontravam-se dobradas sob o corpo, e ela emitia leves e comoventes sons.
Os olhos dela estavam vidrados de dor.
A flecha que lhe perfurara o peito já havia caído, e a ferida que deixara era
pequena, mas o veneno que a arma carregava agia rapidamente e sua terrível
tarefa já estava quase concluída. Os olhos agonizantes de Prin se fecharam.
— Criança tola — Barda gemeu. — Jasmine, o...
— O néctar — Lief gritou no mesmo instante. Mas Jasmine já arrancava o
frasco minúsculo do pescoço e emborcava-o sobre o pequeno peito de Prin. As
últimas gotas douradas do néctar dos Lírios da Vida caíram no ferimento. Três gotas,
e nada mais.
— Se isso não for suficiente, não haverá mais nada que possamos fazer —
Jasmine murmurou, sacudindo o frasco para mostrar que estava vazio, rangendo os
dentes enraivecida. — Ah, o que eles imaginaram que iriam ganhar abatendo-a?
Eles sabiam que ela cairia aqui, onde não poderiam alcançá-la. Eles matam por
pura diversão?
— Parece que sim — concluiu Barda. — Você não os ouviu rir? Lief
aconchegou a cabeça de Prin nos braços, chamando-a de volta à vida como, certa
vez, fizera com Barda nas Florestas do Silêncio, como Jasmine fizera com Kree no
caminho para o Lago das Lágrimas e como tinham feito com ele na Cidade dos
Ratos. O néctar que Jasmine havia colhido, quando ele escorria dos Lírios da Vida
em flor há tanto tempo, salvara três vidas. Poderia salvar mais uma?
Prin se mexeu. Lief prendeu a respiração quando o pequeno ferimento no
peito dela começou a cicatrizar e desaparecer. Ela abriu os olhos, piscou e fitou Lief
surpresa.
— Eu caí? — ela perguntou.
— Prin, o que você está fazendo aqui? — Lief vociferou.
Ele a viu encolher e se censurou, percebendo que caíra na armadilha de
permitir que o medo e o alívio o deixassem zangado. Barda fizera o mesmo não
muito tempo atrás, nas Dunas, e Lief havia decidido que nunca agiria da mesma
forma. "Que bela resolução!", pensou aborrecido.
— Sinto muito, Prin — ele se desculpou num tom mais suave. — Não tive a
intenção de gritar, mas ficamos com muito medo. Você voou até aqui sozinha?
— Eu segui vocês — ela disse, fitando-o ainda desconfiada. — Não pude.
suportar a idéia de perder a única oportunidade de ver a Montanha.
Ela olhou ao redor da clareira, fascinada com o que via. A voz dela ficava
mais forte a cada instante.
— Dormi perto de vocês em Kinrest e vocês não perceberam — Prin
prosseguiu alegremente. — Mas hoje elas voaram tão depressa que fiquei para trás.
E eu estava tão cansada... E então vieram as nuvens e eu me perdi. Então...
Os olhos dela se arregalaram de terror. Ela agarrou o peito, olhou para
baixo e abafou um grito ao constatar que não havia nenhum ferimento.
— Pensei que eu tinha sido ferida — ela sussurrou. — Mas acho que foi um
sonho.
— Não foi sonho — Lief disse gentilmente, depois de fitar os companheiros.
— Você se feriu, mas nós tínhamos... uma poção que a curou.
— Você não deveria ter vindo, Prin — repreendeu Barda. O que a sua tribo
faria se perdesse seu único filhote?
— Eu sabia que não me perderia — Prin retrucou confiante. Ela se ergueu e
olhou ao seu redor. — Onde está Ailsa? — ela perguntou, balançando para cima e
para baixo na ponta dos pés. — E Merin e Bruna? Elas vão ficar surpresas em me
ver! Elas não imaginavam que eu podia voar tão longe.
Sem esperar pela resposta, ela pulou por cima do córrego e começou a
remexer nas árvores do outro lado, chamando.
— Prin não se deu conta de que elas partiram — Barda murmurou para Lief
e Jasmine. — Está claro que ela esperava voltar para casa com elas. Ela nunca vai
encontrar o caminho de volta sozinha. O que vamos fazer com ela?
— Ela vai ter que nos acompanhar — Jasmine replicou com calma.
— Mas é perigoso demais! — Lief exclamou.
— Ela decidiu vir para cá — Jasmine devolveu, dando de ombros. — Ela
precisa aceitar as conseqüências de seus atos. Os Kins a mimam e a tratam como
um bebê. Mas ela não é mais um bebê. Ela é jovem, mas não é indefesa. E pode ser
útil para nós.
Jasmine fez um gesto na direção em que Prin dançava no riacho, colhia
frutos e folhas das árvores e comia vorazmente. Em instantes, a pequena Kin abriu
um amplo espaço entre os espinhos.
— Viu só? Ela pode nos ajudar a abrir uma trilha — Jasmine mostrou. — Se
seguirmos o riacho...
— Está fora de questão — Barda interrompeu com firmeza. — Eu me
recuso a ser atormentado por outra criança teimosa que tem mais energia que bom
senso. Dois já são suficientes!
Lief não ficou ofendido com a brincadeira impiedosa como teria ficado
antigamente, mas também não sorriu. A idéia de levar Prin até o topo da Montanha
era tão desagradável para ele quanto era para Barda.
Trovões ribombavam sobre suas cabeças. A clareira ficara muito escura, e
o ar estava abafado e pesado.
— Antes de tudo, precisamos encontrar um abrigo — disse Jasmine. — A
tempestade... — de repente, ela enrijeceu, a cabeça inclinada para o lado, e ouviu
atentamente.
— O quê...? — Lief começou devagar.
E então ele percebeu que o som do riacho ficara mais alto e aumentava a
cada instante. Dentro de segundos, a clareira foi invadida pela água. "Uma
inundação?", ele pensou, confuso. Mas ainda não chovera, e o som descia pela
montanha. Como...? Então ele se esqueceu de tudo quando viu Prin parada, muito
quieta, no meio do riacho, olhando perplexa na direção do som que se aproximava.
— Prin! — ele gritou. — Saia daí! Saia daí!
Prin soltou um grito agudo e saiu do córrego meio que voando, meio que
saltando, para a margem. No mesmo instante, ouviu-se um rugido, e um enorme
monstro de formas humanas surgiu saltando e pousou exatamente onde a pequena
Kin havia estado, não a apanhando por um triz. Rosnando por ter sido enganado e
ter perdido o seu prêmio, a coisa virou-se e ergueu a cabeça horripilante.
— Vraal! — Prin gritou aterrorizada, enquanto tropeçava para trás,
afastando-se do riacho. — Vraal!
O sangue de Lief gelava nas veias quando ele apanhou a espada. As
escamas do Vraal, semelhantes às de uma serpente, de um verde desbotado com
listras amarelas, emitiam um brilho malévolo na fraca luz da floresta. O monstro era
tão alto quanto Barda e duas vezes mais largo, com ombros imensos e curvados,
uma cauda que se movimentava como um chicote e braços poderosos que
terminavam em garras, lembrando facas recurvadas. Porém, a característica mais
tenebrosa do animal era que ele parecia não ter face — apenas uma massa de
carne coberta de escamas e caroços, sem olhos, nariz ou boca.
E então a criatura rugiu. Amassa pareceu dividir-se ao meio como uma fruta
que explodia no chão quando as suas mandíbulas vermelhas se abriram mostrando
o interior vermelho. No mesmo instante, os seus olhos se tornaram visíveis —
fendas alaranjadas que brilhavam por entre dobras e sulcos protetores. Ela saltou
do riacho e pousou na margem com um único movimento.
Agora Lief podia ver que, no lugar de pés, a criatura tinha cascos fendidos,
que se encontravam firmemente enterrados na terra úmida e macia. Eles pareciam
delicados demais para sustentar aquele corpo enorme, mas, quando o monstro
rugiu novamente e saltou para a frente, esse detalhe deixou de ter importância para
Lief.
A criatura era uma máquina assassina, isso era claro como o dia. Ela não
deu atenção aos trovões que ribombavam sobre as árvores, e os seus olhos
malignos não abandonavam Prin.
— Prin! Para baixo! — Barda grunhiu. Vendo-se obrigada a obedecer de
imediato por causa do pavor, Prin jogou-se ao chão quando uma bolha voou sobre
a sua cabeça na direção do Vraal. Barda havia atirado o projétil com todas as suas
forças, mas a criatura saltou para o lado com velocidade surpreendente, e a bolha,
sem lhe causar danos, foi esmagada de encontro a uma árvore, o veneno em seu
interior emitindo um som sibilante ao atingir o chão.
Praguejando, Barda atirou outra bolha, a última de que dispunha, Lief se
deu conta aterrorizado. A pontaria do grande homem era boa, mas novamente a
criatura saltou para o lado no momento exato, os cascos formando enormes
buracos na terra, e pousou com firmeza em outro local longe de Prin, porém mais
perto de Barda.
Lief viu Prin rastejando para longe e rolando para dentro do riacho. Ela não
estaria a salvo ali! Ele quis mandá-la correr, mas não quis que a atenção do monstro
se voltasse para ela. Então, ao hesitar, percebeu que o Vraal se esquecera
totalmente da pequena Kin. Os seus olhos alaranjados pareciam queimar quando
ele se voltou para encarar o homem que tentara matá-lo com o veneno dos Guardas
Cinzentos. O homem que agora se encontrava parado à sua frente, espada em
punho.
A boca sem lábios da criatura abriu-se numa careta horrenda, e ela rugiu ao
estirar as garras, desafiando Barda a lutar.
Barda se manteve firme em sua posição. Ele sabia que se virar, dar um
passo para o lado ou mostrar medo seria fatal. Atrás dele, Lief e Jasmine se
entreolharam. A Criatura movia-se como um raio. As bolhas restantes, que se
encontravam em poder de Jasmine, seriam inúteis enquanto Barda se mantivesse
entre ela e o inimigo. A única esperança era chegar até o outro lado sem ser vista.
Sem aviso, o Vraal atacou. Barda ergueu a espada, defendendo-se, e as
garras da criatura tocaram o aço reluzente. Barda virou-se e investiu contra o
monstro que, desta vez, se defendeu, atingindo a arma com um violento golpe que
fez Barda cambalear.
Lief saltou para o lado do amigo empunhando a própria espada. O Vraal
rosnou com prazer. Dois adversários eram ainda melhor que um só. Ele não lutava
há muito tempo e era para isso que nascera.
Ele sentira falta de usar suas habilidades, da alegria da batalha e dos gritos
dos inimigos derrotados. Agarrar gnomos que gritavam e se retorciam quando se
inclinavam no riacho para beber não era esporte. Desviar-se de flechas era fácil
demais. Mas aquilo... aquilo aquecia o seu sangue enregelado.
Rugindo, ele saltou na direção das duas espadas, afastando-as sem
esforço com um safanão, obrigando os dois fracos oponentes que as seguravam a
recuar cada vez mais. Por duas vezes, as armas perfuraram a pele espessa, fato
que em nada abalou o monstro. Ele tampouco deu atenção ao pássaro preto que
mergulhava sobre a sua cabeça, atacava-o com o bico pontiagudo e se afastava
para arremeter novamente.
O Vraal não receava a dor nem a morte. A sua mente não era direcionada
para esses pensamentos ou para qualquer tipo de pensamento, exceto um — que
todas as criaturas de outra espécie eram inimigos e deviam ser combatidas e
derrotadas. Na Arena das Sombras ou ali, não importava.
Em toda a vida, ele perdera somente uma luta, mas aquilo fora há muito
tempo, na Terra das Sombras. O Vraal não se lembrava mais da derrota ou da
perseguição que provocara o seu abandono, fazendo-o ficar vagando naquele lugar.
Ele não mais se lembrava dos Guardas que o haviam acompanhado. Seus ossos
corroídos haviam desaparecido sob a terra da floresta há muito tempo. O anel de
aço que pendia da parte posterior de seu pescoço era tudo o que restava de sua
antiga vida. Isso e a necessidade de matar.
Ele viu que o terceiro inimigo, a pequena fêmea com a adaga em uma das
mãos e o veneno dos Guardas na outra, movia-se por trás dos amigos e se afastava.
Ela ia atacar pelas costas ou pela lateral. Movimentava-se devagar e com cautela.
Acreditava que o Vraal, ocupado com seus companheiros, não a notaria. Estava
enganada. O monstro ia cuidar dela imediatamente.
O Vraal saltou de repente e atacou. Satisfeito, viu o menor dos inimigos
cambalear e sentiu o cheiro do sangue fresco e vermelho. O cheiro reavivou vagas
lembranças de tempos há muito passados. O sangue dos gnomos era fino e amargo,
e lembrava águas paradas. Aquilo era melhor. Muito melhor.
A pequena, a fêmea, afastara-se dos demais. Onde estava ela? O Vraal
abriu um de seus olhos laterais. Profundamente enterrados em sulcos de pele
escamosa acima dos ouvidos, os olhos laterais não enxergavam tão bem quanto os
frontais, mas eram úteis.
Ah, sim, ali estava ela. Erguendo o braço, fazendo pontaria. Era o momento
de livrar-se dela. Um único golpe com a cauda... pronto!
Quando a fêmea caiu, o pássaro preto que voava sobre ela grasnou, e o
rapaz ferido gritou — uma única palavra. O Vraal conhecia poucas palavras e nunca
ouvira aquela, mas ele conhecia o medo e o sofrimento quando os via. A boca do
monstro abriu-se num sorriso largo e cruel.
— Jasmine! — Lief chamou novamente. Mas sua amiga permanecia
deitada onde caíra, silenciosa e imóvel como a morte.
Barda soltou um grito de advertência. Lief agachou-se, desviando-se das
garras em movimento do Vraal no momento exato, tropeçou e caiu de costas,
batendo no chão com força. Com dificuldade, pôs-se de joelhos. Sua cabeça doía, e
o sangue escorria do profundo corte em seu braço. Ele mal conseguia segurar a
espada.
— Lief! — Barda chamou ofegante, saltando à sua frente e fazendo o Vraal
recuar enquanto este atacava novamente, com chutes de seus cascos duros e
mortais.
— Vá! Fuja com o Cinturão!
— Não vou deixar você! — Lief retrucou. — E Jasmine...
— Faça o que lhe digo! — Barda rugiu ferozmente. — Você está ferido. Não
vai ajudar a nenhum de nós. Fuja! Agora!
Barda girou a enorme espada e atacou com todas as suas forças, fazendo
o monstro recuar um passo e depois outro.
Lief começou a rastejar penosamente para longe. Espinhos das árvores
Boolong caídas e esmagadas perfuravam-lhe as mãos, ardendo e queimando. Ele
ergueu-se com esforço e deu mais alguns passos. E então parou e se virou.
Era inútil fugir. Não havia para onde ir, nenhum lugar para se esconder.
Quando o Vraal tivesse derrotado Barda, viria atrás dele. Certamente, era melhor
morrer lutando do que encolhido atrás das árvores Boolong, prensado entre os
espinhos.
Um raio iluminou a clareira por um instante e revelou a cena com horrenda
clareza. Barda lutava com o imenso e reluzente Vraal, Jasmine permanecia deitada
no chão. E Prin... Prin andava com dificuldade no riacho, os olhos arregalados de
pavor, as patas dianteiras juntas diante do peito, agarrando uma porção de musgo
roxo. Enquanto Lief a observava assombrado, ela estendeu as asas.
E então o ar explodiu com o tremendo estrondo de um trovão. A própria
terra pareceu tremer. Barda cambaleou, perdeu o equilíbrio e caiu de joelhos. O
Vraal saltou, os estreitos olhos alaranjados brilhando. Com um golpe do braço
enorme, arrancou a espada das mãos do oponente. O aço reluzente girou no ar
uma, duas vezes, e caiu no chão fora de seu alcance, a ponta enterrada no solo. O
Vraal grunhiu, preparando-se para o ataque final.
— Barda! — Lief chamou apavorado. Ele se aproximava com dificuldade.
Mas Prin... de repente, Prin saltou para a frente e para cima direto sobre o Vraal,
pousou em sua nuca e lá se agarrou, as patas cheias de musgo envolvendo-me a
cabeça, as asas batendo furiosamente.
O Vraal rugiu e cambaleou. Suas terríveis garras agitavam-se ao redor da
cabeça, agora toda lambuzada com o musgo roxo. Prin saltou para trás, caindo
sobre as pernas fortes e andou sem firmeza para o córrego enquanto estendia para
a frente as patas ainda sujas de musgo.
— Não, Prin! Corra até as árvores! Ele vai vê-la aí! — gritou Lief. Mas ele
estava enganado, pois o Vraal não podia ver nada. Ele atirava a cabeça para trás,
gritando de raiva e dor.
— É o musgo — Prin soluçou, lavando as patas freneticamente. — Nos
seus ouvidos, nos seus olhos. É o musgo roxo! O musgo verde cura, o roxo fere.
Eles me contaram. Eles me disseram tantas vezes, e é verdade.
Raios iluminaram o céu, seguidos de mais trovões ensurdecedores. Então,
como se o céu tivesse se partido ao meio, a chuva começou a cair torrencialmente
— uma chuva dura e gelada, misturada a granizo. Barda cambaleou e foi até a sua
espada aos tropeços. Lief também caiu em si e recomeçou a caminhar. No chão,
Jasmine se mexeu ao ouvir os grasnados frenéticos de Kree.
Porém, o Vraal estava derrotado. Com um último rugido, ele se virou e,
quando Prin saltou para o lado, andou às cegas para o riacho, caiu nele e foi
carregado pelas águas.
Mais tarde, ensopados, exaustos e enregelados, os companheiros
agacharam-se juntos no abrigo de uma pequena caverna formada por uma rocha
que se projetava sobre o córrego. O granizo inclemente ainda caía pesadamente do
lado de fora. Eles haviam conseguido acender uma fogueira, mas até aquele
momento ela não tinha sido suficiente para aquecê-los. No entanto, nenhum deles
tinha vontade de se queixar.
— Pensei que a nossa hora tinha chegado — Barda murmurou, acendendo
uma tocha. — Aquele monstro não teria parado até que todos estivéssemos mortos.
Lief, como está o seu braço?
— Já está muito melhor — o rapaz respondeu. Ele estava no chão,
recostado à mochila. O seu braço encontrava-se envolto com o que parecia uma
atadura verde, mas, na verdade, eram pedaços de musgo verde recém-tirados do
riacho e presos sobre o ferimento com trepadeiras.
Ao ver o efeito do musgo no Vraal e as terríveis bolhas que havia
provocado nas patas de Prin, no início Lief não queria que ele fosse usado em sua
pele. Prin, contudo, lhe assegurou que o musgo verde tinha surpreendentes
poderes de cura e, para prová-los, cobriu a própria pele queimada com o remédio e
pediu que Jasmine o prendesse com firmeza.
— Muitas vezes ouvi falar sobre o musgo verde e roxo — ela contou,
quando Barda ergueu a tocha para iluminar melhor a caverna. — Os gnomos o
usam em seus ferimentos, e os Kins que foram atacados pelo Vraal no passado
também foram salvos pelo musgo verde. O musgo gruda e queima somente quando
é velho e está ensopado de água, quando caiu sob as pedras que beiram o córrego
e adquiriu uma cor roxa. Obviamente, não se trata de veneno, como o que os
gnomos utilizam nas flechas, e ele apenas prejudica o Vraal quando passado nos
olhos e orelhas. E, mesmo assim, ele se recupera rapidamente. Nosso Vraal estará
pronto para lutar novamente em poucos dias.
Lief fitou-a. Ela sorriu para ele, as patas envoltas em ataduras enfiadas na
bolsa quente e aconchegante.
— Você foi muito corajosa, Prin — ele cumprimentou. — Você nos salvou.
O seu povo ficaria muito orgulhoso de você.
— É verdade — Jasmine acrescentou com entusiasmo, enquanto Filli
chilreava para demonstrar sua aprovação.
— Os Kins sempre usaram o musgo roxo para se defender dos Vraals e
dos Guardas Cinzentos que costumavam vir aqui em grande número — Prin contou,
endireitando o corpo, claramente orgulhosa de seus conhecimentos. — Minha mãe
e Crenn contaram essas histórias muitas vezes.
— Por que será que Ailsa, Bruna e Merin não o mostraram para nós? —
Jasmine indagou séria.
— Elas nunca viram um Vraal ou um Guarda Cinzento em seus sonhos —
Prin informou. — Nas manhãs, falamos somente das árvores Boolong. Elas
pensam que os gnomos são os únicos perigos existentes na Montanha atualmente.
— Talvez seja esse o problema de sonhar — considerou Barda. — Você vê
somente o que o sonho mostra e, mesmo assim, apenas por alguns momentos. Por
exemplo, o seu povo já lhe contou sobre algum viajante de nossa espécie na
Montanha?
— Eles dizem que ninguém vem aqui agora. E que as flechas envenenadas
mantêm todos afastados.
— Parece que nem todos — tornou Barda devagar. Ele virou a cabeça para
o fundo da caverna e ergueu a tocha.
Todos se viraram para olhar. Lief respirou fundo. Havia palavras
desbotadas na pedra clara e lisa. Escritas, Lief tinha certeza, com sangue.
QUEM SOU EU? ESTÁ TUDO ESCURO.
MAS EU NÃO VOU ME DESESPERAR.
DE TRÊS COISAS TENHO CERTEZA:
SEI QUE SOU UM HOMEM,
SEI ONDE ESTIVE,
SEI O QUE DEVO FAZER E,
POR ORA, ISSO É SUFICIENTE.
Lief, Barda e jasmine olharam fixamente para as palavras rabiscadas na
parede da caverna. Todos estavam imaginando o homem solitário e sofrido que,
aparentemente, usara o próprio sangue para escrever a mensagem.
Por que ele a escrevera? Talvez para manter a sanidade, pensou Lief.
Para convencer-se de que, no pesadelo de terror e perplexidade que a sua vida
tinha se tornado, algumas coisas eram reais. Que ele próprio era real.
— Quem era ele? — Jasmine perguntou baixinho. — Onde ele está agora?
— Morto, talvez — arriscou Barda. — Se ele estava ferido, então...
— Ele não morreu aqui, pois não há ossos na caverna — Lief interrompeu.
— Talvez tenha se recuperado e escapado da Montanha — Lief continuou,
desejando vivamente que isso tivesse ocorrido, apesar de improvável.
— Ele diz “Sei onde estive" — Jasmine murmurou. — Isso certamente
significa que ele veio até aqui de algum outro lugar, não muito antes de escrever a
mensagem.
— Ele pode ter vindo da Terra das Sombras, como o Vraal — Prin tentou
adivinhar.
— Isso é impossível. Ninguém escapa da Terra das Sombras — Barda
resmungou.
Lief recostou-se na mochila, a cabeça girando. Ele sentiu a mão de
Jasmine em seu braço e esforçou-se para olhar para ela.
— Você perdeu muito sangue, Lief — ela disse numa voz que parecia muito
distante. — É por isso que está se sentindo fraco. Não lute contra a vontade de
dormir. Barda e eu ficaremos de vigia. Não tenha medo.
Lief queria falar, dizer-lhe que ele também cumpriria seu turno de vigilância.
E dizer que ela tinha sido nocauteada pelo Vraal e também precisava de descanso,
implorar-lhe que se certificasse de que Prin ficasse em segurança. Mas as suas
pálpebras não se mantiveram abertas, e a sua boca não conseguiu formular as
palavras. Assim, por fim, ele simplesmente fez o que Jasmine pediu e adormeceu.
A tempestade prosseguiu violenta durante toda a noite e o dia seguinte.
Trovões ribombavam sem cessar, e o granizo se transformou numa chuva gelada.
O vento golpeava as árvores Boolong e muitas caíram no chão.
Os companheiros nada podiam fazer além de ficar encolhidos no abrigo,
comendo, descansando, tomando água do riacho que corria em frente à entrada da
caverna e revezando-se em turnos de vigília. Quando a noite caiu outra vez, eles se
queixavam da demora em retomar a jornada. O braço de Lief e as patas de Prin
estavam cicatrizando depressa, e eles temiam que o Vraal se recuperasse com a
mesma rapidez.
— Só se ele aprendeu que o musgo verde cura — Prin lembrou,
mordiscando um fruto. — E acho isso muito improvável. Minha mãe diz que os Vraal
são bons apenas para lutar e matar.
— Tivemos muita sorte de ter você por perto quando o Vraal chegou. Mas a
sua mãe e as companheiras devem estar preocupadas com você, Prin — Lief disse
após alguns instantes.
— Elas sabem que estou em segurança — Prin respondeu com suavidade.
— Tenho certeza de que nos visitaram em sonhos na noite passada. E agora é noite
outra vez — ela continuou, olhando ao redor. — Elas poderiam estar aqui neste
exato momento. Haveria lugar para todos, pois, afinal, é apenas um sonho — Prin
curvou a cabeça. — Se elas estivessem aqui, eu lhes diria que sinto muito pela dor
que causei — ela murmurou. — E diria que sinto muitas saudades de todos.
Os demais ficaram em silêncio. Era assustador imaginar que poderiam
Emily rodda   deltora quest 5 - a montanha do medo
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  • 1.
  • 2. DELTORA É UMA TERRA DE MONSTROS E MAGIA... Lief, Barda e Jasmine saíram em uma perigosa-busca para encontrar as sete pedras perdidas do mágico Cinturão de Deltora. Mas o seu reino somente será libertado do poder do cruel Senhor das Sombras quando todas as pedras tiverem sido recolocadas no Cinturão. Quatro pedras foram encontradas. Agora, embora notícias perturbadoras de casa tenham chegado até Lief e ele esteja ansioso por retornar, a busca precisa prosseguir. Para encontrar a quinta pedra, os heróis devem se aventurar até quase a fronteira das Terras das Sombras, e mergulhar na escuridão e no terror do reino do monstruoso sapo Gellick — a Montanha do Medo. SUMÁRIO O refúgio Antes do amanhecer Intenções malignas O plano O inimigo A decolagem Kinrest A montanha Medo A luta Mistérios A subida Do lado de dentro Gellick
  • 3. Os gnomos do medo Fazer ou morrer A despedida ATÉ AGORA... Lief, de dezesseis anos, cumprindo uma promessa feita pelo pai antes de seu nascimento, saiu em uma grande busca para encontrar as sete pedras preciosas do mágico Cinturão de Deltora. As pedras — uma ametista, um topázio, um diamante, um rubi, uma opala, um lápis-lazúli e uma esmeralda — foram roubadas para permitir que o maligno Senhor das Sombras invadisse o reino. Escondidas em terríveis locais por todo o reino, elas precisam ser recolocadas no Cinturão a fim de que o herdeiro do trono seja encontrado, e a tirania do Senhor das
  • 4. Sombras seja derrotada. Os companheiros de Lief são, Barda, um homem que já foi guarda do palácio, e Jasmine, uma garota selvagem e órfã da mesma idade de Lief, que ambos conheceram em sua primeira aventura nas temíveis Florestas do Silêncio. Em suas viagens, eles descobriram um movimento de resistência secreto liderado por Perdição, um homem misterioso, com uma cicatriz no rosto, que os salvou quando foram capturados pelos brutais Guardas Cinzentos do Senhor das Sombras. Até o momento, os três amigos encontraram quatro pedras: o topázio dourado, símbolo da lealdade, que tem o poder de fazer os vivos entrarem em contato com o mundo espiritual e de clarear a mente; o rubi, símbolo da felicidade, cuja cor perde a intensidade na presença de ameaças, repele espíritos malignos e é um antídoto para venenos; a opala, pedra da esperança, que oferece vagas imagens do futuro; o lápis-lazúli, pedra celestial, que é um poderoso talismã. A fim de encontrar a quinta pedra, eles devem viajar até muito perto da fronteira da Terra das Sombras — para a lendária Montanha do Medo... E agora, continue a leitura...
  • 5. O dia havia sido bonito e claro e, naquele momento, um ar fresco os envolvia. Tempo perfeito para uma caminhada, mas nada pode ser agradável quando se está com sede, cansado e com medo. Lief avançava com dificuldade, a cabeça curvada, os membros doloridos, e apenas vagamente ciente da presença de Barda e Jasmine ao seu lado. Os cantis estavam quase vazios. Desde que haviam deixado as Dunas, os três amigos vinham sobrevivendo às custas de alguns goles de água por dia. Contudo, a terra plana e marrom se estendia ao longe sem sinal algum de rio ou córrego, e o céu, agora alaranjado pelo pôr-do-sol, era imenso e sem nuvens. Lief caminhava de cabeça baixa para não ter que olhar a linha recortada do horizonte. A Montanha do Medo ainda se encontrava distante, e os amigos levariam semanas para atingi-la — se não morressem de sede antes, Lief pensou, melancólico —, mas só de pensar nela, ele ficava cheio de medo. Saber que cada passo o aproximava da fronteira da Terra das Sombras era mais aterrorizador ainda. Lief curvou os ombros e pensou admirado no garoto que deixara Del tão cheio de entusiasmo diante da aventura que o esperava. Agora, aquele garoto lhe parecia absurdamente jovem e aquela época, muito distante. No entanto, não se passara tanto tempo — apenas alguns meses —, e muita coisa havia sido conquistada nesse período. Quatro pedras brilhavam agora
  • 6. no Cinturão de Deltora, oculto sob a camisa de Lief. Só faltava encontrar três pedras. Ele sabia que deveria estar se sentindo feliz, esperançoso e triunfante, como Jasmine. Em vez disso, lutava contra o desespero e a tristeza. Pois, ao olhar para trás, parecia um milagre que as pedras tivessem se mantido seguras e que ele e os companheiros tivessem sobrevivido aos terrores que enfrentaram. Por quanto tempo mais duraria aquela boa sorte? O ânimo de Lief diminuía ao pensar no que os aguardava. Além disso, até aquele momento, eles haviam escapado à vigilância do Senhor das Sombras, mas esse tempo certamente havia terminado. Perdição, o homem com a cicatriz no rosto, líder da Resistência, havia dito que já se espalhavam rumores sobre eles. E, se Perdição ouvira comentários, o mesmo certamente acontecera com o Senhor das Sombras. No entanto, ali caminhavam Lief, Barda e Jasmine sob o céu aberto, com Kree voando adiante deles. Que importância tinha que ninguém soubesse seus nomes? A descrição era suficiente. Lief saltou assustado e quase tropeçou quando um vulto negro bateu asas ao lado de sua cabeça, mas era somente Kree que pousava no braço de Jasmine. O pássaro grasnou. Filli colocou a cabeça cinza e peluda para fora do casaco de sua dona e respondeu animadamente. — Kree disse que há água mais adiante — Jasmine gritou. — Uma pequena lagoa, talvez uma fonte, pois ele não conseguiu ver nenhum córrego por perto. Fica num bosque perto da estrada. A expectativa de tomar água fez com que todos apressassem o passo, e não demorou para que Kree levantasse vôo outra vez e os conduzisse para fora da estrada. Desviando-se de arbustos e rochas, eles o seguiram até finalmente chegar a um bosque formado de árvores claras e de aspecto antigo. E ali, de fato, bem no centro, encontrava-se uma pequena lagoa redonda cercada de pedras brancas. Ansiosos, os companheiros correram em sua direção. Então, eles viram uma placa de bronze presa a uma das pedras, com algumas palavras gravadas, palavras que eles mal conseguiam ver na luz que enfraquecia:
  • 7. FONTE DOS SONHOS BEBA, GENTIL ESTRANHO E SEJA BEM-VINDO OS QUE TIVEREM INTENÇÕES MALIGNAS, TENHAM CUIDADO. Os amigos hesitaram. A fonte era clara e tentadora, e a sede era grande. Contudo, a inscrição na placa de bronze deixou todos nervosos. Seria seguro tomar aquela água? — Jasmine, o que dizem as árvores? — Barda indagou. Ele já duvidara da capacidade de Jasmine de conversar com plantas e animais, mas isso fora há muito tempo. — Elas não dizem nada — Jasmine informou olhando ao redor, a expressão séria. — Elas estão em completo silêncio. Não entendo... Lief estremeceu. O bosque era verde e tranqüilo e sob os seus pés crescia uma grama verde e viçosa. O local parecia um pequeno paraíso no entanto, pairava uma estranha sensação no ar. Ele passou a língua sobre os lábios secos. — Talvez seja melhor não bebermos dessa fonte — ele disse relutante. — Ela pode estar encantada... ou envenenada. — Não temos intenções malignas — Barda protestou. — Acho que ela é segura para nós. Mas ele continuou onde estava e não se aproximou da fonte. Filli chilreava
  • 8. impaciente no ombro de Jasmine. — Todos estamos com sede, Filli — Jasmine murmurou. — Mas precisamos esperar. Não temos certeza... Filli! Não! A pequena criatura pulou para o chão e correu até a nascente, ignorando os gritos de Jasmine. Rapidamente, mergulhou a cabeça na água cristalina e bebeu sofregamente. — Filli! — Jasmine chamou desesperada. Porém, desta vez, Filli não lhe deu atenção, mergulhado que se encontrava na alegria de matar a sua terrível sede. E ele não passou mal, tampouco desfaleceu. Kree foi o próximo a voar até a fonte. Ele também bebeu, afundando o bico na água repetidas vezes. E também não apresentou nenhum efeito desfavorável. Depois disso, Lief, Barda e Jasmine não conseguiram mais esperar e correram para a nascente. A água era fria e refrescante. Lief nunca provara algo tão bom. Em sua casa, em Del, a água era igualmente fresca, mas sempre tinha um gosto de metal que a bomba produzia. Quando, finalmente, beberam até se saciar, os amigos encheram os cantis até a borda, para o caso de terem de fugir depressa durante a noite. O bosque parecia seguro, mas eles haviam aprendido que não era prudente confiar nas aparências. Sentaram-se na grama e comeram algo enquanto a Lua subia e as estrelas apareciam no céu acima deles. Estava frio, mas eles preferiram não acender uma fogueira. Até mesmo uma pequena chama pareceria um farol sinalizando a presença deles. E também, por motivos de segurança, eles foram bem para debaixo das árvores antes de desenrolar seus cobertores. Outras pessoas poderiam ter conhecimento da fonte e aparecer para tomar água durante a noite. — Ficamos muito cuidadosos — Jasmine bocejou, aconchegando-se debaixo do cobertor. — Lembro-me de dias em que éramos mais ousados. — Hoje as coisas são diferentes — Lief murmurou. — Agora estão
  • 9. procurando por nós — ele concluiu, estremecendo. Barda deu uma olhada para ele e virou-se rapidamente para ocultar o olhar preocupado. — Dormiremos em turnos. Eu fico de guarda agora — ele avisou. Kree grasnou. — Você também precisa dormir, Kree — Jasmine sorriu. — Você está muito cansado e não pode nos vigiar a noite toda. Você e Filli e eu ficaremos de sentinela juntos quando Barda nos acordar. Ela se virou e fechou os olhos, a mão deslizando no pêlo macio de Filli. Sonolento, Lief observou quando Kree começou a voar para um galho acima da cabeça de sua dona. Então, o pássaro pareceu mudar de idéia, desceu e pousou na grama. Ele saltitou para perto de Jasmine e ajeitou-se perto dela, enfiando a cabeça sob a asa. Lief sentiu uma leve centelha de medo. — Barda — ele chamou baixinho. — Dê uma olhada em Kree. Barda, agachado sob o cobertor que jogara nas costas para se aquecer, virou-se para olhar. — Por que ele está dormindo no chão e não num galho? — Lief sussurrou. — Talvez ele não goste de árvores — Barda sussurrou em resposta. — Jasmine disse que elas estavam em silêncio. E, de fato, elas são estranhas. Você percebeu que elas são exatamente iguais? Lief olhou ao redor e se deu conta de que Barda estava certo. Aquela era uma das razões pelas quais as árvores pareciam tão estranhas. Todas tinham o mesmo tronco reto e liso, os mesmos galhos apontando para o céu, o mesmo conjunto de folhas pálidas. Ele sentiu um frio na espinha. — Lief, pare de se preocupar, por favor! — Barda resmungou após um instante. — Seja lá o que for que está preocupando Kree, não é suficiente para impedi-lo de descansar. Sugiro que você siga o exemplo dele. Se não dormir, vai se arrepender. Logo vai ser a sua vez de ficar de guarda. Lentamente, Lief enrolou-se no cobertor e se deitou. Durante um ou dois
  • 10. minutos, ele fitou o céu escuro pontilhado de estrelas, emoldurado pelas folhas claras das estranhas árvores. Nenhuma brisa as balançava. Nenhum inseto cricrilava. Não se ouvia nenhum som, exceto a respiração suave de Jasmine. Suas pálpebras começaram a pesar, e logo ele não conseguia mantê-las abertas, tampouco tentou. "Se Kree não está com medo de dormir, eu também não vou ficar", ele pensou. "Afinal, o que pode nos acontecer enquanto Barda fica de sentinela?" Minutos depois, ele estava adormecido. Por esse motivo, não notou a cabeça de Barda pender suavemente no peito, nem ouviu o leve ressonar do amigo. E não sentiu o passar de pés silenciosos quando os moradores do bosque se dirigiram à Fonte dos Sonhos.
  • 11. Lief estava sonhando. O sonho parecia muito real. Ele estava parado junto à velha bomba no quintal da ferraria. O quintal estava escuro e deserto. "É noite", ele pensou. "Papai e mamãe certamente estão dentro de casa a essa hora". Contudo, a casa também estava às escuras e, embora ele chamasse da porta e depois da cozinha, ninguém respondeu. Confuso, mas ainda não assustado, entrou na sala de estar. A luz da Lua cheia brilhava pela janela. As cortinas estavam abertas, o que era estranho. E havia objetos jogados no chão: livros e papéis espalhados por todo o canto. Seus pais jamais os teriam deixado daquela maneira. O quarto deles encontrava-se vazio, a cama em desordem e desfeita, e roupas estavam caídas no chão. Sobre a cômoda, havia um vaso de flores mortas. Isso lhe deu a certeza de que algo estava errado. Assustado, Lief correu para fora mais uma vez. A Lua brilhava sobre o quintal vazio. O portão da ferraria oscilava e exibia uma marca. Lief não conseguiu ver com exatidão do que se tratava e se aproximou, o coração aos pulos. E, então, ele viu.
  • 12. Lief despertou sobressaltado. O suor molhava-lhe a testa, sua respiração estava acelerada, e as mãos, trêmulas. Ele disse para si mesmo que fora somente um sonho, que não havia nada a temer. Devagar, ele se deu conta de que o céu acima dele estava pálido e que as estrelas haviam quase desaparecido. O dia estava amanhecendo. Ele dormira a noite inteira. Mas será que Jasmine, que certamente assumira o segundo turno de vigilância, se esquecera de chamá-lo? Ele deu uma olhada na direção em que tinha visto a amiga se ajeitar para dormir na noite anterior. Ela ainda se encontrava no mesmo lugar, respirando calma e regularmente. Kree encontrava-se encolhido ao lado dela e, não muito longe, ele viu Barda, as costas apoiadas numa árvore, a cabeça caída sobre o peito. Ele também dormia profundamente. Lief quase riu. Então, apesar dos planos sensatos, todos haviam dormido. Talvez tivesse sido bom. Eles precisavam descansar e, de fato, nada os perturbara durante a noite. Lief sentia sede. Em silêncio, saiu de sob as cobertas, levantou-se e caminhou entre as árvores até a fonte. Seus pés descalços não fizeram nenhum ruído na grama macia. Ele percebeu outro detalhe incomum no bosque — as árvores não deixavam cair folhas ou ramos. Ele estava quase chegando na nascente quando ouviu um leve ruído na água — alguém estava matando a sede. A mão de Lief deslizou para o punho da espada. Ele fez menção de voltar, pensando em Barda e Jasmine, mas encontrava-se tão próximo da fonte que lhe
  • 13. pareceu tolice não espiar e descobrir quem entrara no bosque. Prendendo a respiração, escondeu-se atrás da última árvore e olhou. Um vulto gorducho inclinava-se sobre a água e bebia. Parecia algum tipo de animal do tamanho de um cachorro grande, mas muito mais gordo do que qualquer cão que Lief já tinha visto. Lief apertou os olhos e se esforçou para vê-lo melhor na penumbra. A pele da criatura era de um castanho escuro e não parecia ser coberta de pêlos. As orelhas eram pequenas e bem junto à cabeça. As pernas traseiras eram curtas e atarracadas, e as patas dianteiras, delgadas. A pele nas costas e nos lados tinha marcas estranhas, dobras e ondulações. O que seria? Lief deu um passo à frente e, no mesmo instante, a criatura endireitou o corpo, virou-se e o viu. O olhar de Lief encontrou olhos grandes e assustados, bigodes eriçados, uma boca cor-de-rosa aberta e patinhas apertadas de medo, e uma estranha sensação de prazer e paz o invadiu. Ele não compreendeu o sentimento, mas soube, com certeza, que a criatura era inofensiva, gentil e estava muito assustada. — Não tenha medo — ele disse em voz baixa e tranqüilizadora. — Não vou machucar você. A criatura continuou a fitá-lo, mas Lief teve a impressão de que parte do medo deixou o olhar dela e foi substituído pela curiosidade. — Não vou machucar você — Lief repetiu. — Sou um amigo. — Como você se chama? — a criatura indagou com voz aguda. Lief deu um salto violento, pois não lhe ocorrera que a criatura pudesse falar. — Meu nome é Lief — ele respondeu, sem pensar. — Eu sou Little, isto é, Prin, filha dos Kins — a criatura informou. Ela endireitou o corpo e começou a andar cambaleante na direção de Lief, as pernas curtas movendo-se com dificuldade na grama, as patas dianteiras dobradas, a boca exibindo um sorriso doce e esperançoso. Lief a olhava assombrado. Várias lembranças flutuavam em sua mente. Não era de surpreender que tivesse sido invadido por aquela sensação de paz
  • 14. quando viu o rosto de Prin pela primeira vez. Como não percebera antes quem ela era? Kin! As célebres criaturas voadoras que todas as crianças de Del conheciam. Lief não tivera um Kin de brinquedo, Monty, com quem dormia quando era pequeno? Sua mãe fizera Monty com um tecido macio recheado de palha e, com o passar dos anos, a pequena criatura ficou gasta e rasgada. Hoje, ficava escondida numa gaveta misturada a outros tesouros, longe do olhar zombeteiro dos amigos. Contudo, antes fora um companheiro confiável e tranqüilizador que carregava a todos os lugares. Quantas vezes, naqueles dias, Lief desejara que Monty criasse vida? E aquela criatura poderia ser a realização desse desejo, Lief pensou. Poderia ser Monty que caminhava na direção dele na grama. Mas, não era fato que lhe haviam dito que os gentis e delicados Kins haviam desaparecido há muito tempo e que agora só existiam em velhas histórias e nas ilustrações dos livros? Lief engoliu em seco e, por um instante, perguntou-se se ainda estava sonhando. Mas Prin encontrava-se em pé diante dele, grande como a vida. Agora ele podia ver que ela tinha pêlo sim, um pêlo curto e sedoso como musgo marrom. As asas fechadas junto ao corpo eram cobertas pela mesma penugem aveludada. Lief desejou acariciá-la e verificar se era tão macia quanto aparentava ser. — Você quer brincar comigo, Lief? — Prin convidou, estremecendo os bigodes e balançando o corpo para cima e para baixo. — Vamos brincar de esconde-esconde? Lief se deu conta de que ela era muito nova, e não poderia ser diferente, pois, em pé, ela somente chegava à altura de seu ombro. Haviam lhe dito que os Kins adultos eram tão grandes que, antigamente, as pessoas, ao vê-los voando no céu, confundiam-nos com dragões e tentavam abatê-los a tiros. — Onde está a sua família? — ele indagou, olhando ao redor. — Você não devia pedir...? — Eles ainda estão sonhando! — Prin informou zombeteira. — Eles só vão acordar depois que o sol raiar, viu?
  • 15. Ela apontou para o que Lief pensara serem grupos de imensas rochas espalhadas ao redor e além das árvores. Para sua surpresa, Lief constatou que não se tratava de rochas, mas de Kins, de tal modo enrodilhados que tudo o que se podia ver eram as suas costas curvadas. — Eu deveria ficar enrolada até eles acordarem — Prin explicou, baixando a voz. — Mas não é justo, porque não tenho nada interessante para sonhar. Prefiro brincar. Agora, você se esconde enquanto eu canto. Prometo que não vou trapacear. Vou cantar devagar e vou fechar os olhos e também os ouvidos. Pronto? Vá! Ela colocou as patas sobre os olhos e começou a cantar. — Você pode se esconder, mas eu vou achar. Meus olhos atentos vão procurá-lo... Lief logo percebeu que os pequenos Kins cantavam em vez de contar. No final da canção, Prin abriria os olhos e esperaria que ele tivesse se escondido. Sem querer desapontá-la, Lief fugiu depressa e se escondeu atrás de uma das árvores na parte mais densa do bosque. Não era um esconderijo muito bom, mas ele não queria se afastar muito de onde Barda e Jasmine dormiam e, pelo menos, poderia mostrar à pequena Kin que era um amigo. Lief colou-se ao tronco da árvore e riu sozinho ao ouvir a voz estridente da criaturinha terminando a canção. — ... você pode se esconder, mas eu vou te achar, Bata as asas, e você vai estar fora! Você pode se esconder, mas eu vou te achar. Meus olhos atentos vão...ah! A canção foi interrompida com um grito abafado e seguiu-se de uma gargalhada alta e áspera. — Peguei! — rugiu a voz. — Yo, me ajude! Ele está resistindo. Horrorizado, Lief saiu do esconderijo atrás da árvore e retornou sorrateiramente para a fonte. Dois Guardas Cinzentos encontravam-se curvados sobre um monte agitado no chão. O monte era Prin.
  • 16. Eles haviam jogado um casaco sobre a cabeça dela e agora estavam amarrando-a com uma corda. — Dê-lhe um chute, Carn 4 — o segundo guarda vociferou. — Assim ele aprende. Lief abafou um grito quando Carn 4 chutou o montículo com selvageria e Prin parou de se mexer. Lief deu um paso à frente e se sobressaltou quando alguém lhe agarrou o braço. Era Barda, os olhos inchados de sono, acompanhado por Jasmine. — Vamos embora, Lief — Barda sussurrou. — Eles vão descansar e comer. Poderemos estar longe quando eles estiverem prontos para partir. — Não posso ir — ele disse, sacudindo violentamente a cabeça, os olhos fixos nos vultos junto à fonte. — Não posso deixá-los matar minha amiga. Ele percebeu Barda e Jasmine trocarem olhares e soube que eles certamente pensaram que havia perdido o juízo. — Não tenho tempo para explicações. Onde estão as bolhas? Vá buscá-las. Sem nada dizer, Jasmine desapareceu entre as árvores. Talvez ela considerasse Lief um tolo, mas não permitiria que ele enfrentasse os guardas com
  • 17. somente uma espada para protegê-lo. Seguido de perto por Barda, Lief começou a se aproximar da nascente, correndo de uma árvore a outra até chegar perto de onde Prin se encontrava. — Bistecas para o café da manhã — anunciou Carn 4. — Não há nada melhor. — Isso não é um porco — corrigiu o outro. — Olhe os pés dele. — Seja lá o que for, é bem gordo. Vai ser uma boa refeição — Carn 4 endireitou as costas, foi até a fonte e destampou o cantil. — Descobrimos essa nascente bem a tempo, Carn 5 — ele disse, virando o cantil e sacudindo-o para mostrar que estava quase vazio. — Eles fazem parte do grupo dos Carn — Lief ouviu Barda murmurar. — Como... — Eu sei — Lief respondeu em voz baixa. — Como os Guardas que nos capturaram em Rithmere. Ele segurava o punho da espada com a mão suada. Saberiam ou adivinhariam aqueles dois o que acontecera com seus irmãos nas Dunas? Teriam eles assumido de onde Carn 2 e 8 pararam para salvar seu grupo da desgraça? Carn 5 caminhou até o colega na fonte, esfregando o nariz com as costas da mão. — Este lugar fede a carrapatos — queixou-se ele. Lief prendeu a respiração. — Mas não os nossos — Carn 4 curvou-se para encher o cantil. — Os nossos dois e o seu amigo já seguiram o seu caminho. Aquele grandão feio chamado Glock é muito lerdo. Pode-se sentir o cheiro de todos os passos que dá. Ele não veio para cá. O coração de Lief batia descompassadamente. Então, Perdição libertara Glock e Neridah como planejara. Carn 4 e 5 devem ter sido os captores dos dois e agora os estavam perseguindo como Carn 2 e 8 haviam seguido Lief e seus companheiros após a sua fuga. Ambos os guardas estavam voltados para a nascente. Aquele era o
  • 18. momento de tentar tirar Prin dali. Lief olhou ansioso sobre o ombro. Onde estava Jasmine com as bolhas? — Vamos alcançá-los no cair da noite — Carn afirmou confiante, ajoelhando-se ao lado do colega para encher o próprio cantil. — Eles e quem quer que os tenha deixado fugir. E vamos fazer com que ele se arrependa... — Vamos nos divertir um bocado com ele — o outro concordou. Ambos riram e se inclinaram para beber, sorvendo a água ruidosamente. Lief soube que não podia esperar e desperdiçar aquela oportunidade. Ignorando a mão de Barda em seu ombro, disparou para fora do esconderijo, apanhou o pacote flácido que era Prin e começou a arrastá-lo. Logo em seguida, amaldiçoou-se por sua insensatez. Ele simplesmente imaginara que Prin estava inconsciente, mas ela estava acordada, deitada imóvel, paralisada pelo medo. Ao sentir mãos desconhecidas em seu corpo, gritou aterrorizada. No mesmo instante, os Guardas ergueram-se de um salto e se viraram, ainda com água na boca, as bolhas e os estilingues já nas mãos molhadas. Eles viram Lief inclinado sobre Prin e correram na direção deles aos gritos. — Corra, Lief! — ele escutou Barda gritar, ao mesmo tempo em que saltava para a frente e tentava puxá-lo para o bosque. Lief, porém, aterrorizado, parecia preso ao chão. Pois os Guardas estavam gritando, tropeçando, parando. De seus pés saíam raízes que penetravam na terra como cobras e os prendiam ao solo. As pernas se juntaram e transformaram-se num tronco sólido. Seus corpos, braços e pescoços estenderam-se para o céu, e folhas descoradas brotaram da pele, que se tornava uma casca macia. E, em alguns instantes, duas árvores encontravam-se no lugar deles. Duas árvores novas para o bosque — tão silenciosas, imóveis e perfeitas como todas as outras. Jasmine veio correndo com Filli chilreando assustado em seu ombro. — As pedras estão criando vida! — ela exclamou ofegante. — E estão
  • 19. vindo para cá! Meia hora mais tarde, ainda atordoados, Lief, Barda e Jasmine encontravam-se sentados em meio a um grupo de enormes Kins. Filli fitava as criaturas com olhos arregalados. Prin, muito a contragosto, fora obrigada a se abrigar na bolsa da mãe. — Você precisa ficar protegida até acordarmos, pequenina! — a mãe repreendeu. — Quantas vezes eu recomendei? Veja só o que aconteceu. Aqueles malvados poderiam ter matado você! — Eles tomaram a água, mãe — Prin resmungou do fundo da bolsa. — Eu sabia que eles iam beber. — Você não poderia saber que eles beberiam da água antes de feri-la — a mãe replicou zangada. — Fique quieta. As suas costas estão muito machucadas. — Nós também tomamos dessa água — exclamou Barda, cujo olhar confuso passava das estranhas criaturas às árvores imóveis. Prin espiou para fora da bolsa e torceu os bigodes. — Quem não tem intenção de cometer o mal pode beber sem receber o mal — ela cantarolou, certamente repetindo algo que aprendera. A mãe a ignorou e virou-se para Barda. — Nós soubemos que vocês tinham bom coração quando beberam da fonte e não foram atingidos pelo mal — ela explicou com a voz lenta e grave. — Certos de que não representavam uma ameaça para nós, sonhamos tranqüilamente a noite toda, sem saber que nossa filhinha poderia colocar vocês em perigo pela manhã. Nós sentimos muito. — Foi o meu amigo que ajudou a pequena — Barda retrucou, curvando-se. — Mas, de minha parte, foi um privilégio conhecê-los. Nunca imaginei que algum dia veria um Kin. — Hoje somos poucos — contou um velho Kin que se encontrava em pé ao lado da mãe de Prin. — Desde que deixamos a nossa montanha... — A Montanha do Medo! Vocês antes viviam lá, não é mesmo? Por que partiram? — Lief interrompeu, incapaz de continuar em silêncio.
  • 20. O velho Kin parou e fitou Barda, que sorriu. — Como vocês vêem, também tenho jovens sob meus cuidados — ele se desculpou, para aborrecimento de Lief. — Por favor, desculpe a interrupção e prossiga. — Os gnomos da Montanha do Medo sempre tentaram nos caçar — contou a velha criatura. — Mas as suas flechas não nos faziam grande mal. Os maiores perigos que enfrentávamos eram os Guardas Cinzentos e os monstros Vraal que vinham das Terras das Sombras. Mas há muito tempo, alguma coisa mudou... A intensidade de sua voz diminuiu, e ele curvou a cabeça. — Os gnomos começaram a usar veneno na ponta das flechas — a mãe de Prin explicou, dando continuidade ao relato. — Era um veneno mortal que matava rápida e dolorosamente. Perdemos muitos dos nossos — a voz dela se transformou num sussurro. — Foi uma época terrível. Eu era muito jovem, então, mas me lembro do que aconteceu. Os demais Kins assentiram e sussurraram entre si. Obviamente, também se lembravam. — Finalmente, os poucos que restaram decidiram que não poderiam mais ficar na Montanha — o velho Kin contou. — Esse bosque costumava ser nossa moradia de inverno, um bom lugar para as crianças. Agora ficamos aqui o ano todo. Hoje podemos visitar a nossa Montanha, ver as árvores Boolong, ouvir os riachos ondulantes e sentir o doce cheiro do ar fresco somente em nossos sonhos. Um sentimento de tristeza invadiu todo o grupo. Fez-se um longo silêncio, e Jasmine, irrequieta, mexeu-se pouco à vontade. — Tive um sonho estranho na noite passada — ela começou, tentando alegrar um pouco a reunião. — Sonhei que vi Perdição. Ele se encontrava numa caverna cheia de pessoas. O garoto Dain também estava lá, juntamente com Neridah, Glock e muitos outros. Glock tomava sopa e a deixava escorrer queixo abaixo. Eu os chamei, mas eles não me ouviram. Parecia tão real. — Você não compreende? — o velho Kin perguntou, fitando-a. — Era real
  • 21. — ele disse, apontando a fonte com uma das patas. — Esta é a Fonte dos Sonhos. Você irá visitar qualquer coisa ou pessoa durante o sonho, na qual pensar enquanto estiver bebendo. — Nós visitamos nossa Montanha todas as noites — acrescentou a mãe de Prin, quando Jasmine exibiu uma expressão incrédula. — É um grande consolo ver como ela está agora. As árvores Boolong crescem fortes, muito mais do que antes. É verdade que não podemos comer os seus frutos, mas, pelo menos, estamos lá juntos. — Eu não! — Prin contestou em voz alta. — Eu não posso sonhar com a Montanha. Eu nunca a vi! Este é o único lugar que conheço, por isso não tenho nada com que sonhar. Isso não é justo! Sua mãe inclinou-se sobre ela e murmurou algumas palavras em seu ouvido. Os outros adultos se entreolharam tristemente. — O que vi em meu sonho era real? — Jasmine indagou espantada. — Então Perdição, Neridah e Glock chegaram ao esconderijo da Resistência em segurança! — Barda exclamou e olhou satisfeito para as duas novas árvores junto à nascente. — E agora nenhum Guarda vai perturbá-los. — Eu sonhei com Manus e os Ralad — ele sorriu. — Eu me encontrava perto da fonte em sua cidade subterrânea. Eles cantavam, e tudo estava bem. É muito bom saber disso. Lief, contudo, permaneceu calado, entorpecido pelo susto. Ele estava se lembrando do próprio sonho e, lentamente, enfrentava a certeza de que ele também havia sido verdadeiro.
  • 22. Aos poucos, a reunião dos Kins terminou, e cada uma das criaturas se afastou para se alimentar da grama que crescia debaixo e ao redor das árvores. — Grama é tudo o que temos aqui — a mãe de Prin explicou a Lief, Barda e Jasmine, enquanto se afastava carregando seu pesado rebento na bolsa. — É bastante nutritivo, mas estamos cansados de seu sabor adocicado e ansiamos por comer os frutos e folhas das árvores Boolong. As folhas das árvores deste bosque não são comestíveis. Elas não estão realmente vivas. Kree, empoleirado no braço de Jasmine, grasnou enojado. — Kree sempre soube que as árvores não eram como deveriam ser — Jasmine contou, estremecendo ao olhar à sua volta. — Não é de surpreender que elas sejam silenciosas. É horrível pensar nelas paradas aqui, inalteradas por séculos. — E que sorte termos passado pelo teste da fonte — Barda ajuntou sombrio. — Ou estaríamos fazendo companhia a elas. Lief não falara por um longo tempo. Quando, finalmente, o último Kin havia partido, Jasmine virou-se para ele. — O que aconteceu? — ela quis saber. — Está tudo bem. — Não é verdade — Lief murmurou. — Os meus pais... — ele parou, engolindo em seco, tentando desesperadamente conter as lágrimas. — Jarred e Anna? — Barda exclamou atento. — O que você...? — de
  • 23. repente, ao compreender, a sua expressão mudou e se encheu de medo. — Você teve um sonho! — ele deduziu. — Lief... — A ferraria está vazia — Lief confirmou devagar. — A marca do Senhor das Sombras está no portão. Acho... acho que eles estão mortos. Perplexo e consternado, Barda o fitou sem saber o que dizer, mas logo a sua expressão mostrou firmeza. — É muito provável que não estejam mortos, mas simplesmente presos — ele consolou. — Não devemos perder as esperanças. — Ser prisioneiro do Senhor das Sombras é pior do que a morte — Lief murmurou. — Meu pai disse isso muitas vezes. Ele sempre me advertiu... — as palavras ficaram presas em sua garganta, e ele cobriu o rosto com as mãos. Desajeitada, Jasmine deu-lhe um abraço, e Filli saltou em seu ombro e roçou-lhe o rosto com o pêlo macio. Kree cacarejou tristemente. Barda, porém, manteve-se afastado, lutando com o próprio medo e sofrimento. Finalmente, Lief ergueu o olhar, o rosto muito pálido. — Preciso voltar — ele anunciou. — De jeito nenhum — Barda retrucou, sacudindo a cabeça. — Preciso! — Lief insistiu zangado. — Como posso continuar sabendo o que sei? — Você só sabe que a ferraria está vazia — Barda argumentou com suavidade. — Jarred e Anna podem estar nas masmorras do palácio em Del. Eles podem estar na Terra das Sombras. Eles podem estar escondidos. Ou, como você já disse, podem estar mortos. Seja qual for a resposta, você não pode ajudá-los. Seu dever está aqui. — Não me fale em dever! — Lief gritou. — Eles são meus pais! — E são meus amigos! — Barda retrucou no mesmo tom de voz inexpressivo. — Meus queridos e únicos amigos, Lief, desde antes de seu nascimento. E sei o que eles lhe diriam se pudessem. Eles lhe diriam que a nossa busca também é a busca deles e lhe implorariam para não abandoná-la.
  • 24. A raiva de Lief arrefeceu e foi substituída por uma pesada tristeza. Ele fitou o rosto de Barda e viu a dor por trás da máscara sombria. — Você está certo — ele murmurou. — Me desculpe. — Uma coisa é certa — tornou Barda, colocando uma das mãos no ombro de Lief. — O tempo se tornou uma prioridade. Precisamos chegar à Montanha do Medo o mais rápido possível. — Não sei como podemos andar mais depressa do que temos feito até agora — Jasmine argumentou. — A pé não podemos — Barda concordou. — Mas tenho um plano. — A sombra do sofrimento passou pelo rosto de Barda, mas, mesmo assim, ele conseguiu exibir um leve sorriso. — Por que os Kins devem sonhar sobre seu lar em vez de vê-lo com os próprios olhos? Por que andar se podemos voar? Barda conversou com os Kins durante longo tempo e apresentou seus melhores argumentos, mas foi somente no fim do dia que três deles finalmente concordaram em carregar os companheiros até a Montanha do Medo. Eles eram Merin, Ailsa e Bruna e estavam entre os maiores do grupo. Eram todas fêmeas, pois somente as fêmeas tinham bolsas para levar passageiros. As três concordaram por diferentes motivos: Merin, por ter saudades; Ailsa, por causa do espírito aventureiro; e Bruna, por achar que tinha uma dívida para com Lief por ter salvo Prin. — Ela é muito querida para todos nós — Bruna explicou. — É o único filhote que nasceu desde que nos mudamos para cá. — Nós precisamos do ar da Montanha e das árvores Boolong para nos desenvolver — Merin contou. — Aqui, apenas existimos. Em nossa Montanha, podemos crescer e nos reproduzir. Deveríamos ter voltado há muito tempo. — Para morrer? Você está dizendo uma grande tolice, Merin — censurou o mais velho, que ficara muito zangado com a decisão das três sobre ir até a Montanha. — Se você, Ailsa e Bruna forem em carne e osso à Montanha do Medo, certamente serão mortas. E então haverá menos Kins, e teremos mais três mortes para lamentar.
  • 25. — De que adianta ficarmos aqui e morrermos lentamente? — disparou Ailsa, erguendo as grandes asas. — Sem filhotes para dar continuidade à nossa espécie, não temos futuro. Os Kins estão acabados. Prefiro morrer rapidamente por uma boa causa a permanecer aqui. Temos os nossos sonhos, mas estou cansada de sonhar! — Ailsa exclamou. — E eu, que nunca posso sonhar! — Prin ajuntou. Ela correu para junto de Ailsa e juntou as patas. — Leve-me à Montanha, Ailsa — ela implorou. — E então eu também a terei conhecido e poderei acompanhá-las em seus sonhos. — Você não pode ir, pequenina — Ailsa recusou. — Você é preciosa demais. Mas pense nisso: você pode sonhar conosco e então verá onde estamos e o que estamos fazendo. Isso não é tão bom quanto viajar? Evidentemente, Prin não concordava, pois começou a se lamentar e chorar sem dar atenção às ordens e pedidos da mãe. Finalmente, a mãe levou-a embora, mas, mesmo quando estavam fora de vista, o som de suas vozes zangadas flutuava por entre as árvores. Os demais Kins pareciam aflitos. O velho Kin exibia uma expressão carrancuda. — Viram o que fizeram? — ele resmungou para Barda, Lief e Jasmine. — Estávamos felizes e tranqüilos antes de vocês aparecerem. Agora, estamos zangados uns com os outros, e a pequenina está infeliz. — Não é justo culpar os estranhos, Crenn — Bruna objetou. — Merin, Ailsa e eu concordamos em ir à Montanha por nossa própria vontade. — Isso é verdade — Merin concordou. — E a pequenina só disse o que vem dizendo há anos, Crenn. E quanto mais ela crescer, mais ela repetirá essas palavras. A vida dela aqui, sem companheiros da mesma idade, é monótona demais para ela. Ela é muito parecida com Ailsa — entusiasmada e aventureira. — E ela não tem sonhos para embalá-la como nós — Ailsa acrescentou. Seus olhos brilhantes voltaram-se para Jasmine, Barda e Lief. — Acho que devo agradecer aos visitantes por perturbar a minha paz. Este dia fez com que eu me sentisse viva novamente. Crenn sentou-se, endireitando o corpo. A sua face envelhecida, os bigodes
  • 26. brancos, o olhar amortecido e cheio de saudade estavam voltados para a Montanha. O sol havia mergulhado no horizonte quando ele finalmente falou. — De fato, todas vocês estão dizendo a verdade — ele concordou relutante. — E se está escrito que isso deve acontecer, que assim seja. Eu apenas rezo para que vocês fiquem em segurança e lhes imploro para que se cuidem e voltem para nós o mais depressa possível. — É o que faremos — Ailsa prometeu e deu um sorriso para os que a cercavam. — Agora vou beber da fonte, mas não beberei mais nada esta noite. E então tirarei apenas um cochilo. Um de nós deve estar acordado para chamar os demais amanhã cedo. Devemos partir antes do amanhecer.
  • 27. Naquela noite, Lief sonhou outra vez. Ele planejara o sonho — tomara bastante água e pensara nos pais enquanto o fazia. "Se estiverem mortos, será melhor enfrentar o fato", pensou. "Se estiverem vivos, esta é a chance de descobrir onde se encontram". Quando ele e os companheiros se preparavam para dormir, pensar no que ele estava prestes a descobrir o deixou silencioso e tenso. Ele nada disse a Barda e Jasmine, mas, talvez, eles tivessem adivinhado o que ele planejava, pois estavam igualmente silenciosos, desejando uma boa-noite a todos e nada dizendo depois. Lief ficou agradecido, pois aquilo era algo que tinha que enfrentar sozinho e falar a respeito não ajudaria em nada. O sono demorou a chegar. Lief permaneceu acordado durante um longo tempo, fitando o céu. E, finalmente, a sonolência causada pela água da fonte tomou conta dele. Desta vez, o sonho começou quase que imediatamente. O cheiro foi a primeira coisa que notou — o cheiro de umidade e decomposição. Depois, seguiram-se os sons — pessoas gemendo e chorando não muito longe, as vozes abafadas que ecoavam, fantasmagóricas. Estava muito escuro. "Estou em um túmulo", ele pensou, com um estremecimento de horror. Mas logo os seus olhos se acostumaram à escuridão, e ele se deu conta de que se
  • 28. encontrava numa masmorra. Um vulto de cabeça baixa estava sentado no chão a um canto. Era seu pai. Esquecendo completamente que se encontrava na cela apenas em espírito, Lief o chamou, correu até a figura caída e segurou-lhe o braço. O pai continuou curvado, infeliz, evidentemente nada ouvindo ou sentindo. Lágrimas quentes brotaram nos olhos de Lief, e ele chamou mais uma vez. Desta vez, o pai virou e ergueu a cabeça. Ele olhou diretamente para o filho, um olhar levemente perplexo no rosto. — Sim, pai, sim! Sou eu! — Lief gritou. — Ah, tente meu ouvir! O que aconteceu? Que lugar é esse? A mamãe está...? Contudo, o seu pai suspirava profundamente e curvava a cabeça outra vez. — Sonho — ele murmurou para si mesmo. — Não é um sonho! — Lief gritou. — Eu estou aqui! Pai... Jarred ergueu a cabeça de repente. Uma chave girava na fechadura da porta da cela. Lief virou-se quando a porta abriu com um rangido. Havia três vultos ali parados: um homem alto e magro vestindo uma longa túnica, cercado por dois guardas imensos que empunhavam tochas acesas. Por um momento, Lief foi tomado pelo medo, convencido de que os seus gritos tinham sido ouvidos, mas percebeu imediatamente que os recém-chegados estavam tão alheios à sua presença quanto o seu pai. — Pois então, Jarred! — o homem com a túnica apanhou a tocha da mão de um dos guardas e foi até o centro da cela. Iluminado pela luz bruxuleante da chama, o seu rosto parecia anguloso, os ossos da face estavam sombreados, e a boca fina tinha uma expressão cruel. — Prandine! — reconheceu o pai de Lief. O coração de Lief bateu com um som surdo. Prandine? O conselheiro-chefe do rei Endon, o servo secreto do Senhor das Sombras? Mas ele estava morto. Certamente, ele... — Prandine, não, ferreiro — o homem respondeu, sorrindo. — Aquele que
  • 29. se chamava Prandine mergulhou, para a morte, da torre deste mesmo palácio, há dezesseis anos, no dia em que o Mestre reclamou o seu reino. Prandine foi descuidado — ou infeliz. Talvez você saiba algo sobre isso... — Não sei de nada. — Veremos. Mas, quando alguém morre, sempre há outra pessoa para tomar o seu lugar. O Mestre gosta deste rosto e formato. Ele decidiu repeti-los em mim. Meu nome é Fallow. — Onde está a minha mulher? Lief prendeu a respiração. O homem magro riu. — Você gostaria de saber? Talvez eu lhe diga... se você responder às minhas perguntas. — Que perguntas? Por que fomos trazidos para cá? Não fizemos nada de errado. Fallow virou-se para a porta onde os guardas vigiavam. — Saiam! — ele ordenou. — Vou interrogar o prisioneiro sozinho. Os guardas assentiram e se retiraram. Assim que a porta foi firmemente fechada, o homem magro apanhou algo das dobras de sua túnica. Um pequeno livro azul-claro. Era o livro 0 Cinturão de Deltora, que Jarred encontrara escondido na biblioteca do palácio. O livro que o próprio Lief tantas vezes estudara enquanto crescia e que lhe ensinara tanto sobre o poder do Cinturão e suas pedras. Lief contorceu-se por vê-lo nas mãos do homem. Desejou poder arrancá-lo das mãos de Fallow, salvar o pai do sarcasmo cruel. Mas ele não conseguia. Tudo o que podia fazer era ficar ali e observar. — Este livro foi encontrado em sua casa, Jarred — Falow dizia. — Como foi parar lá? — Não me lembro. — Talvez eu possa ajudá-lo. Nós o conhecemos. Ele veio da biblioteca do palácio. — Quando jovem, vivi no palácio. Talvez eu o tenha levado comigo quando
  • 30. parti. Isso foi há muito tempo. Eu não sei. Fallow tamborilou no livro com os dedos ossudos. O sorriso cruel não deixava o seu rosto. — O Mestre acha que você nos enganou, Jarred — ele disse. — Ele acha que você mantém contato com o seu tolo amigo, rei Endon, e que no final ajudou para que ele, a sua estúpida mulher e a criança não nascida pudessem escapar. O pai de Lief negou, balançando a cabeça. — Endon foi tolo o bastante para acreditar que eu era um traidor — ele contou em voz baixa e inalterada. — Endon nunca me pediria ajuda, nem eu a daria — Assim nós pensávamos. Mas agora não temos tanta certeza. Coisas estranhas vêm ocorrendo no reino, ferreiro. Coisas que não agradam ao Mestre. Lief viu um repentino lampejo de esperança nos olhos baixos do pai. Olhou rápido para Fallow. Teria ele visto o mesmo que Lief? Ele viu. Seus próprios olhos exibiam um brilho frio quando prosseguiu. — Certos aliados, prezados pelo Mestre, foram cruelmente mortos. Certos... bens... também valorizados pelo Mestre foram roubados -Fallow continuou. — Suspeitamos que o rei Endon ainda esteja vivo. Suspeitamos que ele esteja realizando um último e inútil esforço para reaver o trono. O que você sabe sobre isso? — Nada. Como todas as outras pessoas em Del, acho que Endon está morto. Foi isso que nos disseram. — De fato — Fallow fez uma pausa e, então, se inclinou para a frente de modo que o seu rosto e a tocha ficassem muito próximos do homem sentado no chão. — Onde está o seu filho, Jarred? — ele disparou. Lief sentiu sua boca ficar seca. Ele observou o pai olhar para cima e sentiu o coração apertado ao notar as profundas marcas de exaustão, dor e sofrimento no amado rosto tão parecido com o dele. — Lief deixou a nossa casa há vários meses. O ofício de ferreiro o aborrecia. Ele preferiu correr desvairadamente pela cidade com os amigos. Não
  • 31. sabemos onde ele se encontra. Por que quer saber o seu paradeiro? Ele partiu o coração da mãe e o meu também. O coração de Lief encheu-se de orgulho diante da coragem do pai. A voz era alta e queixosa, a voz de um pai magoado, nada mais. O seu pai, sempre tão sincero, estava mentindo como se tivesse nascido para aquilo, determinado a proteger o filho e a sua causa a qualquer preço. Fallow examinava atentamente a expressão desesperada. Teria sido enganado, ou não? — Dizem que um garoto da idade de seu filho é um dos três criminosos que estão vagando pelo reino, tentando impedir os planos do Mestre — disse ele lentamente. — Ele anda acompanhado por uma garota e um homem mais velho. Um pássaro preto voa junto deles. — Por que está me contando isso? — o homem no chão mexeu-se inquieto. Ele parecia meramente impaciente, mas Lief, que o conhecia tão bem, sabia que ele estivera ouvindo atentamente. Sem dúvida, estava se perguntando quem seriam a garota e o pássaro preto. Ele nada sabia a respeito de Jasmine e Kree, ou o que ocorrera nas Florestas do Silêncio. — Esse garoto — Fallow prosseguiu — pode ser o seu filho. Você é um aleijado e pode tê-lo enviado em alguma busca inútil no seu lugar. O homem... pode ser Endon. O pai de Lief riu. O seu riso parecia totalmente natural, e não poderia ser diferente, pensou Lief. Era absurdo pensar em Barda ser confundido com o delicado e cauteloso rei Endon. Os lábios finos de Fallow formaram uma linha dura. Ele abaixou a chama da tocha até que bruxuleasse perigosamente diante dos olhos do homem que ria. — Tenha cuidado, Jarred — ele rosnou. — Não submeta a minha paciência à prova. A sua vida está em minhas mãos. E não somente a sua. O riso parou. Lief cerrou os dentes quando viu o pai curvar a cabeça mais uma vez. — Eu vou voltar — Fallow disse em voz baixa, dirigindo-se à porta. —
  • 32. Pense no que eu disse. Na próxima vez, vou querer respostas. Se você fez o que suspeitamos, o simples sofrimento não fará com que conte a verdade. Mas talvez o sofrimento de alguém que você ama seja mais convincente. Ele ergueu o punho e bateu na porta. Quando ela se abriu, ele saiu e bateu-a atrás de si. A chave virou na fechadura. — Pai! — Lief gritou para o vulto encolhido junto à parede. — Pai, não se desespere. Encontramos quatro pedras e hoje iremos até a Montanha do Medo para encontrar a quinta. Estamos agindo o mais depressa possível. Mas o pai continuou sentado imóvel, fitando a escuridão sem nada ver. — Eles estão vivos — ele sussurrou. — Vivos e vitoriosos. Os olhos dele brilharam. Correntes chocalharam quando ele fechou os punhos. — Ah, Lief, Barda — boa sorte! Estou enfrentando minha luta aqui da melhor forma possível. Vocês devem enfrentar a de vocês. Minhas esperanças e orações os acompanham.
  • 33. Lief acordou com o som de vozes quase ao amanhecer. Jasmine e Barda já se movimentavam, pegavam as suas armas e prendiam as latas com as bolhas aos cintos. Ailsa, Merin e Bruna voltavam da fonte. Lief ficou quieto, recordando o sonho que tivera. Embora tenha, provavelmente, dormido muitas horas depois que o sonho acabou, todos os detalhes estavam nítidos em sua mente. Ele teve a impressão de que um terrível peso o empurrava para baixo. Era o peso do perigo e do sofrimento do pai, que temia por Anna. E então ele se lembrou do brilho no olhar de Jarred e de suas palavras finais. Estou enfrentando a minha luta aqui da melhor forma possível. Vocês devem enfrentar a de vocês... — Jarred e Anna sempre souberam que isso poderia acontecer — Barda encontrava-se parado ao lado dele com uma expressão triste e cansada no rosto. — Você viu meu pai? — Lief exclamou, erguendo-se de um salto. — Você também? Eles apanharam as cobertas, ajeitaram as mochilas nos ombros e começaram a caminhar juntos até a nascente, conversando em voz baixa. Jasmine os seguiu atenta. — Sonhei assim que adormeci — Barda contou. — Eu sabia que você planejava fazer o mesmo, Lief, mas eu queria ver com meus próprios olhos o que
  • 34. estava acontecendo a Jarred. Não fiquei sabendo de muita coisa, mas eu o vi. Ele estava sentado, acorrentado à parede de uma masmorra — os punhos de Barda se fecharam diante da lembrança. — Eu nada pude fazer. Se, pelo menos, eu pudesse ter contado... — Ele sabe! — Lief exclamou. — Ele sabe que estamos tendo êxito. E isso lhe deu esperança. — Ele ouviu você? — Não. Ele encontrou um outro meio. Os amigos chegaram à fonte e, enquanto comiam rapidamente frutas secas e biscoitos e bebiam água fresca, Lief contou da visita de Fallow à cela. Barda riu tristemente quando ouviu que estava sendo confundido com o rei Endon. — Minha querida e velha mãe ficaria orgulhosa de ouvir isso — ele disse. — Então eles não notaram o desaparecimento do mendigo das portas da ferraria? — Não — Lief respondeu. — Ou, se perceberam, devem pensar que você simplesmente mudou para outra parte da cidade — ele franziu o cenho. — Mas a história é diferente comigo. Quando os problemas começaram, eles foram até a ferraria por causa da história de meu pai. Eles descobriram que eu partira, vasculharam a casa... — E encontraram o livro — Barda murmurou. — Há muito tempo, eu disse a Jarred para destruí-lo, mas ele não me ouviu. Ele disse que era muito importante Lief ouviu um leve ruído atrás de si e se virou. Jasmine mexia em sua mochila. Seus lábios estavam firmemente cerrados, o olhar triste. Ele achou que sabia o porquê. — Não tive nenhum sonho na noite passada — ela disse, respondendo à pergunta não proferida. — Tentei visualizar o meu pai quando bebi água da fonte, mas eu era tão pequena quando ele foi capturado que não consegui lembrar de seu rosto. Ele é apenas uma imagem indistinta agora. Portanto, perdi minha chance. — Sinto muito — Lief murmurou. Jasmine deu de ombros e atirou a cabeça para trás.
  • 35. — Talvez seja melhor assim. Meu pai está prisioneiro há tanto tempo... Quem sabe o que ele está sofrendo? Saber que não posso fazer nada por ele apenas iria me atormentar. É melhor pensar que ele está morto, como minha mãe. Ela se virou bruscamente. — É melhor nos apressarmos. Estamos perdendo tempo com essa conversa inútil. Ela se afastou, acompanhada de Kree. Barda e Lief embrulharam seus pertences e a seguiram. Ambos sabiam do grande sofrimento que se ocultava por trás das palavras ásperas de Jasmine e ambos desejaram poder ajudá-la. Mas não havia nada a fazer. Nada a ser feito por Jasmine, seu pai ou os pais de Lief, ou qualquer uma das milhares de vítimas da crueldade do Senhor das Sombras. Exceto... "Exceto o que iremos fazer agora", Lief pensou, ao se aproximar do local perto do bosque em que as Kins e Jasmine aguardavam. "O Cinturão de Deltora é a nossa missão. Quando estiver concluída, quando o herdeiro de Endon for encontrado e o Senhor das Sombras, derrubado, todos os prisioneiros serão libertados." Os Kins aguardavam além das árvores, no topo de uma colina coberta de grama, reunidos para se despedir dos viajantes, exceto Prin. — A pequenina não veio — a mãe explicou. — Peço desculpas por ela. Geralmente, ela não fica zangada por muito tempo, mas, desta vez, foi diferente. — Desta vez, o desapontamento foi muito grande — Ailsa murmurou. — Pobre pequenina, sinto por ela. Merin olhou para o céu que clareava e virou-se para Barda. — Eu sou a maior, então vou levá-lo — ela disse educada, evidentemente ansiosa para partir. Um tanto nervoso, Barda entrou na bolsa dela. Lief sorriu diante da cena e, apesar de seus receios, muitos dos que a assistiam também riram. — Que bebê grande você está carregando, Merin — a mãe de Prin brincou. — E muito bonito!
  • 36. Lief iria viajar com Ailsa e Jasmine, com Bruna, a menor das três. Eles entraram em suas respectivas bolsas, enquanto Filli chilreava animado no ombro de Jasmine. Ele certamente considerava os Kins maravilhosos e se mostrava entusiasmado por se encontrar tão próximo de um deles. A bolsa de Ailsa era quente e macia como veludo. No início, Lief teve receio de que o seu peso pudesse machucá-la, mas logo percebeu que sua preocupação era infundada. — Um filhote de Kin é muito mais pesado do que você na época em que deixa a bolsa da mãe para sempre — Ailsa esclareceu. — Fique bem confortável. Contudo, conforto foi o que Lief menos sentiu logo depois. Ele se perguntara como criaturas tão pesadas conseguiam levantar vôo e descobrir pessoalmente foi uma experiência assustadora. O método era bastante simples. Ailsa, Merin e Bruna ficaram em fila, estenderam as grandes asas e então correram o mais depressa possível colina abaixo. Seus passageiros, impiedosamente sacudidos, só podiam se segurar ofegantes. E então viram o que havia adiante — elas corriam diretamente para a beira de um penhasco. Lief gritou e fechou os olhos quando Ailsa se lançou ao espaço. Seguiram-se alguns momentos atordoados de pânico enquanto as imensas asas batiam com força acima de sua cabeça. Logo depois, sentiu um impulso para o alto e um golpe de ar frio no rosto e percebeu que o som do bater de asas se estabilizou e atingiu um ritmo regular. Lief abriu os olhos. A terra abaixo parecia uma colcha de retalhos adornada em vários pontos com pequenas árvores e caminhos estreitos e sinuosos. Mais adiante, a Montanha do Medo já parecia mais próxima, ainda envolta em névoa, mas aparentando ser maior, mais escura e sinistra do que antes. Atrás dela, viam-se as concavidades da cadeia de montanhas que marcavam a fronteira com a Terra das Sombras, que também pareciam mais próximas. — Em quanto tempo chegaremos à Montanha? — Lief gritou, tentado fazer-se ouvir apesar do barulho do vento.
  • 37. — Teremos que parar quando começar a escurecer — Ailsa informou. — Mas, se o bom tempo continuar, chegaremos lá amanhã. "Amanhã!" Lief pensou. "Amanhã saberemos, sejam quais forem as conseqüências, se os gnomos da Montanha do Medo ainda vigiam os céus em busca de Kins. Em caso positivo, isso significará a nossa morte. Os gnomos derrubarão Ailsa, Merin e Bruna, e nós nos espatifaremos no solo com elas." Lief estremeceu. Sua mão deslizou até o Cinturão preso à cintura e roçou levemente as quatro pedras ali engastadas. Elas se aqueceram ao seu toque: o topázio, para a lealdade, o rubi, para a felicidade, a opala para a esperança, e o misterioso lápis-lazúli, a Pedra Celestial. Certamente tudo ficaria bem, Lief disse a si mesmo. Certamente, aquelas pedras, juntas, os manteriam em segurança. Mas mesmo enquanto procurava ter esses pensamentos tranqüilizadores, palavras do Cinturão de Deltora passaram rapidamente por sua mente. Cada pedra possui sua própria magia, mas as sete juntas têm uma força muito mais poderosa que a soma de suas partes. Somente o Cinturão de Deltora completo, como foi inicialmente criado por Adin e usado pelos seus verdadeiros herdeiros, tem o poder de derrotar o Inimigo. A advertência era clara. As pedras que Lief e seus amigos tinham em mãos até o momento poderiam ajudá-los a seu próprio modo, mas não poderiam salvá-los. Lief cuidou para que seus dedos não se demorassem sobre a opala, pois não queria ter nenhuma visão do futuro. Se fosse assustadora, não queria vê-la. Ele enfrentaria qualquer coisa que o destino lhes reservasse no momento certo.
  • 38. Quando o sol mergulhou numa névoa vermelha, as Kins voaram em círculos, diminuindo cada vez mais a altitude, à procura do local que haviam escolhido para passar a noite. — Ali há água, comida e abrigo — Ailsa contou a Lief. — É uma pequena floresta onde, há muito tempo, sempre interrompíamos a nossa jornada entre a Montanha e o bosque. Nós a chamamos de Kinrest. Estava quase escuro quando elas pousaram no solo, batendo as asas com força ao mergulharem entre as árvores altas para o macio abrigo abaixo. Lief, Barda e Jasmine saltaram desajeitadamente para o chão e foram invadidos por uma sensação estranha ao pisarem em terra firme novamente. Os companheiros olharam ao redor. Kinrest era realmente um local tranqüilo. Samambaias cercavam densamente o pequeno riacho que borbulhava ali perto e cogumelos cresciam amontoados sob as árvores enormes. De algum lugar próximo, vinha o som de uma cachoeira. — Como as árvores cresceram! — espantou-se Merin excitada, limpando folhas e galhos do pêlo. — Elas escondem totalmente o riacho. E, veja só, Ailsa, a entrada da grande caverna em que costumávamos brincar está coberta de samambaias. — Tudo parece muito diferente — Ailsa concordou. — Não é de surpreender que levássemos tanto tempo para encontrá-la. Deveríamos tê-la
  • 39. visitado em sonhos há muito tempo em vez de ir sempre à Montanha. Fatigados, Lief, Barda e Jasmine sentaram-se junto ao riacho e observaram as três Kins começarem a explorar. Jasmine inclinou a cabeça para o lado, atenta ao farfalhar das árvores. — O que elas dizem? — Lief quis saber ansioso. — Estamos em segu- rança? — Acho que sim — Jasmine respondeu séria. — As árvores estão felizes em rever as Kins. Muitas delas são centenárias e se lembram claramente de épocas passadas. Mas também senti tristeza e medo nelas. Algo ruim aconteceu aqui. Sangue foi derramado, e alguém de quem gostavam morreu. — Quando? — Barda indagou, repentinamente alerta. — Árvores como essas não falam do tempo como nós, Barda — Jasmine explicou paciente. — A tristeza de que se lembram pode ter sido causada há um ano ou vinte. Para elas, tudo significa a mesma coisa. — Acho que é seguro acendermos uma pequena fogueira — ela sugeriu, estremecendo. — As árvores certamente esconderão a luz. E eu preciso de algo que me anime. Os amigos encontravam-se agachados junto às chamas aconchegantes do fogo e comiam frutas secas e fatias de bolo de mel e nozes, quando Ailsa os chamou da escuridão além do córrego, com uma voz estranha. Erguendo-se de um salto assustados, eles acenderam uma tocha e foram ter com ela e as demais Kins junto a uma grande caverna totalmente coberta por samambaias. — Estivemos explorando a nossa caverna — Ailsa disse em voz baixa. — Costumávamos brincar aqui quando éramos crianças. Encontramos... algumas coisas dentro dela. Achamos que vocês gostariam de ver o que é. Os três companheiros seguiram-nas para o interior da caverna. A luz da tocha bruxuleava sobre as paredes rochosas e o chão arenoso, mostrando os objetos que lá se encontravam: algumas tigelas e panelas, uma caneca, alguns velhos cobertores caídos em meio ao pó que antes fora um monte de folhas de samambaias secas, uma trouxa de roupas velhas, uma cadeira feita de galhos
  • 40. caídos, uma tocha apagada presa à parede... — Alguém esteve morando aqui — deduziu Lief. — E não foi há pouco tempo — Barda ajuntou, apanhando um cobertor e deixando-o cair novamente numa nuvem de poeira. — Eu diria que foi há muitos anos. — Há mais uma coisa — Ailsa contou em voz baixa. Ela os conduziu de volta à entrada da caverna e afastou as samambaias que cresciam fortes num dos lados, revelando uma pedra achatada e coberta de musgo, firmemente enterrada no chão como um marco. — Há algo escrito nela — Bruna sussurrou. Barda abaixou a tocha, e os três companheiros constataram que realmente havia palavras cuidadosamente esculpidas na rocha. AQUI JAZ PERDIÇÃO DE HILLS, QUE ABRIGOU UM ESTRANHO DESPROTEGIDO E ASSIM FOI AO ENCONTRO DA MORTE. ELE SERÁ VINGADO.
  • 41. — Estranho nome para ser encontrado numa lápide — Barda murmurou, lançando um olhar significativo para Lief e Jasmine. — E acompanhado por uma estranha mensagem. Perplexo, Lief olhou fixamente para as palavras. — Perdição de Hills está morto! — ele balbuciou. — Mas este túmulo é antigo... deve ter uns dez anos, no mínimo, pelo aspecto da rocha. Então o homem que conhecemos como Perdição... — É outra pessoa — Jasmine concluiu com vivacidade, o rosto corado de raiva. — Ele está usando um nome falso. Eu sabia que não podíamos confiar nele. Pelo que sabemos, ele é um espião do Senhor das Sombras. — Não seja tola! O fato de ele não usar seu nome verdadeiro não significa nada — Barda resmungou. — Nós mesmos usávamos nomes falsos quando o conhecemos. — Ele tinha que manter a sua identidade em segredo. Por isso ele assumiu o nome do homem que está enterrado neste lugar — Lief concluiu. — Talvez um homem que ele traiu e assassinou — Jasmine ajuntou. — Pois ele esteve aqui, posso sentir. Barda não respondeu. Delicadamente, começou a limpar as samambaias ao redor da pedra, e Lief inclinou-se para ajudá-lo. Jasmine permaneceu parada ao lado deles, o olhar frio e zangado. As três Kins olhavam sem saber o que fazer. Finalmente, Merin pigarreou e juntou as patas. — Está claro que a nossa descoberta lhes causou sofrimento e sentimos por isso — ela disse com suavidade. — Comemos muitas folhas e tomamos água no riacho. Agora vamos nos enrodilhar e dormir. Precisamos partir amanhã cedo. Com essa deixa, ela, Bruna e Ailsa se afastaram e desapareceram na escuridão. Logo depois, Barda e Lief terminaram seu trabalho e voltaram para o outro lado do córrego, seguidos por uma silenciosa Jasmine. Quando chegaram junto da fogueira, as três Kins encontravam-se encolhidas e juntas, como um monte de grandes pedras e, aparentemente, dormiam profundamente.
  • 42. Lief enrolou-se no cobertor e também procurou dormir. Contudo, de repente, a floresta pareceu menos acolhedora do que antes. Um véu de tristeza pairava sobre as árvores, e ruídos podiam ser ouvidos na escuridão: o quebrar de galhos e o farfalhar de folhas, como se alguém, ou algo, os estivesse vigiando. Ele não pôde evitar pensar no homem que se chamava Perdição. Apesar do que dissera a Jasmine, ficara abalado com as palavras inscritas na lápide. Perdição os ajudara e os salvara dos Guardas Cinzentos. Isso era um fato. Mas teria tudo sido parte de uma conspiração maior? Uma conspiração para conquistar-lhes a confiança? Para arrancar-lhes o segredo sobre a sua busca? ... o Inimigo é esperto e astuto, e diante de sua ira e cobiça, mil anos são iguais a um piscar de olhos. Teria sido por acaso que Perdição reapareceu em suas vidas? Ou estaria ele obedecendo a ordens? Não tinha importância. "Nós não lhe contamos nada", Lief pensou, puxando o cobertor para mais perto de si. Mas ainda havia dúvidas que o perseguiam, a noite parecia um peso, e a escuridão era cheia de mistério e ameaças. Nesta noite, todos bebemos água no córrego, Lief disse a si mesmo. Não fomos drogados pela Fonte dos Sonhos e acordaremos se o inimigo se aproximar. Kree está vigilante, e Jasmine disse que as árvores acham que estamos em segurança. Mesmo assim, ele demorou a dormir. E, quando conseguiu, sonhou com um túmulo solitário e um homem misterioso e cruel cuja face estava oculta por uma máscara. Uma névoa espessa o rodeava, ora se fechando em volta dele, ora se afastando. Quem estaria atrás da máscara? Seria o homem amigo ou inimigo?
  • 43. Os viajantes puseram-se a caminho outra vez, uma hora antes do amanhecer. Ailsa, Bruna e Merin saltaram do topo da cachoeira, planando através de um estreito vale para depois ganhar altura. Elas voavam muito rápido. As horas passadas em Kinrest pareciam tê-las enchido de novas energias. — É a água da fonte — Ailsa explicou a Lief. — Pela primeira vez, em muitos anos, dormi sem sonhar ou, pelo menos, sem os sonhos especiais que ela proporciona. Nesta manhã, estou me sentindo jovem outra vez. — Eu, também — contou Bruna, que voava ao lado deles. — Embora eu tenha ficado um pouco inquieta durante a noite. Pensei ter sentido a proximidade da tribo e tive a sensação de que eles estavam tentando me dizer algo. É claro que não pude ver ou ouvir nada e logo a impressão se foi. Ela e Ailsa não conversaram mais, mas Lief, ao observar a Montanha do Medo, que se tornava cada vez maior no horizonte, ficou preocupado. Os Kins devem ter tentado arduamente se comunicar com Bruna para que ela sentisse a presença deles. Teriam eles informações que precisavam contar? Notícias alarmantes? Ele fechou os olhos e tentou relaxar. Em breve, descobriria o que a Montanha do Medo reservava para eles. Ao meio-dia, a Montanha assomava diante deles — uma massa vasta e escura que lhes enchia os olhos. A sua superfície recortada estava coberta de
  • 44. rochas cruéis e árvores espinhentas de folhas verde-escuras. Nuvens se juntavam ao redor de seu cume. Uma estrada partia sinuosa do sopé e desaparecia entre a cadeia de picos mais além. A estrada para a Terra das Sombras, Lief imaginou com um frio no estômago. Era impossível ver entre as folhas das árvores densamente agrupadas e, provavelmente, os gnomos já os tinham avistado. Talvez eles estivessem escondidos, apontando flechas mortais, esperando que as três Kins ficassem ao seu alcance. Os olhos de Lief se esforçaram para vislumbrar o brilho de metal ou qualquer sinal de movimento. Ele nada conseguiu ver, mas ainda estava receoso. — Esta é a hora perigosa — Ailsa avisou. — Preciso começar a dificultar a tarefa dos gnomos de fazer pontaria. Aprendi isso há muito tempo, mas é algo que não se esquece. Segure firme! Ela começou a prescrever giros e a mergulhar no ar para, logo em seguida, arremeter para cima e cair em seguida. Ofegante, segurando-se com firmeza, Lief viu que Merin e Bruna seguiam Ailsa e executavam os mesmos movimentos repentinos. E o momento não poderia ter sido mais oportuno. Instantes depois, a primeira flecha disparou na direção deles, não atingindo Ailsa por um triz. Um débil coro de gritos esganiçados veio da montanha. Lief olhou para baixo e sentiu a pele arrepiar. De repente, as rochas ficaram cobertas por criaturas de olhos fundos e pele clara, todas exibindo caretas cruéis e empunhando arcos. Repentinamente, centenas de flechas dispararam na direção deles, como uma chuva mortal. Ailsa voava para baixo, para cima e para a direita desviando-se das flechas, mas sem deixar de se aproximar de seu objetivo. O grupo chegava cada vez mais perto da Montanha, até que tiveram a sensação de que as copas das árvores se apressavam ao encontro deles e que parecia impossível uma das flechas não atingir o alvo. — Todos os gnomos se encontram no alto, perto de sua fortaleza! — Bruna gritou. — Vamos mais para baixo, amigas, para onde as árvores Boolong são mais densas. Eles não vão se arriscar ali.
  • 45. O ar estava tomado pelos gritos altos e estridentes dos gnomos e pelos suaves grunhidos das Kins enquanto elas dirigiam os imensos corpos numa direção ou outra. Lief pôde ouvir o bater do coração de Ailsa e, vagamente, os gritos de Barda e de Jasmine, instando Merin e Bruna a prosseguir. — Cubra o rosto — Ailsa ordenou. E, com um estrondo, ela atingiu a copa das árvores, despedaçando folhas e galhos e derrubando tudo em seu trajeto para o solo. — Lief, você está bem? Com o corpo dolorido, Lief descobriu o rosto e piscou para os olhos escuros e ansiosos de Ailsa. Ele engoliu em seco. — Estou muito bem, obrigado — ele gemeu. — Tão bem quanto se pode estar depois de passar por uma árvore espinhenta. — Não foi minha melhor aterrissagem — Ailsa concordou compreensiva. — Mas aqui não há clareiras entre as árvores Boolong. É por isso que estamos a salvo dos gnomos. Eles não gostam de espinhos. Eu também não gosto muito deles — resmungou Barda, que se encontrava sentado no chão ao lado de Jasmine e inspecionava vários arranhões feios nas costas das mãos. Ele se levantou e foi até um pequeno riacho que borbulhava ali perto e começou a banhar os ferimentos. Merin e Bruna haviam mergulhado entre as densas árvores retorcidas que se projetavam sobre o fio de água e puxavam, alegremente, pequenos frutos escuros de entre as folhas espinhentas, que nasciam em todos os troncos, e mastigavam-nos como se fossem doces. — Então essas são as árvores Boolong — Barda comentou. — Não posso dizer que sejam agradáveis. Nunca vi espinhos como esses. — Eles não nos machucam — Ailsa contou. Ela apanhou algumas das folhas presas ao pêlo aveludado, enfiou-as na boca e mastigou com prazer, apesar dos longos espinhos afiados que nasciam em suas bordas. — Quando vivíamos aqui, não existiam tantas árvores Boolong e havia muitas trilhas sinuosas entre elas — ela continuou com a boca cheia. — Os
  • 46. córregos eram largos e havia clareiras por toda parte. Sem precisar nos alimentar, as árvores cresceram e se espalharam de uma forma maravilhosa. As frutas estão cheias de sementes, que é o que as torna tão saborosas. Acima deles, ouviu-se o ribombar de um trovão. Ailsa parou de mastigar, farejou o ar e correu até onde Merin e Bruna ainda se banqueteavam com os frutos. — Precisamos ir — os amigos a ouviram chamar. — Uma tempestade se aproxima. Encham as bolsas com frutos. Nós os levaremos para casa, para os outros. — Os gnomos devem estar com a pedra — Jasmine deduziu. — Mas não sei como poderemos escalar até a fortaleza deles por esta floresta — ela murmurou. — Se tentarmos, seremos despedaçados. Só estamos sentados aqui agora porque as Kin esmagaram a vegetação e criaram uma clareira quando aterrissaram. — Talvez possamos abrir caminho com fogo — Lief sugeriu. Kree grasnou, Filli chilreou nervosamente, e Jasmine sacudiu a cabeça. — Isso seria perigoso demais — ela opinou. — Nunca poderíamos controlar um incêndio numa floresta grande como esta. E poderíamos ser facilmente queimados. As três Kins, com as bolsas abauladas pelos frutos e galhos repletos de folhas espinhentas, aproximaram-se deles com uma expressão de quem tinha discutido. — Viemos nos despedir — Ailsa disse. — Precisamos partir agora para estarmos longe quando a tempestade cair. Tempestades aqui são violentas e podem durar dias. — Não deveríamos deixar nossos amigos sozinhos tão depressa — Merin exclamou. — Há muita coisa que eles desconhecem. — Merin, prometemos a Crenn que voltaríamos o mais rápido possível — Bruna lembrou, torcendo os bigodes. — Se ficarmos isoladas aqui... — Isso não vai acontecer — Merin exclamou. — Este é nosso lar. É aqui que deveríamos ficar para sempre. Percebi isso quando chegamos — os olhos dela brilhavam de entusiasmo. — Deveríamos ficar e os demais podem se unir a nós. Os
  • 47. gnomos não podem nos fazer mal aqui, na parte mais baixa da montanha. — Merin, nós pousamos com segurança por milagre — Ailsa argumentou, suspirando. — Você quer que nossos amigos corram esse perigo? Quantos você acha que iriam sobreviver? — E mesmo que somente metade conseguisse chegar, — Bruna acrescentou — as árvores Boolong ficariam reduzidas à quantidade normal dentro de poucos anos. As trilhas ficariam abertas novamente, os gnomos voltariam, e a matança recomeçaria. — É cruel — Merin sussurrou de cabeça baixa. — Mas Lief, Barda e Jasmine perceberam que ela sabia que as amigas tinham razão. Acima deles, os trovões rugiam. Ailsa fitou o céu nervosa. — Há uma rocha enorme perto daqui — ela disse depressa. — Eu a vi quando aterrissamos. Se decolarmos de lá, sairemos mais depressa. Vai ser uma tarefa árdua, mas acho que somos fortes o bastante para chegar até lá. Seguidas de Lief, Barda e Jasmine, as três Kins abriram caminho entre as árvores e logo atingiram as rochas de onde se podia ver o céu aberto. Nuvens escuras se aproximavam do sul. — As nuvens irão nos esconder depois que levantarmos vôo — Ailsa disse. — E, se eu estiver certa, os gnomos não vão estar olhando para cá. Eles vão estar com a atenção voltada mais para cima, imaginando que mais de nós irão chegar. — Então, adeus, amigas — Barda se despediu. — Nunca poderemos agradecer o que fizeram por nós. — Não precisam agradecer — Bruna respondeu. — Nós estamos mais felizes por termos visto o nosso lar outra vez, mesmo que por tão pouco tempo. Tudo que pedimos é que vocês tenham cuidado para que possamos nos rever algum dia. As três se inclinaram, fazendo com que suas cabeças tocassem a testa de Lief, Barda e Jasmine. Em seguida, viraram-se, estenderam as asas e lançaram-se para o céu. Durante alguns momentos tensos em que as asas bateram vigorosamente,
  • 48. elas lutaram para não cair de volta no solo. Os companheiros observavam num silêncio ansioso, certos de que, a qualquer momento, os gnomos iriam ouvir o bater de asas, olhar para baixo, atirar... Mas tudo correu bem. Não houve gritos, tampouco flechas sendo lançadas no ar, e finalmente as Kins se estabilizaram e começaram a voar de volta. Os contornos de seus corpos ficaram cada vez mais nebulosos à medida que as nuvens se fechavam ao redor delas. E então elas desapareceram. Barda se virou com um suspiro de alívio e começou a descer os rochedos. Lief estava prestes a segui-lo quando vislumbrou algo com o canto do olho. Ele olhou para o alto e, para sua surpresa, viu um vulto escuro emergindo vacilante das nuvens acima de suas cabeças. — Uma das Kins está retornando — ele sussurrou. — Mas por que está tão alto? Ah, não! Os três amigos olharam para o alto horrorizados e viram a Kin voando às cegas e entrando diretamente na linha de fogo dos gnomos. Não se tratava de Ailsa, Merin ou Bruna. Era... — Prin! — Lief gemeu aterrorizado. A pequena Kin viu a clareira de árvores quebradas criada pela ater- rissagem anterior e voou em sua direção, as asas batendo fracamente. No momento seguinte, ouviu-se um grito estridente e triunfante e uma gargalhada vinda de um ponto mais elevado da Montanha. Algo disparava pelo ar, e Prin começou a cair e a cair, cora uma flecha no peito.
  • 49. Com gritos de horror, Lief, barda e Jasmine desceram das rochas e correram até a clareira. Prin lutava debilmente no chão junto ao córrego. As suas asas encontravam-se dobradas sob o corpo, e ela emitia leves e comoventes sons. Os olhos dela estavam vidrados de dor. A flecha que lhe perfurara o peito já havia caído, e a ferida que deixara era pequena, mas o veneno que a arma carregava agia rapidamente e sua terrível tarefa já estava quase concluída. Os olhos agonizantes de Prin se fecharam. — Criança tola — Barda gemeu. — Jasmine, o... — O néctar — Lief gritou no mesmo instante. Mas Jasmine já arrancava o frasco minúsculo do pescoço e emborcava-o sobre o pequeno peito de Prin. As últimas gotas douradas do néctar dos Lírios da Vida caíram no ferimento. Três gotas, e nada mais. — Se isso não for suficiente, não haverá mais nada que possamos fazer — Jasmine murmurou, sacudindo o frasco para mostrar que estava vazio, rangendo os dentes enraivecida. — Ah, o que eles imaginaram que iriam ganhar abatendo-a? Eles sabiam que ela cairia aqui, onde não poderiam alcançá-la. Eles matam por pura diversão? — Parece que sim — concluiu Barda. — Você não os ouviu rir? Lief aconchegou a cabeça de Prin nos braços, chamando-a de volta à vida como, certa vez, fizera com Barda nas Florestas do Silêncio, como Jasmine fizera com Kree no
  • 50. caminho para o Lago das Lágrimas e como tinham feito com ele na Cidade dos Ratos. O néctar que Jasmine havia colhido, quando ele escorria dos Lírios da Vida em flor há tanto tempo, salvara três vidas. Poderia salvar mais uma? Prin se mexeu. Lief prendeu a respiração quando o pequeno ferimento no peito dela começou a cicatrizar e desaparecer. Ela abriu os olhos, piscou e fitou Lief surpresa. — Eu caí? — ela perguntou. — Prin, o que você está fazendo aqui? — Lief vociferou. Ele a viu encolher e se censurou, percebendo que caíra na armadilha de permitir que o medo e o alívio o deixassem zangado. Barda fizera o mesmo não muito tempo atrás, nas Dunas, e Lief havia decidido que nunca agiria da mesma forma. "Que bela resolução!", pensou aborrecido. — Sinto muito, Prin — ele se desculpou num tom mais suave. — Não tive a intenção de gritar, mas ficamos com muito medo. Você voou até aqui sozinha? — Eu segui vocês — ela disse, fitando-o ainda desconfiada. — Não pude. suportar a idéia de perder a única oportunidade de ver a Montanha. Ela olhou ao redor da clareira, fascinada com o que via. A voz dela ficava mais forte a cada instante. — Dormi perto de vocês em Kinrest e vocês não perceberam — Prin prosseguiu alegremente. — Mas hoje elas voaram tão depressa que fiquei para trás. E eu estava tão cansada... E então vieram as nuvens e eu me perdi. Então... Os olhos dela se arregalaram de terror. Ela agarrou o peito, olhou para baixo e abafou um grito ao constatar que não havia nenhum ferimento. — Pensei que eu tinha sido ferida — ela sussurrou. — Mas acho que foi um sonho. — Não foi sonho — Lief disse gentilmente, depois de fitar os companheiros. — Você se feriu, mas nós tínhamos... uma poção que a curou. — Você não deveria ter vindo, Prin — repreendeu Barda. O que a sua tribo faria se perdesse seu único filhote? — Eu sabia que não me perderia — Prin retrucou confiante. Ela se ergueu e
  • 51. olhou ao seu redor. — Onde está Ailsa? — ela perguntou, balançando para cima e para baixo na ponta dos pés. — E Merin e Bruna? Elas vão ficar surpresas em me ver! Elas não imaginavam que eu podia voar tão longe. Sem esperar pela resposta, ela pulou por cima do córrego e começou a remexer nas árvores do outro lado, chamando. — Prin não se deu conta de que elas partiram — Barda murmurou para Lief e Jasmine. — Está claro que ela esperava voltar para casa com elas. Ela nunca vai encontrar o caminho de volta sozinha. O que vamos fazer com ela? — Ela vai ter que nos acompanhar — Jasmine replicou com calma. — Mas é perigoso demais! — Lief exclamou. — Ela decidiu vir para cá — Jasmine devolveu, dando de ombros. — Ela precisa aceitar as conseqüências de seus atos. Os Kins a mimam e a tratam como um bebê. Mas ela não é mais um bebê. Ela é jovem, mas não é indefesa. E pode ser útil para nós. Jasmine fez um gesto na direção em que Prin dançava no riacho, colhia frutos e folhas das árvores e comia vorazmente. Em instantes, a pequena Kin abriu um amplo espaço entre os espinhos. — Viu só? Ela pode nos ajudar a abrir uma trilha — Jasmine mostrou. — Se seguirmos o riacho... — Está fora de questão — Barda interrompeu com firmeza. — Eu me recuso a ser atormentado por outra criança teimosa que tem mais energia que bom senso. Dois já são suficientes! Lief não ficou ofendido com a brincadeira impiedosa como teria ficado antigamente, mas também não sorriu. A idéia de levar Prin até o topo da Montanha era tão desagradável para ele quanto era para Barda. Trovões ribombavam sobre suas cabeças. A clareira ficara muito escura, e o ar estava abafado e pesado. — Antes de tudo, precisamos encontrar um abrigo — disse Jasmine. — A tempestade... — de repente, ela enrijeceu, a cabeça inclinada para o lado, e ouviu atentamente.
  • 52. — O quê...? — Lief começou devagar. E então ele percebeu que o som do riacho ficara mais alto e aumentava a cada instante. Dentro de segundos, a clareira foi invadida pela água. "Uma inundação?", ele pensou, confuso. Mas ainda não chovera, e o som descia pela montanha. Como...? Então ele se esqueceu de tudo quando viu Prin parada, muito quieta, no meio do riacho, olhando perplexa na direção do som que se aproximava. — Prin! — ele gritou. — Saia daí! Saia daí! Prin soltou um grito agudo e saiu do córrego meio que voando, meio que saltando, para a margem. No mesmo instante, ouviu-se um rugido, e um enorme monstro de formas humanas surgiu saltando e pousou exatamente onde a pequena Kin havia estado, não a apanhando por um triz. Rosnando por ter sido enganado e ter perdido o seu prêmio, a coisa virou-se e ergueu a cabeça horripilante. — Vraal! — Prin gritou aterrorizada, enquanto tropeçava para trás, afastando-se do riacho. — Vraal! O sangue de Lief gelava nas veias quando ele apanhou a espada. As escamas do Vraal, semelhantes às de uma serpente, de um verde desbotado com listras amarelas, emitiam um brilho malévolo na fraca luz da floresta. O monstro era tão alto quanto Barda e duas vezes mais largo, com ombros imensos e curvados, uma cauda que se movimentava como um chicote e braços poderosos que terminavam em garras, lembrando facas recurvadas. Porém, a característica mais tenebrosa do animal era que ele parecia não ter face — apenas uma massa de carne coberta de escamas e caroços, sem olhos, nariz ou boca. E então a criatura rugiu. Amassa pareceu dividir-se ao meio como uma fruta que explodia no chão quando as suas mandíbulas vermelhas se abriram mostrando o interior vermelho. No mesmo instante, os seus olhos se tornaram visíveis — fendas alaranjadas que brilhavam por entre dobras e sulcos protetores. Ela saltou do riacho e pousou na margem com um único movimento. Agora Lief podia ver que, no lugar de pés, a criatura tinha cascos fendidos, que se encontravam firmemente enterrados na terra úmida e macia. Eles pareciam delicados demais para sustentar aquele corpo enorme, mas, quando o monstro
  • 53. rugiu novamente e saltou para a frente, esse detalhe deixou de ter importância para Lief. A criatura era uma máquina assassina, isso era claro como o dia. Ela não deu atenção aos trovões que ribombavam sobre as árvores, e os seus olhos malignos não abandonavam Prin. — Prin! Para baixo! — Barda grunhiu. Vendo-se obrigada a obedecer de imediato por causa do pavor, Prin jogou-se ao chão quando uma bolha voou sobre a sua cabeça na direção do Vraal. Barda havia atirado o projétil com todas as suas forças, mas a criatura saltou para o lado com velocidade surpreendente, e a bolha, sem lhe causar danos, foi esmagada de encontro a uma árvore, o veneno em seu interior emitindo um som sibilante ao atingir o chão. Praguejando, Barda atirou outra bolha, a última de que dispunha, Lief se deu conta aterrorizado. A pontaria do grande homem era boa, mas novamente a criatura saltou para o lado no momento exato, os cascos formando enormes buracos na terra, e pousou com firmeza em outro local longe de Prin, porém mais perto de Barda. Lief viu Prin rastejando para longe e rolando para dentro do riacho. Ela não estaria a salvo ali! Ele quis mandá-la correr, mas não quis que a atenção do monstro se voltasse para ela. Então, ao hesitar, percebeu que o Vraal se esquecera totalmente da pequena Kin. Os seus olhos alaranjados pareciam queimar quando ele se voltou para encarar o homem que tentara matá-lo com o veneno dos Guardas Cinzentos. O homem que agora se encontrava parado à sua frente, espada em punho. A boca sem lábios da criatura abriu-se numa careta horrenda, e ela rugiu ao estirar as garras, desafiando Barda a lutar.
  • 54. Barda se manteve firme em sua posição. Ele sabia que se virar, dar um passo para o lado ou mostrar medo seria fatal. Atrás dele, Lief e Jasmine se entreolharam. A Criatura movia-se como um raio. As bolhas restantes, que se encontravam em poder de Jasmine, seriam inúteis enquanto Barda se mantivesse entre ela e o inimigo. A única esperança era chegar até o outro lado sem ser vista. Sem aviso, o Vraal atacou. Barda ergueu a espada, defendendo-se, e as garras da criatura tocaram o aço reluzente. Barda virou-se e investiu contra o monstro que, desta vez, se defendeu, atingindo a arma com um violento golpe que fez Barda cambalear. Lief saltou para o lado do amigo empunhando a própria espada. O Vraal rosnou com prazer. Dois adversários eram ainda melhor que um só. Ele não lutava há muito tempo e era para isso que nascera. Ele sentira falta de usar suas habilidades, da alegria da batalha e dos gritos dos inimigos derrotados. Agarrar gnomos que gritavam e se retorciam quando se inclinavam no riacho para beber não era esporte. Desviar-se de flechas era fácil demais. Mas aquilo... aquilo aquecia o seu sangue enregelado. Rugindo, ele saltou na direção das duas espadas, afastando-as sem esforço com um safanão, obrigando os dois fracos oponentes que as seguravam a recuar cada vez mais. Por duas vezes, as armas perfuraram a pele espessa, fato que em nada abalou o monstro. Ele tampouco deu atenção ao pássaro preto que
  • 55. mergulhava sobre a sua cabeça, atacava-o com o bico pontiagudo e se afastava para arremeter novamente. O Vraal não receava a dor nem a morte. A sua mente não era direcionada para esses pensamentos ou para qualquer tipo de pensamento, exceto um — que todas as criaturas de outra espécie eram inimigos e deviam ser combatidas e derrotadas. Na Arena das Sombras ou ali, não importava. Em toda a vida, ele perdera somente uma luta, mas aquilo fora há muito tempo, na Terra das Sombras. O Vraal não se lembrava mais da derrota ou da perseguição que provocara o seu abandono, fazendo-o ficar vagando naquele lugar. Ele não mais se lembrava dos Guardas que o haviam acompanhado. Seus ossos corroídos haviam desaparecido sob a terra da floresta há muito tempo. O anel de aço que pendia da parte posterior de seu pescoço era tudo o que restava de sua antiga vida. Isso e a necessidade de matar. Ele viu que o terceiro inimigo, a pequena fêmea com a adaga em uma das mãos e o veneno dos Guardas na outra, movia-se por trás dos amigos e se afastava. Ela ia atacar pelas costas ou pela lateral. Movimentava-se devagar e com cautela. Acreditava que o Vraal, ocupado com seus companheiros, não a notaria. Estava enganada. O monstro ia cuidar dela imediatamente. O Vraal saltou de repente e atacou. Satisfeito, viu o menor dos inimigos cambalear e sentiu o cheiro do sangue fresco e vermelho. O cheiro reavivou vagas lembranças de tempos há muito passados. O sangue dos gnomos era fino e amargo, e lembrava águas paradas. Aquilo era melhor. Muito melhor. A pequena, a fêmea, afastara-se dos demais. Onde estava ela? O Vraal abriu um de seus olhos laterais. Profundamente enterrados em sulcos de pele escamosa acima dos ouvidos, os olhos laterais não enxergavam tão bem quanto os frontais, mas eram úteis. Ah, sim, ali estava ela. Erguendo o braço, fazendo pontaria. Era o momento de livrar-se dela. Um único golpe com a cauda... pronto! Quando a fêmea caiu, o pássaro preto que voava sobre ela grasnou, e o rapaz ferido gritou — uma única palavra. O Vraal conhecia poucas palavras e nunca
  • 56. ouvira aquela, mas ele conhecia o medo e o sofrimento quando os via. A boca do monstro abriu-se num sorriso largo e cruel. — Jasmine! — Lief chamou novamente. Mas sua amiga permanecia deitada onde caíra, silenciosa e imóvel como a morte. Barda soltou um grito de advertência. Lief agachou-se, desviando-se das garras em movimento do Vraal no momento exato, tropeçou e caiu de costas, batendo no chão com força. Com dificuldade, pôs-se de joelhos. Sua cabeça doía, e o sangue escorria do profundo corte em seu braço. Ele mal conseguia segurar a espada. — Lief! — Barda chamou ofegante, saltando à sua frente e fazendo o Vraal recuar enquanto este atacava novamente, com chutes de seus cascos duros e mortais. — Vá! Fuja com o Cinturão! — Não vou deixar você! — Lief retrucou. — E Jasmine... — Faça o que lhe digo! — Barda rugiu ferozmente. — Você está ferido. Não vai ajudar a nenhum de nós. Fuja! Agora! Barda girou a enorme espada e atacou com todas as suas forças, fazendo o monstro recuar um passo e depois outro. Lief começou a rastejar penosamente para longe. Espinhos das árvores Boolong caídas e esmagadas perfuravam-lhe as mãos, ardendo e queimando. Ele ergueu-se com esforço e deu mais alguns passos. E então parou e se virou. Era inútil fugir. Não havia para onde ir, nenhum lugar para se esconder. Quando o Vraal tivesse derrotado Barda, viria atrás dele. Certamente, era melhor morrer lutando do que encolhido atrás das árvores Boolong, prensado entre os espinhos. Um raio iluminou a clareira por um instante e revelou a cena com horrenda clareza. Barda lutava com o imenso e reluzente Vraal, Jasmine permanecia deitada no chão. E Prin... Prin andava com dificuldade no riacho, os olhos arregalados de pavor, as patas dianteiras juntas diante do peito, agarrando uma porção de musgo roxo. Enquanto Lief a observava assombrado, ela estendeu as asas.
  • 57. E então o ar explodiu com o tremendo estrondo de um trovão. A própria terra pareceu tremer. Barda cambaleou, perdeu o equilíbrio e caiu de joelhos. O Vraal saltou, os estreitos olhos alaranjados brilhando. Com um golpe do braço enorme, arrancou a espada das mãos do oponente. O aço reluzente girou no ar uma, duas vezes, e caiu no chão fora de seu alcance, a ponta enterrada no solo. O Vraal grunhiu, preparando-se para o ataque final. — Barda! — Lief chamou apavorado. Ele se aproximava com dificuldade. Mas Prin... de repente, Prin saltou para a frente e para cima direto sobre o Vraal, pousou em sua nuca e lá se agarrou, as patas cheias de musgo envolvendo-me a cabeça, as asas batendo furiosamente. O Vraal rugiu e cambaleou. Suas terríveis garras agitavam-se ao redor da cabeça, agora toda lambuzada com o musgo roxo. Prin saltou para trás, caindo sobre as pernas fortes e andou sem firmeza para o córrego enquanto estendia para a frente as patas ainda sujas de musgo. — Não, Prin! Corra até as árvores! Ele vai vê-la aí! — gritou Lief. Mas ele estava enganado, pois o Vraal não podia ver nada. Ele atirava a cabeça para trás, gritando de raiva e dor. — É o musgo — Prin soluçou, lavando as patas freneticamente. — Nos seus ouvidos, nos seus olhos. É o musgo roxo! O musgo verde cura, o roxo fere. Eles me contaram. Eles me disseram tantas vezes, e é verdade. Raios iluminaram o céu, seguidos de mais trovões ensurdecedores. Então, como se o céu tivesse se partido ao meio, a chuva começou a cair torrencialmente — uma chuva dura e gelada, misturada a granizo. Barda cambaleou e foi até a sua espada aos tropeços. Lief também caiu em si e recomeçou a caminhar. No chão, Jasmine se mexeu ao ouvir os grasnados frenéticos de Kree. Porém, o Vraal estava derrotado. Com um último rugido, ele se virou e, quando Prin saltou para o lado, andou às cegas para o riacho, caiu nele e foi carregado pelas águas. Mais tarde, ensopados, exaustos e enregelados, os companheiros agacharam-se juntos no abrigo de uma pequena caverna formada por uma rocha
  • 58. que se projetava sobre o córrego. O granizo inclemente ainda caía pesadamente do lado de fora. Eles haviam conseguido acender uma fogueira, mas até aquele momento ela não tinha sido suficiente para aquecê-los. No entanto, nenhum deles tinha vontade de se queixar. — Pensei que a nossa hora tinha chegado — Barda murmurou, acendendo uma tocha. — Aquele monstro não teria parado até que todos estivéssemos mortos. Lief, como está o seu braço? — Já está muito melhor — o rapaz respondeu. Ele estava no chão, recostado à mochila. O seu braço encontrava-se envolto com o que parecia uma atadura verde, mas, na verdade, eram pedaços de musgo verde recém-tirados do riacho e presos sobre o ferimento com trepadeiras. Ao ver o efeito do musgo no Vraal e as terríveis bolhas que havia provocado nas patas de Prin, no início Lief não queria que ele fosse usado em sua pele. Prin, contudo, lhe assegurou que o musgo verde tinha surpreendentes poderes de cura e, para prová-los, cobriu a própria pele queimada com o remédio e pediu que Jasmine o prendesse com firmeza. — Muitas vezes ouvi falar sobre o musgo verde e roxo — ela contou, quando Barda ergueu a tocha para iluminar melhor a caverna. — Os gnomos o usam em seus ferimentos, e os Kins que foram atacados pelo Vraal no passado também foram salvos pelo musgo verde. O musgo gruda e queima somente quando é velho e está ensopado de água, quando caiu sob as pedras que beiram o córrego e adquiriu uma cor roxa. Obviamente, não se trata de veneno, como o que os gnomos utilizam nas flechas, e ele apenas prejudica o Vraal quando passado nos olhos e orelhas. E, mesmo assim, ele se recupera rapidamente. Nosso Vraal estará pronto para lutar novamente em poucos dias. Lief fitou-a. Ela sorriu para ele, as patas envoltas em ataduras enfiadas na bolsa quente e aconchegante. — Você foi muito corajosa, Prin — ele cumprimentou. — Você nos salvou. O seu povo ficaria muito orgulhoso de você. — É verdade — Jasmine acrescentou com entusiasmo, enquanto Filli
  • 59. chilreava para demonstrar sua aprovação. — Os Kins sempre usaram o musgo roxo para se defender dos Vraals e dos Guardas Cinzentos que costumavam vir aqui em grande número — Prin contou, endireitando o corpo, claramente orgulhosa de seus conhecimentos. — Minha mãe e Crenn contaram essas histórias muitas vezes. — Por que será que Ailsa, Bruna e Merin não o mostraram para nós? — Jasmine indagou séria. — Elas nunca viram um Vraal ou um Guarda Cinzento em seus sonhos — Prin informou. — Nas manhãs, falamos somente das árvores Boolong. Elas pensam que os gnomos são os únicos perigos existentes na Montanha atualmente. — Talvez seja esse o problema de sonhar — considerou Barda. — Você vê somente o que o sonho mostra e, mesmo assim, apenas por alguns momentos. Por exemplo, o seu povo já lhe contou sobre algum viajante de nossa espécie na Montanha? — Eles dizem que ninguém vem aqui agora. E que as flechas envenenadas mantêm todos afastados. — Parece que nem todos — tornou Barda devagar. Ele virou a cabeça para o fundo da caverna e ergueu a tocha. Todos se viraram para olhar. Lief respirou fundo. Havia palavras desbotadas na pedra clara e lisa. Escritas, Lief tinha certeza, com sangue.
  • 60. QUEM SOU EU? ESTÁ TUDO ESCURO. MAS EU NÃO VOU ME DESESPERAR. DE TRÊS COISAS TENHO CERTEZA: SEI QUE SOU UM HOMEM, SEI ONDE ESTIVE, SEI O QUE DEVO FAZER E, POR ORA, ISSO É SUFICIENTE.
  • 61. Lief, Barda e jasmine olharam fixamente para as palavras rabiscadas na parede da caverna. Todos estavam imaginando o homem solitário e sofrido que, aparentemente, usara o próprio sangue para escrever a mensagem. Por que ele a escrevera? Talvez para manter a sanidade, pensou Lief. Para convencer-se de que, no pesadelo de terror e perplexidade que a sua vida tinha se tornado, algumas coisas eram reais. Que ele próprio era real. — Quem era ele? — Jasmine perguntou baixinho. — Onde ele está agora? — Morto, talvez — arriscou Barda. — Se ele estava ferido, então... — Ele não morreu aqui, pois não há ossos na caverna — Lief interrompeu. — Talvez tenha se recuperado e escapado da Montanha — Lief continuou, desejando vivamente que isso tivesse ocorrido, apesar de improvável. — Ele diz “Sei onde estive" — Jasmine murmurou. — Isso certamente significa que ele veio até aqui de algum outro lugar, não muito antes de escrever a mensagem. — Ele pode ter vindo da Terra das Sombras, como o Vraal — Prin tentou adivinhar. — Isso é impossível. Ninguém escapa da Terra das Sombras — Barda resmungou. Lief recostou-se na mochila, a cabeça girando. Ele sentiu a mão de Jasmine em seu braço e esforçou-se para olhar para ela.
  • 62. — Você perdeu muito sangue, Lief — ela disse numa voz que parecia muito distante. — É por isso que está se sentindo fraco. Não lute contra a vontade de dormir. Barda e eu ficaremos de vigia. Não tenha medo. Lief queria falar, dizer-lhe que ele também cumpriria seu turno de vigilância. E dizer que ela tinha sido nocauteada pelo Vraal e também precisava de descanso, implorar-lhe que se certificasse de que Prin ficasse em segurança. Mas as suas pálpebras não se mantiveram abertas, e a sua boca não conseguiu formular as palavras. Assim, por fim, ele simplesmente fez o que Jasmine pediu e adormeceu. A tempestade prosseguiu violenta durante toda a noite e o dia seguinte. Trovões ribombavam sem cessar, e o granizo se transformou numa chuva gelada. O vento golpeava as árvores Boolong e muitas caíram no chão. Os companheiros nada podiam fazer além de ficar encolhidos no abrigo, comendo, descansando, tomando água do riacho que corria em frente à entrada da caverna e revezando-se em turnos de vigília. Quando a noite caiu outra vez, eles se queixavam da demora em retomar a jornada. O braço de Lief e as patas de Prin estavam cicatrizando depressa, e eles temiam que o Vraal se recuperasse com a mesma rapidez. — Só se ele aprendeu que o musgo verde cura — Prin lembrou, mordiscando um fruto. — E acho isso muito improvável. Minha mãe diz que os Vraal são bons apenas para lutar e matar. — Tivemos muita sorte de ter você por perto quando o Vraal chegou. Mas a sua mãe e as companheiras devem estar preocupadas com você, Prin — Lief disse após alguns instantes. — Elas sabem que estou em segurança — Prin respondeu com suavidade. — Tenho certeza de que nos visitaram em sonhos na noite passada. E agora é noite outra vez — ela continuou, olhando ao redor. — Elas poderiam estar aqui neste exato momento. Haveria lugar para todos, pois, afinal, é apenas um sonho — Prin curvou a cabeça. — Se elas estivessem aqui, eu lhes diria que sinto muito pela dor que causei — ela murmurou. — E diria que sinto muitas saudades de todos. Os demais ficaram em silêncio. Era assustador imaginar que poderiam