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ContraCapa
epois de ter sido pega com o namorado da melhor amiga numa festa,
Annabel Green começa o ano letivo sendo ignorada pelo resto da escola. Mas o que
realmente aconteceu naquela noite ainda é segredo, que ela não se arrisca a contar
para ninguém.
Os problemas de Annabel são explicitados pela recusa da família em admitir
os próprios problemas: a fissura da mãe para que as filhas virem modelos famosas e
Whitney, a irmã do meio, que sofre de anorexia.
Uma amizade com Owen, o DJ da rádio comunitária, que tenta
constantemente ampliar os gostos musicais de Annabel, fará a tímida jovem a
aprender a falar a verdade, doa em quem doer.
Ele tem uma missão quase impossível: fazer com que Annabel "Não pense
nem julgue. Apenas ouça".
"Don't think or judge. Just listen."
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Aba da Frente
Annabel Green aparentemente tem tudo. - amigos legais, uma família acolhedora,
boas notas e uma carreira de modelo de sucesso. Mas tudo de repente vem abaixo.
Ela agora é encarada por todos na escola, a última coisa que ela quer é falar sobre
seu novo segredo.
A família agora parece frágil também. Ela se pergunta o que causou o rigoroso
silêncio entre suas irmãs mais velhas e por que ninguém na família comenta sobre o
distúrbio alimentar da irmã do meio. E, para piorar, Annabel possui o mau hábito de
evitar confrontos, nem que para isso ela precise mentir ou omitir alguma coisa.
Entre proteger a família e encarar a experiência devastadora de revelar seu segredo,
Annabel encontra conforto na improvável amizade com um solitário estudante, DJ e
ex-presidiário que aprendeu a controlar a própria raiva e que auxilia Annabel a ouvir
o próprio coração e se arriscar a falar honestamente.
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Às Vezes é preciso saber
ouvir a si mesmo.
6
Um
Gravei o comercial em abril do ano passado, antes de tudo acontecer e logo me esqueci
dele. Há algumas semanas, ele começou a passar na televisão e, de repente, eu estava
em todo lugar.
Nas televisões penduradas na parede da academia. Naquela televisão na
agência do correio que serve para fazer você esquecer que está na fila há muito
tempo. E agora aqui, na TV do meu quarto, enquanto estou sentada na beira da cama,
estalando meus dedos, tentando me levantar e sair.
"Chegou àquela época do ano, de novo..."
Olhei fixamente para minha imagem na tela, a imagem de como eu era cinco
meses atrás. Tentava encontrar alguma prova visível do que havia acontecido
comigo e estranhei ao me ver através de algo que não fosse um espelho ou uma foto.
Eu nunca me acostumei, mesmo depois de todo esse tempo.
"Jogos de futebol americano", eu dizia na tela. Usava um uniforme de líder
de torcida azul-bebê, o cabelo bem preso em um rabo de cavalo e segurava um
megafone daqueles que ninguém usa mais, onde estava pintada a letra K.
"Sala de estudos." Corte para outra cena em que eu estava com um ar muito
sério, vestindo uma saia pregueada e um bolero marrom. Lembrei que aquela roupa
pinicava e não combinava nada com o tempo, que estava finalmente esquentando.
"E, é claro, vida social." Eu me inclinei para frente olhando fixamente para
mim mesma na tela, vestindo um jeans e uma camiseta brilhante, sentada em uma
bancada, me preparando para falar enquanto um grupo de meninas conversava atrás
de mim.
O diretor, que tinha rosto de bebê e cara de quem tinha acabado de terminar
a faculdade de cinema, me explicou o conceito da sua criação.
— A garota que tem tudo — ele dizia movimentando as mãos de maneira
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firme e circular, como se apenas aquilo bastasse para entender algo tão amplo, para
não dizer vago. Era claro que isso queria dizer ter um megafone, dois neurônios e
um grande grupo de amigos. Foquei pensando na ironia implícita dessa última parte,
mas minha versão da tela já estava seguindo em frente.
"Tudo acontece neste ano", eu disse. Agora eu usava um vestido cor-de-rosa,
com uma faixa de miss que dizia RAINHA DO BAILE, quando um rapaz de
smoking se aproximou de mim e me ofereceu o braço. Eu aceitei dando um largo
sorriso. O garoto estudava na universidade da cidade e ficou na dele durante toda a
filmagem. Porém, depois, pediu meu telefone quando eu estava indo embora. Como
eu poderia ter esquecido isso?
"Os melhores momentos", dizia eu na tela. "As melhores lembranças. Você
encontrará a roupa perfeita para cada ocasião na Loja de Departamentos Koft."
A câmera se aproxima cada vez mais e as outras coisas sumiam até ser
possível enxergar apenas o meu rosto. Isso foi antes daquela noite, antes de tudo o
que aconteceu com Sophie, antes do longo e solitário verão cheio de segredos e
silêncio. Eu estava péssima, mas essa garota na TV? Ah, ela estava bem. Dava para
perceber pelo jeito que ela olhava para mim e para o mundo, cheia de confiança ao
abrir a boca para falar novamente.
"Faça seu Ano Novo ser melhor ainda", ela disse, e eu respirei fundo
antecipadamente, a próxima frase foi dita, a última frase, aquela que era verdade.
"Está na hora de voltar para a escola".
A cena congelou, o logo da Kopf apareceu abaixo do meu rosto. Em pouco
tempo, a imagem da tela mudaria para um comercial de waffle ou previsão do
tempo, um novo assunto a cada quinze segundos, ininterruptamente, mas não
esperei. Peguei o controle remoto, desliguei minha imagem na TV e fui para a porta.
Tive três meses para me preparar para ver Sophie. Porém, na hora, percebi
que ainda não estava pronta.
Eu estava no estacionamento antes de o sinal tocar, tentando reunir forças
para sair do carro e deixar o ano começar oficialmente. Enquanto as pessoas
passavam por mim em direção ao pátio, conversando e rindo, eu repassava todos os
"talvez": talvez ela já tenha superado tudo. Talvez outra coisa tenha acontecido
durante o verão para substituir nosso pequeno drama. Talvez não tenha sido tão
ruim quanto eu pensava. Sei que eram possibilidades remotas, mas ainda eram
possibilidades.
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Fiquei sentada lá até o último momento e finalmente tirei as chaves da
ignição. Ao me virar para a janela para abrir a porta do carro, dei de cara com
Sophie.
Ficamos nos olhando por um segundo e imediatamente percebi algumas
mudanças: seu cabelo enrolado e escuro estava mais curto, seus brincos eram novos.
Ela estava mais magra, se é que isso era possível, e tinha parado de usar delineador
forte nos olhos como fazia no verão anterior. Pelo jeito estava curtindo um estilo
mais natural, com tons de rosa e bronze. Ao ver Sophie me olhando, fiquei me
perguntando se eu tinha mudado também. Enquanto eu pensava, Sophie abriu sua
boca bem desenhada, apertou os olhos e proferiu o veredicto pelo qual esperei
durante todo o verão:
— Vadia.
O vidro que estava entre nós não abafou o som nem a reação das pessoas que
passavam. Vi uma garota que foi da minha classe no ano passado me olhar com
ódio, enquanto outra que eu não conhecia estava morrendo de rir.
Sophie, no entanto, não esboçou nenhum tipo de expressão ao me dar as
costas, colocando sua mochila sobre um ombro e andando em direção ao pátio.
Senti meu rosto queimar e percebi que as pessoas me olhavam. Eu não estava
preparada para isso e provavelmente nunca estaria; afinal de contas, o começo
daquele ano, entre outras coisas, não podia mais ser adiado. Não tive outra escolha a
não ser sair do carro sob os olhares de todos e começar o ano séria e sozinha. E foi
exatamente o que fiz.
Conheci Sophie quatro anos antes, no começo do verão depois da sexta série.
Eu estava na piscina comunitária do bairro, parada na fila da lanchonete com duas
notas dobradas para comprar uma Coca-Cola, quando percebi que alguém parou
atrás de mim. Virei para trás e lá estava uma garota que eu não conhecia. Ela usava
um biquíni laranja bem pequeno e sandálias de plataforma combinando. Era morena
e seu cabelo, escuro e enrolado bem preso em um rabo de cavalo. No rosto, óculos
escuros e uma expressão de tédio e impaciência. Como em nossa vizinhança todos se
conhecem, parecia que ela tinha caído do céu. Eu não queria ficar encarando a menina.
Mas parece que foi exatamente isso o que fiz.
— O que foi? — ela perguntou. Eu me vi refletida na lente dos seus
óculos, pequena e fora de perspectiva. — O que você está olhando?
Senti meu rosto ficar vermelho, como acontecia toda vez que alguém
levantava a voz para mim. Eu era muito sensível a tons de voz, tanto que até aqueles
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programas de TV sobre tribunais e julgamentos me deixavam nervosa. Sempre tinha
que mudar de canal quando o juiz levantava a voz para alguém.
— Nada — respondi e dei as costas para ela.
Logo depois, o menino do Ensino Médio que trabalhava na lanchonete
avisou, com um olhar cansado, que era a minha vez. Enquanto ele servia a minha
bebida eu podia sentir a garota atrás de mim. A presença dela era como um peso
enquanto eu esticava as duas notas em cima do balcão de vidro, me concentrando em
alisar cada nota. Depois de pagar, saí de lá, olhando para o cimento esburacado, em
direção ao local onde minha melhor amiga, Clarice Reynolds, me esperava.
— A Whitney pediu para eu te dizer que ela foi pra casa — disse Clarke,
assoando o nariz enquanto eu colocava a Coca-Cola com todo o cuidado ao lado da
minha cadeira. — Eu disse a ela que a gente podia voltar a pé.
— Beleza — respondi. Minha irmã Whitney tinha acabado de tirar a carteira de
motorista, o que queria dizer que ela tinha que me dar carona para todo lugar. No
entanto, voltar para casa continuava sendo problema meu, não importava se era da
piscina, que nem era tão longe, ou do shopping, que ficava em outra cidade.
Whitney era do tipo solitária, mesmo nessas ocasiões. Qualquer área que a
rodeava era seu espaço pessoal e qualquer pessoa se tornava um invasor apenas pelo
fato de existir.
Só depois de me sentar é que me permiti olhar novamente para a garota do
biquíni laranja. Ela tinha saído da lanchonete e estava de pé no outro lado da
piscina, de toalha no ombro, uma bebida na mão, observando a disposição dos
bancos e cadeiras de praia.
— Aqui, ó — disse Clarke, me estendendo o baralho. — Você dá as cartas.
Clarke é minha melhor amiga desde que tínhamos seis anos. Havia muitas
crianças na vizinhança, mas por alguma razão a maioria delas era adolescente, como as
minhas irmãs, ou tinham menos de quatro anos, resultado de um baby-boom de alguns
anos antes. Quando a família de Clarke se mudou de Washington, nossas mães se
conheceram em uma reunião da associação de moradores. Assim que ficaram
sabendo que nós éramos da mesma idade, elas nos juntaram, e assim ficamos desde
então.
Clarke nasceu na China e os Reynolds a adotaram quando ela tinha seis meses
de idade. Nós éramos da mesma altura, mas era só isso que tínhamos em comum. Eu
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tenho olhos azuis e sou loira, uma típica Greene, enquanto os cabelos dela são os mais
pretos e brilhantes que já vi, e seus olhos são de um castanho quase preto. Enquanto eu
era tímida e sempre queria agradar, Clarke era mais séria; o seu jeito de falar, a sua
personalidade e aparência, tudo era bem pensado e medido. Eu fazia trabalhos como
modelo desde pequena, assim como as minhas irmãs mais velhas; Clarke era uma
moleca, a melhor jogadora de futebol da nossa quadra, sem falar de ser um ás nas
cartas, especialmente em gin rummy1
no qual ela passou o verão inteiro ganhando de
mim.
— Posso dar um gole na sua Coca? — ela me perguntou. E espirrou. —
Está tão calor aqui!
Concordei, estendendo o braço para pegar o copo. Clarke sofria com alergias
durante o ano todo, mas no verão piorava. Ela estava sempre com o nariz entupido ou
escorrendo de abril a outubro, e nem enormes quantidades de injeções ou remédio
funcionavam. Há muito tempo tinha me acostumado com sua voz um pouco fanha,
assim como a presença onipresente da caixa de lenços no seu bolso ou na sua mão.
Havia uma hierarquia organizada para se sentar ao redor da nossa piscina: os
salva-vidas tinham as mesas de piquenique próximas à lanchonete, enquanto as mães
e crianças pequenas ficavam na parte rasa e na piscina dos bebês (ou do xixi). Clarke
e eu preferíamos a área que tinha um pouco de sombra atrás dos escorregadores,
enquanto os caras mais populares da escola — como Chris Pennington, três anos mais
velho do que eu e sem dúvida o cara mais lindo do bairro e, eu pensava na época,
provavelmente do mundo inteiro — ficavam perto do trampolim. O melhor lugar era
a fileira de cadeiras que ficava entre a lanchonete e a piscina olímpica, ocupado
normalmente pelas meninas mais populares. Era lá onde a minha irmã mais velha,
Kirsten, estava deitada em uma espreguiçadeira, usando um biquíni cor-de-rosa e se
abanando com uma revista Glamour.
Assim que dei as cartas, me surpreendi ao ver que a garota de laranja andava
em direção a onde Kirsten estava levando uma cadeira. Molly Clayton, melhor amiga
de Kirsten, que estava do outro lado, apontou a garota para ela e depois balançou a
cabeça como quem não estava acreditando naquilo; Kirsten olhou para cima, deu de
ombros e se deitou novamente, colocando o braço sobre a cabeça.
— Annabel? — Clarke já tinha pegado suas cartas e estava impaciente para
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Jogo de cartas cujo objetivo é fazer o maior número de combinações de cartas o mais
rapidamente possível. As combinações consistem de grupos de três ou mais cartas de mesmo valor
ou seqüências de três ou mais cartas do mesmo naipe.
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começar a ganhar de mim. — É a sua vez.
— Ah — eu disse, me virando para ela. — É verdade.
Na tarde seguinte, a garota voltou dessa vez usando um maiô prateado.
Quando cheguei, ela já estava instalada na mesma cadeira que minha irmã ocupava no
dia anterior, toalha esticada, garrafa de água ao lado, revista no colo. Clarke estava na
aula de tênis, então eu estava só quando Kirsten e as amigas dela chegaram, mais ou
menos uma hora depois. Elas chegaram fazendo muito barulho, como de costume,
batendo os saltos das sandálias no cimento. Quando chegaram ao local de costume e
viram a garota sentada lá, as meninas começaram a andar mais devagar e depois se
olharam. Molly Clayton parecia irritada, mas Kirsten simplesmente se sentou a umas
quatro cadeiras de distância.
Nos dias que se seguiram, observei as tentativas teimosas da menina nova
para se infiltrar no grupo da minha irmã. Tudo tinha começado com uma simples
cadeira, mas, no terceiro dia, a garota já estava seguindo as meninas até a
lanchonete. Na tarde seguinte, ela entrou na água poucos segundos depois delas e
ficou perto enquanto o grupo conversava e espirrava água umas nas outras. No fim de
semana, ela estava sempre atrás das meninas, uma verdadeira sombra viva.
Aquilo com certeza era irritante. Vi Molly fuzilando a garota com uns olhares
de poucos amigos, até Kirsten tinha pedido a ela para se afastar um pouco, por
favor, quando a menina tinha chegado muito perto. Mas a garota parecia não se
importar. Ao contrário, se esforçava mais, como se não importasse o que minha irmã
e suas amigas falassem desde que fosse com ela e ponto final.
— Então — disse a minha mãe uma noite durante o jantar — fiquei
sabendo que uma família nova se mudou para a casa que era dos Daughtry,
em Sycamore.
— Os Daughtry se mudaram? - perguntou meu pai. Minha mãe
balançou a cabeça, concordando.
— Em junho. Foram para Toledo. Você se lembra? Meu pai
pensou um pouco.
— É claro — disse finalmente, fazendo que sim com a cabeça. — Toledo.
—Também fiquei sabendo — continuou minha mãe, passando a tigela de
macarrão para Whitney, que imediatamente a passou para mim — que eles têm uma
filha da sua idade, Annabel. Acho que a vi um dia desses quando fui à casa da
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Margie.
— Ah, é? — eu disse.
Ela balançou a cabeça positivamente.
— Ela tem o cabelo preto, é um pouco mais alta que você. Talvez você já
a tenha visto por aí.
Pensei um pouco e respondi:
— Não sei...
— Então é ela! — disse Kirsten, de repente, jogando o garfo na mesa de
qualquer jeito. — É a louca que persegue a gente na piscina. Eu sabia que ela só
podia ser mais nova que a gente.
— Como? — Agora era meu pai quem prestava atenção. — Tem uma louca
perseguindo vocês na piscina?
— Eu espero que não — disse minha mãe em um tom preocupado.
—Ela não é louca de verdade — disse Kirsten. — E só uma garota que fica
sempre perto da gente. Dá até arrepio. Por exemplo, ela senta perto da gente, segue
a gente para todo lado e não fala nada. E está sempre tentando ouvir nossas
conversas. Eu já disse pra ela não encher, mas a menina simplesmente me ignora.
Não acredito que ela tenha só doze anos. Isso piora tudo.
— Que drama! — resmungou Whitney, pegando uma folha de alface com seu
garfo.
Whitney estava certa, é claro. Kirsten era a nossa rainha do drama. Suas
emoções estavam sempre à flor da pele, e sua boca, a todo vapor. Kirsten nunca
parava de falar, mesmo quando percebia que ninguém estava prestando atenção.
Whitney, por outro lado, era quieta, o que significava que as poucas palavras dela
sempre tinham muito mais significado.
— Kirsten — disse minha mãe — seja gentil.
— Mãe, eu já tentei. Se você visse a menina, me entenderia. É estranha.
Minha mãe tomou um pequeno gole de vinho.
— Mudar para um lugar novo é difícil, você sabe. Talvez ela não saiba como
fazer amigos...
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— Isso é óbvio — respondeu Kirsten.
— O que quer dizer que talvez você tenha que fazer um esforço também —
concluiu minha mãe.
— Ela tem doze anos — disse Kirsten, como fosse equivalente a ter uma
doença contagiosa ou algo assim.
— A sua irmã também tem — observou meu pai. Kirsten
pegou o garfo e apontou para mim.
— Exatamente — ela disse.
Whitney bufou ao meu lado. Mas eu já era o novo alvo da atenção da minha
mãe.
— Bem, Annabel — ela disse — talvez você devesse fazer um pequeno
esforço e pelo menos cumprimentar essa menina.
Eu não contei à minha mãe que já tinha conhecido essa garota, princi-
palmente porque ela teria ficado horrorizada com a grosseria da menina. Não que
isso mudasse as expectativas da minha mãe com relação ao meu comportamento.
Minha mãe era extremamente gentil e educada, e esperava o mesmo de nós em
qualquer circunstância. Diplomacia e ética deveriam estar sempre presentes em
nossas vidas.
— Tá certo — eu disse. — Vou ver.
— Boa menina — disse ela. E eu esperava que tudo parasse por ali.
No entanto, na tarde seguinte, quando Clarke e eu chegamos à piscina,
Kirsten já estava lá, deitada com Molly de um lado e a garota nova do outro. Eu tentei
ignorar a situação enquanto nos arrumávamos no nosso canto, mas de vez em
quando dava uma olhada para ver se Kirsten me observava. Logo depois, ela levantou,
me olhou e andou até a lanchonete. A garota nova foi atrás imediatamente e eu sabia o
que tinha que fazer.
— Já volto — eu disse para Clarke, que lia um livro de Stephen King e
assoava o nariz.
— Beleza — ela disse.
Eu me levantei e passei pelo trampolim, cruzando os braços ao ver Chris
Pennington. Ele estava deitado na cadeira de praia com uma toalha cobrindo o rosto,
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enquanto dois amigos dele lutavam no deck da piscina. Mas agora, em vez de lançar
uns olhares para ele — uma das minhas principais atividades cerebrais na piscina
aquele verão, além de nadar e perder no baralho — provavelmente eu seria maltratada
de novo, tudo porque minha mãe insistia em criar a gente como boas samaritanas do
bairro. Que ótimo.
Eu poderia ter contado a Kirsten sobre o meu primeiro contato com essa
garota, mas achei melhor não. Diferentemente de mim, ela não fugia de confrontos
— ao contrário, gostava de enfrentar os outros e sempre ganhava. Ela era o pavio
curto da família e eu já tinha perdido a conta de quantas vezes ficara em um canto
encolhida e morrendo de vergonha enquanto ela dizia com todas as letras o que não
tinha gostado para vendedores de loja, motoristas ou ex-namorados. Eu a amava, mas
ela me deixava muito nervosa.
Whitney, por outro lado, era de uma fúria silenciosa. Ela nunca dizia que
estava brava, mas dava para saber pela expressão do seu rosto, do seu olhar
fulminante, além daqueles suspiros profundos, que podiam ser tão agressivos quanto
as palavras e que faziam qualquer um preferir que ela falasse de uma vez.
Quando ela e Kirsten brigavam — e isso sempre acontecia, afinal elas só
tinham dois anos de diferença — a primeira impressão que se tinha era de uma
discussão de uma pessoa só, pois tudo o que se ouvia era Kirsten e sua lista sem fim
de acusações e ofensas. Mas era só prestar um pouco mais de atenção para perceber
o silêncio pesado de Whitney, assim como suas poucas respostas que eram muito
mais mal-educadas e diretas do que o turbilhão de comentários redundantes da
Kirsten.
Uma aberta, outra fechada. Não é à toa que a primeira imagem que me vinha
à cabeça quando eu pensava nas minhas irmãs era a de uma porta. Kirsten era a porta
da frente, pela qual ela vivia entrando e saindo, falando pelos cotovelos, seguida de
suas amigas barulhentas. Whitney era a porta do quarto, que ela preferia manter
sempre fechada entre ela e todo mundo.
Eu? Eu me sentia um meio-termo entre minhas irmãs e suas personalidades
fortes, a personificação de uma área grande e nebulosa que as separava. Não era
valente nem dizia tudo o que pensava, mas também não era silenciosa e calculista.
Não fazia a menor idéia de como alguém me descreveria ou o que pensaria ao ouvir
meu nome. Eu era só a Annabel.
―Minha mãe, que não gostava nem um pouco de conflitos,‖ odiava ver
minhas irmãs brigarem.
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"Por que vocês não conseguem ser gentis?", ela pedia. E minhas irmãs
somente reviravam os olhos, mas eu levei a sério a mensagem: que ser gentil era o
ideal, a única atitude que fazia com que as pessoas não falassem tão alto e nem
fossem tão silenciosas a ponto de assustarem as outras. Bastava ser bom e gentil
para não precisar se preocupar com discussões. Mas ser gentil não é tão fácil quanto
parece, principalmente quando o resto do mundo pode ser muito mau.
Quando cheguei à lanchonete, Kirsten tinha desaparecido (é claro), mas a
garota ainda estava lá, esperando que o cara atrás do balcão lhe desse uma barra de
chocolate. "Vamos lá", pensei ao andar em sua direção. "Isso não vai dar em nada
mesmo."
— Oi — eu disse. Ela apenas me olhou com uma expressão indecifrável.
— Bom... Meu nome é Annabel. Você acabou de se mudar para cá, não é?
A garota não disse nada por um tempo que parecia não ter mais fim. Vi
Kirsten saindo do banheiro feminino e parar ao ver a gente conversando.
— Eu — continuei ainda mais sem graça. — Eu, hã, acho que estamos
no mesmo ano na escola.
A garota baixou os óculos de sol até a ponta do nariz.
— E? — ela perguntou com a mesma voz aguda e irônica de quando falou
comigo pela primeira vez.
— Eu só pensei — disse — você sabe, como a gente tem a mesma idade, que
talvez pudéssemos fazer alguma coisa juntas. Sei lá.
Outra pausa. Até a garota dizer como se tentasse entender tudo muito
direitinho:
— Você quer que a gente saia junto. Eu e você. Certo?
Ela fez isso parecer tão ridículo que eu imediatamente comecei a mudar de
idéia.
— Quer dizer, você não precisa se não quiser — eu lhe disse. — Eu só...
— Não — ela me cortou. Depois Jogou a cabeça para trás e ainda deu
risada. — De jeito nenhum.
Acontece que tudo teria ficado por isso mesmo se eu fosse a única pessoa ali.
Eu teria dado meia-volta, morrendo de vergonha, e ido encontrar a Clarke, ponto
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final. Mas eu não estava sozinha.
— Espera aí — disse Kirsten em voz alta. — O que você acabou de dizer?
A garota se virou. Quando ela viu a minha irmã, arregalou os olhos.
— O que foi? — ela perguntou, e eu não pude deixar de perceber que essa
frase, por coincidência a primeira frase que ela tinha me dito, soava diferente agora.
— Eu perguntei — repetiu Kirsten com sua voz cortante — o que você
acabou de falar para ela?
"Droga!", pensei.
— Nada — respondeu a garota. — Eu só...
— Ela é minha irmã — disse Kirsten, apontando para mim — e você acabou
de ser uma verdadeira vadia com ela.
Eu já estava completamente sem graça e vermelha de vergonha. Kirsten, por
outro lado, já colocou a mão na cintura, o que queria dizer que ela só estava
começando.
— Eu não fui uma vadia — disse a garota, tirando os óculos de sol. — Eu
só...
— Você foi e sabe disso — disse Kirsten, cortando a menina. — Então, pode
parar de negar. E também pare de ficar me seguindo por aí, entendeu? Você me dá
arrepios. Vem, Annabel.
Eu congelei só de olhar para a cara da garota. Sem os óculos de sol e com
aquela expressão de chocada, ela de repente pareceu mesmo ter doze anos, e ficou
encarando a gente quando a Kirsten me pegou pelo pulso e me arrastou de volta para
onde ela e as amigas estavam sentadas.
— Inacreditável — ela não parava de repetir, e, quando olhei para o outro lado
da piscina, vi Clarke me olhando com uma cara de ponto de interrogação, quando
Kirsten me fez sentar na cadeira dela. Molly se levantou, apertando os olhos por
causa do sol e amarrando o seu biquíni.
— O que aconteceu? — ela perguntou, e, enquanto Kirsten começou a
contar o acontecido, olhei para a lanchonete, mas a garota tinha ido embora. Então a vi
através da cerca atrás de mim, atravessando o estacionamento, descalça e
cabisbaixa/ela tinha deixado todas as suas coisas na cadeira ao meu lado: uma
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toalha, as sandálias, uma sacola com uma revista, uma carteira e uma escova de
cabelo cor-de-rosa. Fiquei esperando ela se dar conta disso e voltar, o que não
aconteceu.
As coisas dela ficaram lá a tarde toda. Depois, voltei a me sentar com Clarke
e contei tudo para ela. Mais tarde, jogamos várias partidas de baralho e nadamos até
nossos dedos ficarem enrugados. Depois, Kirsten e Molly foram embora e outras
pessoas sentaram nas suas cadeiras, até que o salva-vidas finalmente apitou
anunciando que era hora de fechar. Clarke e eu pegamos nossas coisas e andamos
pela borda da piscina, queimadas de sol, com fome e prontas para ir para casa.
Eu sabia que qualquer coisa que tivesse a ver com aquela garota não era
problema meu. Afinal, ela tinha sido mal-educada comigo duas vezes e, portanto,
não merecia minha pena, nem minha ajuda. Mas ao passarmos pela cadeira, Clarke
parou.
— Não podemos deixar as coisas dela aí — ela disse, inclinando-se para
pegar as sandálias e as outras coisas e colocá-las na sacola. — E ela mora
no nosso caminho para casa.
Eu poderia ter discordado, mas pensei de novo na menina atravessando o
estacionamento descalça e sozinha. Então, peguei a toalha da cadeira e a coloquei
junto da minha.
— É — eu disse. — Tá bom.
Mesmo assim, ao chegarmos à antiga casa dos Daughtry, fiquei muito
aliviada ao ver que todas as janelas estavam fechadas e que não tinha nenhum carro
na entrada. Isso queria dizer que poderíamos apenas deixar as coisas da garota ali e
acabar com aquilo. Mas quando Clarke se inclinou para colocar a sacola na porta da
frente, a porta se abriu, e lá estava ela.
A garota usava um short desfiado e uma camiseta vermelha, o cabelo preso
em um rabo de cavalo. Sem óculos de sol. Sem sandálias de plataforma. Ao ver a
gente, ela ficou vermelha de vergonha.
— Oi — disse Clarke, depois de um silêncio bastante constrangedor.
Então, ela espirrou antes de acrescentar: — Nós trouxemos as suas coisas.
A garota ficou olhando por um segundo, como se não entendesse o que ela
dizia. O que era bem possível, com o nariz sempre entupido da Clarke. Eu me
inclinei para pegar a sacola e a estendi para a menina.
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— Você esqueceu suas coisas — eu disse.
Ela olhou para a sacola, depois para mim com uma cara desconfiada.
— Ah — ela disse, pegando tudo. — Valeu.
Atrás de nós vários moleques passaram de bicicleta falando muito alto.
Depois, o silêncio voltou.
— Querida? — eu escutei uma voz vindo do final do corredor escuro atrás
dela. — Tem alguém aí?
— Está tudo bem — ela disse, virando a cabeça para o lado. Depois, deu um
passo à frente, fechando a porta atrás de si, e saiu para a varanda. Ela tentou
disfarçar, mas pude ver seus olhos vermelhos e inchados — ela tinha chorado. E, de
repente, como muitas outras vezes, ouvi na minha cabeça a voz da minha mãe: É
difícil se mudar para um lugar novo. Talvez ela não saiba fazer amizade.
— Olha — eu disse — sobre o que aconteceu. Minha irmã...
— Tá tudo bem — ela disse, me interrompendo. — Eu estou bem — mas, ao
dizer isso, sua voz engasgou um pouco e ela virou de costas para nós, colocando a
mão sobre a boca. Eu fiquei lá sem ter a menor idéia do que fazer, mas, ao olhar
para Clarke, vi que ela já estava procurando no bolso do short seu inseparável pacote
de lenços. Então, tirou um deles e ofereceu para a garota. Um segundo depois, ela
pegou o lenço em silêncio e secou o rosto.
— Meu nome é Clarke — disse ela. — E essa é Annabel.
Nos anos que seguiram, era desse momento que eu sempre me lembrava. No
verão depois do sexto ano, eu e Clarke paradas olhando para as costas daquela garota.
Talvez tudo tivesse sido diferente para mim, para todas nós, se alguma outra coisa
tivesse acontecido exatamente naquele momento que, na época, parecia ser igual a
todos os outros, fugaz e insignificante. A garota deu meia-volta, sem chorar — e
incrivelmente recuperada — e encarou a nós duas.
— Oi — ela disse. — Meu nome é Sophie.
19
Dois
— Sophie!
Finalmente era hora do almoço, o que significava que faltava meio dia para o
primeiro dia de aula terminar. Ao meu redor, o corredor estava lotado e barulhento,
mas, mesmo com muitas portas de armários batendo e o zumbido de vários avisos no
alto-falante, ainda dava para ouvir claramente a voz de Emily Shuster.
Olhei pelo corredor até a escadaria principal e percebi que ela vinha na minha
direção - vi o seu cabelo vermelho balançando na multidão. Quando ela finalmente
apareceu, a meio metro de onde eu estava, nossos olhares se encontraram por um
instante. Depois continuou andando pelo corredor até onde Sophie esperava por ela.
Como Emily tinha sido minha melhor amiga, pensei que talvez, apenas
talvez, ela quisesse continuar nossa amizade. Mas, pelo jeito, não. Elas já tinham
traçado os limites — e eu tinha ficado de fora.
Eu tinha outros amigos, é claro. Colegas de classe, pessoas que conheci na
agência de modelos Lakerview por causa dos trabalhos que fiz. No entanto, estava na
cara que meu auto-isolamento durante o verão tinha surtido mais efeito do que eu
pensava. Depois de tudo o que tinha acontecido, eu me excluí completamente,
imaginando que seria mais seguro do que correr o risco de ser julgada pelas pessoas.
Não atendi ao telefone e evitei cumprimentar as pessoas no shopping ou no cinema.
Como não queria falar sobre o que tinha acontecido, achei melhor não falar nada.
No entanto, o resultado era que agora, toda manhã, quando eu parava para
cumprimentar garotas que conhecia ou me juntava a um grupinho conversando, sentia
um momento de frieza e distância que durava até eu dar uma desculpa e me afastar.
Em maio, tudo o que eu queria era ficar sozinha. Agora meu desejo tinha sido
realizado.
Minha ligação com Sophie não ajudava, é claro. Ser amiga dela tinha me
transformado em cúmplice de todos os seus crimes sociais — que eram muitos — e
de tudo que ela tinha aprontado. Portanto, a maioria dos alunos não estava exatamente
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morrendo de vontade de me dar um abraço. Para as garotas que Sophie xingava ou
ignorava, enquanto eu assistia a tudo sem fazer nada, provar desse veneno foi mais
do que merecido. Se Sophie não podia ser deixada de lado, eu era a segunda opção.
Fui até o saguão principal e parei em frente à longa fileira de portas de vidro
que davam vista para o pátio. Do lado de fora, as várias panelinhas — atletas, o
pessoal da arte, os do movimento estudantil, os maloqueiros — estavam espalhadas
pelo pátio da escola. Todos tinham um lugar, e por um tempo eu sabia bem o meu: o
grande banco de madeira à direita da entrada principal, onde Sophie e Emily estavam
sentadas. E agora aqui estava eu, me perguntando se não seria melhor ficar aqui
dentro.
— Chegou àquela época do ano de novo — alguém atrás de mim falou alto
com uma voz esganiçada. Houve uma explosão de gargalhadas e, quando me virei, vi
um grupo de jogadores de futebol americano parados na frente da secretaria. O carinha
alto de dread imitava o jeito com que ofereci meu braço ao garoto do comercial,
enquanto os outros riam. Eu sabia que eles estavam só fazendo palhaçada. Talvez em
algum outro momento eu não tivesse me importado, mas senti meu rosto ficar
vermelho e logo fui lá para fora.
À minha direita havia um muro enorme, então andei em direção a ele,
procurando um lugar, qualquer lugar, para sentar. Havia somente duas pessoas
sentadas no muro e, entre elas, uma distância que era suficiente para deixar claro que
não estavam juntas. Uma pessoa era Clarke Reynolds. A outra era Owen Armstrong.
Como eu não tinha muita escolha de lugar nem de companhia, me sentei entre eles.
Senti os tijolos quentes nas minhas coxas enquanto tirava do saquinho o
almoço que minha mãe tinha preparado para mim naquela manhã: um sanduíche de
peito de peru, água e uma nectarina. Abri a garrafa de água e dei um grande gole
antes de ter coragem de olhar em volta. Assim que avistei o banco, percebi que
Sophie estava me observando. Quando nossos olhares se encontraram, ela me olhou
com ar sério, balançando a cabeça, e depois virou para o outro lado.
"Patética", eu a ouvi dizer em minha cabeça e logo afastei esse pensamento.
E não era uma questão de eu querer me sentar com ela. Bem, mas também nunca
esperei me ver em companhia de Clarke, de um lado, e do garoto mais bravo da
escola, do outro.
Pelo menos eu conhecia Clarke, ou já tinha conhecido. Mas tudo o que eu sabia
sobre Owen Armstrong me foi contado por outras pessoas: que ele era alto, musculoso,
com ombros largos e bíceps grandes. E ele sempre usava botas de solado grosso de
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borracha que o deixavam ainda mais alto e seus passos ainda mais pesados. Seu
cabelo era escuro e curto, e nunca o vi sem seu iPod e fones de ouvido, que ele usava
dentro e fora da classe, com ou sem aula. E embora eu soubesse que ele devia ter
amigos, nunca o vi falar com ninguém.
E teve também a briga. Aconteceu em janeiro passado, no estacionamento,
antes do primeiro sinal. Eu tinha acabado de sair do meu carro quando Owen, de
mochila no ombro e fones de ouvido, como sempre, andava em direção ao prédio
principal. No caminho, passou por Ronnie Waterman, que estava encostado em seu
carro conversando com os amigos. Toda escola tem um cara igual ao Ronnie — um
babaca, famoso por fazer pessoas tropeçarem no corredor, o tipo de cara que grita
"Que bunda!" quando você passa perto dele. Seu irmão mais velho, Luke, era o
oposto dele. Capitão do time de futebol americano e presidente do conselho
estudantil, ele era um cara muito legal e querido, e era só por causa disso que as
pessoas aguentavam seu insuportável irmão mais novo. Mas Luke tinha se formado no
ano anterior e agora Ronnie estava sozinho na escola.
Owen estava andando numa boa quando Ronnie gritou algo para ele. Owen
não respondeu e Ronnie pegou o carro e parou na frente dele, bloqueando sua
passagem. Eu estava longe, mas percebi que era uma péssima idéia; Ronnie não era
pequeno, mas ficava minúsculo perto de Owen Armstrong, que era bem mais alto e
com as costas largas.
Mas parece que Ronnie ainda não tinha percebido. Ele disse algo para
Owen, que apenas o olhou e desviou. Quando ele começou a andar de novo, Ronnie
deu um soco no queixo dele!
Owen cambaleou, mas só um pouco. Depois, jogou sua mochila no chão e
deu um soco bem no meio do rosto do Ronnie. De onde eu estava, deu para ouvir o
barulho de punho batendo contra osso.
Ronnie caiu em segundos — o corpo primeiro, joelhos dobrando, depois os
ombros, seguidos da cabeça que balançou um pouco antes de bater no chão. Então
Owen abaixou a mão, passou por cima dele com toda a calma do mundo, pegou sua
mochila e continuou andando. As pessoas que tinham se juntado para assistir à briga
começaram a se dispersar rapidamente para dar passagem para ele. Os amigos de
Ronnie já estavam em volta dele e alguém chamava o guarda do estacionamento.
Mas do que mais me lembro é ver Owen se distanciando — no mesmo passo e
mesmo ritmo de antes, como se nunca tivesse parado. Como se nada tivesse
acontecido.
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Na época, Owen estava na escola fazia somente um mês e, como resultado
do incidente, ficou suspenso por outro mês. Quando voltou para as aulas, todos
estavam falando sobre ele. Diziam que ele tinha cumprido pena em um
reformatório, sido expulso das escolas que freqüentara antes e que fazia parte de
uma gangue. Era tanto boato que, poucos meses depois, ouvi dizer que ele tinha sido
preso por arranjar briga em uma balada no fim de semana, mas achei que fosse
mentira. Porém, ele simplesmente sumiu e nunca mais tinha aparecido na escola.
Até hoje.
Apesar de tudo, bem de perto, Owen não parecia um monstro. Ele só estava
sentado, de óculos escuros, camiseta vermelha e batucando no joelho enquanto
ouvia música. Mesmo assim, imaginei que seria melhor ele não perceber que eu o
observava. Então, depois de desembrulhar meu sanduíche e dar uma mordida,
respirei fundo e olhei para o meu lado direito, para Clarke.
Ela estava sentada na ponta do muro com um caderno aberto no colo,
comendo uma maçã e escrevendo algo com a outra mão. Seu cabelo estava preso em
um rabo de cavalo e ela usava uma camiseta branca, calça camuflada e chinelo. Na
ponta do nariz, os óculos que ela tinha começado a usar um ano antes, pequenos e
de armação estilo tartaruga. Um pouco depois, ela olhou para cima e então para
mim.
Com certeza ela ficou sabendo do que tinha acontecido em maio passado.
Todos ficaram. Os segundos se passavam e ela não virava o rosto. Então, fiquei me
perguntando se ela finalmente tinha me perdoado e achando que talvez, já que um
problema tinha aparecido, eu poderia resolver um mais antigo. Seria bom, pois, já
que nós duas havíamos sido deixadas de lado por Sophie, voltaríamos a ter algo em
comum.
E ela ainda estava me olhando. Eu abaixei meu sanduíche e respirei fundo.
Tudo o que eu precisava fazer agora era lhe dizer algo, algo incrível, algo que talvez...
Mas, de repente, ela virou o rosto. Colocou o caderno de qualquer jeito na
mochila e fechou o zíper. Sua linguagem corporal era dura, seu cotovelo apontava em
minha direção. Então, ela pulou do muro, colocou a mochila nos ombros e foi
embora.
Eu olhei para o meu sanduíche semi comido e senti um nó na garganta. O que
era ridículo, porque eu sabia que Clarke sempre tinha me odiado. Pelo menos isso
não era novidade.
Durante o resto do almoço, fiquei sentada lá fazendo questão de não olhar
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para ninguém. Quando olhei no relógio e vi que faltavam apenas cinco minutos,
imaginei que o pior tinha passado. Mas estava errada.
Eu estava colocando minha garrafa de água na mochila, quando ouvi um carro
fazendo a volta no retorno que ficava perto do final do muro. Olhei e vi um jipe
vermelho fazendo a curva. A porta do passageiro se abriu e um cara de cabelo escuro
desceu, colocando um cigarro atrás da orelha enquanto se inclinava para falar com a
pessoa que estava ao volante. Quando ele bateu a porta e começou a se afastar do
carro, vi quem era o motorista. Will Cash.
Senti um frio no estômago, como se estivesse em queda livre. Tudo escureceu,
os sons ao meu redor começaram a sumir, enquanto as palmas das minhas mãos
suavam muito e meu coração batia mais alto, tum-tum-tum.
Eu não consegui parar de olhar para ele sentado lá, com a mão no volante,
esperando pelo carro à sua frente — uma station wagon de onde uma garota tirava um
violoncelo ou algum outro instrumento grande — para sair dali. Depois de um segundo
ele balançou a cabeça, irritado.
Shhh, Annabel. Sou só eu.
Um milhão de jipes vermelhos passou diante dos meus olhos nos últimos meses
e, apesar da minha vontade, eu olhava para dentro de cada um para ver aquele rosto
— o rosto dele. A diferença é que agora, ali, era ele de verdade. E, enquanto eu
dizia a mim mesma que em plena luz do dia eu poderia ser forte e não ter medo, me
senti tão impotente quanto naquela noite, como se, mesmo em um lugar público e
durante o dia, eu continuasse correndo perigo.
A garota finalmente tirou sua caixa da station wagon e se despediu do
motorista ao fechar a porta. No momento em que o carro partiu, fiquei vendo os
olhos de Will em movimento, olhando para as pessoas no pátio sem prestar atenção
em ninguém. Porém ele me viu.
Fiquei encarando Will, com o coração acelerado. Durou apenas um segundo,
e não percebi nenhum sinal de reconhecimento, nenhuma expressão em seu rosto,
como se ele fosse um estranho, uma pessoa qualquer. Depois, ele saiu com o carro, que
se tornou apenas um borrão vermelho, e foi isso.
De repente, voltei a perceber o barulho e a agitação ao meu redor: o pessoal
apressado para chegar à próxima aula e chamando os amigos. Ainda assim, meu olhar
se manteve no jipe, observando-o enquanto subia a rua que levava à avenida principal,
se afastando de mim pouco a pouco. Até que, em meio a todo aquele barulho, vozes,
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movimento e mudança, virei a cabeça, tentei cobrir a boca com as mãos, mas não
consegui: vomitei na grama atrás de mim.
Quando me virei novamente, alguns momentos depois, o pátio estava quase
vazio. Os atletas tinham saído do outro muro, a grama sob as árvores estava vazia,
Emily e Sophie tinham saído do banco. Só depois de limpar minha boca e olhar para
o outro lado, vi que Owen Armstrong ainda estava lá, me olhando. Seus olhos eram
escuros e intensos, e fiquei tão assustada que desviei rapidamente o olhar. Quando
me virei de novo, ele tinha ido embora.
Sophie me odiava. Clarke me odiava. Todos me odiavam. Bom, acho que nem
todos.
— O pessoal da Mooshka adorou as suas fotos — disse minha mãe. Sua voz
contente contrastava com os sentimentos que me afligiam enquanto eu me sentava no
carro, em meio ao maior trânsito. Estávamos presas em uma fila enorme para sair do
estacionamento, depois da sétima aula. — Lindy disse que eles ligaram e estavam
muito animados.
— Sério? — eu disse, colocando o telefone na outra orelha. — Que ótimo!
Tentei parecer feliz, mas a verdade era que eu tinha esquecido com-
pletamente que, alguns dias antes, minha mãe havia dito que Lindy, a minha agente,
ia mandar minhas fotos para uma marca de biquínis chamada Mooshka Surfwear,
que estava contratando para um novo anúncio. Posso dizer que meu trabalho como
modelo não era a minha maior preocupação nos últimos tempos.
— Mas tem uma coisa — ela continuou. — Lindy disse que eles querem te
conhecer pessoalmente.
— Ah — eu disse, enquanto a fila andava alguns milímetros. — Certo.
Quando?
— Bem — ela respondeu. — Na verdade... Hoje.
— Hoje? — eu disse, enquanto percebi que Amanda Cheeker me ignorou
completamente, sem nem olhar na minha cara ao sair com o seu carro, que mais
parecia uma BMW.
— Sim. Parece que um dos gerentes de publicidade está na cidade, mas fica
só até esta noite.
— Mãe... — O carro andou mais alguns milímetros. Coloquei a cabeça para
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fora do veículo, tentando ver quem estava provocando o engarrafamento. — Eu não
posso. Estou tendo um dia péssimo e...
— Eu sei, querida — ela falou, como se realmente soubesse de algo, o que
não era o caso. Depois de criar três filhas, minha mãe era muito bem versada na
política das meninas, o que facilitou a explicação que tive que lhe dar sobre o
desaparecimento repentino de Sophie com o clássico "Ela anda meio estranha" e "Eu
não faço a menor idéia do que pode ter acontecido". Ela só sabe que Sophie e eu nos
distanciamos. Nem consigo imaginar o que ela pensaria se eu lhe contasse a verdadeira
história. Na verdade, eu consigo imaginar sim. E é exatamente por isso que eu não tinha
a menor intenção de contar. — Mas a Lindy disse que eles estão interessados mesmo
em você.
Bati o olho no retrovisor e fiquei examinando meu rosto avermelhado, o
cabelo escorrido e manchinhas de rímel em volta dos olhos, resultado de chorar
escondida no banheiro depois da sexta aula. A minha aparência realmente refletia
como eu estava por dentro.
—Você não entende — eu disse ao andar um pouco mais com o carro. — Eu
não dormi bem essa noite, estou com o rosto cansado, toda suada...
— Oh, Annabel — ela disse. Senti um nó na garganta, resposta imediata ao
seu tom de voz tão doce e compreensivo, e muito bem-vindo depois desse dia longo e
terrível. — Eu sei, querida. Mas é só uma coisinha e depois você estará livre.
— Mãe... — O sol batia nos meus olhos e só consegui pensar em como eu
estava exausta. — Eu só...
— Escute — ela disse. — Que tal fazermos o seguinte: você vem para casa,
toma uma ducha, eu preparo um sanduíche e faço sua maquiagem. Depois te levo, a
gente resolve e você não precisa mais pensar nisso de novo. Certo?
Era isso o que minha mãe fazia. Sempre tinha um "Que tal fazermos o
seguinte", que significava algum acordo proposto por ela, mesmo não sendo nada
diferente da idéia inicial ao menos soava mais agradável. Antes, recusar era a minha
prerrogativa. Depois disso, continuar recusando me faria parecer cabeça-dura.
— Tudo bem — eu disse enquanto o trânsito finalmente começava a
melhorar. Mais à frente, pude ver o segurança indicando para as pessoas
passarem por uma Toyota azul com o pára-choque traseiro amassado. — A
que horas é essa reunião?
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— Às quatro.
Olhei para o relógio.
— Mãe, já são três e meia e eu nem saí do estacionamento. Onde é o
escritório?
— É no... — ela disse. Eu ouvi barulho de papel. — Mayor's Village.
Levava uns bons vinte minutos para chegar lá. Já seria muita sorte não me
atrasar, o que só aconteceria se eu pegasse muitos faróis verdes.
— Ótimo — eu disse. — Não tem jeito mesmo.
Eu sabia que estava sendo teimosa, além de petulante. E também sabia que
iria à reunião e daria o meu melhor sorriso, pois tinha plena consciência que,
tratando-se de minha mãe, ser teimosa e petulante era o pior que eu podia ser. Afinal
de contas, eu era a boazinha,
— Bem — ela disse. — Se você quiser, eu posso ligar para Lindy e dizer que
você não pode. Não tem problema.
— Não — eu disse ao finalmente chegar à saída do estacionamento, ligando
a seta. — Tudo bem. Eu vou.
Trabalho como modelo desde criança. Na verdade, até antes disso. Minha
primeira sessão de fotos foi aos nove meses de idade, usando um body para um
jornalzinho de ofertas da SmartMart, trabalho que consegui quando minha mãe teve
que me levar junto em um teste da minha irmã Whitney porque a babá faltou. A
mulher responsável pela seleção perguntou se eu estava disponível, minha mãe disse
que sim, e foi assim que tudo começou.
Mas essa coisa de trabalhar como modelo começou com a Kirsten. Ela tinha
oito anos quando, após uma apresentação de balé, um caça-talentos foi conversar
com meus pais no estacionamento e lhes deu um cartão. Meu pai deu risada achando
que fosse golpe, mas minha mãe ficou tão curiosa que levou Kirsten ao escritório do
cara. O agente imediatamente arrumou um teste para um comercial de uma
concessionária de carros, no qual ela não passou, e para um anúncio sobre a
programação de Páscoa do Shopping Lakerview, que ela acabou fazendo. Minha
carreira de modelo começou com body de bebê, mas Kirsten tinha começado com
coelhinhos, ou melhor, um grande coelho da Páscoa se inclinando para colocar um
ovo brilhante em sua cesta enquanto ela, de vestido branco, sorria para a câmera.
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Como Kirsten começou a ter muitos trabalhos, Whitney quis tentar também e
logo as duas estavam fazendo testes, inclusive para os mesmos trabalhos, o que
contribuiu mais para o atrito entre elas. Elas não tinham nada a ver uma com a outra,
tanto no temperamento quando na aparência física. Whitney era linda, com uma
estrutura óssea perfeita e um olhar cativante, enquanto Kirsten de alguma forma
conseguia transmitir sua personalidade alegre e esperta com apenas um olhar.
Whitney era melhor em anúncios impressos, mas Kirsten brilhava nas telas.
Por causa disso, quando comecei a trabalhar como modelo, minha família já
era muito conhecida no circuito local, que consistia principalmente em anúncios
impressos para lojas de departamento e de desconto, além de comerciais regionais.
Enquanto meu pai preferiu ficar de fora do nosso trabalho — como ele sempre fazia
com qualquer "assunto de menina", de Tampax a corações partidos — minha mãe
adorava. Ela amava nos levar para fazer os trabalhos, tratar de negócios com Lindy
ao telefone e reunir fotos para atualizar nossos books. Mas quando lhe perguntavam
sobre o assunto, ela sempre ressaltava que essa era uma escolha nossa e não dela.
"Eu ficaria muito feliz em ver as meninas brincando de fazer tortas de lama no quintal
de casa." Eu a ouvi dizer isso ao telefone milhões de vezes. "Mas isso é o que elas
querem fazer".
No entanto, a verdade era que minha mãe também adorava nosso trabalho de
modelo, mesmo não querendo admitir. Porém, acredito que era mais do que isso, pois,
de certa forma, isso tinha salvado a vida dela.
Não em um primeiro momento, é claro. No começo, nosso trabalho como
modelo era um hobby divertido para ela, algo que fazia quando não precisava
trabalhar no escritório do meu pai. A gente dizia brincando que lá era o local mais
fértil do planeta, pois as secretárias estavam sempre ficando grávidas, deixando para
minha mãe a tarefa de atender telefones enquanto meu pai não encontrava uma
substituta. Mas no ano em que fiz nove anos, minha avó morreu e algo mudou em
minha mãe.
As lembranças que tenho da minha avó são distantes, silenciosas e baseadas
mais em fotografias do que em acontecimentos de verdade. Minha mãe era filha
única e muito apegada à mãe e, apesar de morarem em lados opostos do país e se
verem poucas vezes por ano, elas conversavam ao telefone quase todas as manhãs
enquanto minha mãe tomava sua xícara de café. Como um relógio, se você entrasse
na cozinha por volta das dez e meia a veria sentada na cadeira olhando pela janela,
mexendo o café com a colher, segurando o telefone apoiado no ombro.
Para mim, aquela conversa sempre pareceu a mais chata do mundo, pois os
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assuntos eram a vida de pessoas que eu nunca conheci, a comida que minha mãe
tinha preparado na noite anterior ou até a minha própria vida, o que me parecia
muito bobo também. Para minha mãe, no entanto, era diferente. Era fundamental.
Mas a gente só se deu conta da importância dessas conversas quando minha avó
faleceu.
Minha mãe nunca foi um pilar de força. Ela era uma mulher quieta, de fala
mansa e com o rosto cheio de bondade — o tipo de pessoa pela qual você procuraria
se estivesse em um lugar público e algo muito ruim acontecesse, pois lhe daria
conforto instantâneo. Sempre pensei que minha mãe nunca mudaria o seu jeito e foi
por isso que a mudança que ela sofreu nas semanas depois do funeral da minha avó
era tão estranha. Ela ficou... Mais calada. De repente seu rosto ganhou um ar
assustado e cansado e era tão óbvio que até eu, aos nove anos, percebi. Primeiro, meu
pai nos garantiu que isso fazia parte do luto, que minha mãe estava cansada e que
ficaria bem. Porém, ela começou a se levantar cada vez mais tarde e depois havia
dias em que ela nem saía da cama. Quando ela estava acordada, eu às vezes ia para
cozinha de manhã e a via sentada na mesma cadeira, com uma xícara vazia na mão,
olhando pela janela
— Mãe — eu dizia e ela não respondia. Então, eu a chamava de novo. Às vezes,
só depois de chamar três vezes é que ela começava a virar lentamente a cabeça. Mas
então eu ficava com medo, como se não quisesse ver seu rosto. E tinha medo que ela
mudasse de novo e se tornasse uma pessoa que eu não conhecia, como naquela época.
Minhas irmãs se lembram melhor do que eu, pois eram mais velhas e tinham mais
informações. E, como sempre, cada uma tinha seu jeito de lidar com aquilo. Kirsten
começou a cuidar da casa quando minha mãe não saía da cama: limpava e fazia o
almoço, como se tudo estivesse normal. Quanto a Whitney, foram muitas as vezes em
que a vi à espreita na porta semi aberta do quarto da minha mãe e, ao perceber que eu
estava olhando, saía sem me olhar nos olhos. Sendo a filha caçula, e não sabendo
como reagir, eu tentava evitar criar confusão e fazer perguntas demais.
Cada vez mais, nossas vidas passaram a ser guiadas pelo estado em que minha
mãe estava. Era o barômetro pelo qual medíamos tudo. Em minha cabeça, a situação
podia ser percebida logo pela manhã: quando eu via que ela tinha se levantado em
um horário razoável e preparava o café da manhã, estava tudo bem. Porém, quando
no lugar dela encontrava meu pai se esforçando para servir cereal e fazer torradas
ou, ainda pior, quando nenhum deles estava por ali, eu sabia que o dia não seria bom.
Talvez fosse um sistema rudimentar, mas funcionava, mais ou menos. Além disso, eu
não tinha mais nada em que me basear.
— Sua mãe não está se sentindo bem — era só o que meu pai dizia quando
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perguntávamos por ela quando seu lugar estava vazio na mesa de jantar, ou quando
ela passava o dia sem sair do quarto e a única visão que tínhamos dela era um
montinho debaixo das cobertas, e que ficava quase imperceptível na penumbra do
quarto. — Nós todos temos que nos esforçar para facilitar as coisas até que ela
melhore, certo?
Eu me lembro de fazer que sim com a cabeça, concordando, e de ver minhas
irmãs fazerem o mesmo. Porém, como fazer isso era outra questão. Para começar, eu
não tinha a mínima idéia do que fazer para facilitar as coisas, nem se eu tinha feito
algo para piorar tudo. O que eu entendia era que a tarefa principal era proteger a minha
mãe de qualquer coisa que pudesse chateá-la, mesmo sem saber quais eram essas
coisas. Logo também aprendi uma tática. Em caso de dúvida, era melhor deixar o
assunto de fora — fora do campo de audição, fora da casa — mesmo se isso na verdade
significasse guardá-lo dentro de mim.
A depressão, ou o ''episódio" da minha mãe — nunca consegui definir
exatamente — durou cerca de três meses até que meu pai a convenceu a ir ao
terapeuta. Em um primeiro momento, ela foi relutante e acabou deixando de lado
depois de algumas sessões, mas logo depois voltou a fazer terapia e, dessa vez, deu
certo e durou um ano. Mesmo assim, não houve nenhuma mudança brusca — como
se um belo dia, ao entrar na cozinha às dez e meia, eu a fosse ver alegre e disposta,
como se estivesse me esperando. Ao contrário, o processo foi lento e as melhorias
eram pequenas como caminhar meio milímetro por dia — e o progresso fosse
notado somente depois de certa distância percorrida. Primeiro, ela parou de dormir o
dia todo e, depois, começou a acordar no meio da manhã, até que, finalmente, voltou
a preparar o café da manhã de vez em quando. Seus silêncios, tão perceptíveis na
mesa de jantar e em todo o lugar, foram diminuindo com uma pequena conversa aqui
e um comentário ali.
No final das contas, foi o trabalho como modelo que me fez perceber que
estávamos passando por maus momentos. Como era minha mãe que conseguia os
trabalhos para a gente e combinava os testes com a Lindy, nós todas passamos a
trabalhar bem menos no tempo em que ela esteve doente. Meu pai levou Whitney para
alguns trabalhos e eu consegui ir a uma sessão de fotos programada com muita
antecedência, mas o ritmo diminuiu, sem dúvida — até que um dia Lindy nos ligou
na hora do jantar para propor um teste, e já esperando um não.
— Provavelmente é melhor assim — disse meu pai, olhando para nós,
sentadas à mesa, antes de levar o telefone para a cozinha. — Eu só acho
que agora não é um bom momento.
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Kirsten, que estava mastigando um pedaço de pão, disse:
— Bom momento para o quê?
— Um trabalho — Whitney respondeu secamente. — Por que então a Lindy
ligaria aqui em casa na hora do jantar?
Meu pai agora estava revirando a gaveta próxima ao telefone e, finalmente,
encontrou um lápis.
— Bom, está bem — ele disse, pegando um bloco de notas. — Eu vou só
anotar as informações, mas é mais provável... Certo. Qual o endereço mesmo?
Minhas irmãs ficaram de olho enquanto ele escrevia. Elas provavelmente se
perguntavam qual seria o trabalho e para quem. Mas eu observava minha mãe, que não
desgrudou os olhos do meu pai mesmo ao tirar o guardanapo do colo, encostando-o
levemente nos cantos da boca. Quando ele voltou, sentou-se na cadeira e pegou o
garfo, eu esperei que minhas irmãs perguntassem os detalhes. Mas minha mãe falou
antes.
— Então, o que ela queria?
Meu pai olhou para ela.
— Ah — ele disse — é só um teste amanhã. Lindy achou que talvez nós
estivéssemos interessados.
— Nós? — disse Kirsten.
— Você — respondeu meu pai, pegando um pouco de feijão com o garfo. —
Eu disse que esse provavelmente não era um bom momento. É de manhã e eu tenho
que ir para o escritório...
— Ele parou de falar, sem se preocupar em terminar a frase — e não que ele
tivesse que acabar de explicar. Meu pai era arquiteto e muito ocupado com seu próprio
trabalho, além de tomar conta da minha mãe e cuidar da casa, e não tinha tempo para
nos levar para cima e para baixo. Kirsten sabia disso, mas estava visivelmente
desapontada. Até que, no meio do silêncio depois que todos voltamos a comer, ouvi
minha mãe tomar fôlego.
— Eu posso levá-la — ela disse. Nós todos olhamos para ela. — Quero dizer,
se ela quiser ir.
— Sério? — perguntou Kirsten. — Porque isso seria...
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— Grace — disse meu pai com uma voz preocupada. Kirsten voltou a sentar-
se, em silêncio. — Você não precisa fazer isso.
— Eu sei. — Minha mãe sorriu um sorriso abatido, mas mesmo assim era um
sorriso. — Mas é só um dia, só uma coisa. Eu estou com vontade.
Então, no dia seguinte, minha mãe estava de pé para o café da manhã —
disso eu me lembro muito bem — e, enquanto Whitney e eu fomos para a
escola, ela e Kirsten foram para o teste de um comercial de boliche. Kirsten
conseguiu o trabalho. Não foi seu primeiro comercial e nem o maior. Mas
toda vez que passava na televisão, eu a via fazendo aquele strike perfeito
(claro que editado, pois ela jogava boliche muito mal, era a rainha da cana-
leta) e me lembrava daquela noite à mesa e de que tudo finalmente voltaria
ao normal.
E voltou mesmo — ou mais ou menos. Minha mãe voltou a nos levar para os
testes, mas era perceptível que ela nem sempre estava animada e contente. Mas,
pensando bem, talvez ela nunca tivesse sido assim e talvez eu tenha apenas imaginado
ou acreditado que era daquele jeito, assim como fiz com muitas outras coisas. E mesmo
com o passar do tempo eu tinha dificuldade em acreditar que as coisas melhoravam de
verdade. Por mais que eu quisesse ter esperança, a verdade era que estava sempre
ansiosa e certa de que aquilo não duraria muito. E mesmo vendo as coisas em casa
voltarem a se restabelecer, o fato de as mudanças em minha mãe terem sido tão repen-
tinas, sem um começo e nem um fim definidos, me dava a impressão de que tudo aquilo
poderia começar de novo a qualquer momento. Naquela época, eu tinha a sensação de
que qualquer acontecimento ruim ou uma decepção seria o suficiente para ela nos
deixar novamente. Talvez eu ainda sinta isso.
Essa era uma das razões por que eu ainda não tinha contado para a minha
mãe que não queria mais trabalhar como modelo. A verdade era que, durante todo o
verão, eu me senti estranha e fiquei nervosa nos testes de um jeito que nunca tinha
me sentido antes. Eu não gostava da idéia de ser examinada minuciosamente, de ter
que andar na frente de estranhos que me observavam. Em junho, em um teste para
comercial de biquíni, eu me esquivava toda vez que a produtora tentava ajustar o
meu biquíni e sentia um nó na garganta mesmo quando pedia desculpas e dizia que
estava bem.
Quase contei isso para a minha mãe várias vezes, mas sempre acontecia
alguma coisa e eu acabava desistindo. Eu era a única filha que continuava
trabalhando como modelo. Além disso, se já é difícil tirar de uma pessoa algo que a
faz feliz, tudo fica muito pior quando se trata da sua única fonte de felicidade.
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Por isso, ao chegar ao Mayor's Village quinze minutos depois, não me
surpreendi ao ver minha mãe me esperando. Como sempre, fiquei perplexa em ver
como ela era pequena. Mas minha perspectiva era um tanto distorcida, afinal de
contas, eu, a mais baixa das irmãs, tinha 1,70 metro, enquanto Kirsten era um
centímetro mais alta do que eu e Whitney media 1,78 metro. Meu pai se destacava
com seus 1,58 metro, fazendo minha mãe sempre destoar quando estávamos todos
juntos, como naqueles testes de múltipla escolha em que você tem que eliminar a
resposta diferente.
Quando parei ao lado do carro dela, vi Whitney de braços cruzados sentada no
banco do passageiro. Ela parecia irritada, o que não era nenhuma novidade, então
nem liguei. Peguei a minha nécessaire de maquiagem da bolsa e fui ao encontro da
minha mãe, que estava parada perto do pára-choque e com o porta-malas aberto.
— Você não precisava ter vindo — eu disse.
— Eu sei — ela respondeu sem me olhar e me dando um tupperware com
um garfo em cima. — Salada de frutas. Não tive tempo de preparar um sanduíche.
Sente-se.
Eu me sentei, abri o pote e logo dei uma garfada. Percebi que estava
faminta, é claro, pois vomitara o pouco que tinha conseguido comer no almoço.
Meu Deus, que dia péssimo.
Minha mãe tirou a nécessaire de maquiagem da minha mão e começou a
vasculhá-la, depois pegou uma sombra compacta e meu pó de arroz.
— Whitney — ela chamou —, me dê as roupas que estão aí, por favor.
Whitney bufou e depois se virou para pegar as blusas que estavam no cabide
pendurado atrás dela.
— Pronto — ela disse secamente e quase jogando tudo no banco traseiro.
Minha mãe tentou pegá-las, mas estava um pouco longe, e então tomei a iniciativa.
Enquanto eu me esticava para pegar os cabides e puxá-los para
mais perto, Whitney ficou segurando tudo por cerca de um segundo a mais,
e fiquei surpresa com sua força quando nossos olhares se cruzaram. Depois
de um tempo, ela soltou os cabides de repente e voltou a me dar as costas.
Eu procurava ter paciência com a minha irmã. Em momentos como esse,
tentava lembrar que não era com ela que eu estava chateada, mas com o seu
distúrbio alimentar. Mas era muito difícil diferenciar uma coisa da outra, pois esse tipo
de atitude sempre foi típico dela.
33
— Beba um pouco d'água — disse minha mãe ao me dar uma garrafa aberta,
ao mesmo tempo em que pegava as blusas da minha mão. — E venha aqui.
Dei um gole e fiquei parada enquanto ela passava o pó no meu rosto.
Quando ela começou a passar sombra e delineador, fechei os olhos e fiquei ouvindo
os carros passando na estrada. Em seguida, ela começou a procurar uma blusa,
fazendo barulho com os cabides. Abri os olhos e a vi segurando uma blusinha de
camurça cor-de-rosa.
Shhh, Annabel. Sou só eu.
— Não — eu disse. Falei em um tom mais bravo do que era a minha
intenção, e minha voz soou mal-educada. Tomei fôlego, me forçando a falar
de um jeito mais normal. — Essa não...
Ela me olhou surpresa, depois olhou para a blusa e para mim novamente. —
Tem certeza? Ela fica ótima em você. Achei que você adorasse essa blusinha!
Fiz que sim com a cabeça e logo mudei a direção do meu olhar para uma
minivan que passava e tinha um daqueles adesivos MEU FILHO É NOTA 10 no vidro
traseiro.
— Não — eu disse de novo. Ela continuava me olhando, e então completei:
— Acho que fico meio estranha nela.
— Ah — eu a ouvi dizendo. Como segunda opção, ela me ofereceu uma blusa
azul de decote quadrado. — Aqui — ela disse ao olhar a blusa mais de perto e ver
uma etiqueta nela. — Vamos lá, rápido! Já são dez para as quatro.
Concordei e depois fui até a porta traseira. Entrei no carro, me abaixei para
tirar minha blusa e congelei.
— Mãe! — eu disse.
— Sim?
— Estou sem sutiã.
Ouvi o barulho do seu sapato de salto na calçada enquanto ela vinha ao meu
encontro.
— Sem?
Eu confirmei acenando com a cabeça e tentando ficar abaixada.
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— Eu estava de regata e ela já vem com um sutiã embutido. Minha
mãe pensou por um segundo.
— Whitney — ela disse. — Me dá... Whitney fez que
não com a cabeça e disse:
— De jeito nenhum.
Agora foi minha mãe quem respirou fundo.
— Querida, por favor — ela disse. — Ajude a gente, vai?
Então, fizemos o que estávamos fazendo havia cerca de nove meses: tivemos
que esperar e nos preocupar com Whitney. Após um longo silêncio, ela finalmente
colocou os braços para dentro da camiseta e de forma desajeitada tirou o sutiã bege
pela gola, jogando-o para trás. Peguei o sutiã do chão (não usávamos exatamente o
mesmo número, mas era melhor que nada) e o coloquei, arrumando a blusa.
— Obrigada — eu disse. Mas ela me ignorou, é claro.
— Três e cinquenta e dois — disse minha mãe. — Vamos, querida.
Eu me levantei e fui até onde minha mãe estava sentada, me esperando e
segurando minha bolsa, que ela me deu enquanto examinava meu rosto para ver o
resultado de seu trabalho.
— Feche os olhos — ela disse, inclinando-se para tirar um excesso de rímel
dos meus cílios. Quando os abri de novo, ela sorriu para mim. — Você está linda.
— Até parece — eu disse, mas ela me deu um olhar desaprovador, e então
acrescentei: — Obrigada.
Ela deu uma batidinha no relógio.
— Vai lá. Nós te esperamos.
— Vocês não precisam ficar aqui. Vou ficar bem.
Whitney tinha ligado o carro. Ela baixou o vidro, esticando o braço para fora.
Whitney estava usando mangas compridas, como sempre, mas dava para ver um
pouco do seu pulso, pálido e muito magro, enquanto ela tamborilava os dedos do lado
de fora do carro. Minha mãe olhou para ela e depois para mim.
— Bem, pelo menos espero você entrar — ela disse. — Certo?
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Fiz que sim com a cabeça e me inclinei para lhe dar um beijo bem pertinho da
bochecha e sem manchá-la de batom.
— Certo.
Ao chegar à porta do prédio, olhei para trás. Vi minha mãe acenar para mim,
e, quando acenei de volta, pude enxergar o rosto de Whitney pelo retrovisor. Ela
também me olhava, mas seu rosto não tinha expressão alguma. Nesse momento, senti
meu estômago revirar, algo que estava ficando bastante frequente.
— Boa sorte — disse minha mãe. Eu balancei a cabeça e olhei nova-
mente para Whitney. Mas ela tinha deslizado no banco e eu só pude ver o
retrovisor. Nenhum reflexo.
36
Três
Whitney sempre foi magra. Kirsten era mais cheinha e curvilínea, enquanto eu sempre
tive porte mais atlético, mas minha irmã do meio nasceu com um corpo de modelo:
alta e longilínea, Eu e Kirsten sempre ouvimos os fotógrafos dizerem que, apesar dos
nossos rostos bonitos, nós éramos, respectivamente, gordinhas ou baixas demais para
seguir carreira de modelo. E logo ficou claro que Whitney tinha potencial de verdade.
Então, ficou decidido que, ao terminar o Ensino Médio, Whitney iria morar em
Nova York para tentar a carreira de modelo. Kirsten fez exatamente a mesma coisa
dois anos antes, quando ela implorou aos meus pais que a deixassem ir morar com
duas amigas da agência de modelos. Eles concordaram, mas sob a condição de que
ela se matriculasse em alguns cursos na faculdade. Apesar de conseguir manter certo
equilíbrio no começo, Kirsten acabou deixando os estudos completamente de lado
depois de conseguir ser escalada para alguns comerciais e anúncios impressos.
Apesar de fazer alguns trabalhos, a maior parte do seu dinheiro vinha de trabalhos
como hostess e garçonete.
Não que isso a incomodasse muito. Desde o Ensino Médio, quando Kirsten
descobriu os meninos e a cerveja — não necessariamente nessa ordem — seu interesse
pela carreira de modelo diminuiu consideravelmente. Enquanto Whitney sempre se
preocupava em ir dormir cedo na véspera dos trabalhos e era sempre pontual,
Kirsten sempre chegava atrasada, de ressaca e com aquela cara de quem acabou de
acordar. Uma vez ela chegou para uma sessão de fotos de um comercial de vestidos de
baile da Kopf com um chupão tão forte no pescoço que nem maquiagem conseguiu
escondê-lo completamente. Quando os anúncios começaram a circular, algumas sema-
nas depois, ela caiu na gargalhada ao me mostrar um círculo marrom que mal dava
para ver sob uma tira do vestido que parecia de princesa.
Minha mãe tinha mais expectativas com relação à Whitney, e, duas semanas
depois de terminar o Ensino Médio, ela se mudou para o apartamento onde Kirsten
estava morando sozinha. Em minha opinião, a idéia de as duas morarem juntas estava
errada desde o começo, mas meus pais já haviam resolvido: Whitney tinha apenas
dezoito anos e precisava de alguém da família por perto, e já que meus pais ajudavam
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Kirsten a pagar o aluguel, ela não tinha muito motivo para reclamar. (Mas reclamou, é
claro.) Além disso, de acordo com minha mãe, elas estavam mais maduras agora e os
conflitos antigos tinham ficado no passado.
Logo que Whitney se mudou, minha mãe ficou lá um tempo para que ela se
instalasse, e também para matriculá-la em alguns cursos e acompanhá-la em suas
primeiras visitas a agências. Toda noite, ela ligava depois do jantar para contar a meu
pai e a mim como as coisas iam e parecia mais feliz do que nunca quando falava das
celebridades que tinha visto, das reuniões nas agências e do ritmo caótico e acelerado
de Nova York. Uma semana depois, Whitney foi para seu primeiro teste e conseguiu
seu primeiro trabalho em seguida. Quando minha mãe voltou para casa, um mês depois,
Whitney estava trabalhando muito mais do que Kirsten. Tudo estava correndo
exatamente como planejado... E de repente não estava mais.
Minhas irmãs estavam morando fazia uns quatro meses quando Kirsten
começou a ligar para minha mãe para contar que Whitney estava se comportando de
forma estranha, que tinha emagrecido e parecia não estar comendo, e, além disso,
toda vez que Kirsten tentava tocar em qualquer um desses assuntos, ela ficava
irritada. No começo, não parecia ser motivo para preocupação, pois Whitney sempre
foi temperamental e nem meus pais esperavam que a convivência entre as duas fosse
um mar de rosas. Minha mãe chegou à conclusão de que o mais provável era que
Kirsten estivesse fazendo drama, pois se Whitney tivesse perdido um pouco de peso,
deveria ser pelo fato de ela realmente trabalhar em um mercado muito competitivo, o
que significaria uma exigência maior em relação à sua aparência. Conforme ela
ganhasse confiança em si mesma, tudo ficaria mais equilibrado.
No entanto, foi só olhar para Whitney para percebermos as mudanças muito
bem. Antes, ela era elegante, leve; agora estava esquelética e sua cabeça parecia
grande demais para o corpo e pesada sobre o pescoço. Ela e Kirsten tinham vindo
juntas para passar o feriado de Ação de Graças e, quando fomos pegá-las no
aeroporto, o contraste era enorme. Lá estava Kirsten usando um suéter cor-de-rosa,
de bochechas rosadas, olhos azuis e pele quente ao me dar um abraço,
choramingando que sentia muitas saudades nossas. Ao seu lado, Whitney, usando
uma calça de moletom, uma blusa preta de gola alta e mangas compridas, sem
maquiagem e pálida. Foi um choque, mas ninguém disse nada naquele momento,
apenas nos cumprimentamos, nos abraçamos e perguntamos como tinha sido a
viagem. Mas ao andarmos em direção à esteira para pegar as bagagens, minha mãe
não aguentou e perguntou:
— Whitney, querida — disse minha mãe. — Você parece exausta. Ainda é por
causa daquela gripe?
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— Eu estou bem — disse Whitney.
— Não, ela não está — informou Kirsten de forma direta, pegando sua mala.
— Ela não come. Nunca. Ela está se matando.
Meus pais se entreolharam.
— Ah não, ela só esteve doente — minha mãe disse. Ela olhou para Whitney
que, por sua vez, encarava Kirsten com muita raiva. — Não é, querida?
— Errado — Kirsten respondeu. Para Whitney, ela disse: — Como con-
versamos no avião: ou você conta ou conto eu.
— Cale a boca — disse Whitney, por entre os dentes.
— Calma — disse meu pai. — Vamos pegar as malas.
Essa atitude era a cara do meu pai, o homem solitário em nosso ambiente
familiar carregado de estrógeno. Sua forma de lidar com qualquer tipo de problema
emocional ou conflito era fazendo algo concreto e específico: conversas sobre cólicas
e fluxo menstrual durante o café da manhã? Ele se levantava para trocar o óleo de um
dos carros. Chegar em casa ao prantos por razões sobre as quais você não quer
conversar? Ele preparava um misto quente — que ele mesmo acabaria comendo. Início
de uma crise familiar em um lugar público? Malas. Era hora de pegar as malas.
Minha mãe ainda observava Whitney com ar preocupado.
— Querida? — ela disse em um tom macio, enquanto meu pai arrancava outra
mala da esteira. — É verdade? O que está acontecendo?
— Eu estou bem — disse Whitney novamente. — Ela só está com inveja
porque estou conseguindo muitos trabalhos.
— Ah, por favor — disse Kirsten. — Eu estou pouco me lixando e você sabe
disso.
Minha mãe arregalou os olhos e, mais uma vez, pensei nela entre nós, tão
pequena e frágil.
— Que linguajar é esse? — meu pai perguntou a Kirsten.
— Pai, você não entende — ela respondeu. — Isso é sério. Whitney tem um
distúrbio alimentar. Se ninguém ajudá-la, ela vai...
— Cale essa boca! — Whitney gritou descontrolada e com a voz esganiçada.
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— Cale essa sua boca!
Ficamos tão surpresos com o escândalo — afinal, estávamos acostumados só
com os chiliques da Kirsten — que ficamos parados durante um segundo, pensando
se aquilo realmente tinha acontecido. Até que percebi as pessoas nos olhando,
deixando óbvio que sim. Eu vi o rosto da minha mãe ficar vermelho; ela estava
envergonhada.
— Andrew — ela disse, aproximando-se do meu pai. — Eu não...
— Vamos para o carro — falou meu pai ao pegar a mala de Whitney. —
Agora.
Nós fomos. Em silêncio, meus pais andavam na frente, o braço do meu pai
sobre os ombros da minha mãe, Whitney ia atrás deles, de cabeça baixa, e Kirsten e eu
éramos as últimas. Enquanto andávamos, ela deslizou a mão para segurar a minha.
Sua palma era a única coisa quente naquele frio.
— Eles têm que saber — ela disse. Porém, quando virei meu rosto na sua
direção, Kirsten olhava para frente e fiquei na dúvida se era comigo mesmo
que ela estava falando. — É a coisa certa a fazer. Eu preciso fazer isso.
Quando chegamos ao carro, ninguém falou uma palavra. Nem quando saímos
do estacionamento e nem quando chegamos à rodovia. No banco de trás, sentada entre
as minhas duas irmãs, eu sentia Kirsten respirar fundo, como se fosse dizer algo,
mas ela não deu um pio. Do outro lado, Whitney estava encostada na janela,
olhando para fora, com as mãos no colo. Fiquei observando seus pulsos, que
estavam magros, ossudos e pálidos em contraste com o preto da sua calça de
moletom. No banco dianteiro, meus pais olhavam para frente e, de vez em quando,
eu percebia o ombro do meu pai se mexendo e sabia que ele fazia carinho na mão da
minha mãe, para consolá-la.
Assim que paramos na garagem, Whitney abriu sua porta. Em poucos
segundos ela chegou à porta da cozinha e entrou na casa, batendo a porta com força.
Ao meu lado, Kirsten suspirou.
— Bem — ela disse calmamente enquanto meu pai desligava o carro. —
Nós precisamos conversar.
Eles conversaram, mas não pude participar. Eles deixaram bem claro
("Annabel, que tal ir fazer a lição de casa?") que eu não deveria entrar nessa
conversa. Então, fiquei no meu quarto, com um livro de matemática aberto no colo,
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me esforçando para entender o que estava sendo dito lá embaixo.
Pude ouvir os tons graves do meu pai e os tons mais agudos de minha mãe, e
mudanças ocasionais para o tom de Kirsten. Na outra parede, o silêncio de Whitney
em seu quarto.
Finalmente, minha mãe subiu as escadas e passou em frente ao meu quarto
para bater na porta do quarto de Whitney. Quando não teve resposta, ela disse:
— Whitney, querida, me deixe entrar. — E nada. Ela ficou lá durante um ou
dois minutos antes de eu ouvir a porta se abrir e depois fechar novamente.
Desci as escadas e vi Kirsten e meu pai sentados à mesa da cozinha olhando
para um queijo quente.
— Olha, pai — ela disse enquanto eu abria a porta do armário para pegar
um copo — ela explica tudo de forma bem convincente. Ela vai fazer uma lavagem
cerebral em mamãe em três segundos.
— Tenho certeza de que não é assim — disse meu pai a ela. — Dê um
pouco de crédito para sua mãe.
Kirsten fez que não com a cabeça.
— Ela está doente, pai. Ela quase nunca come, e quando come, é estranho.
Não come nem meia maçã no café da manhã e só três bolachas salgadas no almoço.
E malha o tempo todo. A academia que fica na esquina de casa é 24 horas, e, às vezes,
eu me levanto e ela não está em casa. Sei que ela está na academia.
— Talvez ela não esteja — disse meu pai.
— Eu já segui a Whitney, pai. Algumas vezes. Ela fica horas correndo na
esteira. Olha, assim que cheguei naquela cidade, fiz uma amiga, e a moça com quem
ela dividia o apartamento estava exatamente desse jeito. Ela chegou a pesar quarenta
quilos ou algo assim: ela foi parar no hospital. Isso é muito sério.
Meu pai não se manifestou durante um segundo.
— Vamos ouvir o lado dela — ele disse. — E aí poderemos ver em que pé
estamos. Annabel?
— Sim.
— Que tal ir terminar de fazer sua lição de casa?
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— Está bem — eu disse. Terminei meu copo de água, o coloquei na lava-
louças e subi novamente. Ao mesmo tempo em que me esforçava para prestar
atenção nos paralelogramas, podia ouvir minha mãe conversando com Whitney no
quarto ao lado, sua voz macia e suave. Eu estava quase terminando a lição de casa
quando a porta se abriu.
— Eu sei — dizia minha mãe. — Faça o seguinte: tome um banho, durma
um pouco e eu te acordo na hora do jantar, tá? Vai dar tudo certo.
Ouvi um suspiro e concluí que era Whitney concordando, e logo minha mãe
passou novamente em frente ao meu quarto. Dessa vez, ela me olhou.
— Está tudo bem — ela disse. — Não se preocupe.
Relembrando de tudo, eu não tenho a menor dúvida de que minha mãe
realmente acreditava no que estava falando. Mais tarde, fiquei sabendo que Whitney
tinha tranquilizado minha mãe, dizendo que estava apenas trabalhando demais e
muito cansada, e que realmente estava malhando mais e comendo menos, pois havia
descoberto que era um pouco mais cheinha do que as garotas com as quais fazia
testes, mas não era nada exagerado. E continuou dizendo que, se Kirsten pensava que
ela não estava comendo, era porque elas tinham horários completamente diferentes,
já que Kirsten trabalhava à noite e Whitney de dia. E que ela achava que isso era
mais do que preocupação, pois, desde que chegou a Nova York, Whitney logo
conseguiu muito mais trabalhos do que Kirsten, e talvez ela não estivesse lidando
bem com isso. Talvez ela estivesse com inveja.
— Eu não estou com inveja! — ouvi Kirsten dizer toda cheia de raiva,
poucos minutos depois de minha mãe ter descido. — Vocês não conseguem ver? Ela
enganou vocês. Acordem!
Mais coisas foram ditas, é claro, mas não consegui ouvir. E uma hora
depois, quando me chamaram para jantar, o que quer que tenha acontecido já tinha
terminado e estávamos de volta à boa e velha configuração da família Greene,
fingindo estar tudo bem. E eu tinha certeza de que assim parecia — ao menos para
quem olhava de fora.
Foi meu pai quem projetou nossa casa, que, na época, era a mais moderna da
vizinhança. Todos a chamavam de "A Casa de Vidro", apesar de ela não ser
realmente toda feita de vidro, apenas a sua frente. Do lado de fora, dava para ver
todo o térreo: a sala de estar, dividida por uma lareira de pedra enorme, além da
cozinha e da piscina que ficava atrás, no quintal. Também era possível ver as
escadas e parte do segundo andar: o corredor do meu quarto e do quarto da Whitney,
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e a plataforma da escada entre eles, dividida pela chaminé. Então, tinha-se a
impressão de que dava para ver tudo, mas na verdade, não dava.
Porém, a sala de jantar ficava bem na frente da casa, então ficávamos
sempre expostos durante o jantar. Do meu lugar à mesa, eu podia ver os carros
passando na rua, e eles sempre diminuíam um pouco a velocidade para nos observar
nesse recorte do cotidiano: uma família feliz em volta de uma mesa farta. Mas todos
sabem que as aparências enganam.
Naquela noite, Whitney comeu normalmente. Kirsten tomou vinho demais, e
minha mãe ficou dizendo como era maravilhoso o fato de estarem todos reunidos,
finalmente. E ela repetiu isso pelos três dias que se seguiram.
Na manhã em que elas foram embora, minha mãe fez as duas se sentarem à
mesa da cozinha e pediu para que fizessem uma promessa. Ela queria que Whitney
cuidasse melhor de si mesma, dormisse mais e mantivesse uma alimentação
saudável. Pediu para Kirsten prestar atenção em Whitney e tentar ser mais solidária,
pois a irmã estava sob muita pressão morando em Nova York e trabalhando muito.
— Certo? — ela disse, olhando para uma e para outra.
— Certo — disse Whitney. — Eu prometo. Kirsten, no
entanto, apenas balançou a cabeça.
— O problema não sou eu — ela disse a minha mãe, afastando a cadeira e se
levantando. — Eu avisei. Só digo isso. Eu avisei e vocês escolheram não me ouvir.
Só quero que todos tenham isso em mente.
— Kirsten — disse minha mãe, mas ela já tinha saído da cozinha e ido para a
garagem, onde estava meu pai, colocando as malas no carro.
— Não se preocupe — disse Whitney, levantando-se e dando um beijo na
bochecha da minha mãe. — Está tudo bem.
Por um tempo, tudo pareceu estar bem mesmo. Whitney continuava fazendo
vários trabalhos, inclusive uma sessão de fotos para a revista Nova York, o mais
importante de sua carreira até então. Kirsten conseguiu um novo trabalho de hostess
em um restaurante famoso e fez um comercial de TV a cabo. Se elas não estavam se
dando bem, nós não ficamos sabendo, pois, em vez de ligarem juntas para casa uma
vez por semana, elas ligavam em dias diferentes. Kirsten normalmente ligava no fim da
manhã e Whitney, à noite. Até que, uma semana antes de elas virem para casa passar o
Natal, recebemos uma ligação durante o jantar.
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— Desculpe-me, o quê? — disse minha mãe segurando o telefone e de pé
entre a cozinha e a sala de jantar. Meu pai a observou enquanto ela levantou
a mão, colocando-a contra a outra orelha para ouvir melhor. — O que é?
— Gracie? — Meu pai se levantou. — O que é? Minha mãe
balançou a cabeça.
— Eu não sei — ela disse passando o telefone para ele. — Eu não...
— Alô? — disse meu pai. — Quem fala?... Ah... Entendo... Certo... Bom,
isso é um engano, tenho certeza... Um momento, vou procurar a informação
correta.
Quando ele colocou o telefone de lado, minha mãe disse:
— Eu não consegui entender essa mulher. O que ela estava dizendo?
— Há um problema com o cartão do convênio médico de Whitney — ele
respondeu. — Parece que ela foi ao hospital hoje.
— Ao hospital?—A voz da minha mãe foi adquirindo aquele tom assustador
que sempre fez meu coração acelerar em um segundo. — Ela está bem? O que
aconteceu?
—Eu não sei — respondeu meu pai. — Ela já recebeu alta, há apenas um
problema com a cobrança. Preciso achar o cartão novo dela...
Enquanto meu pai subia para o escritório para procurar o cartão, minha mãe
pegou o telefone novamente e tentou obter alguma informação da mulher que tinha
ligado. No entanto, por questões de privacidade, ela não disse muita coisa, apenas
informou que Whitney tinha chegado de ambulância poucas horas antes. Assim que
resolveu a questão do pagamento, ele ligou para o apartamento de Kirsten e Whitney.
Kirsten atendeu.
— Eu tentei contar para vocês — era tudo o que ela dizia. Pude ouvir a
sua voz de onde eu estava. — Eu tentei.
— Passe o telefone para a sua irmã — disse meu pai. — Agora.
Whitney pegou o telefone e eu podia ouvi-la falar com meus pais. Sua voz era alta e
alegre. Mais tarde, fiquei sabendo a história que ela contou para eles: que não era
nada demais, pois só estava muito desidratada - resultado de uma sinusite — e acabou
desmaiando durante a aula. Parecia ter sido mais grave do que realmente foi e a
ambulância foi chamada por alguém que entrou em pânico. Ela não tinha nos
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contado porque não queria deixar minha mãe preocupada, pois não era nada demais.
Mesmo.
— Talvez eu deva passar um tempo aí — disse minha mãe. — Só para
garantir.
Whitney disse que não, não era necessário, pois elas viriam para casa em duas
semanas para o Natal e era disso que ela estava precisando: uma pausa para dormir
melhor. E ela ficaria bem novamente.
— Você tem certeza? — perguntou minha mãe.
Sim, ela tinha certeza absoluta.
Antes de desligar, meu pai pediu para falar com Kirsten novamente.
— Sua irmã está bem? — ele perguntou.
— Não — Kirsten respondeu. — Ela não está bem.
Mesmo assim, minha mãe não viajou para lá. Esse foi o maior erro de todos e
até hoje é a única coisa que não consigo entender. Por algum motivo, ela acreditou na
Whitney. E foi um erro.
Quando Whitney chegou sozinha para o Natal, pois Kirsten precisou ficar mais
tempo em Nova York por causa do trabalho, meu pai foi pegá-la no aeroporto,
enquanto eu e minha mãe ficamos em casa preparando o jantar. Quando eles
chegaram, ao olhar para a minha irmã, não acreditei no que vi.
Ela estava magra demais! Esquelética. Era claramente perceptível, mesmo
que ela usasse roupas mais largas do que na última vez que a vi. Seus olhos pareciam
afundar no rosto e dava para ver os tendões do seu pescoço se movimentando como
fios de marionetes toda vez que ela virava a cabeça. Não consegui fazer mais nada
além de ficar encarando minha irmã.
— Annabel — ela disse, incomodada. — Vem aqui me dar um abraço.
Eu larguei o descascador de legumes que estava segurando e atravessei a cozinha
devagar. Ao colocar meus braços em volta da minha irmã, senti como se ela fosse
quebrar a qualquer momento, pois parecia muito frágil. Meu pai estava parado atrás
dela segurando a sua mala e, quando olhei para o seu rosto, percebi que ele também
estava chocado com a mudança que Whitney tinha sofrido em apenas um mês.
Minha mãe não se deu conta de nada disso, ou pelo menos não se ma-
nifestou. Ao contrário, quando me afastei de Whitney, ela deu um passo à frente,
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sorrindo, e a trouxe para perto de si.
— Ah, querida — ela disse. — Você está trabalhando tanto!
Ao se inclinar para frente e repousar a cabeça sobre o ombro da minha mãe,
Whitney fechou os olhos. Suas pálpebras pareciam quase translúcidas, o que me
deixou com muito medo.
— Você vai se sentir melhor, pode deixar — disse minha mãe — e começando
agora mesmo. Vá lavar o rosto. O jantar está pronto.
— Ah, mas não estou com fome — disse Whitney. — Eu comi no aeroporto
antes de embarcar.
— Comeu? — Minha mãe pareceu chateada. Ela tinha passado o dia inteiro
cozinhando. — Bem, mas com certeza consegue tomar um pouquinho de sopa de
legumes. Fiz especialmente para você, afinal não é disso que está precisando para
acordar o seu sistema imunológico?
— Na boa, eu só quero dormir — disse Whitney. — Eu estou muito
cansada.
Minha mãe olhou para meu pai que, por sua vez, continuava muito sério
observando Whitney.
— Está bem, então, vá se deitar um pouco. Você pode comer quando
acordar, não é mesmo?
Mas Whitney não comeu naquela noite, pois dormiu até o outro dia e não se
manifestou em nenhuma das vezes que minha mãe subiu com uma bandeja, nem na
manhã seguinte: ela disse ter se levantado bem cedinho e já ter tomado café da manhã
quando meu pai, o madrugador da casa, desceu para fazer café. Na hora do almoço,
ela dormiu novamente. E, finalmente, no jantar, minha mãe a fez sentar-se à mesa
conosco.
Whitney estava sentada ao meu lado e, logo que meu pai começou a nos
servir o jantar, cortando o rosbife e colocando as fatias nos pratos, eu fiquei
totalmente atenta ao fato de Whitney não conseguir ficar parada, se contorcendo toda
nervosa, puxando o punho da manga do seu moletom largo. Ela
cruzou e descruzou as pernas, depois tomou um gole de água e puxou a
manga do moletom de novo. Eu podia sentir o estresse que emanava dela,
era perceptível. E quando meu pai colocou na frente dela um prato cheio de
carne, batatas, ervilhas e um bom pedaço do famoso pão de alho da minha
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mãe, ela perdeu o controle.
— Eu não estou com fome mesmo — ela disse rapidamente, afastando o prato.
— Não estou.
— Whitney — meu pai disse. — Coma.
— Eu não quero — ela disse com raiva. E do outro lado da mesa estava
minha mãe, com um ar tão chateado que partia o meu coração. — Isso é por causa da
Kirsten, não é? Foi ela quem falou para vocês fazerem isso.
— Não — disse minha mãe — isso é por sua causa, querida. Você precisa ficar
bem.
— Não estou doente — disse Whitney. — Eu estou bem. Só estou cansada, e
não vou comer se não estou com fome. Não vou. Vocês não podem me obrigar.
Nós ficamos lá, sentados, observando-a puxar novamente a manga do
moletom, com os olhos fixos na mesa.
— Whitney — disse meu pai — você está magra demais. Você precisa...
— Não me venha dizer o que eu preciso — ela disse, arrastando a cadeira para
trás e se levantando. — Você não tem a menor idéia do que eu preciso. Se tivesse, nós
nem estaríamos tendo esta conversa.
— Querida, nós queremos te ajudar — disse minha mãe com sua voz doce.
— Nós queremos...
— Então, me deixem em paz! — Ela bateu a cadeira com força na mesa,
fazendo os pratos pularem, e saiu batendo os pés. Um segundo depois, eu ouvi a
porta da frente abrir e fechar. Ela saiu.
O que aconteceu em seguida: depois de se esforçar para acalmar minha mãe,
meu pai pegou o carro e saiu para procurar Whitney. Minha mãe se acomodou em
uma cadeira do hall de entrada, e eu terminei rapidamente meu jantar, depois cobri
os pratos deles com filme plástico e lavei a louça. Eu estava terminando quando vi o
carro do meu pai na entrada.
Quando ele e Whitney entraram em casa, ela não olhava para ninguém. Em
vez disso, ficou de cabeça baixa e olhando para o chão enquanto meu pai explicava
que ela comeria um pouco e depois voltaria a dormir, na esperança de que as coisas
melhorassem amanhã. Não houve uma discussão sobre esse acordo e nem como os
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dois tinham chegado a ele. Já estava decidido.
Naquele momento, minha mãe me pediu para subir, então não cheguei a ver
Whitney jantando, nem se houve alguma outra briga por causa disso. Porém, mais
tarde, quando a casa ficou silenciosa e tive certeza de que todos estavam dormindo, eu
desci. Havia apenas um prato dos três que eu tinha embalado e, apesar de ele parecer
ter sido remexido, ainda havia muita comida.
Peguei algo para beliscar e fui para a sala de TV, onde assisti à reprise de um
reality show sobre transformações e um noticiário local. Quando finalmente subi de
novo, era aquela hora da noite quando através do vidro se pode ver a lua brilhando e
iluminando tudo. Ver tanta luz dentro de casa era algo que sempre me pareceu
estranho e, ao passar pela claridade, cobri os olhos.
O corredor do meu quarto e do quarto da Whitney estava iluminado também
e apenas o meio estava no escuro por causa da sombra da chaminé.
Quando pisei naquela parte escura, pensei ter sentido o ar úmido, como
vapor.
Só o que sei é que de repente tive a sensação de todo o ar ter mudado,
ficando mais pesado. Por um segundo, fiquei parada, inalando aquilo. O banheiro
ficava do outro lado do corredor, e dava para ver que a luz estava apagada pela fresta
embaixo da porta, mas, conforme eu seguia em frente, o vapor ficava mais pesado e
pungente, e eu podia ouvir o barulho da água caindo. Era tudo muito estranho. Eu
podia entender que alguém tivesse esquecido a torneira ligada, mas o chuveiro? Bem,
Whitney estava agindo de modo estranho desde que chegou, então, tudo era possível.
Finalmente cheguei à porta entreaberta, e a empurrei.
A porta logo bateu em algo e voltou em minha direção. Eu a abri novamente,
senti o vapor direto em meu rosto, já grudando na minha pele. Eu não enxergava
nada, e só consegui ouvir a água, então tateei a parede à minha direita até finalmente
encontrar o interruptor.
Whitney estava no chão, aos meus pés. Foi no ombro dela que a porta bateu
quando tentei abri-la pela primeira vez. Ela estava deitada com os joelhos próximos
ao peito e envolta em uma toalha, sua bochecha contra o piso. Como eu havia
suspeitado, o chuveiro estava no máximo e uma poça de água já estava se formando,
pois a quantidade de água era grande demais para escoar pelo ralo.
— Whitney? — eu disse, me agachando ao lado dela. Eu não tinha idéia
do que ela estaria fazendo ali no escuro, sozinha e àquela hora da noite. —
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Você está...
Foi nesse momento que vi o vaso sanitário. A tampa estava levantada e dentro
havia uma mistura amarela com um tom de vermelho, e logo percebi de alguma forma
que era sangue.
— Whitney. — Coloquei minha mão sobre seu rosto. Sua pele estava
quente e suas pálpebras palpitavam. Eu a peguei pelo ombro e a sacudi. —
Whitney, acorda.
Ela não acordou, mas se moveu o suficiente para a toalha se abrir. E, então,
eu finalmente vi o que minha irmã tinha feito consigo mesma.
Ela era puro osso. Foi a primeira coisa que pensei. Ossos e calombos, cada
nozinho da sua coluna vertebral era protuberante e visível. Os ossos do quadril
saltados, seus joelhos magros e pálidos. Era impossível que ela conseguisse ser tão
magra e ainda estar viva, e mais impossível ainda que ela tenha conseguido esconder
isso. E quando ela se mexeu novamente, eu vi a única coisa que me lembraria para
sempre: suas duas escápulas pontudas e saltadas iguais às asas dos filhotes de
passarinhos mortos, sem pele e recém-nascidos que encontrei uma vez no nosso
quintal.
— Pai! — gritei. Minha voz era extremamente alta naquele cômodo tão
pequeno. — Pai!
Lembro-me pouco do resto daquela noite. Meu pai atrapalhado colocando
seus óculos enquanto corria pelo corredor de pijama. Minha mãe atrás dele, parada e
iluminada por aquele único feixe de luz do outro lado do corredor, suas mãos no rosto
ao me afastar do local e, depois, se abaixando ao lado de Whitney e colocando a orelha
sobre seu peito. A ambulância, suas luzes que giravam e faziam a casa parecer um
caleidoscópio. E depois o silêncio quando ela partiu, levando Whitney e minha mãe.
Meu pai a seguindo de carro. Disseram-me para ficar onde eu estava e esperar
notícias.
Eu não sabia o que fazer. Então, voltei para o banheiro e limpei tudo. Dei
descarga sem olhar para o conteúdo do vaso, depois sequei a água que tinha
transbordado no chão, levei para a lavanderia as toalhas que eu tinha usado
e coloquei-as na máquina. Em seguida, me sentei na sala de estar, sob o luar,
e esperei.
Foi meu pai quem finalmente ligou, horas depois. O barulho do telefone me
fez pular do sofá, e, quando atendi, percebi que o sol já nascia na frente da casa e o
49
céu estava cor-de-rosa e vermelho.
— Sua irmã vai ficar bem — ele disse. — Quando chegarmos em casa,
vamos explicar o que está acontecendo.
Depois de desligar o telefone, voltei para meu quarto, me deitei e dormi por
mais duas horas até ouvir a porta da garagem se abrindo e perceber que eles tinham
chegado. Quando desci para a cozinha, minha mãe fazia café, de costas para mim. Ela
usava a mesma roupa da noite anterior e seu cabelo estava despenteado.
— Mãe — eu disse.
Quando ela se virou, vi seu rosto e senti um aperto no coração. Sua
aparência era igual àquela de anos atrás: o rosto muito cansado, os olhos inchados
de tanto chorar e uma expressão assombrada. Senti um pânico de repente e fiquei com
vontade de me enrolar em volta dela, de ficar entre ela e o mundo, protegendo-a de
tudo que pudesse fazer mal a ela, a mim e a qualquer um de nós.
E, então, aconteceu. Minha mãe começou a chorar. Com os olhos cheios de
lágrimas, ela olhou para suas mãos, que tremiam, e em seguida começou a soluçar alto
na cozinha silenciosa. Dei um passo à frente, sem saber o que fazer naquela situação.
Por sorte, não precisei fazer nada.
— Grace — disse meu pai, que estava parado entre o seu escritório e o
corredor. — Querida. Está tudo bem.
Os ombros de minha mãe tremiam enquanto ela respirava fundo.
— Ai, meu Deus, Andrew. O que nós...
Meu pai atravessou o corredor em direção a ela e a abraçou, envolvendo-a com
seu corpo grande. Ela enterrou o rosto em seu peito, entre soluços abafados. Eu me
retirei com o intuito de ficar fora de seu campo de visão e me sentei na sala de jantar.
Ainda podia ouvi-la chorando e era terrível. Mas vê-la era muito pior.
Depois, meu pai acalmou minha mãe e lhe disse para subir, tomar um banho
e tentar descansar. Ele, então, desceu novamente e se sentou na minha frente.
— Sua irmã está muito doente - ele disse. — Ela emagreceu demais e parece
que não come normalmente há meses. Seu organismo apagou ontem à noite.
— Ela vai ficar bem? — perguntei.
Ele passou a mão no rosto, respondendo depois de um tempo:
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  • 3. 3 ContraCapa epois de ter sido pega com o namorado da melhor amiga numa festa, Annabel Green começa o ano letivo sendo ignorada pelo resto da escola. Mas o que realmente aconteceu naquela noite ainda é segredo, que ela não se arrisca a contar para ninguém. Os problemas de Annabel são explicitados pela recusa da família em admitir os próprios problemas: a fissura da mãe para que as filhas virem modelos famosas e Whitney, a irmã do meio, que sofre de anorexia. Uma amizade com Owen, o DJ da rádio comunitária, que tenta constantemente ampliar os gostos musicais de Annabel, fará a tímida jovem a aprender a falar a verdade, doa em quem doer. Ele tem uma missão quase impossível: fazer com que Annabel "Não pense nem julgue. Apenas ouça". "Don't think or judge. Just listen."
  • 4. 4 Aba da Frente Annabel Green aparentemente tem tudo. - amigos legais, uma família acolhedora, boas notas e uma carreira de modelo de sucesso. Mas tudo de repente vem abaixo. Ela agora é encarada por todos na escola, a última coisa que ela quer é falar sobre seu novo segredo. A família agora parece frágil também. Ela se pergunta o que causou o rigoroso silêncio entre suas irmãs mais velhas e por que ninguém na família comenta sobre o distúrbio alimentar da irmã do meio. E, para piorar, Annabel possui o mau hábito de evitar confrontos, nem que para isso ela precise mentir ou omitir alguma coisa. Entre proteger a família e encarar a experiência devastadora de revelar seu segredo, Annabel encontra conforto na improvável amizade com um solitário estudante, DJ e ex-presidiário que aprendeu a controlar a própria raiva e que auxilia Annabel a ouvir o próprio coração e se arriscar a falar honestamente.
  • 5. 5 Às Vezes é preciso saber ouvir a si mesmo.
  • 6. 6 Um Gravei o comercial em abril do ano passado, antes de tudo acontecer e logo me esqueci dele. Há algumas semanas, ele começou a passar na televisão e, de repente, eu estava em todo lugar. Nas televisões penduradas na parede da academia. Naquela televisão na agência do correio que serve para fazer você esquecer que está na fila há muito tempo. E agora aqui, na TV do meu quarto, enquanto estou sentada na beira da cama, estalando meus dedos, tentando me levantar e sair. "Chegou àquela época do ano, de novo..." Olhei fixamente para minha imagem na tela, a imagem de como eu era cinco meses atrás. Tentava encontrar alguma prova visível do que havia acontecido comigo e estranhei ao me ver através de algo que não fosse um espelho ou uma foto. Eu nunca me acostumei, mesmo depois de todo esse tempo. "Jogos de futebol americano", eu dizia na tela. Usava um uniforme de líder de torcida azul-bebê, o cabelo bem preso em um rabo de cavalo e segurava um megafone daqueles que ninguém usa mais, onde estava pintada a letra K. "Sala de estudos." Corte para outra cena em que eu estava com um ar muito sério, vestindo uma saia pregueada e um bolero marrom. Lembrei que aquela roupa pinicava e não combinava nada com o tempo, que estava finalmente esquentando. "E, é claro, vida social." Eu me inclinei para frente olhando fixamente para mim mesma na tela, vestindo um jeans e uma camiseta brilhante, sentada em uma bancada, me preparando para falar enquanto um grupo de meninas conversava atrás de mim. O diretor, que tinha rosto de bebê e cara de quem tinha acabado de terminar a faculdade de cinema, me explicou o conceito da sua criação. — A garota que tem tudo — ele dizia movimentando as mãos de maneira
  • 7. 7 firme e circular, como se apenas aquilo bastasse para entender algo tão amplo, para não dizer vago. Era claro que isso queria dizer ter um megafone, dois neurônios e um grande grupo de amigos. Foquei pensando na ironia implícita dessa última parte, mas minha versão da tela já estava seguindo em frente. "Tudo acontece neste ano", eu disse. Agora eu usava um vestido cor-de-rosa, com uma faixa de miss que dizia RAINHA DO BAILE, quando um rapaz de smoking se aproximou de mim e me ofereceu o braço. Eu aceitei dando um largo sorriso. O garoto estudava na universidade da cidade e ficou na dele durante toda a filmagem. Porém, depois, pediu meu telefone quando eu estava indo embora. Como eu poderia ter esquecido isso? "Os melhores momentos", dizia eu na tela. "As melhores lembranças. Você encontrará a roupa perfeita para cada ocasião na Loja de Departamentos Koft." A câmera se aproxima cada vez mais e as outras coisas sumiam até ser possível enxergar apenas o meu rosto. Isso foi antes daquela noite, antes de tudo o que aconteceu com Sophie, antes do longo e solitário verão cheio de segredos e silêncio. Eu estava péssima, mas essa garota na TV? Ah, ela estava bem. Dava para perceber pelo jeito que ela olhava para mim e para o mundo, cheia de confiança ao abrir a boca para falar novamente. "Faça seu Ano Novo ser melhor ainda", ela disse, e eu respirei fundo antecipadamente, a próxima frase foi dita, a última frase, aquela que era verdade. "Está na hora de voltar para a escola". A cena congelou, o logo da Kopf apareceu abaixo do meu rosto. Em pouco tempo, a imagem da tela mudaria para um comercial de waffle ou previsão do tempo, um novo assunto a cada quinze segundos, ininterruptamente, mas não esperei. Peguei o controle remoto, desliguei minha imagem na TV e fui para a porta. Tive três meses para me preparar para ver Sophie. Porém, na hora, percebi que ainda não estava pronta. Eu estava no estacionamento antes de o sinal tocar, tentando reunir forças para sair do carro e deixar o ano começar oficialmente. Enquanto as pessoas passavam por mim em direção ao pátio, conversando e rindo, eu repassava todos os "talvez": talvez ela já tenha superado tudo. Talvez outra coisa tenha acontecido durante o verão para substituir nosso pequeno drama. Talvez não tenha sido tão ruim quanto eu pensava. Sei que eram possibilidades remotas, mas ainda eram possibilidades.
  • 8. 8 Fiquei sentada lá até o último momento e finalmente tirei as chaves da ignição. Ao me virar para a janela para abrir a porta do carro, dei de cara com Sophie. Ficamos nos olhando por um segundo e imediatamente percebi algumas mudanças: seu cabelo enrolado e escuro estava mais curto, seus brincos eram novos. Ela estava mais magra, se é que isso era possível, e tinha parado de usar delineador forte nos olhos como fazia no verão anterior. Pelo jeito estava curtindo um estilo mais natural, com tons de rosa e bronze. Ao ver Sophie me olhando, fiquei me perguntando se eu tinha mudado também. Enquanto eu pensava, Sophie abriu sua boca bem desenhada, apertou os olhos e proferiu o veredicto pelo qual esperei durante todo o verão: — Vadia. O vidro que estava entre nós não abafou o som nem a reação das pessoas que passavam. Vi uma garota que foi da minha classe no ano passado me olhar com ódio, enquanto outra que eu não conhecia estava morrendo de rir. Sophie, no entanto, não esboçou nenhum tipo de expressão ao me dar as costas, colocando sua mochila sobre um ombro e andando em direção ao pátio. Senti meu rosto queimar e percebi que as pessoas me olhavam. Eu não estava preparada para isso e provavelmente nunca estaria; afinal de contas, o começo daquele ano, entre outras coisas, não podia mais ser adiado. Não tive outra escolha a não ser sair do carro sob os olhares de todos e começar o ano séria e sozinha. E foi exatamente o que fiz. Conheci Sophie quatro anos antes, no começo do verão depois da sexta série. Eu estava na piscina comunitária do bairro, parada na fila da lanchonete com duas notas dobradas para comprar uma Coca-Cola, quando percebi que alguém parou atrás de mim. Virei para trás e lá estava uma garota que eu não conhecia. Ela usava um biquíni laranja bem pequeno e sandálias de plataforma combinando. Era morena e seu cabelo, escuro e enrolado bem preso em um rabo de cavalo. No rosto, óculos escuros e uma expressão de tédio e impaciência. Como em nossa vizinhança todos se conhecem, parecia que ela tinha caído do céu. Eu não queria ficar encarando a menina. Mas parece que foi exatamente isso o que fiz. — O que foi? — ela perguntou. Eu me vi refletida na lente dos seus óculos, pequena e fora de perspectiva. — O que você está olhando? Senti meu rosto ficar vermelho, como acontecia toda vez que alguém levantava a voz para mim. Eu era muito sensível a tons de voz, tanto que até aqueles
  • 9. 9 programas de TV sobre tribunais e julgamentos me deixavam nervosa. Sempre tinha que mudar de canal quando o juiz levantava a voz para alguém. — Nada — respondi e dei as costas para ela. Logo depois, o menino do Ensino Médio que trabalhava na lanchonete avisou, com um olhar cansado, que era a minha vez. Enquanto ele servia a minha bebida eu podia sentir a garota atrás de mim. A presença dela era como um peso enquanto eu esticava as duas notas em cima do balcão de vidro, me concentrando em alisar cada nota. Depois de pagar, saí de lá, olhando para o cimento esburacado, em direção ao local onde minha melhor amiga, Clarice Reynolds, me esperava. — A Whitney pediu para eu te dizer que ela foi pra casa — disse Clarke, assoando o nariz enquanto eu colocava a Coca-Cola com todo o cuidado ao lado da minha cadeira. — Eu disse a ela que a gente podia voltar a pé. — Beleza — respondi. Minha irmã Whitney tinha acabado de tirar a carteira de motorista, o que queria dizer que ela tinha que me dar carona para todo lugar. No entanto, voltar para casa continuava sendo problema meu, não importava se era da piscina, que nem era tão longe, ou do shopping, que ficava em outra cidade. Whitney era do tipo solitária, mesmo nessas ocasiões. Qualquer área que a rodeava era seu espaço pessoal e qualquer pessoa se tornava um invasor apenas pelo fato de existir. Só depois de me sentar é que me permiti olhar novamente para a garota do biquíni laranja. Ela tinha saído da lanchonete e estava de pé no outro lado da piscina, de toalha no ombro, uma bebida na mão, observando a disposição dos bancos e cadeiras de praia. — Aqui, ó — disse Clarke, me estendendo o baralho. — Você dá as cartas. Clarke é minha melhor amiga desde que tínhamos seis anos. Havia muitas crianças na vizinhança, mas por alguma razão a maioria delas era adolescente, como as minhas irmãs, ou tinham menos de quatro anos, resultado de um baby-boom de alguns anos antes. Quando a família de Clarke se mudou de Washington, nossas mães se conheceram em uma reunião da associação de moradores. Assim que ficaram sabendo que nós éramos da mesma idade, elas nos juntaram, e assim ficamos desde então. Clarke nasceu na China e os Reynolds a adotaram quando ela tinha seis meses de idade. Nós éramos da mesma altura, mas era só isso que tínhamos em comum. Eu
  • 10. 10 tenho olhos azuis e sou loira, uma típica Greene, enquanto os cabelos dela são os mais pretos e brilhantes que já vi, e seus olhos são de um castanho quase preto. Enquanto eu era tímida e sempre queria agradar, Clarke era mais séria; o seu jeito de falar, a sua personalidade e aparência, tudo era bem pensado e medido. Eu fazia trabalhos como modelo desde pequena, assim como as minhas irmãs mais velhas; Clarke era uma moleca, a melhor jogadora de futebol da nossa quadra, sem falar de ser um ás nas cartas, especialmente em gin rummy1 no qual ela passou o verão inteiro ganhando de mim. — Posso dar um gole na sua Coca? — ela me perguntou. E espirrou. — Está tão calor aqui! Concordei, estendendo o braço para pegar o copo. Clarke sofria com alergias durante o ano todo, mas no verão piorava. Ela estava sempre com o nariz entupido ou escorrendo de abril a outubro, e nem enormes quantidades de injeções ou remédio funcionavam. Há muito tempo tinha me acostumado com sua voz um pouco fanha, assim como a presença onipresente da caixa de lenços no seu bolso ou na sua mão. Havia uma hierarquia organizada para se sentar ao redor da nossa piscina: os salva-vidas tinham as mesas de piquenique próximas à lanchonete, enquanto as mães e crianças pequenas ficavam na parte rasa e na piscina dos bebês (ou do xixi). Clarke e eu preferíamos a área que tinha um pouco de sombra atrás dos escorregadores, enquanto os caras mais populares da escola — como Chris Pennington, três anos mais velho do que eu e sem dúvida o cara mais lindo do bairro e, eu pensava na época, provavelmente do mundo inteiro — ficavam perto do trampolim. O melhor lugar era a fileira de cadeiras que ficava entre a lanchonete e a piscina olímpica, ocupado normalmente pelas meninas mais populares. Era lá onde a minha irmã mais velha, Kirsten, estava deitada em uma espreguiçadeira, usando um biquíni cor-de-rosa e se abanando com uma revista Glamour. Assim que dei as cartas, me surpreendi ao ver que a garota de laranja andava em direção a onde Kirsten estava levando uma cadeira. Molly Clayton, melhor amiga de Kirsten, que estava do outro lado, apontou a garota para ela e depois balançou a cabeça como quem não estava acreditando naquilo; Kirsten olhou para cima, deu de ombros e se deitou novamente, colocando o braço sobre a cabeça. — Annabel? — Clarke já tinha pegado suas cartas e estava impaciente para 1 Jogo de cartas cujo objetivo é fazer o maior número de combinações de cartas o mais rapidamente possível. As combinações consistem de grupos de três ou mais cartas de mesmo valor ou seqüências de três ou mais cartas do mesmo naipe.
  • 11. 11 começar a ganhar de mim. — É a sua vez. — Ah — eu disse, me virando para ela. — É verdade. Na tarde seguinte, a garota voltou dessa vez usando um maiô prateado. Quando cheguei, ela já estava instalada na mesma cadeira que minha irmã ocupava no dia anterior, toalha esticada, garrafa de água ao lado, revista no colo. Clarke estava na aula de tênis, então eu estava só quando Kirsten e as amigas dela chegaram, mais ou menos uma hora depois. Elas chegaram fazendo muito barulho, como de costume, batendo os saltos das sandálias no cimento. Quando chegaram ao local de costume e viram a garota sentada lá, as meninas começaram a andar mais devagar e depois se olharam. Molly Clayton parecia irritada, mas Kirsten simplesmente se sentou a umas quatro cadeiras de distância. Nos dias que se seguiram, observei as tentativas teimosas da menina nova para se infiltrar no grupo da minha irmã. Tudo tinha começado com uma simples cadeira, mas, no terceiro dia, a garota já estava seguindo as meninas até a lanchonete. Na tarde seguinte, ela entrou na água poucos segundos depois delas e ficou perto enquanto o grupo conversava e espirrava água umas nas outras. No fim de semana, ela estava sempre atrás das meninas, uma verdadeira sombra viva. Aquilo com certeza era irritante. Vi Molly fuzilando a garota com uns olhares de poucos amigos, até Kirsten tinha pedido a ela para se afastar um pouco, por favor, quando a menina tinha chegado muito perto. Mas a garota parecia não se importar. Ao contrário, se esforçava mais, como se não importasse o que minha irmã e suas amigas falassem desde que fosse com ela e ponto final. — Então — disse a minha mãe uma noite durante o jantar — fiquei sabendo que uma família nova se mudou para a casa que era dos Daughtry, em Sycamore. — Os Daughtry se mudaram? - perguntou meu pai. Minha mãe balançou a cabeça, concordando. — Em junho. Foram para Toledo. Você se lembra? Meu pai pensou um pouco. — É claro — disse finalmente, fazendo que sim com a cabeça. — Toledo. —Também fiquei sabendo — continuou minha mãe, passando a tigela de macarrão para Whitney, que imediatamente a passou para mim — que eles têm uma filha da sua idade, Annabel. Acho que a vi um dia desses quando fui à casa da
  • 12. 12 Margie. — Ah, é? — eu disse. Ela balançou a cabeça positivamente. — Ela tem o cabelo preto, é um pouco mais alta que você. Talvez você já a tenha visto por aí. Pensei um pouco e respondi: — Não sei... — Então é ela! — disse Kirsten, de repente, jogando o garfo na mesa de qualquer jeito. — É a louca que persegue a gente na piscina. Eu sabia que ela só podia ser mais nova que a gente. — Como? — Agora era meu pai quem prestava atenção. — Tem uma louca perseguindo vocês na piscina? — Eu espero que não — disse minha mãe em um tom preocupado. —Ela não é louca de verdade — disse Kirsten. — E só uma garota que fica sempre perto da gente. Dá até arrepio. Por exemplo, ela senta perto da gente, segue a gente para todo lado e não fala nada. E está sempre tentando ouvir nossas conversas. Eu já disse pra ela não encher, mas a menina simplesmente me ignora. Não acredito que ela tenha só doze anos. Isso piora tudo. — Que drama! — resmungou Whitney, pegando uma folha de alface com seu garfo. Whitney estava certa, é claro. Kirsten era a nossa rainha do drama. Suas emoções estavam sempre à flor da pele, e sua boca, a todo vapor. Kirsten nunca parava de falar, mesmo quando percebia que ninguém estava prestando atenção. Whitney, por outro lado, era quieta, o que significava que as poucas palavras dela sempre tinham muito mais significado. — Kirsten — disse minha mãe — seja gentil. — Mãe, eu já tentei. Se você visse a menina, me entenderia. É estranha. Minha mãe tomou um pequeno gole de vinho. — Mudar para um lugar novo é difícil, você sabe. Talvez ela não saiba como fazer amigos...
  • 13. 13 — Isso é óbvio — respondeu Kirsten. — O que quer dizer que talvez você tenha que fazer um esforço também — concluiu minha mãe. — Ela tem doze anos — disse Kirsten, como fosse equivalente a ter uma doença contagiosa ou algo assim. — A sua irmã também tem — observou meu pai. Kirsten pegou o garfo e apontou para mim. — Exatamente — ela disse. Whitney bufou ao meu lado. Mas eu já era o novo alvo da atenção da minha mãe. — Bem, Annabel — ela disse — talvez você devesse fazer um pequeno esforço e pelo menos cumprimentar essa menina. Eu não contei à minha mãe que já tinha conhecido essa garota, princi- palmente porque ela teria ficado horrorizada com a grosseria da menina. Não que isso mudasse as expectativas da minha mãe com relação ao meu comportamento. Minha mãe era extremamente gentil e educada, e esperava o mesmo de nós em qualquer circunstância. Diplomacia e ética deveriam estar sempre presentes em nossas vidas. — Tá certo — eu disse. — Vou ver. — Boa menina — disse ela. E eu esperava que tudo parasse por ali. No entanto, na tarde seguinte, quando Clarke e eu chegamos à piscina, Kirsten já estava lá, deitada com Molly de um lado e a garota nova do outro. Eu tentei ignorar a situação enquanto nos arrumávamos no nosso canto, mas de vez em quando dava uma olhada para ver se Kirsten me observava. Logo depois, ela levantou, me olhou e andou até a lanchonete. A garota nova foi atrás imediatamente e eu sabia o que tinha que fazer. — Já volto — eu disse para Clarke, que lia um livro de Stephen King e assoava o nariz. — Beleza — ela disse. Eu me levantei e passei pelo trampolim, cruzando os braços ao ver Chris Pennington. Ele estava deitado na cadeira de praia com uma toalha cobrindo o rosto,
  • 14. 14 enquanto dois amigos dele lutavam no deck da piscina. Mas agora, em vez de lançar uns olhares para ele — uma das minhas principais atividades cerebrais na piscina aquele verão, além de nadar e perder no baralho — provavelmente eu seria maltratada de novo, tudo porque minha mãe insistia em criar a gente como boas samaritanas do bairro. Que ótimo. Eu poderia ter contado a Kirsten sobre o meu primeiro contato com essa garota, mas achei melhor não. Diferentemente de mim, ela não fugia de confrontos — ao contrário, gostava de enfrentar os outros e sempre ganhava. Ela era o pavio curto da família e eu já tinha perdido a conta de quantas vezes ficara em um canto encolhida e morrendo de vergonha enquanto ela dizia com todas as letras o que não tinha gostado para vendedores de loja, motoristas ou ex-namorados. Eu a amava, mas ela me deixava muito nervosa. Whitney, por outro lado, era de uma fúria silenciosa. Ela nunca dizia que estava brava, mas dava para saber pela expressão do seu rosto, do seu olhar fulminante, além daqueles suspiros profundos, que podiam ser tão agressivos quanto as palavras e que faziam qualquer um preferir que ela falasse de uma vez. Quando ela e Kirsten brigavam — e isso sempre acontecia, afinal elas só tinham dois anos de diferença — a primeira impressão que se tinha era de uma discussão de uma pessoa só, pois tudo o que se ouvia era Kirsten e sua lista sem fim de acusações e ofensas. Mas era só prestar um pouco mais de atenção para perceber o silêncio pesado de Whitney, assim como suas poucas respostas que eram muito mais mal-educadas e diretas do que o turbilhão de comentários redundantes da Kirsten. Uma aberta, outra fechada. Não é à toa que a primeira imagem que me vinha à cabeça quando eu pensava nas minhas irmãs era a de uma porta. Kirsten era a porta da frente, pela qual ela vivia entrando e saindo, falando pelos cotovelos, seguida de suas amigas barulhentas. Whitney era a porta do quarto, que ela preferia manter sempre fechada entre ela e todo mundo. Eu? Eu me sentia um meio-termo entre minhas irmãs e suas personalidades fortes, a personificação de uma área grande e nebulosa que as separava. Não era valente nem dizia tudo o que pensava, mas também não era silenciosa e calculista. Não fazia a menor idéia de como alguém me descreveria ou o que pensaria ao ouvir meu nome. Eu era só a Annabel. ―Minha mãe, que não gostava nem um pouco de conflitos,‖ odiava ver minhas irmãs brigarem.
  • 15. 15 "Por que vocês não conseguem ser gentis?", ela pedia. E minhas irmãs somente reviravam os olhos, mas eu levei a sério a mensagem: que ser gentil era o ideal, a única atitude que fazia com que as pessoas não falassem tão alto e nem fossem tão silenciosas a ponto de assustarem as outras. Bastava ser bom e gentil para não precisar se preocupar com discussões. Mas ser gentil não é tão fácil quanto parece, principalmente quando o resto do mundo pode ser muito mau. Quando cheguei à lanchonete, Kirsten tinha desaparecido (é claro), mas a garota ainda estava lá, esperando que o cara atrás do balcão lhe desse uma barra de chocolate. "Vamos lá", pensei ao andar em sua direção. "Isso não vai dar em nada mesmo." — Oi — eu disse. Ela apenas me olhou com uma expressão indecifrável. — Bom... Meu nome é Annabel. Você acabou de se mudar para cá, não é? A garota não disse nada por um tempo que parecia não ter mais fim. Vi Kirsten saindo do banheiro feminino e parar ao ver a gente conversando. — Eu — continuei ainda mais sem graça. — Eu, hã, acho que estamos no mesmo ano na escola. A garota baixou os óculos de sol até a ponta do nariz. — E? — ela perguntou com a mesma voz aguda e irônica de quando falou comigo pela primeira vez. — Eu só pensei — disse — você sabe, como a gente tem a mesma idade, que talvez pudéssemos fazer alguma coisa juntas. Sei lá. Outra pausa. Até a garota dizer como se tentasse entender tudo muito direitinho: — Você quer que a gente saia junto. Eu e você. Certo? Ela fez isso parecer tão ridículo que eu imediatamente comecei a mudar de idéia. — Quer dizer, você não precisa se não quiser — eu lhe disse. — Eu só... — Não — ela me cortou. Depois Jogou a cabeça para trás e ainda deu risada. — De jeito nenhum. Acontece que tudo teria ficado por isso mesmo se eu fosse a única pessoa ali. Eu teria dado meia-volta, morrendo de vergonha, e ido encontrar a Clarke, ponto
  • 16. 16 final. Mas eu não estava sozinha. — Espera aí — disse Kirsten em voz alta. — O que você acabou de dizer? A garota se virou. Quando ela viu a minha irmã, arregalou os olhos. — O que foi? — ela perguntou, e eu não pude deixar de perceber que essa frase, por coincidência a primeira frase que ela tinha me dito, soava diferente agora. — Eu perguntei — repetiu Kirsten com sua voz cortante — o que você acabou de falar para ela? "Droga!", pensei. — Nada — respondeu a garota. — Eu só... — Ela é minha irmã — disse Kirsten, apontando para mim — e você acabou de ser uma verdadeira vadia com ela. Eu já estava completamente sem graça e vermelha de vergonha. Kirsten, por outro lado, já colocou a mão na cintura, o que queria dizer que ela só estava começando. — Eu não fui uma vadia — disse a garota, tirando os óculos de sol. — Eu só... — Você foi e sabe disso — disse Kirsten, cortando a menina. — Então, pode parar de negar. E também pare de ficar me seguindo por aí, entendeu? Você me dá arrepios. Vem, Annabel. Eu congelei só de olhar para a cara da garota. Sem os óculos de sol e com aquela expressão de chocada, ela de repente pareceu mesmo ter doze anos, e ficou encarando a gente quando a Kirsten me pegou pelo pulso e me arrastou de volta para onde ela e as amigas estavam sentadas. — Inacreditável — ela não parava de repetir, e, quando olhei para o outro lado da piscina, vi Clarke me olhando com uma cara de ponto de interrogação, quando Kirsten me fez sentar na cadeira dela. Molly se levantou, apertando os olhos por causa do sol e amarrando o seu biquíni. — O que aconteceu? — ela perguntou, e, enquanto Kirsten começou a contar o acontecido, olhei para a lanchonete, mas a garota tinha ido embora. Então a vi através da cerca atrás de mim, atravessando o estacionamento, descalça e cabisbaixa/ela tinha deixado todas as suas coisas na cadeira ao meu lado: uma
  • 17. 17 toalha, as sandálias, uma sacola com uma revista, uma carteira e uma escova de cabelo cor-de-rosa. Fiquei esperando ela se dar conta disso e voltar, o que não aconteceu. As coisas dela ficaram lá a tarde toda. Depois, voltei a me sentar com Clarke e contei tudo para ela. Mais tarde, jogamos várias partidas de baralho e nadamos até nossos dedos ficarem enrugados. Depois, Kirsten e Molly foram embora e outras pessoas sentaram nas suas cadeiras, até que o salva-vidas finalmente apitou anunciando que era hora de fechar. Clarke e eu pegamos nossas coisas e andamos pela borda da piscina, queimadas de sol, com fome e prontas para ir para casa. Eu sabia que qualquer coisa que tivesse a ver com aquela garota não era problema meu. Afinal, ela tinha sido mal-educada comigo duas vezes e, portanto, não merecia minha pena, nem minha ajuda. Mas ao passarmos pela cadeira, Clarke parou. — Não podemos deixar as coisas dela aí — ela disse, inclinando-se para pegar as sandálias e as outras coisas e colocá-las na sacola. — E ela mora no nosso caminho para casa. Eu poderia ter discordado, mas pensei de novo na menina atravessando o estacionamento descalça e sozinha. Então, peguei a toalha da cadeira e a coloquei junto da minha. — É — eu disse. — Tá bom. Mesmo assim, ao chegarmos à antiga casa dos Daughtry, fiquei muito aliviada ao ver que todas as janelas estavam fechadas e que não tinha nenhum carro na entrada. Isso queria dizer que poderíamos apenas deixar as coisas da garota ali e acabar com aquilo. Mas quando Clarke se inclinou para colocar a sacola na porta da frente, a porta se abriu, e lá estava ela. A garota usava um short desfiado e uma camiseta vermelha, o cabelo preso em um rabo de cavalo. Sem óculos de sol. Sem sandálias de plataforma. Ao ver a gente, ela ficou vermelha de vergonha. — Oi — disse Clarke, depois de um silêncio bastante constrangedor. Então, ela espirrou antes de acrescentar: — Nós trouxemos as suas coisas. A garota ficou olhando por um segundo, como se não entendesse o que ela dizia. O que era bem possível, com o nariz sempre entupido da Clarke. Eu me inclinei para pegar a sacola e a estendi para a menina.
  • 18. 18 — Você esqueceu suas coisas — eu disse. Ela olhou para a sacola, depois para mim com uma cara desconfiada. — Ah — ela disse, pegando tudo. — Valeu. Atrás de nós vários moleques passaram de bicicleta falando muito alto. Depois, o silêncio voltou. — Querida? — eu escutei uma voz vindo do final do corredor escuro atrás dela. — Tem alguém aí? — Está tudo bem — ela disse, virando a cabeça para o lado. Depois, deu um passo à frente, fechando a porta atrás de si, e saiu para a varanda. Ela tentou disfarçar, mas pude ver seus olhos vermelhos e inchados — ela tinha chorado. E, de repente, como muitas outras vezes, ouvi na minha cabeça a voz da minha mãe: É difícil se mudar para um lugar novo. Talvez ela não saiba fazer amizade. — Olha — eu disse — sobre o que aconteceu. Minha irmã... — Tá tudo bem — ela disse, me interrompendo. — Eu estou bem — mas, ao dizer isso, sua voz engasgou um pouco e ela virou de costas para nós, colocando a mão sobre a boca. Eu fiquei lá sem ter a menor idéia do que fazer, mas, ao olhar para Clarke, vi que ela já estava procurando no bolso do short seu inseparável pacote de lenços. Então, tirou um deles e ofereceu para a garota. Um segundo depois, ela pegou o lenço em silêncio e secou o rosto. — Meu nome é Clarke — disse ela. — E essa é Annabel. Nos anos que seguiram, era desse momento que eu sempre me lembrava. No verão depois do sexto ano, eu e Clarke paradas olhando para as costas daquela garota. Talvez tudo tivesse sido diferente para mim, para todas nós, se alguma outra coisa tivesse acontecido exatamente naquele momento que, na época, parecia ser igual a todos os outros, fugaz e insignificante. A garota deu meia-volta, sem chorar — e incrivelmente recuperada — e encarou a nós duas. — Oi — ela disse. — Meu nome é Sophie.
  • 19. 19 Dois — Sophie! Finalmente era hora do almoço, o que significava que faltava meio dia para o primeiro dia de aula terminar. Ao meu redor, o corredor estava lotado e barulhento, mas, mesmo com muitas portas de armários batendo e o zumbido de vários avisos no alto-falante, ainda dava para ouvir claramente a voz de Emily Shuster. Olhei pelo corredor até a escadaria principal e percebi que ela vinha na minha direção - vi o seu cabelo vermelho balançando na multidão. Quando ela finalmente apareceu, a meio metro de onde eu estava, nossos olhares se encontraram por um instante. Depois continuou andando pelo corredor até onde Sophie esperava por ela. Como Emily tinha sido minha melhor amiga, pensei que talvez, apenas talvez, ela quisesse continuar nossa amizade. Mas, pelo jeito, não. Elas já tinham traçado os limites — e eu tinha ficado de fora. Eu tinha outros amigos, é claro. Colegas de classe, pessoas que conheci na agência de modelos Lakerview por causa dos trabalhos que fiz. No entanto, estava na cara que meu auto-isolamento durante o verão tinha surtido mais efeito do que eu pensava. Depois de tudo o que tinha acontecido, eu me excluí completamente, imaginando que seria mais seguro do que correr o risco de ser julgada pelas pessoas. Não atendi ao telefone e evitei cumprimentar as pessoas no shopping ou no cinema. Como não queria falar sobre o que tinha acontecido, achei melhor não falar nada. No entanto, o resultado era que agora, toda manhã, quando eu parava para cumprimentar garotas que conhecia ou me juntava a um grupinho conversando, sentia um momento de frieza e distância que durava até eu dar uma desculpa e me afastar. Em maio, tudo o que eu queria era ficar sozinha. Agora meu desejo tinha sido realizado. Minha ligação com Sophie não ajudava, é claro. Ser amiga dela tinha me transformado em cúmplice de todos os seus crimes sociais — que eram muitos — e de tudo que ela tinha aprontado. Portanto, a maioria dos alunos não estava exatamente
  • 20. 20 morrendo de vontade de me dar um abraço. Para as garotas que Sophie xingava ou ignorava, enquanto eu assistia a tudo sem fazer nada, provar desse veneno foi mais do que merecido. Se Sophie não podia ser deixada de lado, eu era a segunda opção. Fui até o saguão principal e parei em frente à longa fileira de portas de vidro que davam vista para o pátio. Do lado de fora, as várias panelinhas — atletas, o pessoal da arte, os do movimento estudantil, os maloqueiros — estavam espalhadas pelo pátio da escola. Todos tinham um lugar, e por um tempo eu sabia bem o meu: o grande banco de madeira à direita da entrada principal, onde Sophie e Emily estavam sentadas. E agora aqui estava eu, me perguntando se não seria melhor ficar aqui dentro. — Chegou àquela época do ano de novo — alguém atrás de mim falou alto com uma voz esganiçada. Houve uma explosão de gargalhadas e, quando me virei, vi um grupo de jogadores de futebol americano parados na frente da secretaria. O carinha alto de dread imitava o jeito com que ofereci meu braço ao garoto do comercial, enquanto os outros riam. Eu sabia que eles estavam só fazendo palhaçada. Talvez em algum outro momento eu não tivesse me importado, mas senti meu rosto ficar vermelho e logo fui lá para fora. À minha direita havia um muro enorme, então andei em direção a ele, procurando um lugar, qualquer lugar, para sentar. Havia somente duas pessoas sentadas no muro e, entre elas, uma distância que era suficiente para deixar claro que não estavam juntas. Uma pessoa era Clarke Reynolds. A outra era Owen Armstrong. Como eu não tinha muita escolha de lugar nem de companhia, me sentei entre eles. Senti os tijolos quentes nas minhas coxas enquanto tirava do saquinho o almoço que minha mãe tinha preparado para mim naquela manhã: um sanduíche de peito de peru, água e uma nectarina. Abri a garrafa de água e dei um grande gole antes de ter coragem de olhar em volta. Assim que avistei o banco, percebi que Sophie estava me observando. Quando nossos olhares se encontraram, ela me olhou com ar sério, balançando a cabeça, e depois virou para o outro lado. "Patética", eu a ouvi dizer em minha cabeça e logo afastei esse pensamento. E não era uma questão de eu querer me sentar com ela. Bem, mas também nunca esperei me ver em companhia de Clarke, de um lado, e do garoto mais bravo da escola, do outro. Pelo menos eu conhecia Clarke, ou já tinha conhecido. Mas tudo o que eu sabia sobre Owen Armstrong me foi contado por outras pessoas: que ele era alto, musculoso, com ombros largos e bíceps grandes. E ele sempre usava botas de solado grosso de
  • 21. 21 borracha que o deixavam ainda mais alto e seus passos ainda mais pesados. Seu cabelo era escuro e curto, e nunca o vi sem seu iPod e fones de ouvido, que ele usava dentro e fora da classe, com ou sem aula. E embora eu soubesse que ele devia ter amigos, nunca o vi falar com ninguém. E teve também a briga. Aconteceu em janeiro passado, no estacionamento, antes do primeiro sinal. Eu tinha acabado de sair do meu carro quando Owen, de mochila no ombro e fones de ouvido, como sempre, andava em direção ao prédio principal. No caminho, passou por Ronnie Waterman, que estava encostado em seu carro conversando com os amigos. Toda escola tem um cara igual ao Ronnie — um babaca, famoso por fazer pessoas tropeçarem no corredor, o tipo de cara que grita "Que bunda!" quando você passa perto dele. Seu irmão mais velho, Luke, era o oposto dele. Capitão do time de futebol americano e presidente do conselho estudantil, ele era um cara muito legal e querido, e era só por causa disso que as pessoas aguentavam seu insuportável irmão mais novo. Mas Luke tinha se formado no ano anterior e agora Ronnie estava sozinho na escola. Owen estava andando numa boa quando Ronnie gritou algo para ele. Owen não respondeu e Ronnie pegou o carro e parou na frente dele, bloqueando sua passagem. Eu estava longe, mas percebi que era uma péssima idéia; Ronnie não era pequeno, mas ficava minúsculo perto de Owen Armstrong, que era bem mais alto e com as costas largas. Mas parece que Ronnie ainda não tinha percebido. Ele disse algo para Owen, que apenas o olhou e desviou. Quando ele começou a andar de novo, Ronnie deu um soco no queixo dele! Owen cambaleou, mas só um pouco. Depois, jogou sua mochila no chão e deu um soco bem no meio do rosto do Ronnie. De onde eu estava, deu para ouvir o barulho de punho batendo contra osso. Ronnie caiu em segundos — o corpo primeiro, joelhos dobrando, depois os ombros, seguidos da cabeça que balançou um pouco antes de bater no chão. Então Owen abaixou a mão, passou por cima dele com toda a calma do mundo, pegou sua mochila e continuou andando. As pessoas que tinham se juntado para assistir à briga começaram a se dispersar rapidamente para dar passagem para ele. Os amigos de Ronnie já estavam em volta dele e alguém chamava o guarda do estacionamento. Mas do que mais me lembro é ver Owen se distanciando — no mesmo passo e mesmo ritmo de antes, como se nunca tivesse parado. Como se nada tivesse acontecido.
  • 22. 22 Na época, Owen estava na escola fazia somente um mês e, como resultado do incidente, ficou suspenso por outro mês. Quando voltou para as aulas, todos estavam falando sobre ele. Diziam que ele tinha cumprido pena em um reformatório, sido expulso das escolas que freqüentara antes e que fazia parte de uma gangue. Era tanto boato que, poucos meses depois, ouvi dizer que ele tinha sido preso por arranjar briga em uma balada no fim de semana, mas achei que fosse mentira. Porém, ele simplesmente sumiu e nunca mais tinha aparecido na escola. Até hoje. Apesar de tudo, bem de perto, Owen não parecia um monstro. Ele só estava sentado, de óculos escuros, camiseta vermelha e batucando no joelho enquanto ouvia música. Mesmo assim, imaginei que seria melhor ele não perceber que eu o observava. Então, depois de desembrulhar meu sanduíche e dar uma mordida, respirei fundo e olhei para o meu lado direito, para Clarke. Ela estava sentada na ponta do muro com um caderno aberto no colo, comendo uma maçã e escrevendo algo com a outra mão. Seu cabelo estava preso em um rabo de cavalo e ela usava uma camiseta branca, calça camuflada e chinelo. Na ponta do nariz, os óculos que ela tinha começado a usar um ano antes, pequenos e de armação estilo tartaruga. Um pouco depois, ela olhou para cima e então para mim. Com certeza ela ficou sabendo do que tinha acontecido em maio passado. Todos ficaram. Os segundos se passavam e ela não virava o rosto. Então, fiquei me perguntando se ela finalmente tinha me perdoado e achando que talvez, já que um problema tinha aparecido, eu poderia resolver um mais antigo. Seria bom, pois, já que nós duas havíamos sido deixadas de lado por Sophie, voltaríamos a ter algo em comum. E ela ainda estava me olhando. Eu abaixei meu sanduíche e respirei fundo. Tudo o que eu precisava fazer agora era lhe dizer algo, algo incrível, algo que talvez... Mas, de repente, ela virou o rosto. Colocou o caderno de qualquer jeito na mochila e fechou o zíper. Sua linguagem corporal era dura, seu cotovelo apontava em minha direção. Então, ela pulou do muro, colocou a mochila nos ombros e foi embora. Eu olhei para o meu sanduíche semi comido e senti um nó na garganta. O que era ridículo, porque eu sabia que Clarke sempre tinha me odiado. Pelo menos isso não era novidade. Durante o resto do almoço, fiquei sentada lá fazendo questão de não olhar
  • 23. 23 para ninguém. Quando olhei no relógio e vi que faltavam apenas cinco minutos, imaginei que o pior tinha passado. Mas estava errada. Eu estava colocando minha garrafa de água na mochila, quando ouvi um carro fazendo a volta no retorno que ficava perto do final do muro. Olhei e vi um jipe vermelho fazendo a curva. A porta do passageiro se abriu e um cara de cabelo escuro desceu, colocando um cigarro atrás da orelha enquanto se inclinava para falar com a pessoa que estava ao volante. Quando ele bateu a porta e começou a se afastar do carro, vi quem era o motorista. Will Cash. Senti um frio no estômago, como se estivesse em queda livre. Tudo escureceu, os sons ao meu redor começaram a sumir, enquanto as palmas das minhas mãos suavam muito e meu coração batia mais alto, tum-tum-tum. Eu não consegui parar de olhar para ele sentado lá, com a mão no volante, esperando pelo carro à sua frente — uma station wagon de onde uma garota tirava um violoncelo ou algum outro instrumento grande — para sair dali. Depois de um segundo ele balançou a cabeça, irritado. Shhh, Annabel. Sou só eu. Um milhão de jipes vermelhos passou diante dos meus olhos nos últimos meses e, apesar da minha vontade, eu olhava para dentro de cada um para ver aquele rosto — o rosto dele. A diferença é que agora, ali, era ele de verdade. E, enquanto eu dizia a mim mesma que em plena luz do dia eu poderia ser forte e não ter medo, me senti tão impotente quanto naquela noite, como se, mesmo em um lugar público e durante o dia, eu continuasse correndo perigo. A garota finalmente tirou sua caixa da station wagon e se despediu do motorista ao fechar a porta. No momento em que o carro partiu, fiquei vendo os olhos de Will em movimento, olhando para as pessoas no pátio sem prestar atenção em ninguém. Porém ele me viu. Fiquei encarando Will, com o coração acelerado. Durou apenas um segundo, e não percebi nenhum sinal de reconhecimento, nenhuma expressão em seu rosto, como se ele fosse um estranho, uma pessoa qualquer. Depois, ele saiu com o carro, que se tornou apenas um borrão vermelho, e foi isso. De repente, voltei a perceber o barulho e a agitação ao meu redor: o pessoal apressado para chegar à próxima aula e chamando os amigos. Ainda assim, meu olhar se manteve no jipe, observando-o enquanto subia a rua que levava à avenida principal, se afastando de mim pouco a pouco. Até que, em meio a todo aquele barulho, vozes,
  • 24. 24 movimento e mudança, virei a cabeça, tentei cobrir a boca com as mãos, mas não consegui: vomitei na grama atrás de mim. Quando me virei novamente, alguns momentos depois, o pátio estava quase vazio. Os atletas tinham saído do outro muro, a grama sob as árvores estava vazia, Emily e Sophie tinham saído do banco. Só depois de limpar minha boca e olhar para o outro lado, vi que Owen Armstrong ainda estava lá, me olhando. Seus olhos eram escuros e intensos, e fiquei tão assustada que desviei rapidamente o olhar. Quando me virei de novo, ele tinha ido embora. Sophie me odiava. Clarke me odiava. Todos me odiavam. Bom, acho que nem todos. — O pessoal da Mooshka adorou as suas fotos — disse minha mãe. Sua voz contente contrastava com os sentimentos que me afligiam enquanto eu me sentava no carro, em meio ao maior trânsito. Estávamos presas em uma fila enorme para sair do estacionamento, depois da sétima aula. — Lindy disse que eles ligaram e estavam muito animados. — Sério? — eu disse, colocando o telefone na outra orelha. — Que ótimo! Tentei parecer feliz, mas a verdade era que eu tinha esquecido com- pletamente que, alguns dias antes, minha mãe havia dito que Lindy, a minha agente, ia mandar minhas fotos para uma marca de biquínis chamada Mooshka Surfwear, que estava contratando para um novo anúncio. Posso dizer que meu trabalho como modelo não era a minha maior preocupação nos últimos tempos. — Mas tem uma coisa — ela continuou. — Lindy disse que eles querem te conhecer pessoalmente. — Ah — eu disse, enquanto a fila andava alguns milímetros. — Certo. Quando? — Bem — ela respondeu. — Na verdade... Hoje. — Hoje? — eu disse, enquanto percebi que Amanda Cheeker me ignorou completamente, sem nem olhar na minha cara ao sair com o seu carro, que mais parecia uma BMW. — Sim. Parece que um dos gerentes de publicidade está na cidade, mas fica só até esta noite. — Mãe... — O carro andou mais alguns milímetros. Coloquei a cabeça para
  • 25. 25 fora do veículo, tentando ver quem estava provocando o engarrafamento. — Eu não posso. Estou tendo um dia péssimo e... — Eu sei, querida — ela falou, como se realmente soubesse de algo, o que não era o caso. Depois de criar três filhas, minha mãe era muito bem versada na política das meninas, o que facilitou a explicação que tive que lhe dar sobre o desaparecimento repentino de Sophie com o clássico "Ela anda meio estranha" e "Eu não faço a menor idéia do que pode ter acontecido". Ela só sabe que Sophie e eu nos distanciamos. Nem consigo imaginar o que ela pensaria se eu lhe contasse a verdadeira história. Na verdade, eu consigo imaginar sim. E é exatamente por isso que eu não tinha a menor intenção de contar. — Mas a Lindy disse que eles estão interessados mesmo em você. Bati o olho no retrovisor e fiquei examinando meu rosto avermelhado, o cabelo escorrido e manchinhas de rímel em volta dos olhos, resultado de chorar escondida no banheiro depois da sexta aula. A minha aparência realmente refletia como eu estava por dentro. —Você não entende — eu disse ao andar um pouco mais com o carro. — Eu não dormi bem essa noite, estou com o rosto cansado, toda suada... — Oh, Annabel — ela disse. Senti um nó na garganta, resposta imediata ao seu tom de voz tão doce e compreensivo, e muito bem-vindo depois desse dia longo e terrível. — Eu sei, querida. Mas é só uma coisinha e depois você estará livre. — Mãe... — O sol batia nos meus olhos e só consegui pensar em como eu estava exausta. — Eu só... — Escute — ela disse. — Que tal fazermos o seguinte: você vem para casa, toma uma ducha, eu preparo um sanduíche e faço sua maquiagem. Depois te levo, a gente resolve e você não precisa mais pensar nisso de novo. Certo? Era isso o que minha mãe fazia. Sempre tinha um "Que tal fazermos o seguinte", que significava algum acordo proposto por ela, mesmo não sendo nada diferente da idéia inicial ao menos soava mais agradável. Antes, recusar era a minha prerrogativa. Depois disso, continuar recusando me faria parecer cabeça-dura. — Tudo bem — eu disse enquanto o trânsito finalmente começava a melhorar. Mais à frente, pude ver o segurança indicando para as pessoas passarem por uma Toyota azul com o pára-choque traseiro amassado. — A que horas é essa reunião?
  • 26. 26 — Às quatro. Olhei para o relógio. — Mãe, já são três e meia e eu nem saí do estacionamento. Onde é o escritório? — É no... — ela disse. Eu ouvi barulho de papel. — Mayor's Village. Levava uns bons vinte minutos para chegar lá. Já seria muita sorte não me atrasar, o que só aconteceria se eu pegasse muitos faróis verdes. — Ótimo — eu disse. — Não tem jeito mesmo. Eu sabia que estava sendo teimosa, além de petulante. E também sabia que iria à reunião e daria o meu melhor sorriso, pois tinha plena consciência que, tratando-se de minha mãe, ser teimosa e petulante era o pior que eu podia ser. Afinal de contas, eu era a boazinha, — Bem — ela disse. — Se você quiser, eu posso ligar para Lindy e dizer que você não pode. Não tem problema. — Não — eu disse ao finalmente chegar à saída do estacionamento, ligando a seta. — Tudo bem. Eu vou. Trabalho como modelo desde criança. Na verdade, até antes disso. Minha primeira sessão de fotos foi aos nove meses de idade, usando um body para um jornalzinho de ofertas da SmartMart, trabalho que consegui quando minha mãe teve que me levar junto em um teste da minha irmã Whitney porque a babá faltou. A mulher responsável pela seleção perguntou se eu estava disponível, minha mãe disse que sim, e foi assim que tudo começou. Mas essa coisa de trabalhar como modelo começou com a Kirsten. Ela tinha oito anos quando, após uma apresentação de balé, um caça-talentos foi conversar com meus pais no estacionamento e lhes deu um cartão. Meu pai deu risada achando que fosse golpe, mas minha mãe ficou tão curiosa que levou Kirsten ao escritório do cara. O agente imediatamente arrumou um teste para um comercial de uma concessionária de carros, no qual ela não passou, e para um anúncio sobre a programação de Páscoa do Shopping Lakerview, que ela acabou fazendo. Minha carreira de modelo começou com body de bebê, mas Kirsten tinha começado com coelhinhos, ou melhor, um grande coelho da Páscoa se inclinando para colocar um ovo brilhante em sua cesta enquanto ela, de vestido branco, sorria para a câmera.
  • 27. 27 Como Kirsten começou a ter muitos trabalhos, Whitney quis tentar também e logo as duas estavam fazendo testes, inclusive para os mesmos trabalhos, o que contribuiu mais para o atrito entre elas. Elas não tinham nada a ver uma com a outra, tanto no temperamento quando na aparência física. Whitney era linda, com uma estrutura óssea perfeita e um olhar cativante, enquanto Kirsten de alguma forma conseguia transmitir sua personalidade alegre e esperta com apenas um olhar. Whitney era melhor em anúncios impressos, mas Kirsten brilhava nas telas. Por causa disso, quando comecei a trabalhar como modelo, minha família já era muito conhecida no circuito local, que consistia principalmente em anúncios impressos para lojas de departamento e de desconto, além de comerciais regionais. Enquanto meu pai preferiu ficar de fora do nosso trabalho — como ele sempre fazia com qualquer "assunto de menina", de Tampax a corações partidos — minha mãe adorava. Ela amava nos levar para fazer os trabalhos, tratar de negócios com Lindy ao telefone e reunir fotos para atualizar nossos books. Mas quando lhe perguntavam sobre o assunto, ela sempre ressaltava que essa era uma escolha nossa e não dela. "Eu ficaria muito feliz em ver as meninas brincando de fazer tortas de lama no quintal de casa." Eu a ouvi dizer isso ao telefone milhões de vezes. "Mas isso é o que elas querem fazer". No entanto, a verdade era que minha mãe também adorava nosso trabalho de modelo, mesmo não querendo admitir. Porém, acredito que era mais do que isso, pois, de certa forma, isso tinha salvado a vida dela. Não em um primeiro momento, é claro. No começo, nosso trabalho como modelo era um hobby divertido para ela, algo que fazia quando não precisava trabalhar no escritório do meu pai. A gente dizia brincando que lá era o local mais fértil do planeta, pois as secretárias estavam sempre ficando grávidas, deixando para minha mãe a tarefa de atender telefones enquanto meu pai não encontrava uma substituta. Mas no ano em que fiz nove anos, minha avó morreu e algo mudou em minha mãe. As lembranças que tenho da minha avó são distantes, silenciosas e baseadas mais em fotografias do que em acontecimentos de verdade. Minha mãe era filha única e muito apegada à mãe e, apesar de morarem em lados opostos do país e se verem poucas vezes por ano, elas conversavam ao telefone quase todas as manhãs enquanto minha mãe tomava sua xícara de café. Como um relógio, se você entrasse na cozinha por volta das dez e meia a veria sentada na cadeira olhando pela janela, mexendo o café com a colher, segurando o telefone apoiado no ombro. Para mim, aquela conversa sempre pareceu a mais chata do mundo, pois os
  • 28. 28 assuntos eram a vida de pessoas que eu nunca conheci, a comida que minha mãe tinha preparado na noite anterior ou até a minha própria vida, o que me parecia muito bobo também. Para minha mãe, no entanto, era diferente. Era fundamental. Mas a gente só se deu conta da importância dessas conversas quando minha avó faleceu. Minha mãe nunca foi um pilar de força. Ela era uma mulher quieta, de fala mansa e com o rosto cheio de bondade — o tipo de pessoa pela qual você procuraria se estivesse em um lugar público e algo muito ruim acontecesse, pois lhe daria conforto instantâneo. Sempre pensei que minha mãe nunca mudaria o seu jeito e foi por isso que a mudança que ela sofreu nas semanas depois do funeral da minha avó era tão estranha. Ela ficou... Mais calada. De repente seu rosto ganhou um ar assustado e cansado e era tão óbvio que até eu, aos nove anos, percebi. Primeiro, meu pai nos garantiu que isso fazia parte do luto, que minha mãe estava cansada e que ficaria bem. Porém, ela começou a se levantar cada vez mais tarde e depois havia dias em que ela nem saía da cama. Quando ela estava acordada, eu às vezes ia para cozinha de manhã e a via sentada na mesma cadeira, com uma xícara vazia na mão, olhando pela janela — Mãe — eu dizia e ela não respondia. Então, eu a chamava de novo. Às vezes, só depois de chamar três vezes é que ela começava a virar lentamente a cabeça. Mas então eu ficava com medo, como se não quisesse ver seu rosto. E tinha medo que ela mudasse de novo e se tornasse uma pessoa que eu não conhecia, como naquela época. Minhas irmãs se lembram melhor do que eu, pois eram mais velhas e tinham mais informações. E, como sempre, cada uma tinha seu jeito de lidar com aquilo. Kirsten começou a cuidar da casa quando minha mãe não saía da cama: limpava e fazia o almoço, como se tudo estivesse normal. Quanto a Whitney, foram muitas as vezes em que a vi à espreita na porta semi aberta do quarto da minha mãe e, ao perceber que eu estava olhando, saía sem me olhar nos olhos. Sendo a filha caçula, e não sabendo como reagir, eu tentava evitar criar confusão e fazer perguntas demais. Cada vez mais, nossas vidas passaram a ser guiadas pelo estado em que minha mãe estava. Era o barômetro pelo qual medíamos tudo. Em minha cabeça, a situação podia ser percebida logo pela manhã: quando eu via que ela tinha se levantado em um horário razoável e preparava o café da manhã, estava tudo bem. Porém, quando no lugar dela encontrava meu pai se esforçando para servir cereal e fazer torradas ou, ainda pior, quando nenhum deles estava por ali, eu sabia que o dia não seria bom. Talvez fosse um sistema rudimentar, mas funcionava, mais ou menos. Além disso, eu não tinha mais nada em que me basear. — Sua mãe não está se sentindo bem — era só o que meu pai dizia quando
  • 29. 29 perguntávamos por ela quando seu lugar estava vazio na mesa de jantar, ou quando ela passava o dia sem sair do quarto e a única visão que tínhamos dela era um montinho debaixo das cobertas, e que ficava quase imperceptível na penumbra do quarto. — Nós todos temos que nos esforçar para facilitar as coisas até que ela melhore, certo? Eu me lembro de fazer que sim com a cabeça, concordando, e de ver minhas irmãs fazerem o mesmo. Porém, como fazer isso era outra questão. Para começar, eu não tinha a mínima idéia do que fazer para facilitar as coisas, nem se eu tinha feito algo para piorar tudo. O que eu entendia era que a tarefa principal era proteger a minha mãe de qualquer coisa que pudesse chateá-la, mesmo sem saber quais eram essas coisas. Logo também aprendi uma tática. Em caso de dúvida, era melhor deixar o assunto de fora — fora do campo de audição, fora da casa — mesmo se isso na verdade significasse guardá-lo dentro de mim. A depressão, ou o ''episódio" da minha mãe — nunca consegui definir exatamente — durou cerca de três meses até que meu pai a convenceu a ir ao terapeuta. Em um primeiro momento, ela foi relutante e acabou deixando de lado depois de algumas sessões, mas logo depois voltou a fazer terapia e, dessa vez, deu certo e durou um ano. Mesmo assim, não houve nenhuma mudança brusca — como se um belo dia, ao entrar na cozinha às dez e meia, eu a fosse ver alegre e disposta, como se estivesse me esperando. Ao contrário, o processo foi lento e as melhorias eram pequenas como caminhar meio milímetro por dia — e o progresso fosse notado somente depois de certa distância percorrida. Primeiro, ela parou de dormir o dia todo e, depois, começou a acordar no meio da manhã, até que, finalmente, voltou a preparar o café da manhã de vez em quando. Seus silêncios, tão perceptíveis na mesa de jantar e em todo o lugar, foram diminuindo com uma pequena conversa aqui e um comentário ali. No final das contas, foi o trabalho como modelo que me fez perceber que estávamos passando por maus momentos. Como era minha mãe que conseguia os trabalhos para a gente e combinava os testes com a Lindy, nós todas passamos a trabalhar bem menos no tempo em que ela esteve doente. Meu pai levou Whitney para alguns trabalhos e eu consegui ir a uma sessão de fotos programada com muita antecedência, mas o ritmo diminuiu, sem dúvida — até que um dia Lindy nos ligou na hora do jantar para propor um teste, e já esperando um não. — Provavelmente é melhor assim — disse meu pai, olhando para nós, sentadas à mesa, antes de levar o telefone para a cozinha. — Eu só acho que agora não é um bom momento.
  • 30. 30 Kirsten, que estava mastigando um pedaço de pão, disse: — Bom momento para o quê? — Um trabalho — Whitney respondeu secamente. — Por que então a Lindy ligaria aqui em casa na hora do jantar? Meu pai agora estava revirando a gaveta próxima ao telefone e, finalmente, encontrou um lápis. — Bom, está bem — ele disse, pegando um bloco de notas. — Eu vou só anotar as informações, mas é mais provável... Certo. Qual o endereço mesmo? Minhas irmãs ficaram de olho enquanto ele escrevia. Elas provavelmente se perguntavam qual seria o trabalho e para quem. Mas eu observava minha mãe, que não desgrudou os olhos do meu pai mesmo ao tirar o guardanapo do colo, encostando-o levemente nos cantos da boca. Quando ele voltou, sentou-se na cadeira e pegou o garfo, eu esperei que minhas irmãs perguntassem os detalhes. Mas minha mãe falou antes. — Então, o que ela queria? Meu pai olhou para ela. — Ah — ele disse — é só um teste amanhã. Lindy achou que talvez nós estivéssemos interessados. — Nós? — disse Kirsten. — Você — respondeu meu pai, pegando um pouco de feijão com o garfo. — Eu disse que esse provavelmente não era um bom momento. É de manhã e eu tenho que ir para o escritório... — Ele parou de falar, sem se preocupar em terminar a frase — e não que ele tivesse que acabar de explicar. Meu pai era arquiteto e muito ocupado com seu próprio trabalho, além de tomar conta da minha mãe e cuidar da casa, e não tinha tempo para nos levar para cima e para baixo. Kirsten sabia disso, mas estava visivelmente desapontada. Até que, no meio do silêncio depois que todos voltamos a comer, ouvi minha mãe tomar fôlego. — Eu posso levá-la — ela disse. Nós todos olhamos para ela. — Quero dizer, se ela quiser ir. — Sério? — perguntou Kirsten. — Porque isso seria...
  • 31. 31 — Grace — disse meu pai com uma voz preocupada. Kirsten voltou a sentar- se, em silêncio. — Você não precisa fazer isso. — Eu sei. — Minha mãe sorriu um sorriso abatido, mas mesmo assim era um sorriso. — Mas é só um dia, só uma coisa. Eu estou com vontade. Então, no dia seguinte, minha mãe estava de pé para o café da manhã — disso eu me lembro muito bem — e, enquanto Whitney e eu fomos para a escola, ela e Kirsten foram para o teste de um comercial de boliche. Kirsten conseguiu o trabalho. Não foi seu primeiro comercial e nem o maior. Mas toda vez que passava na televisão, eu a via fazendo aquele strike perfeito (claro que editado, pois ela jogava boliche muito mal, era a rainha da cana- leta) e me lembrava daquela noite à mesa e de que tudo finalmente voltaria ao normal. E voltou mesmo — ou mais ou menos. Minha mãe voltou a nos levar para os testes, mas era perceptível que ela nem sempre estava animada e contente. Mas, pensando bem, talvez ela nunca tivesse sido assim e talvez eu tenha apenas imaginado ou acreditado que era daquele jeito, assim como fiz com muitas outras coisas. E mesmo com o passar do tempo eu tinha dificuldade em acreditar que as coisas melhoravam de verdade. Por mais que eu quisesse ter esperança, a verdade era que estava sempre ansiosa e certa de que aquilo não duraria muito. E mesmo vendo as coisas em casa voltarem a se restabelecer, o fato de as mudanças em minha mãe terem sido tão repen- tinas, sem um começo e nem um fim definidos, me dava a impressão de que tudo aquilo poderia começar de novo a qualquer momento. Naquela época, eu tinha a sensação de que qualquer acontecimento ruim ou uma decepção seria o suficiente para ela nos deixar novamente. Talvez eu ainda sinta isso. Essa era uma das razões por que eu ainda não tinha contado para a minha mãe que não queria mais trabalhar como modelo. A verdade era que, durante todo o verão, eu me senti estranha e fiquei nervosa nos testes de um jeito que nunca tinha me sentido antes. Eu não gostava da idéia de ser examinada minuciosamente, de ter que andar na frente de estranhos que me observavam. Em junho, em um teste para comercial de biquíni, eu me esquivava toda vez que a produtora tentava ajustar o meu biquíni e sentia um nó na garganta mesmo quando pedia desculpas e dizia que estava bem. Quase contei isso para a minha mãe várias vezes, mas sempre acontecia alguma coisa e eu acabava desistindo. Eu era a única filha que continuava trabalhando como modelo. Além disso, se já é difícil tirar de uma pessoa algo que a faz feliz, tudo fica muito pior quando se trata da sua única fonte de felicidade.
  • 32. 32 Por isso, ao chegar ao Mayor's Village quinze minutos depois, não me surpreendi ao ver minha mãe me esperando. Como sempre, fiquei perplexa em ver como ela era pequena. Mas minha perspectiva era um tanto distorcida, afinal de contas, eu, a mais baixa das irmãs, tinha 1,70 metro, enquanto Kirsten era um centímetro mais alta do que eu e Whitney media 1,78 metro. Meu pai se destacava com seus 1,58 metro, fazendo minha mãe sempre destoar quando estávamos todos juntos, como naqueles testes de múltipla escolha em que você tem que eliminar a resposta diferente. Quando parei ao lado do carro dela, vi Whitney de braços cruzados sentada no banco do passageiro. Ela parecia irritada, o que não era nenhuma novidade, então nem liguei. Peguei a minha nécessaire de maquiagem da bolsa e fui ao encontro da minha mãe, que estava parada perto do pára-choque e com o porta-malas aberto. — Você não precisava ter vindo — eu disse. — Eu sei — ela respondeu sem me olhar e me dando um tupperware com um garfo em cima. — Salada de frutas. Não tive tempo de preparar um sanduíche. Sente-se. Eu me sentei, abri o pote e logo dei uma garfada. Percebi que estava faminta, é claro, pois vomitara o pouco que tinha conseguido comer no almoço. Meu Deus, que dia péssimo. Minha mãe tirou a nécessaire de maquiagem da minha mão e começou a vasculhá-la, depois pegou uma sombra compacta e meu pó de arroz. — Whitney — ela chamou —, me dê as roupas que estão aí, por favor. Whitney bufou e depois se virou para pegar as blusas que estavam no cabide pendurado atrás dela. — Pronto — ela disse secamente e quase jogando tudo no banco traseiro. Minha mãe tentou pegá-las, mas estava um pouco longe, e então tomei a iniciativa. Enquanto eu me esticava para pegar os cabides e puxá-los para mais perto, Whitney ficou segurando tudo por cerca de um segundo a mais, e fiquei surpresa com sua força quando nossos olhares se cruzaram. Depois de um tempo, ela soltou os cabides de repente e voltou a me dar as costas. Eu procurava ter paciência com a minha irmã. Em momentos como esse, tentava lembrar que não era com ela que eu estava chateada, mas com o seu distúrbio alimentar. Mas era muito difícil diferenciar uma coisa da outra, pois esse tipo de atitude sempre foi típico dela.
  • 33. 33 — Beba um pouco d'água — disse minha mãe ao me dar uma garrafa aberta, ao mesmo tempo em que pegava as blusas da minha mão. — E venha aqui. Dei um gole e fiquei parada enquanto ela passava o pó no meu rosto. Quando ela começou a passar sombra e delineador, fechei os olhos e fiquei ouvindo os carros passando na estrada. Em seguida, ela começou a procurar uma blusa, fazendo barulho com os cabides. Abri os olhos e a vi segurando uma blusinha de camurça cor-de-rosa. Shhh, Annabel. Sou só eu. — Não — eu disse. Falei em um tom mais bravo do que era a minha intenção, e minha voz soou mal-educada. Tomei fôlego, me forçando a falar de um jeito mais normal. — Essa não... Ela me olhou surpresa, depois olhou para a blusa e para mim novamente. — Tem certeza? Ela fica ótima em você. Achei que você adorasse essa blusinha! Fiz que sim com a cabeça e logo mudei a direção do meu olhar para uma minivan que passava e tinha um daqueles adesivos MEU FILHO É NOTA 10 no vidro traseiro. — Não — eu disse de novo. Ela continuava me olhando, e então completei: — Acho que fico meio estranha nela. — Ah — eu a ouvi dizendo. Como segunda opção, ela me ofereceu uma blusa azul de decote quadrado. — Aqui — ela disse ao olhar a blusa mais de perto e ver uma etiqueta nela. — Vamos lá, rápido! Já são dez para as quatro. Concordei e depois fui até a porta traseira. Entrei no carro, me abaixei para tirar minha blusa e congelei. — Mãe! — eu disse. — Sim? — Estou sem sutiã. Ouvi o barulho do seu sapato de salto na calçada enquanto ela vinha ao meu encontro. — Sem? Eu confirmei acenando com a cabeça e tentando ficar abaixada.
  • 34. 34 — Eu estava de regata e ela já vem com um sutiã embutido. Minha mãe pensou por um segundo. — Whitney — ela disse. — Me dá... Whitney fez que não com a cabeça e disse: — De jeito nenhum. Agora foi minha mãe quem respirou fundo. — Querida, por favor — ela disse. — Ajude a gente, vai? Então, fizemos o que estávamos fazendo havia cerca de nove meses: tivemos que esperar e nos preocupar com Whitney. Após um longo silêncio, ela finalmente colocou os braços para dentro da camiseta e de forma desajeitada tirou o sutiã bege pela gola, jogando-o para trás. Peguei o sutiã do chão (não usávamos exatamente o mesmo número, mas era melhor que nada) e o coloquei, arrumando a blusa. — Obrigada — eu disse. Mas ela me ignorou, é claro. — Três e cinquenta e dois — disse minha mãe. — Vamos, querida. Eu me levantei e fui até onde minha mãe estava sentada, me esperando e segurando minha bolsa, que ela me deu enquanto examinava meu rosto para ver o resultado de seu trabalho. — Feche os olhos — ela disse, inclinando-se para tirar um excesso de rímel dos meus cílios. Quando os abri de novo, ela sorriu para mim. — Você está linda. — Até parece — eu disse, mas ela me deu um olhar desaprovador, e então acrescentei: — Obrigada. Ela deu uma batidinha no relógio. — Vai lá. Nós te esperamos. — Vocês não precisam ficar aqui. Vou ficar bem. Whitney tinha ligado o carro. Ela baixou o vidro, esticando o braço para fora. Whitney estava usando mangas compridas, como sempre, mas dava para ver um pouco do seu pulso, pálido e muito magro, enquanto ela tamborilava os dedos do lado de fora do carro. Minha mãe olhou para ela e depois para mim. — Bem, pelo menos espero você entrar — ela disse. — Certo?
  • 35. 35 Fiz que sim com a cabeça e me inclinei para lhe dar um beijo bem pertinho da bochecha e sem manchá-la de batom. — Certo. Ao chegar à porta do prédio, olhei para trás. Vi minha mãe acenar para mim, e, quando acenei de volta, pude enxergar o rosto de Whitney pelo retrovisor. Ela também me olhava, mas seu rosto não tinha expressão alguma. Nesse momento, senti meu estômago revirar, algo que estava ficando bastante frequente. — Boa sorte — disse minha mãe. Eu balancei a cabeça e olhei nova- mente para Whitney. Mas ela tinha deslizado no banco e eu só pude ver o retrovisor. Nenhum reflexo.
  • 36. 36 Três Whitney sempre foi magra. Kirsten era mais cheinha e curvilínea, enquanto eu sempre tive porte mais atlético, mas minha irmã do meio nasceu com um corpo de modelo: alta e longilínea, Eu e Kirsten sempre ouvimos os fotógrafos dizerem que, apesar dos nossos rostos bonitos, nós éramos, respectivamente, gordinhas ou baixas demais para seguir carreira de modelo. E logo ficou claro que Whitney tinha potencial de verdade. Então, ficou decidido que, ao terminar o Ensino Médio, Whitney iria morar em Nova York para tentar a carreira de modelo. Kirsten fez exatamente a mesma coisa dois anos antes, quando ela implorou aos meus pais que a deixassem ir morar com duas amigas da agência de modelos. Eles concordaram, mas sob a condição de que ela se matriculasse em alguns cursos na faculdade. Apesar de conseguir manter certo equilíbrio no começo, Kirsten acabou deixando os estudos completamente de lado depois de conseguir ser escalada para alguns comerciais e anúncios impressos. Apesar de fazer alguns trabalhos, a maior parte do seu dinheiro vinha de trabalhos como hostess e garçonete. Não que isso a incomodasse muito. Desde o Ensino Médio, quando Kirsten descobriu os meninos e a cerveja — não necessariamente nessa ordem — seu interesse pela carreira de modelo diminuiu consideravelmente. Enquanto Whitney sempre se preocupava em ir dormir cedo na véspera dos trabalhos e era sempre pontual, Kirsten sempre chegava atrasada, de ressaca e com aquela cara de quem acabou de acordar. Uma vez ela chegou para uma sessão de fotos de um comercial de vestidos de baile da Kopf com um chupão tão forte no pescoço que nem maquiagem conseguiu escondê-lo completamente. Quando os anúncios começaram a circular, algumas sema- nas depois, ela caiu na gargalhada ao me mostrar um círculo marrom que mal dava para ver sob uma tira do vestido que parecia de princesa. Minha mãe tinha mais expectativas com relação à Whitney, e, duas semanas depois de terminar o Ensino Médio, ela se mudou para o apartamento onde Kirsten estava morando sozinha. Em minha opinião, a idéia de as duas morarem juntas estava errada desde o começo, mas meus pais já haviam resolvido: Whitney tinha apenas dezoito anos e precisava de alguém da família por perto, e já que meus pais ajudavam
  • 37. 37 Kirsten a pagar o aluguel, ela não tinha muito motivo para reclamar. (Mas reclamou, é claro.) Além disso, de acordo com minha mãe, elas estavam mais maduras agora e os conflitos antigos tinham ficado no passado. Logo que Whitney se mudou, minha mãe ficou lá um tempo para que ela se instalasse, e também para matriculá-la em alguns cursos e acompanhá-la em suas primeiras visitas a agências. Toda noite, ela ligava depois do jantar para contar a meu pai e a mim como as coisas iam e parecia mais feliz do que nunca quando falava das celebridades que tinha visto, das reuniões nas agências e do ritmo caótico e acelerado de Nova York. Uma semana depois, Whitney foi para seu primeiro teste e conseguiu seu primeiro trabalho em seguida. Quando minha mãe voltou para casa, um mês depois, Whitney estava trabalhando muito mais do que Kirsten. Tudo estava correndo exatamente como planejado... E de repente não estava mais. Minhas irmãs estavam morando fazia uns quatro meses quando Kirsten começou a ligar para minha mãe para contar que Whitney estava se comportando de forma estranha, que tinha emagrecido e parecia não estar comendo, e, além disso, toda vez que Kirsten tentava tocar em qualquer um desses assuntos, ela ficava irritada. No começo, não parecia ser motivo para preocupação, pois Whitney sempre foi temperamental e nem meus pais esperavam que a convivência entre as duas fosse um mar de rosas. Minha mãe chegou à conclusão de que o mais provável era que Kirsten estivesse fazendo drama, pois se Whitney tivesse perdido um pouco de peso, deveria ser pelo fato de ela realmente trabalhar em um mercado muito competitivo, o que significaria uma exigência maior em relação à sua aparência. Conforme ela ganhasse confiança em si mesma, tudo ficaria mais equilibrado. No entanto, foi só olhar para Whitney para percebermos as mudanças muito bem. Antes, ela era elegante, leve; agora estava esquelética e sua cabeça parecia grande demais para o corpo e pesada sobre o pescoço. Ela e Kirsten tinham vindo juntas para passar o feriado de Ação de Graças e, quando fomos pegá-las no aeroporto, o contraste era enorme. Lá estava Kirsten usando um suéter cor-de-rosa, de bochechas rosadas, olhos azuis e pele quente ao me dar um abraço, choramingando que sentia muitas saudades nossas. Ao seu lado, Whitney, usando uma calça de moletom, uma blusa preta de gola alta e mangas compridas, sem maquiagem e pálida. Foi um choque, mas ninguém disse nada naquele momento, apenas nos cumprimentamos, nos abraçamos e perguntamos como tinha sido a viagem. Mas ao andarmos em direção à esteira para pegar as bagagens, minha mãe não aguentou e perguntou: — Whitney, querida — disse minha mãe. — Você parece exausta. Ainda é por causa daquela gripe?
  • 38. 38 — Eu estou bem — disse Whitney. — Não, ela não está — informou Kirsten de forma direta, pegando sua mala. — Ela não come. Nunca. Ela está se matando. Meus pais se entreolharam. — Ah não, ela só esteve doente — minha mãe disse. Ela olhou para Whitney que, por sua vez, encarava Kirsten com muita raiva. — Não é, querida? — Errado — Kirsten respondeu. Para Whitney, ela disse: — Como con- versamos no avião: ou você conta ou conto eu. — Cale a boca — disse Whitney, por entre os dentes. — Calma — disse meu pai. — Vamos pegar as malas. Essa atitude era a cara do meu pai, o homem solitário em nosso ambiente familiar carregado de estrógeno. Sua forma de lidar com qualquer tipo de problema emocional ou conflito era fazendo algo concreto e específico: conversas sobre cólicas e fluxo menstrual durante o café da manhã? Ele se levantava para trocar o óleo de um dos carros. Chegar em casa ao prantos por razões sobre as quais você não quer conversar? Ele preparava um misto quente — que ele mesmo acabaria comendo. Início de uma crise familiar em um lugar público? Malas. Era hora de pegar as malas. Minha mãe ainda observava Whitney com ar preocupado. — Querida? — ela disse em um tom macio, enquanto meu pai arrancava outra mala da esteira. — É verdade? O que está acontecendo? — Eu estou bem — disse Whitney novamente. — Ela só está com inveja porque estou conseguindo muitos trabalhos. — Ah, por favor — disse Kirsten. — Eu estou pouco me lixando e você sabe disso. Minha mãe arregalou os olhos e, mais uma vez, pensei nela entre nós, tão pequena e frágil. — Que linguajar é esse? — meu pai perguntou a Kirsten. — Pai, você não entende — ela respondeu. — Isso é sério. Whitney tem um distúrbio alimentar. Se ninguém ajudá-la, ela vai... — Cale essa boca! — Whitney gritou descontrolada e com a voz esganiçada.
  • 39. 39 — Cale essa sua boca! Ficamos tão surpresos com o escândalo — afinal, estávamos acostumados só com os chiliques da Kirsten — que ficamos parados durante um segundo, pensando se aquilo realmente tinha acontecido. Até que percebi as pessoas nos olhando, deixando óbvio que sim. Eu vi o rosto da minha mãe ficar vermelho; ela estava envergonhada. — Andrew — ela disse, aproximando-se do meu pai. — Eu não... — Vamos para o carro — falou meu pai ao pegar a mala de Whitney. — Agora. Nós fomos. Em silêncio, meus pais andavam na frente, o braço do meu pai sobre os ombros da minha mãe, Whitney ia atrás deles, de cabeça baixa, e Kirsten e eu éramos as últimas. Enquanto andávamos, ela deslizou a mão para segurar a minha. Sua palma era a única coisa quente naquele frio. — Eles têm que saber — ela disse. Porém, quando virei meu rosto na sua direção, Kirsten olhava para frente e fiquei na dúvida se era comigo mesmo que ela estava falando. — É a coisa certa a fazer. Eu preciso fazer isso. Quando chegamos ao carro, ninguém falou uma palavra. Nem quando saímos do estacionamento e nem quando chegamos à rodovia. No banco de trás, sentada entre as minhas duas irmãs, eu sentia Kirsten respirar fundo, como se fosse dizer algo, mas ela não deu um pio. Do outro lado, Whitney estava encostada na janela, olhando para fora, com as mãos no colo. Fiquei observando seus pulsos, que estavam magros, ossudos e pálidos em contraste com o preto da sua calça de moletom. No banco dianteiro, meus pais olhavam para frente e, de vez em quando, eu percebia o ombro do meu pai se mexendo e sabia que ele fazia carinho na mão da minha mãe, para consolá-la. Assim que paramos na garagem, Whitney abriu sua porta. Em poucos segundos ela chegou à porta da cozinha e entrou na casa, batendo a porta com força. Ao meu lado, Kirsten suspirou. — Bem — ela disse calmamente enquanto meu pai desligava o carro. — Nós precisamos conversar. Eles conversaram, mas não pude participar. Eles deixaram bem claro ("Annabel, que tal ir fazer a lição de casa?") que eu não deveria entrar nessa conversa. Então, fiquei no meu quarto, com um livro de matemática aberto no colo,
  • 40. 40 me esforçando para entender o que estava sendo dito lá embaixo. Pude ouvir os tons graves do meu pai e os tons mais agudos de minha mãe, e mudanças ocasionais para o tom de Kirsten. Na outra parede, o silêncio de Whitney em seu quarto. Finalmente, minha mãe subiu as escadas e passou em frente ao meu quarto para bater na porta do quarto de Whitney. Quando não teve resposta, ela disse: — Whitney, querida, me deixe entrar. — E nada. Ela ficou lá durante um ou dois minutos antes de eu ouvir a porta se abrir e depois fechar novamente. Desci as escadas e vi Kirsten e meu pai sentados à mesa da cozinha olhando para um queijo quente. — Olha, pai — ela disse enquanto eu abria a porta do armário para pegar um copo — ela explica tudo de forma bem convincente. Ela vai fazer uma lavagem cerebral em mamãe em três segundos. — Tenho certeza de que não é assim — disse meu pai a ela. — Dê um pouco de crédito para sua mãe. Kirsten fez que não com a cabeça. — Ela está doente, pai. Ela quase nunca come, e quando come, é estranho. Não come nem meia maçã no café da manhã e só três bolachas salgadas no almoço. E malha o tempo todo. A academia que fica na esquina de casa é 24 horas, e, às vezes, eu me levanto e ela não está em casa. Sei que ela está na academia. — Talvez ela não esteja — disse meu pai. — Eu já segui a Whitney, pai. Algumas vezes. Ela fica horas correndo na esteira. Olha, assim que cheguei naquela cidade, fiz uma amiga, e a moça com quem ela dividia o apartamento estava exatamente desse jeito. Ela chegou a pesar quarenta quilos ou algo assim: ela foi parar no hospital. Isso é muito sério. Meu pai não se manifestou durante um segundo. — Vamos ouvir o lado dela — ele disse. — E aí poderemos ver em que pé estamos. Annabel? — Sim. — Que tal ir terminar de fazer sua lição de casa?
  • 41. 41 — Está bem — eu disse. Terminei meu copo de água, o coloquei na lava- louças e subi novamente. Ao mesmo tempo em que me esforçava para prestar atenção nos paralelogramas, podia ouvir minha mãe conversando com Whitney no quarto ao lado, sua voz macia e suave. Eu estava quase terminando a lição de casa quando a porta se abriu. — Eu sei — dizia minha mãe. — Faça o seguinte: tome um banho, durma um pouco e eu te acordo na hora do jantar, tá? Vai dar tudo certo. Ouvi um suspiro e concluí que era Whitney concordando, e logo minha mãe passou novamente em frente ao meu quarto. Dessa vez, ela me olhou. — Está tudo bem — ela disse. — Não se preocupe. Relembrando de tudo, eu não tenho a menor dúvida de que minha mãe realmente acreditava no que estava falando. Mais tarde, fiquei sabendo que Whitney tinha tranquilizado minha mãe, dizendo que estava apenas trabalhando demais e muito cansada, e que realmente estava malhando mais e comendo menos, pois havia descoberto que era um pouco mais cheinha do que as garotas com as quais fazia testes, mas não era nada exagerado. E continuou dizendo que, se Kirsten pensava que ela não estava comendo, era porque elas tinham horários completamente diferentes, já que Kirsten trabalhava à noite e Whitney de dia. E que ela achava que isso era mais do que preocupação, pois, desde que chegou a Nova York, Whitney logo conseguiu muito mais trabalhos do que Kirsten, e talvez ela não estivesse lidando bem com isso. Talvez ela estivesse com inveja. — Eu não estou com inveja! — ouvi Kirsten dizer toda cheia de raiva, poucos minutos depois de minha mãe ter descido. — Vocês não conseguem ver? Ela enganou vocês. Acordem! Mais coisas foram ditas, é claro, mas não consegui ouvir. E uma hora depois, quando me chamaram para jantar, o que quer que tenha acontecido já tinha terminado e estávamos de volta à boa e velha configuração da família Greene, fingindo estar tudo bem. E eu tinha certeza de que assim parecia — ao menos para quem olhava de fora. Foi meu pai quem projetou nossa casa, que, na época, era a mais moderna da vizinhança. Todos a chamavam de "A Casa de Vidro", apesar de ela não ser realmente toda feita de vidro, apenas a sua frente. Do lado de fora, dava para ver todo o térreo: a sala de estar, dividida por uma lareira de pedra enorme, além da cozinha e da piscina que ficava atrás, no quintal. Também era possível ver as escadas e parte do segundo andar: o corredor do meu quarto e do quarto da Whitney,
  • 42. 42 e a plataforma da escada entre eles, dividida pela chaminé. Então, tinha-se a impressão de que dava para ver tudo, mas na verdade, não dava. Porém, a sala de jantar ficava bem na frente da casa, então ficávamos sempre expostos durante o jantar. Do meu lugar à mesa, eu podia ver os carros passando na rua, e eles sempre diminuíam um pouco a velocidade para nos observar nesse recorte do cotidiano: uma família feliz em volta de uma mesa farta. Mas todos sabem que as aparências enganam. Naquela noite, Whitney comeu normalmente. Kirsten tomou vinho demais, e minha mãe ficou dizendo como era maravilhoso o fato de estarem todos reunidos, finalmente. E ela repetiu isso pelos três dias que se seguiram. Na manhã em que elas foram embora, minha mãe fez as duas se sentarem à mesa da cozinha e pediu para que fizessem uma promessa. Ela queria que Whitney cuidasse melhor de si mesma, dormisse mais e mantivesse uma alimentação saudável. Pediu para Kirsten prestar atenção em Whitney e tentar ser mais solidária, pois a irmã estava sob muita pressão morando em Nova York e trabalhando muito. — Certo? — ela disse, olhando para uma e para outra. — Certo — disse Whitney. — Eu prometo. Kirsten, no entanto, apenas balançou a cabeça. — O problema não sou eu — ela disse a minha mãe, afastando a cadeira e se levantando. — Eu avisei. Só digo isso. Eu avisei e vocês escolheram não me ouvir. Só quero que todos tenham isso em mente. — Kirsten — disse minha mãe, mas ela já tinha saído da cozinha e ido para a garagem, onde estava meu pai, colocando as malas no carro. — Não se preocupe — disse Whitney, levantando-se e dando um beijo na bochecha da minha mãe. — Está tudo bem. Por um tempo, tudo pareceu estar bem mesmo. Whitney continuava fazendo vários trabalhos, inclusive uma sessão de fotos para a revista Nova York, o mais importante de sua carreira até então. Kirsten conseguiu um novo trabalho de hostess em um restaurante famoso e fez um comercial de TV a cabo. Se elas não estavam se dando bem, nós não ficamos sabendo, pois, em vez de ligarem juntas para casa uma vez por semana, elas ligavam em dias diferentes. Kirsten normalmente ligava no fim da manhã e Whitney, à noite. Até que, uma semana antes de elas virem para casa passar o Natal, recebemos uma ligação durante o jantar.
  • 43. 43 — Desculpe-me, o quê? — disse minha mãe segurando o telefone e de pé entre a cozinha e a sala de jantar. Meu pai a observou enquanto ela levantou a mão, colocando-a contra a outra orelha para ouvir melhor. — O que é? — Gracie? — Meu pai se levantou. — O que é? Minha mãe balançou a cabeça. — Eu não sei — ela disse passando o telefone para ele. — Eu não... — Alô? — disse meu pai. — Quem fala?... Ah... Entendo... Certo... Bom, isso é um engano, tenho certeza... Um momento, vou procurar a informação correta. Quando ele colocou o telefone de lado, minha mãe disse: — Eu não consegui entender essa mulher. O que ela estava dizendo? — Há um problema com o cartão do convênio médico de Whitney — ele respondeu. — Parece que ela foi ao hospital hoje. — Ao hospital?—A voz da minha mãe foi adquirindo aquele tom assustador que sempre fez meu coração acelerar em um segundo. — Ela está bem? O que aconteceu? —Eu não sei — respondeu meu pai. — Ela já recebeu alta, há apenas um problema com a cobrança. Preciso achar o cartão novo dela... Enquanto meu pai subia para o escritório para procurar o cartão, minha mãe pegou o telefone novamente e tentou obter alguma informação da mulher que tinha ligado. No entanto, por questões de privacidade, ela não disse muita coisa, apenas informou que Whitney tinha chegado de ambulância poucas horas antes. Assim que resolveu a questão do pagamento, ele ligou para o apartamento de Kirsten e Whitney. Kirsten atendeu. — Eu tentei contar para vocês — era tudo o que ela dizia. Pude ouvir a sua voz de onde eu estava. — Eu tentei. — Passe o telefone para a sua irmã — disse meu pai. — Agora. Whitney pegou o telefone e eu podia ouvi-la falar com meus pais. Sua voz era alta e alegre. Mais tarde, fiquei sabendo a história que ela contou para eles: que não era nada demais, pois só estava muito desidratada - resultado de uma sinusite — e acabou desmaiando durante a aula. Parecia ter sido mais grave do que realmente foi e a ambulância foi chamada por alguém que entrou em pânico. Ela não tinha nos
  • 44. 44 contado porque não queria deixar minha mãe preocupada, pois não era nada demais. Mesmo. — Talvez eu deva passar um tempo aí — disse minha mãe. — Só para garantir. Whitney disse que não, não era necessário, pois elas viriam para casa em duas semanas para o Natal e era disso que ela estava precisando: uma pausa para dormir melhor. E ela ficaria bem novamente. — Você tem certeza? — perguntou minha mãe. Sim, ela tinha certeza absoluta. Antes de desligar, meu pai pediu para falar com Kirsten novamente. — Sua irmã está bem? — ele perguntou. — Não — Kirsten respondeu. — Ela não está bem. Mesmo assim, minha mãe não viajou para lá. Esse foi o maior erro de todos e até hoje é a única coisa que não consigo entender. Por algum motivo, ela acreditou na Whitney. E foi um erro. Quando Whitney chegou sozinha para o Natal, pois Kirsten precisou ficar mais tempo em Nova York por causa do trabalho, meu pai foi pegá-la no aeroporto, enquanto eu e minha mãe ficamos em casa preparando o jantar. Quando eles chegaram, ao olhar para a minha irmã, não acreditei no que vi. Ela estava magra demais! Esquelética. Era claramente perceptível, mesmo que ela usasse roupas mais largas do que na última vez que a vi. Seus olhos pareciam afundar no rosto e dava para ver os tendões do seu pescoço se movimentando como fios de marionetes toda vez que ela virava a cabeça. Não consegui fazer mais nada além de ficar encarando minha irmã. — Annabel — ela disse, incomodada. — Vem aqui me dar um abraço. Eu larguei o descascador de legumes que estava segurando e atravessei a cozinha devagar. Ao colocar meus braços em volta da minha irmã, senti como se ela fosse quebrar a qualquer momento, pois parecia muito frágil. Meu pai estava parado atrás dela segurando a sua mala e, quando olhei para o seu rosto, percebi que ele também estava chocado com a mudança que Whitney tinha sofrido em apenas um mês. Minha mãe não se deu conta de nada disso, ou pelo menos não se ma- nifestou. Ao contrário, quando me afastei de Whitney, ela deu um passo à frente,
  • 45. 45 sorrindo, e a trouxe para perto de si. — Ah, querida — ela disse. — Você está trabalhando tanto! Ao se inclinar para frente e repousar a cabeça sobre o ombro da minha mãe, Whitney fechou os olhos. Suas pálpebras pareciam quase translúcidas, o que me deixou com muito medo. — Você vai se sentir melhor, pode deixar — disse minha mãe — e começando agora mesmo. Vá lavar o rosto. O jantar está pronto. — Ah, mas não estou com fome — disse Whitney. — Eu comi no aeroporto antes de embarcar. — Comeu? — Minha mãe pareceu chateada. Ela tinha passado o dia inteiro cozinhando. — Bem, mas com certeza consegue tomar um pouquinho de sopa de legumes. Fiz especialmente para você, afinal não é disso que está precisando para acordar o seu sistema imunológico? — Na boa, eu só quero dormir — disse Whitney. — Eu estou muito cansada. Minha mãe olhou para meu pai que, por sua vez, continuava muito sério observando Whitney. — Está bem, então, vá se deitar um pouco. Você pode comer quando acordar, não é mesmo? Mas Whitney não comeu naquela noite, pois dormiu até o outro dia e não se manifestou em nenhuma das vezes que minha mãe subiu com uma bandeja, nem na manhã seguinte: ela disse ter se levantado bem cedinho e já ter tomado café da manhã quando meu pai, o madrugador da casa, desceu para fazer café. Na hora do almoço, ela dormiu novamente. E, finalmente, no jantar, minha mãe a fez sentar-se à mesa conosco. Whitney estava sentada ao meu lado e, logo que meu pai começou a nos servir o jantar, cortando o rosbife e colocando as fatias nos pratos, eu fiquei totalmente atenta ao fato de Whitney não conseguir ficar parada, se contorcendo toda nervosa, puxando o punho da manga do seu moletom largo. Ela cruzou e descruzou as pernas, depois tomou um gole de água e puxou a manga do moletom de novo. Eu podia sentir o estresse que emanava dela, era perceptível. E quando meu pai colocou na frente dela um prato cheio de carne, batatas, ervilhas e um bom pedaço do famoso pão de alho da minha
  • 46. 46 mãe, ela perdeu o controle. — Eu não estou com fome mesmo — ela disse rapidamente, afastando o prato. — Não estou. — Whitney — meu pai disse. — Coma. — Eu não quero — ela disse com raiva. E do outro lado da mesa estava minha mãe, com um ar tão chateado que partia o meu coração. — Isso é por causa da Kirsten, não é? Foi ela quem falou para vocês fazerem isso. — Não — disse minha mãe — isso é por sua causa, querida. Você precisa ficar bem. — Não estou doente — disse Whitney. — Eu estou bem. Só estou cansada, e não vou comer se não estou com fome. Não vou. Vocês não podem me obrigar. Nós ficamos lá, sentados, observando-a puxar novamente a manga do moletom, com os olhos fixos na mesa. — Whitney — disse meu pai — você está magra demais. Você precisa... — Não me venha dizer o que eu preciso — ela disse, arrastando a cadeira para trás e se levantando. — Você não tem a menor idéia do que eu preciso. Se tivesse, nós nem estaríamos tendo esta conversa. — Querida, nós queremos te ajudar — disse minha mãe com sua voz doce. — Nós queremos... — Então, me deixem em paz! — Ela bateu a cadeira com força na mesa, fazendo os pratos pularem, e saiu batendo os pés. Um segundo depois, eu ouvi a porta da frente abrir e fechar. Ela saiu. O que aconteceu em seguida: depois de se esforçar para acalmar minha mãe, meu pai pegou o carro e saiu para procurar Whitney. Minha mãe se acomodou em uma cadeira do hall de entrada, e eu terminei rapidamente meu jantar, depois cobri os pratos deles com filme plástico e lavei a louça. Eu estava terminando quando vi o carro do meu pai na entrada. Quando ele e Whitney entraram em casa, ela não olhava para ninguém. Em vez disso, ficou de cabeça baixa e olhando para o chão enquanto meu pai explicava que ela comeria um pouco e depois voltaria a dormir, na esperança de que as coisas melhorassem amanhã. Não houve uma discussão sobre esse acordo e nem como os
  • 47. 47 dois tinham chegado a ele. Já estava decidido. Naquele momento, minha mãe me pediu para subir, então não cheguei a ver Whitney jantando, nem se houve alguma outra briga por causa disso. Porém, mais tarde, quando a casa ficou silenciosa e tive certeza de que todos estavam dormindo, eu desci. Havia apenas um prato dos três que eu tinha embalado e, apesar de ele parecer ter sido remexido, ainda havia muita comida. Peguei algo para beliscar e fui para a sala de TV, onde assisti à reprise de um reality show sobre transformações e um noticiário local. Quando finalmente subi de novo, era aquela hora da noite quando através do vidro se pode ver a lua brilhando e iluminando tudo. Ver tanta luz dentro de casa era algo que sempre me pareceu estranho e, ao passar pela claridade, cobri os olhos. O corredor do meu quarto e do quarto da Whitney estava iluminado também e apenas o meio estava no escuro por causa da sombra da chaminé. Quando pisei naquela parte escura, pensei ter sentido o ar úmido, como vapor. Só o que sei é que de repente tive a sensação de todo o ar ter mudado, ficando mais pesado. Por um segundo, fiquei parada, inalando aquilo. O banheiro ficava do outro lado do corredor, e dava para ver que a luz estava apagada pela fresta embaixo da porta, mas, conforme eu seguia em frente, o vapor ficava mais pesado e pungente, e eu podia ouvir o barulho da água caindo. Era tudo muito estranho. Eu podia entender que alguém tivesse esquecido a torneira ligada, mas o chuveiro? Bem, Whitney estava agindo de modo estranho desde que chegou, então, tudo era possível. Finalmente cheguei à porta entreaberta, e a empurrei. A porta logo bateu em algo e voltou em minha direção. Eu a abri novamente, senti o vapor direto em meu rosto, já grudando na minha pele. Eu não enxergava nada, e só consegui ouvir a água, então tateei a parede à minha direita até finalmente encontrar o interruptor. Whitney estava no chão, aos meus pés. Foi no ombro dela que a porta bateu quando tentei abri-la pela primeira vez. Ela estava deitada com os joelhos próximos ao peito e envolta em uma toalha, sua bochecha contra o piso. Como eu havia suspeitado, o chuveiro estava no máximo e uma poça de água já estava se formando, pois a quantidade de água era grande demais para escoar pelo ralo. — Whitney? — eu disse, me agachando ao lado dela. Eu não tinha idéia do que ela estaria fazendo ali no escuro, sozinha e àquela hora da noite. —
  • 48. 48 Você está... Foi nesse momento que vi o vaso sanitário. A tampa estava levantada e dentro havia uma mistura amarela com um tom de vermelho, e logo percebi de alguma forma que era sangue. — Whitney. — Coloquei minha mão sobre seu rosto. Sua pele estava quente e suas pálpebras palpitavam. Eu a peguei pelo ombro e a sacudi. — Whitney, acorda. Ela não acordou, mas se moveu o suficiente para a toalha se abrir. E, então, eu finalmente vi o que minha irmã tinha feito consigo mesma. Ela era puro osso. Foi a primeira coisa que pensei. Ossos e calombos, cada nozinho da sua coluna vertebral era protuberante e visível. Os ossos do quadril saltados, seus joelhos magros e pálidos. Era impossível que ela conseguisse ser tão magra e ainda estar viva, e mais impossível ainda que ela tenha conseguido esconder isso. E quando ela se mexeu novamente, eu vi a única coisa que me lembraria para sempre: suas duas escápulas pontudas e saltadas iguais às asas dos filhotes de passarinhos mortos, sem pele e recém-nascidos que encontrei uma vez no nosso quintal. — Pai! — gritei. Minha voz era extremamente alta naquele cômodo tão pequeno. — Pai! Lembro-me pouco do resto daquela noite. Meu pai atrapalhado colocando seus óculos enquanto corria pelo corredor de pijama. Minha mãe atrás dele, parada e iluminada por aquele único feixe de luz do outro lado do corredor, suas mãos no rosto ao me afastar do local e, depois, se abaixando ao lado de Whitney e colocando a orelha sobre seu peito. A ambulância, suas luzes que giravam e faziam a casa parecer um caleidoscópio. E depois o silêncio quando ela partiu, levando Whitney e minha mãe. Meu pai a seguindo de carro. Disseram-me para ficar onde eu estava e esperar notícias. Eu não sabia o que fazer. Então, voltei para o banheiro e limpei tudo. Dei descarga sem olhar para o conteúdo do vaso, depois sequei a água que tinha transbordado no chão, levei para a lavanderia as toalhas que eu tinha usado e coloquei-as na máquina. Em seguida, me sentei na sala de estar, sob o luar, e esperei. Foi meu pai quem finalmente ligou, horas depois. O barulho do telefone me fez pular do sofá, e, quando atendi, percebi que o sol já nascia na frente da casa e o
  • 49. 49 céu estava cor-de-rosa e vermelho. — Sua irmã vai ficar bem — ele disse. — Quando chegarmos em casa, vamos explicar o que está acontecendo. Depois de desligar o telefone, voltei para meu quarto, me deitei e dormi por mais duas horas até ouvir a porta da garagem se abrindo e perceber que eles tinham chegado. Quando desci para a cozinha, minha mãe fazia café, de costas para mim. Ela usava a mesma roupa da noite anterior e seu cabelo estava despenteado. — Mãe — eu disse. Quando ela se virou, vi seu rosto e senti um aperto no coração. Sua aparência era igual àquela de anos atrás: o rosto muito cansado, os olhos inchados de tanto chorar e uma expressão assombrada. Senti um pânico de repente e fiquei com vontade de me enrolar em volta dela, de ficar entre ela e o mundo, protegendo-a de tudo que pudesse fazer mal a ela, a mim e a qualquer um de nós. E, então, aconteceu. Minha mãe começou a chorar. Com os olhos cheios de lágrimas, ela olhou para suas mãos, que tremiam, e em seguida começou a soluçar alto na cozinha silenciosa. Dei um passo à frente, sem saber o que fazer naquela situação. Por sorte, não precisei fazer nada. — Grace — disse meu pai, que estava parado entre o seu escritório e o corredor. — Querida. Está tudo bem. Os ombros de minha mãe tremiam enquanto ela respirava fundo. — Ai, meu Deus, Andrew. O que nós... Meu pai atravessou o corredor em direção a ela e a abraçou, envolvendo-a com seu corpo grande. Ela enterrou o rosto em seu peito, entre soluços abafados. Eu me retirei com o intuito de ficar fora de seu campo de visão e me sentei na sala de jantar. Ainda podia ouvi-la chorando e era terrível. Mas vê-la era muito pior. Depois, meu pai acalmou minha mãe e lhe disse para subir, tomar um banho e tentar descansar. Ele, então, desceu novamente e se sentou na minha frente. — Sua irmã está muito doente - ele disse. — Ela emagreceu demais e parece que não come normalmente há meses. Seu organismo apagou ontem à noite. — Ela vai ficar bem? — perguntei. Ele passou a mão no rosto, respondendo depois de um tempo: