SlideShare une entreprise Scribd logo
1  sur  58
O NATAL
NA VOZ DO POVO DE
PROENÇA-A-NOVA
inéditos e recolhas do património oral popular
Dezembro 2008
inéditos e recolhas do património oral popular
FICHATÉCNICA
Título
ONatal na Voz doPovo deProença-a-NovaII
Inéditoserecolhasdopatrimóniooral popular
Coordenação
João CrisóstomoManso (VereadordoPelouro daEducação)
Autores
Kapulana (Francisco José Simões Cabral); Edusaca (Maria
da Conceição Balau Martins Catarino); Diogo Dias (Maria
Inês Cardoso); Alberta, Maria do Carmo, Ascensão (Maria
da Ascensão Delgado); Maria Giesta (Susana Pereira
Manso); Joskua, Maria (Maria Emília de Jesus Lopes
Marques); Chagall, Vivaldi (José Ribeiro Farinha); Maria
Perpétua (Maria Leonarda Tavares); Joaquinzinho, Sol
Nado, Bibaru(José EmílioSequeira Ribeiro)
Ilustradores
Alfredo Cavalheiro, Francisco José Simões Cabral, Paulo
Santiago SílviaMathys
Colaboradores
Catarina Alves, Carla Gaspar (Câmara Municipal de
Proença-a-Nova / Biblioteca Municipal de Proença-a-Nova);
Prof. Gil, Prof. Jorge Cardoso, Prof. Alfredo Bernardo Serra,
Prof.Helena
Edição
Câmara Municipal deProença-a-Nova
1ª Edição,Dezembro 2009
Tiragem
500exemplares
Impressão
GráficaProencense,Lda.
DepósitoLegal
O NATAL
NA VOZ DO POVO DE PROENÇA-A-NOVA II
O NATAL
PREFÁCIO
O Natal na Voz do Povo traz-nos pela segunda vez
memórias escritas registadas nos contos e também nos
presenteiacomo sentirpoéticodaquadra natalícia.
Os autores dos contos recuperam histórias,
reavivam sentimentos e, sobretudo, perpetuam na letra
toda a vivência do Natal pelas gentes de Proença-a-Nova,
enfim, falam daquelas coisas boas e simples do Natal que
adoçam a vida.
Nesta edição do Natal na Voz do Povo, confirma-
se em Revelações a magia do Natal e retrata-se o viver
sócio-familiar na humildade dos lares pobres e rurais; há
um particular que vale a pena relevar: enquanto o conto
Marungo nos leva para terras de África onde o pequeno
Muana vive na esperança de um dia realizar o sonho de
ver o mar...e então seria Natal!...nos demais contos
revelam-se agruras da separação da família e enaltecem-se
as alegrias do retorno da paz pela reconciliação dos
familiares desavindos e no regresso para o bucolismo do
natal na aldeia.
Cantar o natal em verso parece trivial e ao
alcance de qualquer um. Porém, eis que mais uma vez
somos surpreendidospeloestro poéticodosproencenses.
Fica provado que pelo verso se pode rezar ao Menino
Jesus e reviver o Natal de outros tempos e da gente sofrida,
a mesma gente que com fé no Natal tem esperança num
mundo melhor.
Porque neste Natal na Voz do Povo ressuma
exponencialmente a capacidade de o Natal fazer
pequenos milagres, recordando o Raulito, façam favor de
seremmaisfelizes,como Natal!
Proença-a-Nova, 21 de Novembro de 2009
Alfredo Bernardo Serra
NA VOZ DO POVO DE PROENÇA-A-NOVA II
O NATAL
CONTOS DE NATAL
(INÉDITOS)
NA VOZ DO POVO DE PROENÇA-A-NOVA II
O NATAL
MARUNGO
Mafambisse, terras de África. O velho e
fumegante Chevrolet aproveita a paragem obrigatória
para finalmente dar descanso ao motor e passageiros. Era
o último da fila de carros que se estendia até à margem do
rio Pungoé que corria, naquela época do ano, agitado e
lamacento. Tinha que se esperar pela vez para fazer a
travessia no batelão. Esta longa espera servia de pretexto
para o convívio entre todos os presentes sobretudo agora,
vésperas de Natal. Trocavam-se novidades e “guloseimas”
sobrantes do farnel da viagem, e os mais novos
aproveitavam para, nas suas brincadeiras, explorar as
redondezas.
Estas cercanias constituíam o “mundo” do
Marungo: Com os pés descalços, enterrados no “matope”
, esforçava-se para estar à altura das tarefas que lhe tinham
sido confiadas nas manobras e condução do batelão que
teimava em flutuar. Para aquele menino negro, que
nunca tinha frequentado a escola, os seus horizontes
eram as terras limítrofes do rio. Ali aprendera tudo o que
sabia. Aprendera que tudo à sua volta se relacionava e
dependia daquele rio. As terras de aluvião e a sua
vegetação característica serviam de refúgio e alimento
tanto às manadas de antílopes e de búfalos, como a
hipopótamos e jacarés. Marungo respeitava, como todos
os indígenas daquela região, o equilíbrio natural daquele
ecossistema. Quando o tempo permitia, gostava de
observar, ao luar, o banho dos hipopótamos e o
espreguiçar dos jacarés. Durante o dia apanhava
“chinguias” , pássaros multicores, que colocava em
gaiolas feitas demiolodecana para venderaos viajantes.
Contudo, o grande sonho deste “muana” era poder, um
dia, no seu batelão, seguir o curso do Pungoé até ao mar
de que já tinha ouvido falar. Seria o viver de aventuras
imaginadas, seria o despertar para novos sentimentos e
vivências...Enfim! SERIANATAL...
Kapulana
Rio deMoçambique
Lama,Lodo
Pequenospássaros
Menino, Rapaz
NA VOZ DO POVO DE PROENÇA-A-NOVA II
O NATAL
DEZEMBRO1990
Sempre que se aproxima o Natal, vêem-me à
memória muitas coisas boas e simples, daquelas nos
adoçam a vida. Resolvi partilhar uma delas, porque,
como alguémdisse,não seéfelizsozinho.
Na escola, com os meninos, estávamos em
Dezembro de 1990, a azáfama era grande. Todos queriam
contar a história que tinham trazido de casa. Tinha
proposto aos pais que numa simples folha de papel
contassem aos filhos como era o Natal, quando tinham a
idade deles (5 anos). Depois, devolveriam a história para
sercontada aos amigos.
Foi com muita emoção que as li e recordo, como
se fosse hoje, duas delas, talvez por serem as que melhor
retratavam “o meu Natal”, que era muito feliz e simples;
um chocolate, uma boneca de plástico ou uma roupa
nova proporcionavam-nos uma felicidade imensa! O meu
quarto dos brinquedos era a rua e era partilhado com as
minhas irmãs. Também me lembro de ver passar um
senhor com um burro, a trocar as sardinhas que trazia por
ovos, etambémfizflorescomcascas delaranja.
Partilho-as com muita alegria e com o
conhecimento e consentimento dos autores, a quem
muito agradeço terem-me deixado publicar estes textos,
que são dignos de ficar na memória de todos, quer pela
sua qualidade, quer para que, tal como eu, outros se
possamidentificarcomeles.FelizNatal para todos!
Edusaca.
Era uma vez…há vinte anos atrás. O vento
assobiava, qual navalha que corta as orelhas. Mal a noite
caía, os mais velhos, organizados na taberna,
encapuçados, a garrafita da aguardente bem guardada,
saíam, todos eles capitães. Havia sempre uma carroça, um
telheiro. Era uma semana, noite após noite, a juntar os
troncos, que, em frente à Igreja, iriam aquecer o Menino
Jesus…e o coração de todos. Na véspera de Natal, em
minha casa, cedinho ainda, minha mãe dava voltas à
massa de farinha de trigo com que, horas mais tarde,
quando estivéssemos todos, à volta da lareira, num tacho
enorme de barro, se fariam as filhós. Meu pai, com um
espeto, facesrosadas, iavirando as filhós.Corados pelo
NA VOZ DO POVO DE PROENÇA-A-NOVA II
O NATAL
calor do lume, comíamos as primeiras, ainda quentes.
Como eram boas! Entretanto, tocava para a
missa. Como ainda éramos pequenos, íamos para a cama;
mas antes, cada um de nós punha… (meu Deus, com que
carinho), o sapatinho junto à chaminé. Não
conseguíamos dormir com a pressa de saber o que
iríamos ter. No dia de Natal, mal o sol raiava, era ver-nos a
correr à chaminé. Eram dois ou três rebuçados, um lenço
ou umbrinquedodelata…quealegria,quefelicidade!
Hoje, os meus filhos têm melhores brinquedos.
Não haverá talvez a mesma mística, mas espero que
sintam a mesma ansiedade que nós sentíamos…há vinte
anos atrás.
Maria daPiedade
Sabes Carolina, em Santo Estêvão, no Inverno,
faz muito frio e cai neve, por isso não há lá laranjeiras.
Mas, por altura do Natal, costumava passar um
Senhor, a cavalo num burro, com os alforges cheios de
laranjas. Não as vendia porque as pessoas, naquele
tempo, não tinham muito dinheiro, mas tinham batatas,
feijão, castanhas e azeite e então o senhor trocava as
laranjas poressesprodutos.
Ora acontece que o Menino Jesus, que sabe
tudo, bem sabia que eu e os meninos de Santo Estêvão
gostávamos de laranjas e todos os anos ia comprar um
cesto de verga muito cheio e na noite da Consoada,
quando já todos dormiam, ele descia a chaminé e vinha
pôr duas laranjinhas, bem docinhas, no sapatinho que eu
sempre deixava junto à lareira. Ele nunca se esquecia de
pôr lá também duas moedinhas de um tostão para eu ir
comprar rebuçados ou amendoins. No outro dia, muito
cedinho, quando me levantava, ia a correr ver a minha
prenda de Natal. E …oh! Se eu ficava contente! Aquele
cheirinho das laranjas, tão bom! Então pedia ao meu avô
que me as descascasse em forma de flor e punha as cascas
na cantareira da cozinha para a enfeitar e relembrar o dia
deNatal, cada vezqueolhavapara elas.
BomNatal para tieteusamiguinhos.
DEZEMBRO
1990
REVELAÇÕES
A noite prematura de Dezembro já caía quando
chegaram a casa. Fazia tanto frio que o ar gelado parecia
entrar pelas aberturas do casaco e procurar abrigo junto
do seu corpo. O pai parou o tractor debaixo do telheiro e
ajudou-o a saltardoatrelado.
- Olhasó quemchegou…
Virou-se na direcção em que apontava o dedo do
pai. Sentiu uma ponta de curiosidade, mas tentou ignorá-
la. Lembrou-se das recomendações da mãe para nas férias
ser simpático com o primo, o desajeitado e medroso
primo que tinha pavor de tudo o que mexia e se recusava a
acompanhá-lo pelos campos. Com tanto rapaz
interessante no mundo, tinha de lhe calhar na rifa o
primomaisbetinhoquejáseviu?
Michel fazia três vezes por ano a viagem que
separava a sua casa, em Zurique, da aldeia dos tios e avós.
Três vezes ao ano ouvia a mesma ladainha: “Devias sentir-
te feliz por teres a companhia do primo. Afinal, passas o
tempo tão sozinho, quando não estás na escola…” A
verdade é que já se tinha habituado à falta de crianças na
aldeia. E este ano até tinha pela primeira vez uma mana a
encher a casa de sons e gritos alegres. Sentia que não lhe
faltavanada.
Nunca era antipático para Michel, nada disso.
Apenas achava um tédio as brincadeiras preferidas do
primo, que resistia cada vez que tentava arrastá-lo para a
rua e era capaz de ficar uma manhã inteira a jogar
playstation. Há dois anos os tios tinham-lhe trazido uma
portátil, para brincarem juntos. E até tinha de confessar
que em dias de chuva sabia bem acordar e continuar
enfiado na cama, ouvindo a chuva bater na janela
enquanto jogava. O problema é que o primo nunca se
cansava daquilo. Ou quase nunca. Não sabia andar de
bicicleta, não se aproximava do pátio onde as cabras
passavam parte dos dias, tinha medo de subir a árvores e
nem na capoeira das galinhas entrava, para o ajudar a ir
buscar os ovos.Umaseca.
Antes de abrir a porta já se ouvia a algazarra lá
dentro. O pai empurrou-o levemente em direcção aos
tios, para os cumprimentar. Depois ficou a olhar para
Michel,queainda porcimatinhacomeçadoa usar óculos
NA VOZ DO POVO DE PROENÇA-A-NOVA II
O NATAL
e com eles parecia ficar com uma expressão demasiado
crescida para alguém de nove anos. Apeteceu-lhe fazer
uma careta, mas em vez disso esticou-lhe uma mão em
jeito decumprimento.
- Estás mesmo crescido, Manel. Acho que
passasteà frentedoMichel…
A tia sorria e como sempre parecia-lhe uma cópia
da mãe, uma cópia retocada com maquilhagem e
melhorada com roupas de corte delicado. Ninguém se
vestia com a elegância da tia e sentia-se sempre
deslumbrado quando olhava para ela. Parecia uma actriz,
daquelasqueseviamnas capas dasrevistas.
Amãefez-lheuma festa na cabeça.
- Ajudastemuito o pai?
- Trazemos millitros deazeitedolagar!
Todos se riram, menos Michel. Os primos
olharam-se de soslaio, mas não falaram. Ficaram alguns
minutos a estudar-se mutuamente, a identificar as
pequenas mudanças inscritas por quatro meses de
ausência. Só depois de ajudar a levar os sacos para os
quartos e mostrar ao primo como a tartaruga tinha
crescido Manuel começou a sentir uma ponta de
entusiasmo. Tanto que lhe revelou o seu segredo. Falou-
lhe da Malhadinha e da sua barriga redonda, de onde em
breve sairiam cabritos ensanguentados. Michel fez um ar
enjoadoefoi inútila tentativadeo animar:
- Vou espreitá-la várias vezes ao dia e tenho a
certeza que serei o primeiro a ver os filhotes saírem da
barriga.
O primo encolheu os ombros, como quem diz
‘tanto faz’. Lá estava o Manel a falar dos animais, algo que
não lhe interessava nada. Aliás, ali havia muito poucas
coisas que lhe acordassem o entusiasmo. Com tanta
cidade magnífica no mundo, por que raio a sua mãe teria
nascido numa aldeia tão insignificante? Quando
crescesse nunca mais passaria o Natal naquele fim de
mundo, nunca.
Rodou distraidamente o globo que o primo
tinha sobre a secretária. Percorreu a América do Norte,
desceu ao longo dos estados brasileiros, navegou ao
encontro da costa africana e regressou à Europa.
Continuou a sua viagem quase sem descobertas e parou
aa
REVELAÇÕES
finalmente o dedo sobre minúsculas letras quase
indecifráveis.
- Aquiestá Zurique,vês?
Pela milésima vez explicou como Zurique era
uma cidade movimentada e interessante e descreveu o
seu país de montanhas e lagos com a perfeição de um
postal. Pela milésima vez Manuel acabou a chamá-lo
mentalmente pretensioso – uma palavra difícil quando se
tem apenas oito anos, tem de se admitir. A conversa
terminou com uma nuvem amuada a pairar sobre os dois.
Viu o primo sair do quarto sem dizer uma palavra e não se
importou.
Os dias seguintes suavizaram-lhes os humores.
Andaram juntos no atrelado do tractor e Michel divertiu-
se com o vento a bater-lhe na cara. Começou a mostrar-se
menos renitente em acompanhar o primo nas suas
aventuras e até aceitou fazer uma nova tentativa para
aprendera andar debicicleta.
Mesmo assim Manuel demorou três dias a
convencer o primo a ir espreitar a Malhadinha. Foi atrás
de si sempre a resmungar porque os pés se enterravam no
mato enlameado e o cheiro era “insuportável”. Michel
não passou da porta entreaberta, por isso Manuel não
pôde perceber a admiração no seu olhar enquanto ele o
via conversar com a cabra deitada num canto do curral.
Malhadinha parecia deformada, enorme na sua espera,
mas olhava o amigo tranquila, como se entendesse cada
uma dassuas palavras deconforto.
Nessa noite, quando ia à cozinha beber água,
Manuel ouviu sem querer uma conversa dos pais e tios.
Quer dizer, tinha de confessar que as primeiras palavras
lhe chegaram soltas e casuais, mas depois o ouvido colou-
se às revelações surpreendentes. Seria difícil censurá-lo: a
tia contava à mãe que se estavam a preparar para, no final
do ano lectivo, regressarem a Portugal. O tio tinha já
emprego assegurado numa multinacional, em Lisboa.
Estariammaisperto dafamília.Mais perto daterra.
Estranho, pensou, na Suíça certamente também
havia terra. Afinal não seria tão magnífica como Michel
fazia crer, ou os tios não quereriam trocá-la por solo
português. Seja como for, o primo ficaria desolado. E
viriamaisvezesà aldeia,desgosto supremocertamente.O
REVELAÇÕES
NA VOZ DO POVO DE PROENÇA-A-NOVA II
O NATAL
mundo a separá-los encurtava-se. Ficou alguns minutos
inquieto, a pensar na novidade, mas depressa a
tranquilidadedainfância abriua porta ao sono.
O dia seguinte amanheceu morno e cheio de sol,
quase se poderia dizer primaveril. Não parecia véspera de
Natal. Sentou-se à mesa para o pequeno-almoço e fixou
demoradamente o primo. O segredo queimava-o.
Chamou-o para andarem de skate e estranhou o
entusiasmo de Michel. Desceram divertidos a ladeira,
uma vez e outra, e a certa altura percebeu que no riso do
primo havia música. Nunca se tinham rido assim um com
o outro e descobriam ter muitos territórios
desconhecidosa desvendar.
Quando se sentiram demasiado exaustos para
continuar, deitaram-se de costas a ver as nuvens no céu.
Viram uma que parecia o Pai Natal. Fizeram a lista de
presentesqueesperavamumdiareceber.
- Se eu pudesse pedia ao Pai Natal que os meus
paismudassemdeideiasenão viéssemospara Lisboa.
O súbito pedido deveria apanhá-lo de surpresa,
mas Manuel só se admirou por afinal o primo já saber dos
planos de mudança. Michel confessou-lhe os medos de
um mundo novo e pela primeira vez ouviram-se como
quem descobre de repente que está a crescer. Sentiram-se
os dois pequeninos sob a imensidão do céu azul matizado
de branco e pensaram nos misteriosos caminhos da vida
quenão entendiam.
- Poderás vir ter connosco mais vezes, aos fins-de-
semana. Eu vou ajudar-te a gostar de Portugal e em pouco
tempo já nem vais pensar na Suíça. Se calhar vais passar a
chamar-teMiguel,não achasbemmaisbonito?
Parecia simples e de repente o futuro já não desarrumava
as certezasdeMichel.
Depois de almoço já parecia outro, quando
começaram a preparar as filhós. Pediu para ajudar a tia a
envolver vigorosamente ovos, açúcar, um fio de
aguardente, raspa de laranja, farinha que foi engrossando
a pastosa mistura. Claro que se cansou em poucos
minutos. A tia sorriu-lhe e continuou. As mãos dela eram
fortes sem deixarem de ser macias e pareciam ter a doçura
do mundo por inteiro dentro delas. Quando as filhós
ficaram amassadas e aconchegadas sob uma manta cujo
aa
REVELAÇÕES
calor as ajudaria a crescer, a tia deixou-o chupar os fios de
massacolados entreos seusdedos.
Quase à hora de jantar, Manel reapareceu depois
de uma longa ausência e veio chamá-lo discretamente. “Já
chegou a hora…” Esbugalhou os olhos e sentiu-se colado
ao chão, receoso do que iria ver. O primo acendera uma
lanterna e tinha-a prendido no canto do curral. Os olhos
demoraram ainda alguns segundos a habituar-se à
claridade amarelada do espaço acanhado. Depois viu.
Um minúsculo monte de pêlo ensanguentado aninhava-
se junto à Malhadinha. Não conseguia adivinhar-lhes a
cor, maso primoassegurou queera branquinho.
- Vêso outro a aparecer?Vaispodervê-loa nascer.
O mundo cabia ali, no mistério daquele pequeno corpo a
escorregar para o chão. Malhadinha lambeu-o
demoradamente enquanto os dois primos apreciavam
cada momento. Quando já se aproximavam para ver
melhor os dois recém-nascidos, a mãe cansada voltou a
agitar-se de novo. Só perceberam o que estava a acontecer
quando uma mancha acastanhada começou a fazer-se
ouvir. Apontaram a lanterna naquela direcção e riram
descontroladamente, fascinados com o terceiro
nascimento.
Esqueceram-se que já estavam com as roupas
vestidas de lavado para o serão e ajoelharam-se junto aos
três filhotes. O silêncio instalou-se no curral. A alegria
não precisava de ser dita para ser partilhada. De quando
em vez a cabra balia baixinho, como se confessasse as
doresdoparto.
Nessa altura ouviram-se os sinos a chamar para a
missa do galo. Os pais deviam procurá-los para jantar,
mas os dois estavam esquecidos do tempo, atentos ao
cuidado que Malhadinha punha em cada toque nos
filhos. Manuel tinha um sorriso de orelha a orelha e
explicava como sabia bem pegar-lhes ao colo enquanto
eram pequeninos e consentiam ser acarinhados. Michel
agarrou o braço do primo e trocou com ele um olhar
cúmplice, como se agradecesse sem palavras tê-lo deixado
partilhar aquele momento. Mas só muitos anos mais
tarde descobriria a imensidão do mundo que aquelas
fériasdeNatal lhedesvendaram.
Diogo Dias
REVELAÇÕES
NA VOZ DO POVO DE PROENÇA-A-NOVA II
O NATAL
OMENINOJESUSEASDUASMENINAS
Era uma vez duas meninas, a Francisca e a Marta.
Frequentavam a mesma Escola e eram as maiores amigas.
Gostavam muito da sua Escola e principalmente da
Senhora Professora, A Sra. D. Dina, a “minha Senhora”,
como elasdiziam.
A Escola fechava pelas cinco horas da tarde.
Ouvia-se a campainha e todos saíam a correr. Porém, a
Francisca e a Marta levantavam-se mais devagar, pois
tinham de levar, além da bolsinha dos livros, outra que
continha alguma coisa. E continha, eram coisas
diferentes, desde a alimentação, até pedacinhos de
tecido,lápisdecor...
Agora na rua, dirigiam-se sempre na mesma
direcção. Sim, elas nunca deixavam de visitar a
amiguinha, a senhora Antónia, que vivia no centro da
vila, sozinha e com poucos haveres. Era uma senhora de
bastanteidadeeera quasecega.
- Está lá, senhora Antónia?
- Sim, meninas, hoje até já receava que não
viessem…
Pobre senhora! Eram estes momentos a única
alegriadosseuslongos esolitáriosdias.
Em poucos minutos, as duas meninas acendiam
a lareira, que só desaparecia totalmente no Verão. Nos
dias e noites frias, como era bom para a senhora Antónia
este calorzinho! E então agora que se aproximava o Natal.
Que frio! Como era bom este conforto que vinha da
fogueira que a Francisca e a Marta tinham atiçado com
nova lenha que, por vezes, até traziam. É que: “ande o frio
por onde andar, ao Natal vem parar”. E nesta Quadra até
era mais fácil às duas meninas arranjar mais alguns
mimos dos que costumavam trazer. Pudera, o Menino
Jesus até levava as pessoas aos bons cozinhados, em
especial às filhós e às broinhas de mel. Que bem que
cheiravam por toda a vila e a senhora Antónia era uma
privilegiada, pois recebia-os da família da Marta e da
famíliadaFrancisca.
Estavam agora as três sentadas à lareira, rindo,
cantando e ouvindo as lindas histórias e cantares da
senhora Antónia:
NA VOZ DO POVO DE PROENÇA-A-NOVA II
O NATAL
“Ó meu Menino Jesus,
Ó meu Menino tão belo,
Só Tu quiseste nascer,
Na noite do caramelo”
- Caramelo?! –Repetiua Marta.
- Sim,sim,meninas,caramelo égelo!
- Realmente! -- Replicou a Francisca – Eu julgava
queera umrebuçado…
- Sim, as palavras morrem e transformam-se em
sentidosdiferentes- respondeua senhora Antónia.
- Ó Marta, toda a gente tem um presépio e a
senhora Antónia não tem!
- Pois,nós podíamosfazer-lheum…
- Mas como, Marta? Vou pensar…
Após alguns minutos de silêncio, a Francisca
levantou-se edisse:
-Vamos, Marta, vamos procurar pedrinhas que se
aproximem no seu aspecto às figuras do Presépio.
Pintamo-las com lápis de cor. Eu pinto-as e tu, Marta,
fazes os mantos de Nossa Senhora e de S. José. Não te
esqueças de fazer uma mantinha para tapar o Menino
Jesus! Coitadinho, está sempre sem roupa e, certamente,
comfrio.
- Está bem, Francisca, eu até tenho lá uns
bocadinhos de tule do véu da Graça e outro pedacito das
calças castanhas domeuirmãoJoão.
A senhora Antónia sorria e pensava: “onde se viu
umpresépiodepedras…”
- Francisca, o meu irmão trouxe tanto musgo
para o nosso Presépioqueeupossotrazer algum.
No dia seguinte, o Presépio estava pronto e
lindo. Que pena, a nossa amiga não o poder ver,
lamentaram as duasmeninas.
- Só falta a cabaninha… euma estrela.
- Vamos fazê-lasdepaus…
- Marta, tem de ser rapidamente. Amanhã já é
aaa
O MENINO
JESUS E AS
DUAS
MENINAS
véspera de Natal. Olhe senhora Antónia, a gente vem cá
antesdaMissadoGalo.
- Está bem,meninas.
E as horas passaram depressa. Estava uma linda
noite,aquelanoitedeNatal.
- BoasFestas!
- BoasFestas!
- Que o Menino Jesus lhes pague por tudo,
meninas! - Respondeu a Senhora Antónia, que se aquecia
junto à lareira e tinha em frente um lindo presépio de
pedras.
- Que lindo, que lindo! Marta, repara nos olhos
doMenino Jesus,estão a mexer…
- Poisestão, Francisca, estão…
E, num ápice, duas luzes brilhantes como o sol
saíram da carinha do Menino Jesus. As duas meninas
ficaram petrificadas e a senhora Antónia caiu de joelhos,
deixando cairtambémo terçoquetinhaestado a rezar.
- Meninas! Meninas! Eu vejo-as, eu vejo tudo, só
não vejoo nosso presépio…
Realmente, agora só havia para admirar a
recuperação davista daSenhora Antónia.
As três abraçaram-se e não disseram palavra e as
meninas, em grande alegria, correram para a Missa do
Galo e, muito baixinho, repetiam: “ela vê, ela já vê!” e
ambas tinham no coração o seu Menino Jesus que estava
tambémnos olhosdaboa senhora Antónia.
NA VOZ DO POVO DE PROENÇA-A-NOVA II
O MENINO
JESUS E AS
DUAS
MENINAS
O NATAL
OPRIMEIRONATALLONGEDAFAMÍLIA
À memória de meu pai, que, sem ir à escola,
aprendeu a ler e a escrever já adulto e que, sem mestre,
aprendeu a arte de carpinteiro e marceneiro, de que foi
mestre.
Miúdo ainda, Manuel tinha fama de resolver o
que a outros escapava. Determinado, não fugia a
dificuldades, onde via desafios a vencer. Dizia-se que,
com tais dotes, teria colhido a flor do feto-real, feito um
pacto com o diabo. Adiante, histórias para um filme, não
para a do seu primeiro Natal longe da família, aos
dezassete anos, na oportunidade que o fez passar,
digamos,derapaz a homem,deaprendiza mestre.
Ao ouvi-lo contar o feliz capítulo da juventude,
compus este trabalho, cruzamento de duas histórias
tecidas pelo acaso: do Manuel, que um dia teve de
substituir o mestre, da família Delgado que, desavinda
por causa de partilhas, se reconciliou no Natal de 1950,
no que o jovem teve papel relevante. Seis décadas depois,
lembra episódios marcantes. Os anos esfumaram
detalhes, as imagens vêm desfocadas mas, aquele
período,continua bempresentena sua memória.
Iniciou-se na arte aos onze anos, depois da
Primária, com o mestre marceneiro da Vila, que tinha já
dois principiantes. Como outros varreu a oficina, fez
recados, arrumou a ferramenta, etc. Mas logo deu nas
vistas pela dedicação, vontade de aprender, busca de
perfeição no que fazia. Pela pequena estatura trabalhava
num banco com estrado para alcançar o tampo, onde
aquele metro e meio de gente fixava as peças das cadeiras,
das mesas, das cómodas: serrava, desbastava, aplainava,
lixava, preferindo madeiras de cerejeira e castanho, às de
pinho.
Gostava do intenso odor da madeira a ser
aparada com a enxó, a projectar lascas retorcidas e das
odorosas serpentinas de cores e cheiros diversos expelidas
pela plaina e pela garlopa, deslizando sobre as peças. Dava
atenção a detalhes de móveis de estilo que vinham a
restaurar, como os entalhados que imitava nos móveis
novos. O mestre controlava-lhe os excessos mas ajudava-o
a adaptar goivas e formões para esculpir na madeira os
“floreados”emalmofadas, gavetas ecostas dascadeiras.
NA VOZ DO POVO DE PROENÇA-A-NOVA II
O NATAL
Não perdia ocasião de saciar a sede de saber. Lia, à socapa,
livros da colecção “Biblioteca Inst. Profissional” da
Bertrand, que o mestre pedia de Lisboa, onde bebeu
muito doquesabia.
Evoluiu e, às vezes, substituía o mestre nas
deslocações aos clientes. Colhia os frutos do seu
empenho, chegava o momento-chave da sua profissão:
pelo mérito, o mestre abria-lhe as portas do futuro, com
confiança eresponsabilidade.
Numa bela manhã de Novembro, parou frente à
oficina a carroça do Sr. tenente Delgado, puxada por uma
mula castanha, conduzida pelo caseiro. O tenente apeou-
se, dirigiu-se ao mestre e pediu-lhe uns minutos de
atenção. Até então, mal o conhecíamos. Víamo-lo passar,
montado numa égua ruça, a caminho de Proença para
receber, dizia-se, a pensão de reformado da Marinha, e
que morava a mais de cinco léguas, lá para os lados de
Oleiros…
Ao mestre disse: -“Amigo, preciso da sua ajuda
para obras de restauro, antes do Natal, na casa da Feiteira,
onde tenciono agora passar mais tempo.”Antes que o
mestre esboçasse um não, segurou-lhe o braço, falou do
estado dacasa eexplicouas razões daurgência.
-“Deve ter ouvido falar, desde as partilhas a
família anda desavinda. Há anos que não vejo meus
irmãos, mal conheço os sobrinhos… Não me sinto
culpado mas, como mais velho, tenho feito um esforço no
sentido da reconciliação. E houve, há poucos dias, a
promessa de que, alguns viriam passar connosco o
Natal.”
Sensível às razões do cliente, o mestre buscava
uma solução razoável para ambos. O tenente, entretanto,
voltava à carga: -“Não se preocupe com comida e
dormida, apenas com a ferramenta e materiais e tenho
madeira boa para o que precisar. Ah, pago bem,” e
acenava com uma “quinhentola”- nota de quinhentos
escudos - que, na altura, removia obstáculos e não
abundava nas mãos do comum dos mortais. O mestre
não gostou dogesto ostensivo eo clientelogo emendou:
-“Esta, fica como adiantamento para primeiras
despesas.”
O mestre ia ajudá-lo e aproveitar a ocasião para
aa
O PRIMEIRO
NATAL
LONGE DA
FAMÍLIA
ganhar mais alguma coisa. Não faltaria, porém, aos seus
compromissos e, perante a ansiedade do cliente, disse:
–“Sr. tenente, resolveremos a situação que me
tocou bastante, mas não poderei faltar a outros. A
solução será fazer avançar já o meu ajudante Manuel - não
o tratou por aprendiz - que, sendo jovem, é competente,
para o efeito atémaisminucioso doqueeu.”
- De imediato, tratava-se de dar um jeito nas salas
e nos móveis. -“O resto, acerta-se depois do Natal, com ele
ou comigo, severá.Não háalternativa.”
O veredicto deixou corado o rapaz e perplexo o
cliente,queduvidavaestaro moço à altura.
Mas, perante exemplos de trabalhos feitos por
ele, lá se convenceu. Como tinha transporte, acertaram
que partiria com ele nessa tarde. Enquanto o tenente foi
pelas lojas, às compras, Manuel juntava as suas coisas. A
promoção trazia-lhe um misto de contentamento e
receio. Com visível nervosismo, reuniu ferramentas, sob
o olharatento domestre,antesdedespedir-sedafamília.
Fez um rol dos materiais de que iria precisar, que
ia pondo na caixa: verniz, cera, goma-laca, álcool,
anilinas, “pau-campeche”, lixas de vários grãos,
preguinhos, grude, gesso, etc. E, com a emoção a dominá-
lo, foi à aldeia buscar a roupa e dizer adeus à família. Era a
primeiravezquepassariao Natal longedosseus.
Viagem dura, contudo, sem percalços, sobre a
carroça puxada pela mula que, mesmo de noite, sabia o
caminho de cor. Partiram com o sol a dar na encosta da
serra que iriam enfrentar. À medida que se embrenhavam
no pinhal, escureceu, levantou-se forte ventania e a chuva
não tardou. Temeram o pior, quando a besta escorregava
e a carroça, aos solavancos nos carreiros lamacentos,
ameaçavatombar.
A destreza do Sr. João permitiu que, apesar do
desconforto, fossem furando o negrume e chegassem a
porto salvo, demadrugada.
Exaustos, estacionaram no largo frente ao
edifício. No alpendre do grande casarão, a luz do
“petromax” dava forma às silhuetas que se aprestavam a
recebê-los e a recolher as bagagens que o Sr. João
descarregava. À volta, escuridão e silêncio, sem uma
estrela na grande cúpula! Manuel seguia o anfitrião, que
aa
NA VOZ DO POVO DE PROENÇA-A-NOVA II
O PRIMEIRO
NATAL
LONGE DA
FAMÍLIA
O NATAL
lhe apresentou primeiro a esposa, D. Margarida, depois a
afilhada, Isabel Maria e sua mãe, a Sra. Ana e uma miúda,
a Maria do Carmo. Acabavam as aflições da espera,
sentiam-seagora aliviadas.
Arrumada a carroça, o Sr. João tratou da mula,
enquanto as senhoras guardavam as compras e D.
Margarida preparava cama para o Manuel. Da cozinha
chegavam deliciosos odores com a música, agradável nas
circunstâncias, do tilintar de talheres, lembrando os dias
festivos da aldeia, prometendo reparar o desgaste da
viagem. Então, já o pensamento do jovem esvoaçava por
outras esferas: pensava na família, fixava-se, com a
ansiedade que só o início do trabalho acalmaria, naquilo
quealio trouxera.
De manhã fez, com o patrão, o balanço possível
do mais urgente. Nas salas viam-se cadeiras descoladas,
mesas desconjuntadas, buracos no soalho. Antes de
limpar os móveis, havia que repará-los, refazer partes do
rodapé, do corrimão da escada que dava para o sótão,
remendar o soalho. Na cabana viram a madeira com que
podiam contar e, mãos à obra: cortar aqui, acertar ali,
encaixar acolá; colar, raspar, lixar e, depois de reposto um
pedaço, embutida uma peça, aproximar a tonalidade da
madeira nova da existente onde se inseria, com ajuda do
pau-campecheeminfusão.
O trabalho de base avançava, para espanto de
quem via Manuel como um miúdo. Acabamentos, só
depois. Empenhado nas tarefas, até se esquecia de comer
e descansar e só à noite sofria com a falta da família. Era a
D. Margarida quem, amiúde, o obrigava a sentar-se à
mesa, porque havia sempre mais um retoque, uma
afinação. Com uma “boneca” de pano macio embebida
em goma-laca, devolvia às madeiras a cor e brilho
naturais. Andava contente porque, à sua medida,
contribuiria para o êxito do reencontro da família
Delgado,não deixando malo mestrequeneleconfiara.
Na sala de jantar restaurou o corrimão da escada,
transformou os inestéticos vazios sob a mesma em úteis
armários, melhorando a zona. Ia limpar o relógio de
parede antigo de madeira exótica, muito belo, com
alçado principal de duas portas com vitral e figuras
agarrando uma esfera, quando reparou que a uma faltava
a
O PRIMEIRO
NATAL
LONGE DA
FAMÍLIA
um braço e a mão, a encimar o pórtico. Observou bem a
figura simétrica da outra porta, aventurou-se a refazer o
alçado da valiosa peça. Fez um esboço, escolheu um
pedaço de cerejeira preta, desbastou até à medida.
Recortou, esculpiu com uma goiva especial e fixou no
sítio. Afinou, lixou, acertou o tom da madeira, poliu e
pronto: à distância, mal se notava o restauro. Um êxito!
D.Margaridadizia:
-“Este rapaz consegue milagres! Tanto talento e
energia!” Isto, a poucos dias do Natal, quando começava a
azáfama dos preparativos da festa onde, havia anos, não
aconteciaNatal.
Dos forasteiros não havia notícias. Crescia a
ansiedade com o encurtar do tempo. Não era fácil chegar
ali nem comunicar com alguém. Por qualquer via, o
acesso era sempre obstáculo, pior no Inverno, com o frio e
a neve a isolar ainda mais a Feiteira. O Sr. tenente tinha
ido a Oleiros tentar enviar um telegrama, sem êxito. Mas
deixou em alerta os primos: caso a família chegasse,
entretanto, tinhammeiosdeos transportarà Quinta.
Com o mais urgente feito, Manuel ia dando uma
olhadela pelos livros e revistas da estante, do tempo das
viagens do patrão, inconformado com a falta de estudos
que o impedia de entrar naqueles mundos distantes. As
imagens que exibiam as reportagens que não entendia
projectavam-no, como num sonho, por longínquas
paragens, maslogo retornavaà sua enormefrustração!
Fez ainda um presépio, recortando figuras de cartão a que
deu cor, montando a improvisada representação da
Natividade ao pé da lareira, iluminada por uma
lamparina, que deixou feliz D. Margarida. Mas a
ansiedade ia tomando conta de todos. Dois dias antes do
Natal, o tenente Delgado mandou o Sr. João aos primos
de Oleiros, por notícias. Só a D. Margarida continuava
optimista! -“Vão ver que, não tarda, teremos a casa cheia,
tudoacabará bem.”
À lareira, enquanto esperava o caseiro, o Sr.
tenente foi buscar a velha concertina, desencantada a um
canto. Animado por todos, tocou velhas modas,
acompanhado pela desafinação dos presentes. Afinal,
esta alegria contida e tímida, precedia as boas novas
trazidas de Oleiros: viriam os dois irmãos, as cunhadas e
aa
NA VOZ DO POVO DE PROENÇA-A-NOVA II
O PRIMEIRO
NATAL
LONGE DA
FAMÍLIA
O NATAL
um neto do irmão mais novo, o Ricardo, e ficariam dois
ou trêsdias.
Outros viriam talvez no Verão. E está
combinado, iremos recebê-los, com os primos a dar a sua
ajuda.
A explosão de alegria ecoou pela casa! Sabiam
agora quem vinha, preparariam os quartos, fariam sair
dos baús as alvas roupas de cama e as belas toalhas de
linho bordadas para enfeitar as mesas. Avançariam com
as filhós, os bolos e outros manjares. No dia seguinte, o
caseiro e o patrão mataram uma cabra, um cabrito, dois
vistosos galos e um enorme ganso. Prepararam a carne
para a chanfana e para os maranhos e entregaram as aves
na cozinhapara seremlimpas.
Vivia-se já o acontecimento. Saíam dos armários
e das gavetas artefactos que, havia muito, não viam a luz;
apareciam as compotas e os licores caseiros, exibiam-se
vinhos e outras bebidas da recheada garrafeira. Todos
rejubilavam a antecipar o momento, há tanto esperado,
da reconciliação! E que melhor ocasião do que a Festa do
Natal e da Família? Os anfitriões regozijavam-se também
por terem criado, ali, com os vários melhoramentos,
condições de acolhimento e conforto impensáveis, anos
atrás.
Na véspera de Natal, partiram para Oleiros, o
tenente e o caseiro, para receberem a família e trazê-la de
volta ao berço natal. O frente-a-frente em Oleiros, depois
de anos de costas voltadas, foi comovente. Muito mais foi
a chegada deles à velha casa onde, havia tempo, não
entravam. Manuel conta que não tem nem existem
palavras capazes de exprimir o que viu naquele
reencontro. O choro e o riso misturavam-se; abraçados
num enorme novelo, os corpos, de soluço em soluço,
beijavam-se, choravam, riam! Depois, pacificados,
desfiaram, em tom ternurento, as passagens mais
significativasdassuas vidasparalelas.
Consoada inolvidável! Tinham muito que
contar. Num gesto de boa vontade, todos aludiam a
factos passados e faziam-no amistosamente, evitando
constrangimentos. -“O que lá vailá vai,”- diziam.Falavam
dos filhos, dos netos, da saúde... O tenente, que não
tinha filhos, via a afilhada Isabel Maria como se fosse sua
a
O PRIMEIRO
NATAL
LONGE DA
FAMÍLIA
filha. Com eles desde pequena, em Lisboa, só era pena
não ter cabeça para as letras, não indo além do terceiro
ano. Preferiu seguir os lavores com a madrinha. O serão
entrou pela madrugada, numa avalancha de palavras que
ninguém conseguia estancar, tal a torrente de ideias e
novidadesquealisecruzavam.
Vieram os brindes, a troca de presentes entre
todos. Até o Manuel recebeu, com espanto seu, uma
camisola de lã feita pela D. Margarida e, do patrão, algum
dinheiro, como semanada. O jovem nunca vira tanto
dinheiro, vivia momentos que o faziam levitar nas alturas.
Do tenente ouviu: -“Este é teu, não entra nas contas do
mestre e ficas sem fazer nada até ao Ano Novo, a não ser
dar alguma ajuda à patroa.” À sugestão do Manuel de
poder ir ver a família respondeu o patrão: -“Não te sentes
bem aqui? Tenho trabalho para ti depois do Ano Novo,
não te deixamos ir tão cedo. Falei com o mestre, sei que
está tudobemcomos teusequetesaúdam.”
***
O feliz reencontro parecia milagre, vivia-se ali
uma bela epifania! Ninguém ligava ao que o tenente, por
várias vezes, quis propor: -“uma revisão das partilhas a
reparar, se fosse caso disso, alguma injustiça.”- Mas
ninguém ouvia. -“Que não era altura de falar disso,” -
diziam. Na manhã de Natal, luminosa e fria, com a geada
e a neve a dar voz aos passos, foram pela quinta, atrás de
memórias, as esposas a observá-los com gosto, sem
interferir: -“pareciam crianças, a recordar jogos e corridas,
busca de ninhos, trepar às árvores e, às vezes, o uivo dos
lobos a ecoar na neve!” -Em cada canto, as marcas
esbatidas da sua meninice. Manuel ouvia-os, quando o
irrequieto Ricardo, que o adoptara como parceiro de
brincadeiras, lhedavatréguas.
Viram a casa dos empregados e as instalações
anexas que, dantes, no tempo dos trabalhos sazonais,
eram um formigueiro de gente vinda de fora: o celeiro
com as arcas do grão, as talhas do azeite, a salgadeira; os
palheiros, a cabana da carroça e das alfaias agrícolas; os
estábulos, as capoeiras e, ao lado, a adega com a lagariça e
pipos fora de uso; acima o moinho na ribeira, ladeada de
salgueiros e choupos, limite da propriedade a Sul. Na
adega o sítio do alambique e, a propósito, o tenente
aaaaaa
NA VOZ DO POVO DE PROENÇA-A-NOVA II
O PRIMEIRO
NATAL
LONGE DA
FAMÍLIA
O NATAL
perguntou se ainda se lembravam do Chico maluco, que
destilava o medronho. -“Pela tarde estava já toldado de
tanto ir provando e uma vez trambolhou na ribeira. O
nosso pai - que Deus haja! - foi ajudá-lo e o Chico, a
cambalear, dizia: -“ escorropichei só um copito, patrão.”
Quiseram depois saber se ainda se fazia medronheira.
-“Muito pouca” - disse o tenente, - “limitamo-nos ao que
os caseiros apanham. Basta-me ter umas garrafas para
oferecer aos amigos. Podeis levar também algumas” - Ao
contrário de outros tempos, em que se cultivava milho,
centeio e forragens, se apanhava azeitona, castanha, etc.,
plantavam só o mínimo e suficiente. A terra de cultivo
estava reduzida à faixa junto à ribeira. Os castanheiros
foram-se perdendo, as oliveiras eram poucas e não
compensavacultivaroutros produtos.
Junto à mina, que abastecia a casa e dava para a rega
quando a ribeira ficava por um fio, o ex-libris da
propriedade, o velho castanheiro, que todos conheciam.
Imponente, o enorme tronco esburacado, com cepos
empinados à volta a fazer de bancos e tábuas a servir de
mesa. Lugar aprazível no verão, a sua sombra tem, por
certo, guardados muitos segredos. E lá continuaram a
recuperar partedoseupassado.
Do muito que ouviu e viveu naquele período,
marcante para ele e para a família Delgado, com quem
perdeu depois o contacto, nem de tudo Manuel se
lembra. Ficara lá a trabalhar por algum tempo mais, já
nem sabe quanto, mas não voltou. Com a tropa a levá-lo
para Lisboa, foi esquecendo a Feiteira, nem sabe se hoje
ainda existe. No fundo, talvez prefira recordá-la como a
conserva na memória! A ideia que tem do mítico espaço é
como a que tinha antes de ali chegar: um lugar longínquo
indefinido,alguresna serra…
Como vai longa a história, apesar do muito que
fica por contar, termino já. Mas podemos imaginar com
certeza que, depois da estada do Manuel e da
reconciliação naquele Natal de 1950, a quinta da Feiteira
terá passado a ser mais frequentada pelos membros da
famíliaDelgadoedescendentes.
CHAGALL - Pseudónimo (Conto inédito) - Setembro, 2009
O PRIMEIRO
NATAL
LONGE DA
FAMÍLIA
À memória de meus pais
OMIRADOURO
O meu pai era um bom contador de estórias. A
minhamãetambém,mastinhamenostempo.
Sentados à lareira, especialmente, nas longas
noites de Inverno, os mais pequenos ouviam,
atentamente, as palavras mágicas de contos reais ou
fantasiados, que emprestavam àqueles momentos um
sabor único einesquecível.
Uma das estórias que nos contava, com alguma
frequência, era a doSr.João Minas.
Ainda me lembro da Pensão Minas, no Largo da
Igreja Matriz de Proença-a-Nova. O protagonista
pertencera, repetiasempreo meupai,a essafamília.
Começava com o casamento do nosso
conterrâneo com uma senhora rica de Campo Maior. As
descrições eram tão pormenorizadas que tudo levava a
crer que o narrador tinha sido uma testemunha
presencialdacerimónia.
O noivo sentir-se-ia muito feliz no Alentejo, não
fora a saudade da sua terra. Olhava as planuras, em redor,
e suspirava de tristeza. Estava tão distante de Proença-a-
Nova,dospinheiros edasserras!
João Minas nunca julgara que ia sofrer tanto com
a falta dos aromas, do toque do sino da igreja e de muitas
pequenas coisasquesó a lonjura valoriza.
Num final de tarde, enquanto passeava pela
herdade, teve uma ideia luminosa: construir um
miradouro, tão alto, tão alto, que dele pudesse avistar
Proença-a-Nova.
O meu pai tinha cumprido o serviço militar em
Elvas. Aquele pedaço do Alentejo era-lhe familiar e,
porventura, o sentimento nostálgico.
Esta estória tem-me acompanhado ao longo da
vida, porque os estudos me obrigaram a deixar a minha
terra muito cedo. Tinha apenas nove anos. Nos
momentos de maior tristeza, edificava um belveder, que a
imaginação elevava no espaço azul, de onde os olhos do
coração enxergavam a aldeia pequenina, aninhada numa
encosta soalheira, decorada com pinheiros, uma
aaaaaaaa
NA VOZ DO POVO DE PROENÇA-A-NOVA
O NATAL
azinheira grande euma fontejunto denossa casa.
Nesta caminhada de ausências, já pisei muito
pedaço de chão, porém, há uma época do ano em que
regressosempreà minharegião:no Natal.
As memórias e os afectos são intensos. Subo,
degrau a degrau, o miradouro que guardo dentro de
mim.
Onde quer que me encontre, nessa data, tento acender o
sonho e a poesia do Natal. Recrio o calor humano e
também o da lareira, os aromas e os sabores,
especialmente o das filhós. Reproduzo a decoração, no
essencial. Mas não posso trazer de volta muitos dos que
partilharam comigo os momentos mais doces da infância
edajuventude.
Quando era criança acreditava, como quase
todos os da minha geração, que na noite de Natal o
Menino Jesus deixava um presente nos sapatos colocados
junto à lareira.
A boa vontade e a nobreza do amor proporcionaram-me
prendas que, apesar de simples, foram as melhores da
minhavida,pelasurpresaepelofascínio.
Na casa onde nasci havia uma lareira espaçosa
em redor da qual se sentava uma família numerosa,
genuinamentefeliz.
A nossa alegria enchia a casa de risos e de um
calor aconchegante.
Fazíamos um presépio grande. Os lagos eram
espelhos, o verde era de musgo e a neve pedaços de
algodão. A cabana do Menino Jesus tinha um jardim de
violetas perfumadas; as mais belas da Corredoura do
Vale.
Cheirava a filhós. As couves, as batatas e o
bacalhau eram temperados com o azeite novo acabado de
chegardolagar.
Nessa altura não conhecia o Pai Natal. O
encanto era acreditar que o Menino Jesus descia pela
chaminé.
Porém, na Missa do Galo olhava-O deitado na
manjedoura e pensava que, sendo ainda um bebé, não
devia ter poder para me conceder o que Lhe queria pedir.
Mas, ao virar-me para O que estava pregado na cruz e a
escorrersangue, achavaquenão deviaincomodá-lO.
O MIRADOURO
Alguém havia de se lembrar de mim. E, na verdade, não
tinharazão dequeixa.
Os meus pais já cá não estão, mas estou-lhes
muito grata por me terem ensinado que o Natal é amor e
por me terem apresentado um Jesus que nos visita na
noitedeNatal.
Por razões de ordem profissional, residi três anos
emCampoMaior.
Um amigo alentejano encarregou-se de me
arranjar casa.
Situava-se no primeiro edifício de uma rua onde,
numa placa de mármore, estava inscrito o nome de João
Minas. Precisamente na parede que viria a ser a do meu
quarto.
O proencense, que quase julgava uma fantasia de
meu pai, afinal tinha sido um homem ilustre, em Campo
Maior.
Fiquei a olhar aquelas letrinhas pretas, até as
lágrimasas encobriremporcompleto.
Com que orgulho dizia a toda a gente que João
Minas era meuconterrâneo!
É quase Natal outra vez. Um dia destes começo a
subir, de novo, os degraus do miradouro. E, bem lá do
cimo, revejo a minha terra. É o presente que ofereço a
mim própria. Ao Menino Jesus não peço nada. Desejo,
apenas, continuar a maravilhar-mecomas surpresas.
Maria Perpétua
NA VOZ DO POVO DE PROENÇA-A-NOVA
O MIRADOURO
O NATAL
FLOCOSDENEVE
O ti Francisco nunca teve uma vida fácil. A sorte
nunca foi sua aliada, sempre enfrentara dificuldades:
alegrias contava-as pelos dedos de uma só mão, mas o seu
casamento com a sua Emília e o nascimento do seu
Américovaliam-lheportodasas felicidadesdomundo.
A sua Emília sempre o ajudara, foi a sua muleta,
companheira inseparável; dera-lhe o maior dos tesouros
“o seuAmérico”.
Sempre viveram um pouco isolados naquela
povoação. As lides do campo e os animais tomavam-lhes o
tempo todo; apenas aos domingos iam à povoação, mais
para cumprir o sagrado dever de ir à missa, que para
convivercomos outros.
É que, mesmo nestes dias, havia que cuidar do
gado, quenão sabia quando era domingoou quinta-feira.
A partida do seu Américo para a Suíça tinha sido
um rude golpe, não que não gostasse de o ver partir em
busca de uma vida melhor, mas doía-lhe a presença
constantedasua ausência.
Rara era a noite em que, na cama, uma lágrima
não lhe visitasse o olho e o mesmo acontecia com a sua
Emília, mas nada diziam um ao outro sobre isso. Era o
futuro do rapaz que estava em jogo e o amor que tinham
por ele valia todos os sacrifícios; ali na aldeia nunca teria
futuro.
Apenas da primeira vez ficara três anos sem vir à
terra, mas, quando veio, já trazia carro e no banco havia
um bom pé-de-meia, já que não era de muitos gastos,
sabia bemo valordodinheiro, o queelecustavaa ganhar.
Com que surpresa os pais viram chegar o filho
com uma televisão e um frigorifico novo; bem se
perguntavam para quê, se não tinham luz eléctrica na
casa, mas o “malandro” tinha tudo bem pensado, pois,
passados dois dias, lá vieram os electricistas esticar fios
portoda a casa eligaras luzes.
Agora voltava todos os anos. Não podia vir pelo
natal, pois o patrão da quinta onde trabalhava apenas lhe
dava uns dias no fim do verão, poucos, porque o trabalho
era muito e, ao Américo, isso até convinha, sempre
ganhavamaisuns cobres.
O filho bem queria que eles lá fossem passar um
a
NA VOZ DO POVO DE PROENÇA-A-NOVA
O NATAL
natal com ele, os patrões até gostavam de os conhecer,
mas isso não era possível, pois tinham o gado para tratar e
o campopara amanhar.
Voltara este ano, no fim do verão, com a
novidade de que iria casar lá na Suíça. A noiva era uma
sobrinha do patrão; fazia questão que os pais a
conhecessem primeiro, gostava que lhe aprovassem
aquelaunião, como era antigamentena aldeia.
Depois de muita insistência, lá chegaram a um acordo:
iria agora a mãe. Para o ti Francisco aquilo que a sua
Emília decidisse estaria bem feito e, certamente, o
Américotinhaescolhidobem.
Não foi fácil esconder a lágrima rebelde que lhe aflorou
no olho ao vê-lospartir, apenasa muito custo a conteve.
Agora, sozinho na sua casa, recorda a surpresa que teve ao
ver chegar o jipe da GNR à sua porta. O coração bateu-lhe
forte como que pressentindo alguma coisa de ruim; não
se enganou. A notícia não podia ser pior. Já na Suíça, um
acidente roubara a vida à sua Emília e ao Américo, o carro
colidira com um camião cisterna, ardera de tal forma que
carbonizara os corpos; nada restava para além das
imagensregistadaspelascâmaras daauto-estrada.
O mundo desabou sobre si, tudo o que tinha de bom
desaparecera, nada mais lhe importava, não tinha mais
familiares,ficavasó no mundo.
Vieram pessoas da aldeia, tentaram consolá-lo. Mas
como, meu Deus, como pode haver consolo, se perdera
tudo?! A vida, para si, deixava de ter sentido, nem os
corposrestavampara seremadorados.
Nunca mais o Ti Francisco teve alegria, nunca mais se viu
um sorriso naqueles lábios, deitava-se e não dormia;
como queriaestarcomeles!…
Veio o Inverno, as noites maiores eram um tormento que
nunca mais acabava. Quantas noites passou junto à
janela, olhando o caminho que ligava à estrada,
imaginando o carro do seu Américo a chegar com a sua
Emília!
Veio a natal. Recebeu convites para passar a noite mas
não quis, tinha até já recusado a oferta do lar da Junta
para se mudar para lá, acreditava que um dia ainda se lhe
iamjuntaros seusfamiliares.
Na noite de Natal, o frio era tanto que a neve caía com
aaaa
FLOCOS
DE NEVE
intensidade. O Ti Francisco, postado à janela,
perscrutava a rua, algo lhe apertava o coração, não sabia o
que era, apenas olhava a rua tentando ver o que não
aparecia.
Sentiu frio, olhou o lume, estava quase apagado.
Levantou-se, foi pôr mais uma cavaca, sentiu um aperto
mais forte no coração; bateram à porta, com toques leves
écerto, masbateram.
Correu a abrir a porta. O coração quase lhe saltava do
peito, não viu ninguém, apenas dois flocos de neve ali
estavamà sua frente,estranho, estavamparados.
Ficou surpreendido quando viu os flocos entrarem para
dentro de casa, sentiu algo estranho, mas não teve medo,
tão pouco o sentiu, quando um dos flocos falou e disse: « -
Não te assustes! somos nós, Francisco!» - era a voz da sua
Emília. Tocou o floco, não era frio, sentiu mesmo o calor
da sua companheira; o floco começou a ganhar a forma
da sua Emília. Tocou o outro e ouviu: «-obrigado, pai!».
Não, não era possível,o seuAméricoestavaalitambém.
Abraçaram-se, choravam,riam.
Conversaram, contaram como tudo tinha acontecido,
fora tudo muito rápido, não foi possível evitar a colisão
por causa do gelo, ninguém tivera culpa, mas isso não
interessava, nunca mais se iriam separar, ficariam para
sempre juntos. Todos fizeram essa jura, nada mais seria
capaz deos separar.
Láfora, a nevecontinuavaa cairea noiteestavafria.
Pela manhã, parou a carrinha do centro de dia, vinha
trazer o almoço, hojemelhorado, porserdiadeNatal.
Estranho!... A porta estava aberta. Entraram. O Ti
Francisco jazia no chão, estava branco como a neve e na
cara umsorrisocomo nunca lhetinhamvisto.
Partira, caíra maisumfloco deneve…
“Joaquinzinho”
Nota do autor: nem sempre os contos de natal podem ter um final tido
como feliz, nem todos têm um feliz natal, mas a felicidade também
nem sempre é a mesma coisa para todos, quantas pequenas coisas
tornam felizesa uns, quea outros não?
NA VOZ DO POVO DE PROENÇA-A-NOVA
FLOCOS
DE NEVE
O NATAL
SERFELIZ…
Ao Raulito, desde miúdo que se lhe conheciam
aquelas faculdades. Ao pé dele não havia tristeza,
imperavasemprea boa disposição.
O Raul nascera em Lisboa, mas em miúdo vinha
nas férias à terra de familiares, na Beira Baixa. Talvez os
bons ares do pinhal o tivessem ajudado, pois cresceu
saudável,alegreedivertido.
Cedo a veia artística o levou para os palcos, cedo
se distinguiu como o melhor entre os melhores. Porém,
nunca deixou de estar ligado à terra e ser solidário para
com o seu semelhante; foi com este espírito que sempre
colaborou nas festas de natal dos hospitais, dar sem
recebernada dematerial.
Aquicomeçaa ficção, começao nosso “conto”.
Um dia, o pequeno João, o filho do Raul, de
cinco anos, adoece, tinha febres altas, vómitos, tonturas e
uma diarreiaconstante.
Por mais exames que lhe fizessem os médicos
nada conseguiam detectar de anormal, nunca se lhes
deparara um caso assim, nem os exames feitos nos
melhores centros da Europa e dos Estados Unidos foram
capazesdedarresposta a tal doença.
A cada dia que passava, a terrível doença
agravava-se mais e mais. Os médicos aconselharam a que
fosse transferido para casa, pois nada mais a medicina
podiafazer.Restavaesperar pelofim.
Impotente, o pai olhava o filho desesperado, por
vezes questionava: -- ” mas as crianças, Senhor?... Porque
lhesdaistanta dor?...”- Como diziao poeta.
Passava o tempo livre junto à cabeceira da cama
ondeo filhoagonizava,impotentepara o salvar.
Continuava a trabalhar no teatro, fazia rir os
outros, quando a si lhe apetecia chorar. Era com esta
contradição que ia angariando fundos para pagar os
medicamentos dofilho,tinhaquecontinuar a trabalhar.
Saiu de casa com o coração angustiado. Nunca
vira o seu filho tão mal como naquele dia, achou mesmo
estranho que lhe sorrisse quando lhe deu o beijo de
despedida.
Nesse dia tinha o compromisso de actuar no
natal doshospitais,que,porironia dodestino, era, nesse
NA VOZ DO POVO DE PROENÇA-A-NOVA
O NATAL
ano, dedicadoàs crianças.
Saiu mais cedo de casa, queria descomprimir,
não podia deixar que os seus problemas se reflectissem na
sua actuação, para mais sendo dedicada às crianças de
queeletanto adorava.
Vagueou pelo jardim, próximo do hospital. À
hora, foi-se aproximando; entrou e cumprimentou os
colegas.Todosfizeram a mesmapergunta:
_ Então, Raul, como vai o Joãozinho? - A todos
respondeu da mesma maneira: -Lá vai, como Deus
deixa…
Todos sabiam que o caso não tinha cura, era
questão detempo, talvezdias,talvezmesesou atéhoras…
Chegou ao camarim e o telemóvel tocou. Sentiu
um aperto no coração ao ver que era de sua casa, atendeu.
Do outro lado veio a notícia que sabia iria chegar, mas
que lhe parecia um pesadelo: o Joãozinho tinha deixado
desofrer, partira para a longa viagem.
Duas lágrimas acudiram-lhe aos olhos, mal teve
tempo de desligar o telemóvel, quando três pancadas na
porta do camarim anunciavam a sua vez de entrar em
cena. Limpou as lágrimas rebeldes, levantou-se e entrou
emcena.
A sala estava repleta de crianças doentes; olhou-
as, levantou os olhos para o céu e começou o espectáculo;
ele que sempre fora bom actor, estava hoje
completamente fora de série; conseguiu pôr todas as
crianças a rira bandeiras despregadas.
Todas estavam felizes. Tinham esquecido as suas
dores e sofrimentos, até os colegas do actor estavam
maravilhados com a alegria que o Raul estava a conseguir
transmitir no seu espectáculo. Ninguém mais sabia da
tragédia quelhetinhaacontecido.
Terminada a sua actuação, as crianças pediram
mais e o Raul deu-lhes mais momentos de alegria e boa
disposição. Quando voltava a preparar-se para sair, as
crianças voltaram a pedir mais e o Raul deu-lhes mais…
No final, pequenos e graúdos, de pé, aplaudiram a mais
alegre e extraordinária actuação que jamais tinham
presenciado.Então o Raul agradeceu esaíu decena.
Os colegas, que assistiram à sua actuação, foram
felicitá-lo à saída de cena. Encontraram-no de mãos na
aaa
SER FELIZ…
cara, chorando compulsivamente. Surpresos, indagaram
o que se passava; o Raul contou então a tragédia que tinha
acontecido pouco antes de começar a actuar. Aquela
actuação fora a prenda de natal que já não podia dar ao
seuJoãozinho; fizera-a poreleeporamora ele.
Recebeu dos colegas uma das maiores ovações da
sua vida. Em todos os olhos escorria uma lágrima, mas
também uma enorme admiração pelo homem que
conseguira, apesar da sua dor, transmitir e doar aos
outros uma enorme onda de amor, alegria e esperança; o
verdadeiro espírito natalício.
Sem dizer nada, saiu enrolado no seu
sofrimento.
“Sol nado”
Nota do autor: Qualquer semelhança com personagem real pode não
ser pura coincidência, é no entanto fruto de uma admiração total por
um homem que sempre me fascinou e a quem quis prestar uma
simples homenagem, agora que também ele partiu para a sua mais
longa actuação.
Quantas vezeschorando pordentro, nos fezsorrirporfora?
AdeusRaul Solnado.
Como elegostavadedizer:
Façam favor deserfelizes!
NA VOZ DO POVO DE PROENÇA-A-NOVA
SER FELIZ…
O NATAL
OPINHEIROVAIDOSO
Quando as pinhas caem, largando as sementes,
nunca se sabe o que vai acontecer; podem ou não
germinar, depende das condições que encontram, ou até
vira seralimento dealguma ave.
Daquela pinha que caíra junto do tronco do
pinheiro que a criara, nasceram diversas plantas, porém,
só duas conseguiram ultrapassar a primeira e mais difícil
fasedavida.
Lentamente, segundo as leis da natureza, foram
crescendo lado a lado, por sinal bem em frente à casa dos
proprietários do terreno; dali podiam ver a entrada, a
sala, a cozinhaeo quarto dosmiúdos.
Cedo, um dos dois pinheiros se distinguiu pela
sua vaidade. Era vê-lo ao sabor do vento, compondo as
suas finas folhas, para ficar mais atraente, pavoneando-se
diante do irmão, a quem chamava desajeitado e de
horrívelaparência.
Detestava que as aves lhe poisassem em cima,
commedoqueo sujassemenão gostavadeinsectos.
Um dia, viu sair da casa o dono do terreno
acompanhado pelos dois filhos. Chegados junto dos
pinheiros o paidisse-lhes:
-Escolham o pinheiro mais bonito para levarmos
para casa eservirdeárvoredenatal.
Quando ouviu isto, o pinheiro vaidoso todo se
abanou, tentando chamar a atenção dos miúdos. De tal
modo o fez que conseguiu; eles escolheram-no a ele. O pai
voltou a casa, trouxe um machado e zás, cortou o pinheiro
elevou-o para casa.
Apesar de ter sentido uma dor no tronco, o
pinheiro estava todo vaidoso. Ia morar com os donos e
livrar-se do frio, da chuva e do vento forte que lhe
desalinhava a folhas. Nem se despediu da mãe nem do
irmão.
Mal chegou a casa, meteram-lhe o tronco num
vasocomareiaesentiuumagradávelalívionas dores.
Os donos da casa começaram logo e enfeitá-lo com fitas
coloridas e brilhantes, umas figuras reluzentes, bem lá no
alto colocaram-lhe uma estrela dourada; isto sim, era
vida, pensava ele. Olhava pela janela, com desdém para os
outros pinheiros no bosque; coitados, lá estavam, ao frio
a
NA VOZ DO POVO DE PROENÇA-A-NOVA
O NATAL
eà chuva,enquanto eleera coroado como umrei.
Ouviu dizer que era Natal. Ficou extasiado
quando viu as luzes coloridas que o enfeitavam a apagar e
acender; imaginou a inveja que estaria a causar aos
outros, que o viam através da janela. Que sorte tivera! No
entanto, achava tudo normal, já que se julgava o mais
belodetodosos pinheiros dobosque.
Cada dia estava mais vaidoso, mas notava uma
ligeira quebra nas forças. À medida que os dias iam
passando, esta situação parecia até que se agravava; não
dava grande importância ao assunto uma vez que cada dia
pareciacrescero interessepelasua presençanaquelacasa.
Puseram-lhe aos pés uns grandes embrulhos,
penduraram-lhe nos ramos figuras de chocolate
embrulhadas em pratas coloridas. Sentiu-se mais feliz que
nunca, não pudera imaginar ter tanta prenda só para ele;
mirou-se, mais uma vez, no grande espelho da sala, na
parede, à sua frente. Estava lindo de morrer, olhou os
irmãos lá fora. Continuavam, ao frio e à chuva. Como o
deviaminvejar!
A dona da casa, nesse dia, entrava e saía da sala,
ia compondo a mesa, que estava também enfeitada;
quando passava junto dele olhava, ajeitava quase sempre
mais alguma coisa. Pensou que seria um jantar em sua
homenagemeainda ficou maisvaidoso.
Chegou a hora do jantar. Vieram mais
convidados, que se iam sentando à mesa, rindo e
conversando. No ar pairava um odor forte emanado da
comida. O pinheiro não tinha fome, apesar de se sentir
cada vez mais fraco; pensou até que o vapor que saía das
travessasdacomidalhepodiaestragar o penteado.
Quando acabaram de comer, todos se dirigiram
para o pinheiro. Os miúdos agarravam nas figuras de
chocolate arrancando-as com violência. Depois, todos
agarraram nos embrulhos, abriram-nos, deitando os
papéis com desdém para junto do seu tronco. Afinal, as
prendasnão eram para ele.
Por fim, todos saíram, rindo e falando. O
pinheiro ficou só, tinham-lhe apagado as luzes, sentiu um
ligeiro desconforto e olhou pela janela; os seus irmãos
continuavam lá fora, iluminados apenas pela luz da lua
cheia,abanando ao sabor dovento.
O PINHEIRO
VAIDOSO
NA VOZ DO POVO DE PROENÇA-A-NOVA
No outro dia de manhã, os donos da casa vieram,
arrancaram as fitas, tiraram-lhe os enfeites, as luzes…
Sentiu-se elevar no ar e, ao mesmo tempo, muito fraco
acabando poradormecer.
Quando acordou, estava no bosque, junto do
irmão, prostrado no chão. Olhou-o. Lá estava de pé,
abanando ao vento; sentiu a chuva cair, tão fria que
parecia neve. Não se conseguiu levantar, sentiu-se morrer
aos poucos. Afinal tudo não passara de uma felicidade
efémera.
Como invejava agora o irmão! Mas...era demasiado
tarde. Estava arrependido. Descobriu que a vaidade não
compensa,cegara-o.
Eadormeceueternamente...
«Bibaru»
O PINHEIRO
VAIDOSO
O NATAL
POEMAS DE NATAL
(INÉDITOS)
NA VOZ DO POVO DE PROENÇA-A-NOVA II
O NATAL
ONATALNAVOZDOPOVO/ 2009
Avoz dopovo éa chama
Queacendea tradição!
Etoda a gentereclama
Pelafesta daunião!
Agrande preocupação
São as prendaseos manjares
Euma enormesatisfação
Para abraçar familiares!
Mas a verdadeira tradição
Perdeu-sepelocaminho
Atéo melhorcristão
Já esqueceuo seuhino!
Enum rodopioconstante
Opovo anda rezingão!
Esqueceo maisimportante
Falando dacriseemvão!
Umasociedadeexigente
Queexpulsou sua raiz!
Commuito ou pouco écarente
Não consegueserfeliz!
Sehouvessemaishumildade
Ealguma ponderação!
Talvez,viessea bondade
Ao encontro darazão!
Eo Natal teriamaissabor
Comgestos deamizade!
Tudo seriamelhor
Comamorefraternidade!
Vamos festejaro Natal
Edeixara nostalgia!
Comuma esperança real
Para quechegueumnovo dia!
Alberta2009
NA VOZ DO POVO DE PROENÇA-A-NOVA
O NATAL
PRECE AO MENINO JESUS
Oh Jesus! Se és meu amigo,
Desculpa-me a ousadia,
Realiza o meu sonho antigo,
Oferece-me esta alegria!
Não quero nenhum presente
Nem outro bem material,
Eu peço para toda a gente
Um santo e feliz natal:
Olhai pelos ignorantes,
Que aguardam compreensão
E também pelos errantes,
Que anseiam perdão;
Pelas crianças carentes
Rogo a vossa compaixão;
E a todos os doentes,
Jesus, dai-lhes a salvação;
Aos velhos que vivem só
Atenuai a solidão,
Eles são os nossos avós,
Precisam da nossa mão;
Aos jovens do meu país,
Que perderam o seu rumo,
Conduz a um futuro feliz,
De valores e de aprumo.
E todos, sem excepção,
Neste mundo desigual,
Peço a restituição
De um permanente Natal!
Ascensão, 2009
ONATALDEOUTROSTEMPOS
ONatal na minhaaldeia
Era semostentação!
Àpobreluzdacandeia
Sefazia umgrande serão!
Todos juntos à lareira
Numa grande animação!
Reunidaa famíliainteira
Era uma grande emoção!
Asfilhóseram a tradição!
Obacalhau, não havia!
Como não faltavao pão
Já toda a gentecomia!
Todos tinhammuito pouco
Mas não haviaqueixume!
Aqueletempoera outro!
Avidasemazedume!
Anoiteescura efria
Cheiravaa cedro queimado,
Ocrepitarqueseouvia
Era a fogueira no adro!
Ao rigorera a fogueira
Equantos maisceposmelhor!
Todos ficavamà beira,
Aquecendo-seao esplendor!
Do Natal era a canção
Ealguémtocavao sino!
Tambémnaquelesertão
Seaclamavao Deusmenino!
Maria do Cerro, 2009
NA VOZ DO POVO DE PROENÇA-A-NOVA
O NATAL
NATAL DE GENTE SOFRIDA
Natal!...
Tanta gente sem família...
É tanta a solidão,
Tudo continua igual!
Que grande desilusão:
É guerra, ódio, ganância;
Não há paz,
Sinto tanta tristeza
Por ver tanta gente sofrida
Numa guerra já perdida.
Natal!...
Tanta criança triste, a chorar,
Sem roupa, sem brinquedos, sem brincar
Sem um lar, onde possam estar...
Perdidos de fome, famintos de amor,
Jesus!...
Eu quero ter esperança
De um dia sonhar
Com um mundo melhor,
De uma vida com amor
E muito menos dor.
Joskua, 2009
NOITEDENATAL
Énoitedenatal!
Muita genteanda semdestino,
Chora desolidão...
Éumdesatino:
Muitas famíliasestão separadas,
Não têmamor, não têmnada;
Andamna rua, desesperadas,
Meu Deus!
Euquero teresperança
Detodos nós termos
Umnatal digno,
Detodos nós termos
Algopara comer,
Denão passara NoitedeNatal só!
Denão chorar desolidão,
Derenascerpara a vida
Comamorepaz,
Porquetodos os dias
Énatal.
Maria, 2009
NA VOZ DO POVO DE PROENÇA-A-NOVA
O NATAL
NATAISDAMEMÓRIA(inédito)
Entro nos Nataisdamemória
Evou juntando os fragmentos
Da infância povoada demilhistórias,
Nos filmesprojectadospelamente:
Cheiros, cores,sons harmónicos
Dum tempoantigo ainda bempresente!
Lembro bemNataispassados…
Quanta simplicidadeepureza!
Delirismopopularbemrecheados
Comsua aura demagiaedebeleza…
Quemdera revê-losassimcelebrados,
Quena autenticidadetinhamsua riqueza!
Da tradição escrita eoral
Chegamhistóriasmuito belas,
Quepodemabrirjanelas
Para entendero Natal.
Mas seráqueatravésdelas
Entra a luzessencial?...
Umtempoluminoso desceà aldeia:
ÉDezembro, éNatal, étempodeventura
Aligaros elosdalonga cadeia,
Quevemvencendoo tempoea lonjura!
Mas seráquea sua força ainda semeia
Osfrutos dapazedaternura?...
Andamosemcorrerias
Numa vertigemdeloucos
Vivemosincertos dias
Coma esperança a perder-seaos poucos…
Quempodesonharainda
No “salve-sequempuder”queseinstalou!?
VIVALDI (pseudónimo) -Agosto de 2009
REFLEXÕESSOBREONATAL(inédito)
Nos maisdecempovoados
DispersospeloConcelho,
EmProença, na Sobreira,
Nos Montesou na Figueira,
Chegao Natal eregressam
Rituaiscompresépiosefogueiras!
Alvorada esplendorosa
Vairaiando o santo dia,
Repicamos sinosdatorre
Emvibrações dealegria.
Coma memóriaquenão morre,
Hámilénios,emBelém,Jesusnascia!
Natal, fecundamensagem,
Eternasementequegermina,
Umcicloquenão termina
Nesta estreita passagem…
Mas seráqueainda ilumina
Anossa incerta viagem?...
Na lareira, o fogo e,na mesa,o pão…
Mais uma quadra deNatal quesedeseja
Umafesta daFamília,dapaz,derenovação
Da remota chamaquesemantémacesa!
Poderáainda esempreo coração
Suportartão pesadaleveza!?
No silêncioazul dematinaisgeadas,
Denovo como frioo Natal regressa!
Ouvem-sedeNortea Sul novaspromessas
Dequeviveremostodosdemãos dadas…
Mas os quepõemo mundo às avessas
São os actoresdefarsasmalrepresentadas!
VIVALDI (pseudónimo) -Agosto de 2009
NA VOZ DO POVO DE PROENÇA-A-NOVA
O Natal na Voz do Povo 2
O Natal na Voz do Povo 2
O Natal na Voz do Povo 2

Contenu connexe

Tendances (15)

Muito mais que um jardim
Muito mais que um jardimMuito mais que um jardim
Muito mais que um jardim
 
Mauro e o dinossauro
Mauro e o dinossauro  Mauro e o dinossauro
Mauro e o dinossauro
 
Contos de Natal em Rede
Contos de Natal em RedeContos de Natal em Rede
Contos de Natal em Rede
 
Histórias de Natal
Histórias de NatalHistórias de Natal
Histórias de Natal
 
A gritadeira
A gritadeiraA gritadeira
A gritadeira
 
Estafeta de leitura de Natal
Estafeta de leitura de NatalEstafeta de leitura de Natal
Estafeta de leitura de Natal
 
CriançAs P2 13 12
CriançAs P2 13 12CriançAs P2 13 12
CriançAs P2 13 12
 
Caminhao nas estrelas - Relacionamento entre pais e filhos
Caminhao nas estrelas - Relacionamento entre pais e filhosCaminhao nas estrelas - Relacionamento entre pais e filhos
Caminhao nas estrelas - Relacionamento entre pais e filhos
 
Crianças P2
Crianças P2Crianças P2
Crianças P2
 
Módulo Folclore
Módulo FolcloreMódulo Folclore
Módulo Folclore
 
A história do pinda
A história do pindaA história do pinda
A história do pinda
 
Contos e crônicas do cotidiano
Contos e crônicas do cotidianoContos e crônicas do cotidiano
Contos e crônicas do cotidiano
 
337 an 22_junho_2011.ok
337 an 22_junho_2011.ok337 an 22_junho_2011.ok
337 an 22_junho_2011.ok
 
Pág.crianças 8 outubro
Pág.crianças 8 outubroPág.crianças 8 outubro
Pág.crianças 8 outubro
 
O apalpador
O apalpadorO apalpador
O apalpador
 

Similaire à O Natal na Voz do Povo 2

Folhetim Literário Desiderata n. 4 - Saudade
Folhetim Literário Desiderata n. 4  - SaudadeFolhetim Literário Desiderata n. 4  - Saudade
Folhetim Literário Desiderata n. 4 - SaudadeJosé Feldman
 
CPLP_miolo-contos.pdf
CPLP_miolo-contos.pdfCPLP_miolo-contos.pdf
CPLP_miolo-contos.pdfbiblioteca123
 
Era uma vez uma praia atlântica
Era uma vez uma praia atlânticaEra uma vez uma praia atlântica
Era uma vez uma praia atlânticaFilipa Julião
 
Destaques ! Rede Municipal de Bibliotecas de Palmela
Destaques ! Rede Municipal de Bibliotecas de Palmela Destaques ! Rede Municipal de Bibliotecas de Palmela
Destaques ! Rede Municipal de Bibliotecas de Palmela SoproLeve
 
Os tapetes para a procissão
Os tapetes para a procissãoOs tapetes para a procissão
Os tapetes para a procissãoBiblioDP
 
Artesanato de palavras - Lucas Miguel Teixeira
Artesanato de palavras - Lucas Miguel TeixeiraArtesanato de palavras - Lucas Miguel Teixeira
Artesanato de palavras - Lucas Miguel TeixeiraSaulo Matias
 
'Uma estrela' - conto - Manuel Alegre
'Uma estrela' - conto - Manuel Alegre'Uma estrela' - conto - Manuel Alegre
'Uma estrela' - conto - Manuel AlegreMaria Pereira
 
52714265 jorge-amado-os-pastores-da-noite
52714265 jorge-amado-os-pastores-da-noite52714265 jorge-amado-os-pastores-da-noite
52714265 jorge-amado-os-pastores-da-noiteomoogun olobede
 
Museu da familia
Museu da familiaMuseu da familia
Museu da familiaHilda Lucki
 
17302200 Espiritismo Infantil Historia 63
17302200 Espiritismo Infantil Historia 6317302200 Espiritismo Infantil Historia 63
17302200 Espiritismo Infantil Historia 63Ana Cristina Freitas
 
Os contrastes da noite de Natal
Os contrastes da noite de NatalOs contrastes da noite de Natal
Os contrastes da noite de NatalMensagens Virtuais
 

Similaire à O Natal na Voz do Povo 2 (20)

O Natal na Voz do Povo 5
O Natal na Voz do Povo 5O Natal na Voz do Povo 5
O Natal na Voz do Povo 5
 
Cb oqe. folc
Cb oqe. folcCb oqe. folc
Cb oqe. folc
 
Folhetim Literário Desiderata n. 4 - Saudade
Folhetim Literário Desiderata n. 4  - SaudadeFolhetim Literário Desiderata n. 4  - Saudade
Folhetim Literário Desiderata n. 4 - Saudade
 
Cplp miolo contos
Cplp miolo contosCplp miolo contos
Cplp miolo contos
 
CPLP_miolo-contos.pdf
CPLP_miolo-contos.pdfCPLP_miolo-contos.pdf
CPLP_miolo-contos.pdf
 
Era uma vez uma praia atlântica
Era uma vez uma praia atlânticaEra uma vez uma praia atlântica
Era uma vez uma praia atlântica
 
O Natal na Voz do Povo 4
O Natal na Voz do Povo 4O Natal na Voz do Povo 4
O Natal na Voz do Povo 4
 
Destaques ! Rede Municipal de Bibliotecas de Palmela
Destaques ! Rede Municipal de Bibliotecas de Palmela Destaques ! Rede Municipal de Bibliotecas de Palmela
Destaques ! Rede Municipal de Bibliotecas de Palmela
 
Os tapetes para a procissão
Os tapetes para a procissãoOs tapetes para a procissão
Os tapetes para a procissão
 
Artesanato de palavras - Lucas Miguel Teixeira
Artesanato de palavras - Lucas Miguel TeixeiraArtesanato de palavras - Lucas Miguel Teixeira
Artesanato de palavras - Lucas Miguel Teixeira
 
'Uma estrela' - conto - Manuel Alegre
'Uma estrela' - conto - Manuel Alegre'Uma estrela' - conto - Manuel Alegre
'Uma estrela' - conto - Manuel Alegre
 
Uma história de carnaval
Uma história de carnavalUma história de carnaval
Uma história de carnaval
 
O segredo
O segredoO segredo
O segredo
 
52714265 jorge-amado-os-pastores-da-noite
52714265 jorge-amado-os-pastores-da-noite52714265 jorge-amado-os-pastores-da-noite
52714265 jorge-amado-os-pastores-da-noite
 
Museu da familia
Museu da familiaMuseu da familia
Museu da familia
 
Museu da familia
Museu da familiaMuseu da familia
Museu da familia
 
Bem vindo ao museu da
Bem vindo ao museu daBem vindo ao museu da
Bem vindo ao museu da
 
Bem vindo ao museu da
Bem vindo ao museu daBem vindo ao museu da
Bem vindo ao museu da
 
17302200 Espiritismo Infantil Historia 63
17302200 Espiritismo Infantil Historia 6317302200 Espiritismo Infantil Historia 63
17302200 Espiritismo Infantil Historia 63
 
Os contrastes da noite de Natal
Os contrastes da noite de NatalOs contrastes da noite de Natal
Os contrastes da noite de Natal
 

Plus de Biblioteca Municipal Proença-a-Nova (11)

O Natal na Voz do Povo 3
O Natal na Voz do Povo 3O Natal na Voz do Povo 3
O Natal na Voz do Povo 3
 
Negocios pinhalfloresta jornaldofundão
Negocios pinhalfloresta jornaldofundãoNegocios pinhalfloresta jornaldofundão
Negocios pinhalfloresta jornaldofundão
 
Suplemento conferencia-floresta jornal-de-notícias
Suplemento conferencia-floresta jornal-de-notíciasSuplemento conferencia-floresta jornal-de-notícias
Suplemento conferencia-floresta jornal-de-notícias
 
povo-da-beira
povo-da-beirapovo-da-beira
povo-da-beira
 
Acúrcio Castanheira: Escritos
Acúrcio Castanheira: EscritosAcúrcio Castanheira: Escritos
Acúrcio Castanheira: Escritos
 
Boletim1 2014
Boletim1 2014Boletim1 2014
Boletim1 2014
 
Proença em Revista 1ºSemestre 2014
Proença em Revista 1ºSemestre 2014 Proença em Revista 1ºSemestre 2014
Proença em Revista 1ºSemestre 2014
 
Agenda Maio 2015
Agenda Maio 2015Agenda Maio 2015
Agenda Maio 2015
 
Agenda Abril 2015
Agenda Abril 2015Agenda Abril 2015
Agenda Abril 2015
 
Agenda Março 2015
Agenda Março 2015Agenda Março 2015
Agenda Março 2015
 
Agenda Fevereiro 2015
Agenda Fevereiro 2015Agenda Fevereiro 2015
Agenda Fevereiro 2015
 

O Natal na Voz do Povo 2

  • 1. O NATAL NA VOZ DO POVO DE PROENÇA-A-NOVA inéditos e recolhas do património oral popular Dezembro 2008 inéditos e recolhas do património oral popular
  • 2. FICHATÉCNICA Título ONatal na Voz doPovo deProença-a-NovaII Inéditoserecolhasdopatrimóniooral popular Coordenação João CrisóstomoManso (VereadordoPelouro daEducação) Autores Kapulana (Francisco José Simões Cabral); Edusaca (Maria da Conceição Balau Martins Catarino); Diogo Dias (Maria Inês Cardoso); Alberta, Maria do Carmo, Ascensão (Maria da Ascensão Delgado); Maria Giesta (Susana Pereira Manso); Joskua, Maria (Maria Emília de Jesus Lopes Marques); Chagall, Vivaldi (José Ribeiro Farinha); Maria Perpétua (Maria Leonarda Tavares); Joaquinzinho, Sol Nado, Bibaru(José EmílioSequeira Ribeiro) Ilustradores Alfredo Cavalheiro, Francisco José Simões Cabral, Paulo Santiago SílviaMathys Colaboradores Catarina Alves, Carla Gaspar (Câmara Municipal de Proença-a-Nova / Biblioteca Municipal de Proença-a-Nova); Prof. Gil, Prof. Jorge Cardoso, Prof. Alfredo Bernardo Serra, Prof.Helena Edição Câmara Municipal deProença-a-Nova 1ª Edição,Dezembro 2009 Tiragem 500exemplares Impressão GráficaProencense,Lda. DepósitoLegal O NATAL
  • 3. NA VOZ DO POVO DE PROENÇA-A-NOVA II
  • 5. PREFÁCIO O Natal na Voz do Povo traz-nos pela segunda vez memórias escritas registadas nos contos e também nos presenteiacomo sentirpoéticodaquadra natalícia. Os autores dos contos recuperam histórias, reavivam sentimentos e, sobretudo, perpetuam na letra toda a vivência do Natal pelas gentes de Proença-a-Nova, enfim, falam daquelas coisas boas e simples do Natal que adoçam a vida. Nesta edição do Natal na Voz do Povo, confirma- se em Revelações a magia do Natal e retrata-se o viver sócio-familiar na humildade dos lares pobres e rurais; há um particular que vale a pena relevar: enquanto o conto Marungo nos leva para terras de África onde o pequeno Muana vive na esperança de um dia realizar o sonho de ver o mar...e então seria Natal!...nos demais contos revelam-se agruras da separação da família e enaltecem-se as alegrias do retorno da paz pela reconciliação dos familiares desavindos e no regresso para o bucolismo do natal na aldeia. Cantar o natal em verso parece trivial e ao alcance de qualquer um. Porém, eis que mais uma vez somos surpreendidospeloestro poéticodosproencenses. Fica provado que pelo verso se pode rezar ao Menino Jesus e reviver o Natal de outros tempos e da gente sofrida, a mesma gente que com fé no Natal tem esperança num mundo melhor. Porque neste Natal na Voz do Povo ressuma exponencialmente a capacidade de o Natal fazer pequenos milagres, recordando o Raulito, façam favor de seremmaisfelizes,como Natal! Proença-a-Nova, 21 de Novembro de 2009 Alfredo Bernardo Serra NA VOZ DO POVO DE PROENÇA-A-NOVA II
  • 7. CONTOS DE NATAL (INÉDITOS) NA VOZ DO POVO DE PROENÇA-A-NOVA II
  • 9. MARUNGO Mafambisse, terras de África. O velho e fumegante Chevrolet aproveita a paragem obrigatória para finalmente dar descanso ao motor e passageiros. Era o último da fila de carros que se estendia até à margem do rio Pungoé que corria, naquela época do ano, agitado e lamacento. Tinha que se esperar pela vez para fazer a travessia no batelão. Esta longa espera servia de pretexto para o convívio entre todos os presentes sobretudo agora, vésperas de Natal. Trocavam-se novidades e “guloseimas” sobrantes do farnel da viagem, e os mais novos aproveitavam para, nas suas brincadeiras, explorar as redondezas. Estas cercanias constituíam o “mundo” do Marungo: Com os pés descalços, enterrados no “matope” , esforçava-se para estar à altura das tarefas que lhe tinham sido confiadas nas manobras e condução do batelão que teimava em flutuar. Para aquele menino negro, que nunca tinha frequentado a escola, os seus horizontes eram as terras limítrofes do rio. Ali aprendera tudo o que sabia. Aprendera que tudo à sua volta se relacionava e dependia daquele rio. As terras de aluvião e a sua vegetação característica serviam de refúgio e alimento tanto às manadas de antílopes e de búfalos, como a hipopótamos e jacarés. Marungo respeitava, como todos os indígenas daquela região, o equilíbrio natural daquele ecossistema. Quando o tempo permitia, gostava de observar, ao luar, o banho dos hipopótamos e o espreguiçar dos jacarés. Durante o dia apanhava “chinguias” , pássaros multicores, que colocava em gaiolas feitas demiolodecana para venderaos viajantes. Contudo, o grande sonho deste “muana” era poder, um dia, no seu batelão, seguir o curso do Pungoé até ao mar de que já tinha ouvido falar. Seria o viver de aventuras imaginadas, seria o despertar para novos sentimentos e vivências...Enfim! SERIANATAL... Kapulana Rio deMoçambique Lama,Lodo Pequenospássaros Menino, Rapaz NA VOZ DO POVO DE PROENÇA-A-NOVA II
  • 11. DEZEMBRO1990 Sempre que se aproxima o Natal, vêem-me à memória muitas coisas boas e simples, daquelas nos adoçam a vida. Resolvi partilhar uma delas, porque, como alguémdisse,não seéfelizsozinho. Na escola, com os meninos, estávamos em Dezembro de 1990, a azáfama era grande. Todos queriam contar a história que tinham trazido de casa. Tinha proposto aos pais que numa simples folha de papel contassem aos filhos como era o Natal, quando tinham a idade deles (5 anos). Depois, devolveriam a história para sercontada aos amigos. Foi com muita emoção que as li e recordo, como se fosse hoje, duas delas, talvez por serem as que melhor retratavam “o meu Natal”, que era muito feliz e simples; um chocolate, uma boneca de plástico ou uma roupa nova proporcionavam-nos uma felicidade imensa! O meu quarto dos brinquedos era a rua e era partilhado com as minhas irmãs. Também me lembro de ver passar um senhor com um burro, a trocar as sardinhas que trazia por ovos, etambémfizflorescomcascas delaranja. Partilho-as com muita alegria e com o conhecimento e consentimento dos autores, a quem muito agradeço terem-me deixado publicar estes textos, que são dignos de ficar na memória de todos, quer pela sua qualidade, quer para que, tal como eu, outros se possamidentificarcomeles.FelizNatal para todos! Edusaca. Era uma vez…há vinte anos atrás. O vento assobiava, qual navalha que corta as orelhas. Mal a noite caía, os mais velhos, organizados na taberna, encapuçados, a garrafita da aguardente bem guardada, saíam, todos eles capitães. Havia sempre uma carroça, um telheiro. Era uma semana, noite após noite, a juntar os troncos, que, em frente à Igreja, iriam aquecer o Menino Jesus…e o coração de todos. Na véspera de Natal, em minha casa, cedinho ainda, minha mãe dava voltas à massa de farinha de trigo com que, horas mais tarde, quando estivéssemos todos, à volta da lareira, num tacho enorme de barro, se fariam as filhós. Meu pai, com um espeto, facesrosadas, iavirando as filhós.Corados pelo NA VOZ DO POVO DE PROENÇA-A-NOVA II
  • 12. O NATAL calor do lume, comíamos as primeiras, ainda quentes. Como eram boas! Entretanto, tocava para a missa. Como ainda éramos pequenos, íamos para a cama; mas antes, cada um de nós punha… (meu Deus, com que carinho), o sapatinho junto à chaminé. Não conseguíamos dormir com a pressa de saber o que iríamos ter. No dia de Natal, mal o sol raiava, era ver-nos a correr à chaminé. Eram dois ou três rebuçados, um lenço ou umbrinquedodelata…quealegria,quefelicidade! Hoje, os meus filhos têm melhores brinquedos. Não haverá talvez a mesma mística, mas espero que sintam a mesma ansiedade que nós sentíamos…há vinte anos atrás. Maria daPiedade Sabes Carolina, em Santo Estêvão, no Inverno, faz muito frio e cai neve, por isso não há lá laranjeiras. Mas, por altura do Natal, costumava passar um Senhor, a cavalo num burro, com os alforges cheios de laranjas. Não as vendia porque as pessoas, naquele tempo, não tinham muito dinheiro, mas tinham batatas, feijão, castanhas e azeite e então o senhor trocava as laranjas poressesprodutos. Ora acontece que o Menino Jesus, que sabe tudo, bem sabia que eu e os meninos de Santo Estêvão gostávamos de laranjas e todos os anos ia comprar um cesto de verga muito cheio e na noite da Consoada, quando já todos dormiam, ele descia a chaminé e vinha pôr duas laranjinhas, bem docinhas, no sapatinho que eu sempre deixava junto à lareira. Ele nunca se esquecia de pôr lá também duas moedinhas de um tostão para eu ir comprar rebuçados ou amendoins. No outro dia, muito cedinho, quando me levantava, ia a correr ver a minha prenda de Natal. E …oh! Se eu ficava contente! Aquele cheirinho das laranjas, tão bom! Então pedia ao meu avô que me as descascasse em forma de flor e punha as cascas na cantareira da cozinha para a enfeitar e relembrar o dia deNatal, cada vezqueolhavapara elas. BomNatal para tieteusamiguinhos. DEZEMBRO 1990
  • 13. REVELAÇÕES A noite prematura de Dezembro já caía quando chegaram a casa. Fazia tanto frio que o ar gelado parecia entrar pelas aberturas do casaco e procurar abrigo junto do seu corpo. O pai parou o tractor debaixo do telheiro e ajudou-o a saltardoatrelado. - Olhasó quemchegou… Virou-se na direcção em que apontava o dedo do pai. Sentiu uma ponta de curiosidade, mas tentou ignorá- la. Lembrou-se das recomendações da mãe para nas férias ser simpático com o primo, o desajeitado e medroso primo que tinha pavor de tudo o que mexia e se recusava a acompanhá-lo pelos campos. Com tanto rapaz interessante no mundo, tinha de lhe calhar na rifa o primomaisbetinhoquejáseviu? Michel fazia três vezes por ano a viagem que separava a sua casa, em Zurique, da aldeia dos tios e avós. Três vezes ao ano ouvia a mesma ladainha: “Devias sentir- te feliz por teres a companhia do primo. Afinal, passas o tempo tão sozinho, quando não estás na escola…” A verdade é que já se tinha habituado à falta de crianças na aldeia. E este ano até tinha pela primeira vez uma mana a encher a casa de sons e gritos alegres. Sentia que não lhe faltavanada. Nunca era antipático para Michel, nada disso. Apenas achava um tédio as brincadeiras preferidas do primo, que resistia cada vez que tentava arrastá-lo para a rua e era capaz de ficar uma manhã inteira a jogar playstation. Há dois anos os tios tinham-lhe trazido uma portátil, para brincarem juntos. E até tinha de confessar que em dias de chuva sabia bem acordar e continuar enfiado na cama, ouvindo a chuva bater na janela enquanto jogava. O problema é que o primo nunca se cansava daquilo. Ou quase nunca. Não sabia andar de bicicleta, não se aproximava do pátio onde as cabras passavam parte dos dias, tinha medo de subir a árvores e nem na capoeira das galinhas entrava, para o ajudar a ir buscar os ovos.Umaseca. Antes de abrir a porta já se ouvia a algazarra lá dentro. O pai empurrou-o levemente em direcção aos tios, para os cumprimentar. Depois ficou a olhar para Michel,queainda porcimatinhacomeçadoa usar óculos NA VOZ DO POVO DE PROENÇA-A-NOVA II
  • 14. O NATAL e com eles parecia ficar com uma expressão demasiado crescida para alguém de nove anos. Apeteceu-lhe fazer uma careta, mas em vez disso esticou-lhe uma mão em jeito decumprimento. - Estás mesmo crescido, Manel. Acho que passasteà frentedoMichel… A tia sorria e como sempre parecia-lhe uma cópia da mãe, uma cópia retocada com maquilhagem e melhorada com roupas de corte delicado. Ninguém se vestia com a elegância da tia e sentia-se sempre deslumbrado quando olhava para ela. Parecia uma actriz, daquelasqueseviamnas capas dasrevistas. Amãefez-lheuma festa na cabeça. - Ajudastemuito o pai? - Trazemos millitros deazeitedolagar! Todos se riram, menos Michel. Os primos olharam-se de soslaio, mas não falaram. Ficaram alguns minutos a estudar-se mutuamente, a identificar as pequenas mudanças inscritas por quatro meses de ausência. Só depois de ajudar a levar os sacos para os quartos e mostrar ao primo como a tartaruga tinha crescido Manuel começou a sentir uma ponta de entusiasmo. Tanto que lhe revelou o seu segredo. Falou- lhe da Malhadinha e da sua barriga redonda, de onde em breve sairiam cabritos ensanguentados. Michel fez um ar enjoadoefoi inútila tentativadeo animar: - Vou espreitá-la várias vezes ao dia e tenho a certeza que serei o primeiro a ver os filhotes saírem da barriga. O primo encolheu os ombros, como quem diz ‘tanto faz’. Lá estava o Manel a falar dos animais, algo que não lhe interessava nada. Aliás, ali havia muito poucas coisas que lhe acordassem o entusiasmo. Com tanta cidade magnífica no mundo, por que raio a sua mãe teria nascido numa aldeia tão insignificante? Quando crescesse nunca mais passaria o Natal naquele fim de mundo, nunca. Rodou distraidamente o globo que o primo tinha sobre a secretária. Percorreu a América do Norte, desceu ao longo dos estados brasileiros, navegou ao encontro da costa africana e regressou à Europa. Continuou a sua viagem quase sem descobertas e parou aa REVELAÇÕES
  • 15. finalmente o dedo sobre minúsculas letras quase indecifráveis. - Aquiestá Zurique,vês? Pela milésima vez explicou como Zurique era uma cidade movimentada e interessante e descreveu o seu país de montanhas e lagos com a perfeição de um postal. Pela milésima vez Manuel acabou a chamá-lo mentalmente pretensioso – uma palavra difícil quando se tem apenas oito anos, tem de se admitir. A conversa terminou com uma nuvem amuada a pairar sobre os dois. Viu o primo sair do quarto sem dizer uma palavra e não se importou. Os dias seguintes suavizaram-lhes os humores. Andaram juntos no atrelado do tractor e Michel divertiu- se com o vento a bater-lhe na cara. Começou a mostrar-se menos renitente em acompanhar o primo nas suas aventuras e até aceitou fazer uma nova tentativa para aprendera andar debicicleta. Mesmo assim Manuel demorou três dias a convencer o primo a ir espreitar a Malhadinha. Foi atrás de si sempre a resmungar porque os pés se enterravam no mato enlameado e o cheiro era “insuportável”. Michel não passou da porta entreaberta, por isso Manuel não pôde perceber a admiração no seu olhar enquanto ele o via conversar com a cabra deitada num canto do curral. Malhadinha parecia deformada, enorme na sua espera, mas olhava o amigo tranquila, como se entendesse cada uma dassuas palavras deconforto. Nessa noite, quando ia à cozinha beber água, Manuel ouviu sem querer uma conversa dos pais e tios. Quer dizer, tinha de confessar que as primeiras palavras lhe chegaram soltas e casuais, mas depois o ouvido colou- se às revelações surpreendentes. Seria difícil censurá-lo: a tia contava à mãe que se estavam a preparar para, no final do ano lectivo, regressarem a Portugal. O tio tinha já emprego assegurado numa multinacional, em Lisboa. Estariammaisperto dafamília.Mais perto daterra. Estranho, pensou, na Suíça certamente também havia terra. Afinal não seria tão magnífica como Michel fazia crer, ou os tios não quereriam trocá-la por solo português. Seja como for, o primo ficaria desolado. E viriamaisvezesà aldeia,desgosto supremocertamente.O REVELAÇÕES NA VOZ DO POVO DE PROENÇA-A-NOVA II
  • 16. O NATAL mundo a separá-los encurtava-se. Ficou alguns minutos inquieto, a pensar na novidade, mas depressa a tranquilidadedainfância abriua porta ao sono. O dia seguinte amanheceu morno e cheio de sol, quase se poderia dizer primaveril. Não parecia véspera de Natal. Sentou-se à mesa para o pequeno-almoço e fixou demoradamente o primo. O segredo queimava-o. Chamou-o para andarem de skate e estranhou o entusiasmo de Michel. Desceram divertidos a ladeira, uma vez e outra, e a certa altura percebeu que no riso do primo havia música. Nunca se tinham rido assim um com o outro e descobriam ter muitos territórios desconhecidosa desvendar. Quando se sentiram demasiado exaustos para continuar, deitaram-se de costas a ver as nuvens no céu. Viram uma que parecia o Pai Natal. Fizeram a lista de presentesqueesperavamumdiareceber. - Se eu pudesse pedia ao Pai Natal que os meus paismudassemdeideiasenão viéssemospara Lisboa. O súbito pedido deveria apanhá-lo de surpresa, mas Manuel só se admirou por afinal o primo já saber dos planos de mudança. Michel confessou-lhe os medos de um mundo novo e pela primeira vez ouviram-se como quem descobre de repente que está a crescer. Sentiram-se os dois pequeninos sob a imensidão do céu azul matizado de branco e pensaram nos misteriosos caminhos da vida quenão entendiam. - Poderás vir ter connosco mais vezes, aos fins-de- semana. Eu vou ajudar-te a gostar de Portugal e em pouco tempo já nem vais pensar na Suíça. Se calhar vais passar a chamar-teMiguel,não achasbemmaisbonito? Parecia simples e de repente o futuro já não desarrumava as certezasdeMichel. Depois de almoço já parecia outro, quando começaram a preparar as filhós. Pediu para ajudar a tia a envolver vigorosamente ovos, açúcar, um fio de aguardente, raspa de laranja, farinha que foi engrossando a pastosa mistura. Claro que se cansou em poucos minutos. A tia sorriu-lhe e continuou. As mãos dela eram fortes sem deixarem de ser macias e pareciam ter a doçura do mundo por inteiro dentro delas. Quando as filhós ficaram amassadas e aconchegadas sob uma manta cujo aa REVELAÇÕES
  • 17. calor as ajudaria a crescer, a tia deixou-o chupar os fios de massacolados entreos seusdedos. Quase à hora de jantar, Manel reapareceu depois de uma longa ausência e veio chamá-lo discretamente. “Já chegou a hora…” Esbugalhou os olhos e sentiu-se colado ao chão, receoso do que iria ver. O primo acendera uma lanterna e tinha-a prendido no canto do curral. Os olhos demoraram ainda alguns segundos a habituar-se à claridade amarelada do espaço acanhado. Depois viu. Um minúsculo monte de pêlo ensanguentado aninhava- se junto à Malhadinha. Não conseguia adivinhar-lhes a cor, maso primoassegurou queera branquinho. - Vêso outro a aparecer?Vaispodervê-loa nascer. O mundo cabia ali, no mistério daquele pequeno corpo a escorregar para o chão. Malhadinha lambeu-o demoradamente enquanto os dois primos apreciavam cada momento. Quando já se aproximavam para ver melhor os dois recém-nascidos, a mãe cansada voltou a agitar-se de novo. Só perceberam o que estava a acontecer quando uma mancha acastanhada começou a fazer-se ouvir. Apontaram a lanterna naquela direcção e riram descontroladamente, fascinados com o terceiro nascimento. Esqueceram-se que já estavam com as roupas vestidas de lavado para o serão e ajoelharam-se junto aos três filhotes. O silêncio instalou-se no curral. A alegria não precisava de ser dita para ser partilhada. De quando em vez a cabra balia baixinho, como se confessasse as doresdoparto. Nessa altura ouviram-se os sinos a chamar para a missa do galo. Os pais deviam procurá-los para jantar, mas os dois estavam esquecidos do tempo, atentos ao cuidado que Malhadinha punha em cada toque nos filhos. Manuel tinha um sorriso de orelha a orelha e explicava como sabia bem pegar-lhes ao colo enquanto eram pequeninos e consentiam ser acarinhados. Michel agarrou o braço do primo e trocou com ele um olhar cúmplice, como se agradecesse sem palavras tê-lo deixado partilhar aquele momento. Mas só muitos anos mais tarde descobriria a imensidão do mundo que aquelas fériasdeNatal lhedesvendaram. Diogo Dias REVELAÇÕES NA VOZ DO POVO DE PROENÇA-A-NOVA II
  • 19. OMENINOJESUSEASDUASMENINAS Era uma vez duas meninas, a Francisca e a Marta. Frequentavam a mesma Escola e eram as maiores amigas. Gostavam muito da sua Escola e principalmente da Senhora Professora, A Sra. D. Dina, a “minha Senhora”, como elasdiziam. A Escola fechava pelas cinco horas da tarde. Ouvia-se a campainha e todos saíam a correr. Porém, a Francisca e a Marta levantavam-se mais devagar, pois tinham de levar, além da bolsinha dos livros, outra que continha alguma coisa. E continha, eram coisas diferentes, desde a alimentação, até pedacinhos de tecido,lápisdecor... Agora na rua, dirigiam-se sempre na mesma direcção. Sim, elas nunca deixavam de visitar a amiguinha, a senhora Antónia, que vivia no centro da vila, sozinha e com poucos haveres. Era uma senhora de bastanteidadeeera quasecega. - Está lá, senhora Antónia? - Sim, meninas, hoje até já receava que não viessem… Pobre senhora! Eram estes momentos a única alegriadosseuslongos esolitáriosdias. Em poucos minutos, as duas meninas acendiam a lareira, que só desaparecia totalmente no Verão. Nos dias e noites frias, como era bom para a senhora Antónia este calorzinho! E então agora que se aproximava o Natal. Que frio! Como era bom este conforto que vinha da fogueira que a Francisca e a Marta tinham atiçado com nova lenha que, por vezes, até traziam. É que: “ande o frio por onde andar, ao Natal vem parar”. E nesta Quadra até era mais fácil às duas meninas arranjar mais alguns mimos dos que costumavam trazer. Pudera, o Menino Jesus até levava as pessoas aos bons cozinhados, em especial às filhós e às broinhas de mel. Que bem que cheiravam por toda a vila e a senhora Antónia era uma privilegiada, pois recebia-os da família da Marta e da famíliadaFrancisca. Estavam agora as três sentadas à lareira, rindo, cantando e ouvindo as lindas histórias e cantares da senhora Antónia: NA VOZ DO POVO DE PROENÇA-A-NOVA II
  • 20. O NATAL “Ó meu Menino Jesus, Ó meu Menino tão belo, Só Tu quiseste nascer, Na noite do caramelo” - Caramelo?! –Repetiua Marta. - Sim,sim,meninas,caramelo égelo! - Realmente! -- Replicou a Francisca – Eu julgava queera umrebuçado… - Sim, as palavras morrem e transformam-se em sentidosdiferentes- respondeua senhora Antónia. - Ó Marta, toda a gente tem um presépio e a senhora Antónia não tem! - Pois,nós podíamosfazer-lheum… - Mas como, Marta? Vou pensar… Após alguns minutos de silêncio, a Francisca levantou-se edisse: -Vamos, Marta, vamos procurar pedrinhas que se aproximem no seu aspecto às figuras do Presépio. Pintamo-las com lápis de cor. Eu pinto-as e tu, Marta, fazes os mantos de Nossa Senhora e de S. José. Não te esqueças de fazer uma mantinha para tapar o Menino Jesus! Coitadinho, está sempre sem roupa e, certamente, comfrio. - Está bem, Francisca, eu até tenho lá uns bocadinhos de tule do véu da Graça e outro pedacito das calças castanhas domeuirmãoJoão. A senhora Antónia sorria e pensava: “onde se viu umpresépiodepedras…” - Francisca, o meu irmão trouxe tanto musgo para o nosso Presépioqueeupossotrazer algum. No dia seguinte, o Presépio estava pronto e lindo. Que pena, a nossa amiga não o poder ver, lamentaram as duasmeninas. - Só falta a cabaninha… euma estrela. - Vamos fazê-lasdepaus… - Marta, tem de ser rapidamente. Amanhã já é aaa O MENINO JESUS E AS DUAS MENINAS
  • 21. véspera de Natal. Olhe senhora Antónia, a gente vem cá antesdaMissadoGalo. - Está bem,meninas. E as horas passaram depressa. Estava uma linda noite,aquelanoitedeNatal. - BoasFestas! - BoasFestas! - Que o Menino Jesus lhes pague por tudo, meninas! - Respondeu a Senhora Antónia, que se aquecia junto à lareira e tinha em frente um lindo presépio de pedras. - Que lindo, que lindo! Marta, repara nos olhos doMenino Jesus,estão a mexer… - Poisestão, Francisca, estão… E, num ápice, duas luzes brilhantes como o sol saíram da carinha do Menino Jesus. As duas meninas ficaram petrificadas e a senhora Antónia caiu de joelhos, deixando cairtambémo terçoquetinhaestado a rezar. - Meninas! Meninas! Eu vejo-as, eu vejo tudo, só não vejoo nosso presépio… Realmente, agora só havia para admirar a recuperação davista daSenhora Antónia. As três abraçaram-se e não disseram palavra e as meninas, em grande alegria, correram para a Missa do Galo e, muito baixinho, repetiam: “ela vê, ela já vê!” e ambas tinham no coração o seu Menino Jesus que estava tambémnos olhosdaboa senhora Antónia. NA VOZ DO POVO DE PROENÇA-A-NOVA II O MENINO JESUS E AS DUAS MENINAS
  • 23. OPRIMEIRONATALLONGEDAFAMÍLIA À memória de meu pai, que, sem ir à escola, aprendeu a ler e a escrever já adulto e que, sem mestre, aprendeu a arte de carpinteiro e marceneiro, de que foi mestre. Miúdo ainda, Manuel tinha fama de resolver o que a outros escapava. Determinado, não fugia a dificuldades, onde via desafios a vencer. Dizia-se que, com tais dotes, teria colhido a flor do feto-real, feito um pacto com o diabo. Adiante, histórias para um filme, não para a do seu primeiro Natal longe da família, aos dezassete anos, na oportunidade que o fez passar, digamos,derapaz a homem,deaprendiza mestre. Ao ouvi-lo contar o feliz capítulo da juventude, compus este trabalho, cruzamento de duas histórias tecidas pelo acaso: do Manuel, que um dia teve de substituir o mestre, da família Delgado que, desavinda por causa de partilhas, se reconciliou no Natal de 1950, no que o jovem teve papel relevante. Seis décadas depois, lembra episódios marcantes. Os anos esfumaram detalhes, as imagens vêm desfocadas mas, aquele período,continua bempresentena sua memória. Iniciou-se na arte aos onze anos, depois da Primária, com o mestre marceneiro da Vila, que tinha já dois principiantes. Como outros varreu a oficina, fez recados, arrumou a ferramenta, etc. Mas logo deu nas vistas pela dedicação, vontade de aprender, busca de perfeição no que fazia. Pela pequena estatura trabalhava num banco com estrado para alcançar o tampo, onde aquele metro e meio de gente fixava as peças das cadeiras, das mesas, das cómodas: serrava, desbastava, aplainava, lixava, preferindo madeiras de cerejeira e castanho, às de pinho. Gostava do intenso odor da madeira a ser aparada com a enxó, a projectar lascas retorcidas e das odorosas serpentinas de cores e cheiros diversos expelidas pela plaina e pela garlopa, deslizando sobre as peças. Dava atenção a detalhes de móveis de estilo que vinham a restaurar, como os entalhados que imitava nos móveis novos. O mestre controlava-lhe os excessos mas ajudava-o a adaptar goivas e formões para esculpir na madeira os “floreados”emalmofadas, gavetas ecostas dascadeiras. NA VOZ DO POVO DE PROENÇA-A-NOVA II
  • 24. O NATAL Não perdia ocasião de saciar a sede de saber. Lia, à socapa, livros da colecção “Biblioteca Inst. Profissional” da Bertrand, que o mestre pedia de Lisboa, onde bebeu muito doquesabia. Evoluiu e, às vezes, substituía o mestre nas deslocações aos clientes. Colhia os frutos do seu empenho, chegava o momento-chave da sua profissão: pelo mérito, o mestre abria-lhe as portas do futuro, com confiança eresponsabilidade. Numa bela manhã de Novembro, parou frente à oficina a carroça do Sr. tenente Delgado, puxada por uma mula castanha, conduzida pelo caseiro. O tenente apeou- se, dirigiu-se ao mestre e pediu-lhe uns minutos de atenção. Até então, mal o conhecíamos. Víamo-lo passar, montado numa égua ruça, a caminho de Proença para receber, dizia-se, a pensão de reformado da Marinha, e que morava a mais de cinco léguas, lá para os lados de Oleiros… Ao mestre disse: -“Amigo, preciso da sua ajuda para obras de restauro, antes do Natal, na casa da Feiteira, onde tenciono agora passar mais tempo.”Antes que o mestre esboçasse um não, segurou-lhe o braço, falou do estado dacasa eexplicouas razões daurgência. -“Deve ter ouvido falar, desde as partilhas a família anda desavinda. Há anos que não vejo meus irmãos, mal conheço os sobrinhos… Não me sinto culpado mas, como mais velho, tenho feito um esforço no sentido da reconciliação. E houve, há poucos dias, a promessa de que, alguns viriam passar connosco o Natal.” Sensível às razões do cliente, o mestre buscava uma solução razoável para ambos. O tenente, entretanto, voltava à carga: -“Não se preocupe com comida e dormida, apenas com a ferramenta e materiais e tenho madeira boa para o que precisar. Ah, pago bem,” e acenava com uma “quinhentola”- nota de quinhentos escudos - que, na altura, removia obstáculos e não abundava nas mãos do comum dos mortais. O mestre não gostou dogesto ostensivo eo clientelogo emendou: -“Esta, fica como adiantamento para primeiras despesas.” O mestre ia ajudá-lo e aproveitar a ocasião para aa O PRIMEIRO NATAL LONGE DA FAMÍLIA
  • 25. ganhar mais alguma coisa. Não faltaria, porém, aos seus compromissos e, perante a ansiedade do cliente, disse: –“Sr. tenente, resolveremos a situação que me tocou bastante, mas não poderei faltar a outros. A solução será fazer avançar já o meu ajudante Manuel - não o tratou por aprendiz - que, sendo jovem, é competente, para o efeito atémaisminucioso doqueeu.” - De imediato, tratava-se de dar um jeito nas salas e nos móveis. -“O resto, acerta-se depois do Natal, com ele ou comigo, severá.Não háalternativa.” O veredicto deixou corado o rapaz e perplexo o cliente,queduvidavaestaro moço à altura. Mas, perante exemplos de trabalhos feitos por ele, lá se convenceu. Como tinha transporte, acertaram que partiria com ele nessa tarde. Enquanto o tenente foi pelas lojas, às compras, Manuel juntava as suas coisas. A promoção trazia-lhe um misto de contentamento e receio. Com visível nervosismo, reuniu ferramentas, sob o olharatento domestre,antesdedespedir-sedafamília. Fez um rol dos materiais de que iria precisar, que ia pondo na caixa: verniz, cera, goma-laca, álcool, anilinas, “pau-campeche”, lixas de vários grãos, preguinhos, grude, gesso, etc. E, com a emoção a dominá- lo, foi à aldeia buscar a roupa e dizer adeus à família. Era a primeiravezquepassariao Natal longedosseus. Viagem dura, contudo, sem percalços, sobre a carroça puxada pela mula que, mesmo de noite, sabia o caminho de cor. Partiram com o sol a dar na encosta da serra que iriam enfrentar. À medida que se embrenhavam no pinhal, escureceu, levantou-se forte ventania e a chuva não tardou. Temeram o pior, quando a besta escorregava e a carroça, aos solavancos nos carreiros lamacentos, ameaçavatombar. A destreza do Sr. João permitiu que, apesar do desconforto, fossem furando o negrume e chegassem a porto salvo, demadrugada. Exaustos, estacionaram no largo frente ao edifício. No alpendre do grande casarão, a luz do “petromax” dava forma às silhuetas que se aprestavam a recebê-los e a recolher as bagagens que o Sr. João descarregava. À volta, escuridão e silêncio, sem uma estrela na grande cúpula! Manuel seguia o anfitrião, que aa NA VOZ DO POVO DE PROENÇA-A-NOVA II O PRIMEIRO NATAL LONGE DA FAMÍLIA
  • 26. O NATAL lhe apresentou primeiro a esposa, D. Margarida, depois a afilhada, Isabel Maria e sua mãe, a Sra. Ana e uma miúda, a Maria do Carmo. Acabavam as aflições da espera, sentiam-seagora aliviadas. Arrumada a carroça, o Sr. João tratou da mula, enquanto as senhoras guardavam as compras e D. Margarida preparava cama para o Manuel. Da cozinha chegavam deliciosos odores com a música, agradável nas circunstâncias, do tilintar de talheres, lembrando os dias festivos da aldeia, prometendo reparar o desgaste da viagem. Então, já o pensamento do jovem esvoaçava por outras esferas: pensava na família, fixava-se, com a ansiedade que só o início do trabalho acalmaria, naquilo quealio trouxera. De manhã fez, com o patrão, o balanço possível do mais urgente. Nas salas viam-se cadeiras descoladas, mesas desconjuntadas, buracos no soalho. Antes de limpar os móveis, havia que repará-los, refazer partes do rodapé, do corrimão da escada que dava para o sótão, remendar o soalho. Na cabana viram a madeira com que podiam contar e, mãos à obra: cortar aqui, acertar ali, encaixar acolá; colar, raspar, lixar e, depois de reposto um pedaço, embutida uma peça, aproximar a tonalidade da madeira nova da existente onde se inseria, com ajuda do pau-campecheeminfusão. O trabalho de base avançava, para espanto de quem via Manuel como um miúdo. Acabamentos, só depois. Empenhado nas tarefas, até se esquecia de comer e descansar e só à noite sofria com a falta da família. Era a D. Margarida quem, amiúde, o obrigava a sentar-se à mesa, porque havia sempre mais um retoque, uma afinação. Com uma “boneca” de pano macio embebida em goma-laca, devolvia às madeiras a cor e brilho naturais. Andava contente porque, à sua medida, contribuiria para o êxito do reencontro da família Delgado,não deixando malo mestrequeneleconfiara. Na sala de jantar restaurou o corrimão da escada, transformou os inestéticos vazios sob a mesma em úteis armários, melhorando a zona. Ia limpar o relógio de parede antigo de madeira exótica, muito belo, com alçado principal de duas portas com vitral e figuras agarrando uma esfera, quando reparou que a uma faltava a O PRIMEIRO NATAL LONGE DA FAMÍLIA
  • 27. um braço e a mão, a encimar o pórtico. Observou bem a figura simétrica da outra porta, aventurou-se a refazer o alçado da valiosa peça. Fez um esboço, escolheu um pedaço de cerejeira preta, desbastou até à medida. Recortou, esculpiu com uma goiva especial e fixou no sítio. Afinou, lixou, acertou o tom da madeira, poliu e pronto: à distância, mal se notava o restauro. Um êxito! D.Margaridadizia: -“Este rapaz consegue milagres! Tanto talento e energia!” Isto, a poucos dias do Natal, quando começava a azáfama dos preparativos da festa onde, havia anos, não aconteciaNatal. Dos forasteiros não havia notícias. Crescia a ansiedade com o encurtar do tempo. Não era fácil chegar ali nem comunicar com alguém. Por qualquer via, o acesso era sempre obstáculo, pior no Inverno, com o frio e a neve a isolar ainda mais a Feiteira. O Sr. tenente tinha ido a Oleiros tentar enviar um telegrama, sem êxito. Mas deixou em alerta os primos: caso a família chegasse, entretanto, tinhammeiosdeos transportarà Quinta. Com o mais urgente feito, Manuel ia dando uma olhadela pelos livros e revistas da estante, do tempo das viagens do patrão, inconformado com a falta de estudos que o impedia de entrar naqueles mundos distantes. As imagens que exibiam as reportagens que não entendia projectavam-no, como num sonho, por longínquas paragens, maslogo retornavaà sua enormefrustração! Fez ainda um presépio, recortando figuras de cartão a que deu cor, montando a improvisada representação da Natividade ao pé da lareira, iluminada por uma lamparina, que deixou feliz D. Margarida. Mas a ansiedade ia tomando conta de todos. Dois dias antes do Natal, o tenente Delgado mandou o Sr. João aos primos de Oleiros, por notícias. Só a D. Margarida continuava optimista! -“Vão ver que, não tarda, teremos a casa cheia, tudoacabará bem.” À lareira, enquanto esperava o caseiro, o Sr. tenente foi buscar a velha concertina, desencantada a um canto. Animado por todos, tocou velhas modas, acompanhado pela desafinação dos presentes. Afinal, esta alegria contida e tímida, precedia as boas novas trazidas de Oleiros: viriam os dois irmãos, as cunhadas e aa NA VOZ DO POVO DE PROENÇA-A-NOVA II O PRIMEIRO NATAL LONGE DA FAMÍLIA
  • 28. O NATAL um neto do irmão mais novo, o Ricardo, e ficariam dois ou trêsdias. Outros viriam talvez no Verão. E está combinado, iremos recebê-los, com os primos a dar a sua ajuda. A explosão de alegria ecoou pela casa! Sabiam agora quem vinha, preparariam os quartos, fariam sair dos baús as alvas roupas de cama e as belas toalhas de linho bordadas para enfeitar as mesas. Avançariam com as filhós, os bolos e outros manjares. No dia seguinte, o caseiro e o patrão mataram uma cabra, um cabrito, dois vistosos galos e um enorme ganso. Prepararam a carne para a chanfana e para os maranhos e entregaram as aves na cozinhapara seremlimpas. Vivia-se já o acontecimento. Saíam dos armários e das gavetas artefactos que, havia muito, não viam a luz; apareciam as compotas e os licores caseiros, exibiam-se vinhos e outras bebidas da recheada garrafeira. Todos rejubilavam a antecipar o momento, há tanto esperado, da reconciliação! E que melhor ocasião do que a Festa do Natal e da Família? Os anfitriões regozijavam-se também por terem criado, ali, com os vários melhoramentos, condições de acolhimento e conforto impensáveis, anos atrás. Na véspera de Natal, partiram para Oleiros, o tenente e o caseiro, para receberem a família e trazê-la de volta ao berço natal. O frente-a-frente em Oleiros, depois de anos de costas voltadas, foi comovente. Muito mais foi a chegada deles à velha casa onde, havia tempo, não entravam. Manuel conta que não tem nem existem palavras capazes de exprimir o que viu naquele reencontro. O choro e o riso misturavam-se; abraçados num enorme novelo, os corpos, de soluço em soluço, beijavam-se, choravam, riam! Depois, pacificados, desfiaram, em tom ternurento, as passagens mais significativasdassuas vidasparalelas. Consoada inolvidável! Tinham muito que contar. Num gesto de boa vontade, todos aludiam a factos passados e faziam-no amistosamente, evitando constrangimentos. -“O que lá vailá vai,”- diziam.Falavam dos filhos, dos netos, da saúde... O tenente, que não tinha filhos, via a afilhada Isabel Maria como se fosse sua a O PRIMEIRO NATAL LONGE DA FAMÍLIA
  • 29. filha. Com eles desde pequena, em Lisboa, só era pena não ter cabeça para as letras, não indo além do terceiro ano. Preferiu seguir os lavores com a madrinha. O serão entrou pela madrugada, numa avalancha de palavras que ninguém conseguia estancar, tal a torrente de ideias e novidadesquealisecruzavam. Vieram os brindes, a troca de presentes entre todos. Até o Manuel recebeu, com espanto seu, uma camisola de lã feita pela D. Margarida e, do patrão, algum dinheiro, como semanada. O jovem nunca vira tanto dinheiro, vivia momentos que o faziam levitar nas alturas. Do tenente ouviu: -“Este é teu, não entra nas contas do mestre e ficas sem fazer nada até ao Ano Novo, a não ser dar alguma ajuda à patroa.” À sugestão do Manuel de poder ir ver a família respondeu o patrão: -“Não te sentes bem aqui? Tenho trabalho para ti depois do Ano Novo, não te deixamos ir tão cedo. Falei com o mestre, sei que está tudobemcomos teusequetesaúdam.” *** O feliz reencontro parecia milagre, vivia-se ali uma bela epifania! Ninguém ligava ao que o tenente, por várias vezes, quis propor: -“uma revisão das partilhas a reparar, se fosse caso disso, alguma injustiça.”- Mas ninguém ouvia. -“Que não era altura de falar disso,” - diziam. Na manhã de Natal, luminosa e fria, com a geada e a neve a dar voz aos passos, foram pela quinta, atrás de memórias, as esposas a observá-los com gosto, sem interferir: -“pareciam crianças, a recordar jogos e corridas, busca de ninhos, trepar às árvores e, às vezes, o uivo dos lobos a ecoar na neve!” -Em cada canto, as marcas esbatidas da sua meninice. Manuel ouvia-os, quando o irrequieto Ricardo, que o adoptara como parceiro de brincadeiras, lhedavatréguas. Viram a casa dos empregados e as instalações anexas que, dantes, no tempo dos trabalhos sazonais, eram um formigueiro de gente vinda de fora: o celeiro com as arcas do grão, as talhas do azeite, a salgadeira; os palheiros, a cabana da carroça e das alfaias agrícolas; os estábulos, as capoeiras e, ao lado, a adega com a lagariça e pipos fora de uso; acima o moinho na ribeira, ladeada de salgueiros e choupos, limite da propriedade a Sul. Na adega o sítio do alambique e, a propósito, o tenente aaaaaa NA VOZ DO POVO DE PROENÇA-A-NOVA II O PRIMEIRO NATAL LONGE DA FAMÍLIA
  • 30. O NATAL perguntou se ainda se lembravam do Chico maluco, que destilava o medronho. -“Pela tarde estava já toldado de tanto ir provando e uma vez trambolhou na ribeira. O nosso pai - que Deus haja! - foi ajudá-lo e o Chico, a cambalear, dizia: -“ escorropichei só um copito, patrão.” Quiseram depois saber se ainda se fazia medronheira. -“Muito pouca” - disse o tenente, - “limitamo-nos ao que os caseiros apanham. Basta-me ter umas garrafas para oferecer aos amigos. Podeis levar também algumas” - Ao contrário de outros tempos, em que se cultivava milho, centeio e forragens, se apanhava azeitona, castanha, etc., plantavam só o mínimo e suficiente. A terra de cultivo estava reduzida à faixa junto à ribeira. Os castanheiros foram-se perdendo, as oliveiras eram poucas e não compensavacultivaroutros produtos. Junto à mina, que abastecia a casa e dava para a rega quando a ribeira ficava por um fio, o ex-libris da propriedade, o velho castanheiro, que todos conheciam. Imponente, o enorme tronco esburacado, com cepos empinados à volta a fazer de bancos e tábuas a servir de mesa. Lugar aprazível no verão, a sua sombra tem, por certo, guardados muitos segredos. E lá continuaram a recuperar partedoseupassado. Do muito que ouviu e viveu naquele período, marcante para ele e para a família Delgado, com quem perdeu depois o contacto, nem de tudo Manuel se lembra. Ficara lá a trabalhar por algum tempo mais, já nem sabe quanto, mas não voltou. Com a tropa a levá-lo para Lisboa, foi esquecendo a Feiteira, nem sabe se hoje ainda existe. No fundo, talvez prefira recordá-la como a conserva na memória! A ideia que tem do mítico espaço é como a que tinha antes de ali chegar: um lugar longínquo indefinido,alguresna serra… Como vai longa a história, apesar do muito que fica por contar, termino já. Mas podemos imaginar com certeza que, depois da estada do Manuel e da reconciliação naquele Natal de 1950, a quinta da Feiteira terá passado a ser mais frequentada pelos membros da famíliaDelgadoedescendentes. CHAGALL - Pseudónimo (Conto inédito) - Setembro, 2009 O PRIMEIRO NATAL LONGE DA FAMÍLIA
  • 31. À memória de meus pais OMIRADOURO O meu pai era um bom contador de estórias. A minhamãetambém,mastinhamenostempo. Sentados à lareira, especialmente, nas longas noites de Inverno, os mais pequenos ouviam, atentamente, as palavras mágicas de contos reais ou fantasiados, que emprestavam àqueles momentos um sabor único einesquecível. Uma das estórias que nos contava, com alguma frequência, era a doSr.João Minas. Ainda me lembro da Pensão Minas, no Largo da Igreja Matriz de Proença-a-Nova. O protagonista pertencera, repetiasempreo meupai,a essafamília. Começava com o casamento do nosso conterrâneo com uma senhora rica de Campo Maior. As descrições eram tão pormenorizadas que tudo levava a crer que o narrador tinha sido uma testemunha presencialdacerimónia. O noivo sentir-se-ia muito feliz no Alentejo, não fora a saudade da sua terra. Olhava as planuras, em redor, e suspirava de tristeza. Estava tão distante de Proença-a- Nova,dospinheiros edasserras! João Minas nunca julgara que ia sofrer tanto com a falta dos aromas, do toque do sino da igreja e de muitas pequenas coisasquesó a lonjura valoriza. Num final de tarde, enquanto passeava pela herdade, teve uma ideia luminosa: construir um miradouro, tão alto, tão alto, que dele pudesse avistar Proença-a-Nova. O meu pai tinha cumprido o serviço militar em Elvas. Aquele pedaço do Alentejo era-lhe familiar e, porventura, o sentimento nostálgico. Esta estória tem-me acompanhado ao longo da vida, porque os estudos me obrigaram a deixar a minha terra muito cedo. Tinha apenas nove anos. Nos momentos de maior tristeza, edificava um belveder, que a imaginação elevava no espaço azul, de onde os olhos do coração enxergavam a aldeia pequenina, aninhada numa encosta soalheira, decorada com pinheiros, uma aaaaaaaa NA VOZ DO POVO DE PROENÇA-A-NOVA
  • 32. O NATAL azinheira grande euma fontejunto denossa casa. Nesta caminhada de ausências, já pisei muito pedaço de chão, porém, há uma época do ano em que regressosempreà minharegião:no Natal. As memórias e os afectos são intensos. Subo, degrau a degrau, o miradouro que guardo dentro de mim. Onde quer que me encontre, nessa data, tento acender o sonho e a poesia do Natal. Recrio o calor humano e também o da lareira, os aromas e os sabores, especialmente o das filhós. Reproduzo a decoração, no essencial. Mas não posso trazer de volta muitos dos que partilharam comigo os momentos mais doces da infância edajuventude. Quando era criança acreditava, como quase todos os da minha geração, que na noite de Natal o Menino Jesus deixava um presente nos sapatos colocados junto à lareira. A boa vontade e a nobreza do amor proporcionaram-me prendas que, apesar de simples, foram as melhores da minhavida,pelasurpresaepelofascínio. Na casa onde nasci havia uma lareira espaçosa em redor da qual se sentava uma família numerosa, genuinamentefeliz. A nossa alegria enchia a casa de risos e de um calor aconchegante. Fazíamos um presépio grande. Os lagos eram espelhos, o verde era de musgo e a neve pedaços de algodão. A cabana do Menino Jesus tinha um jardim de violetas perfumadas; as mais belas da Corredoura do Vale. Cheirava a filhós. As couves, as batatas e o bacalhau eram temperados com o azeite novo acabado de chegardolagar. Nessa altura não conhecia o Pai Natal. O encanto era acreditar que o Menino Jesus descia pela chaminé. Porém, na Missa do Galo olhava-O deitado na manjedoura e pensava que, sendo ainda um bebé, não devia ter poder para me conceder o que Lhe queria pedir. Mas, ao virar-me para O que estava pregado na cruz e a escorrersangue, achavaquenão deviaincomodá-lO. O MIRADOURO
  • 33. Alguém havia de se lembrar de mim. E, na verdade, não tinharazão dequeixa. Os meus pais já cá não estão, mas estou-lhes muito grata por me terem ensinado que o Natal é amor e por me terem apresentado um Jesus que nos visita na noitedeNatal. Por razões de ordem profissional, residi três anos emCampoMaior. Um amigo alentejano encarregou-se de me arranjar casa. Situava-se no primeiro edifício de uma rua onde, numa placa de mármore, estava inscrito o nome de João Minas. Precisamente na parede que viria a ser a do meu quarto. O proencense, que quase julgava uma fantasia de meu pai, afinal tinha sido um homem ilustre, em Campo Maior. Fiquei a olhar aquelas letrinhas pretas, até as lágrimasas encobriremporcompleto. Com que orgulho dizia a toda a gente que João Minas era meuconterrâneo! É quase Natal outra vez. Um dia destes começo a subir, de novo, os degraus do miradouro. E, bem lá do cimo, revejo a minha terra. É o presente que ofereço a mim própria. Ao Menino Jesus não peço nada. Desejo, apenas, continuar a maravilhar-mecomas surpresas. Maria Perpétua NA VOZ DO POVO DE PROENÇA-A-NOVA O MIRADOURO
  • 35. FLOCOSDENEVE O ti Francisco nunca teve uma vida fácil. A sorte nunca foi sua aliada, sempre enfrentara dificuldades: alegrias contava-as pelos dedos de uma só mão, mas o seu casamento com a sua Emília e o nascimento do seu Américovaliam-lheportodasas felicidadesdomundo. A sua Emília sempre o ajudara, foi a sua muleta, companheira inseparável; dera-lhe o maior dos tesouros “o seuAmérico”. Sempre viveram um pouco isolados naquela povoação. As lides do campo e os animais tomavam-lhes o tempo todo; apenas aos domingos iam à povoação, mais para cumprir o sagrado dever de ir à missa, que para convivercomos outros. É que, mesmo nestes dias, havia que cuidar do gado, quenão sabia quando era domingoou quinta-feira. A partida do seu Américo para a Suíça tinha sido um rude golpe, não que não gostasse de o ver partir em busca de uma vida melhor, mas doía-lhe a presença constantedasua ausência. Rara era a noite em que, na cama, uma lágrima não lhe visitasse o olho e o mesmo acontecia com a sua Emília, mas nada diziam um ao outro sobre isso. Era o futuro do rapaz que estava em jogo e o amor que tinham por ele valia todos os sacrifícios; ali na aldeia nunca teria futuro. Apenas da primeira vez ficara três anos sem vir à terra, mas, quando veio, já trazia carro e no banco havia um bom pé-de-meia, já que não era de muitos gastos, sabia bemo valordodinheiro, o queelecustavaa ganhar. Com que surpresa os pais viram chegar o filho com uma televisão e um frigorifico novo; bem se perguntavam para quê, se não tinham luz eléctrica na casa, mas o “malandro” tinha tudo bem pensado, pois, passados dois dias, lá vieram os electricistas esticar fios portoda a casa eligaras luzes. Agora voltava todos os anos. Não podia vir pelo natal, pois o patrão da quinta onde trabalhava apenas lhe dava uns dias no fim do verão, poucos, porque o trabalho era muito e, ao Américo, isso até convinha, sempre ganhavamaisuns cobres. O filho bem queria que eles lá fossem passar um a NA VOZ DO POVO DE PROENÇA-A-NOVA
  • 36. O NATAL natal com ele, os patrões até gostavam de os conhecer, mas isso não era possível, pois tinham o gado para tratar e o campopara amanhar. Voltara este ano, no fim do verão, com a novidade de que iria casar lá na Suíça. A noiva era uma sobrinha do patrão; fazia questão que os pais a conhecessem primeiro, gostava que lhe aprovassem aquelaunião, como era antigamentena aldeia. Depois de muita insistência, lá chegaram a um acordo: iria agora a mãe. Para o ti Francisco aquilo que a sua Emília decidisse estaria bem feito e, certamente, o Américotinhaescolhidobem. Não foi fácil esconder a lágrima rebelde que lhe aflorou no olho ao vê-lospartir, apenasa muito custo a conteve. Agora, sozinho na sua casa, recorda a surpresa que teve ao ver chegar o jipe da GNR à sua porta. O coração bateu-lhe forte como que pressentindo alguma coisa de ruim; não se enganou. A notícia não podia ser pior. Já na Suíça, um acidente roubara a vida à sua Emília e ao Américo, o carro colidira com um camião cisterna, ardera de tal forma que carbonizara os corpos; nada restava para além das imagensregistadaspelascâmaras daauto-estrada. O mundo desabou sobre si, tudo o que tinha de bom desaparecera, nada mais lhe importava, não tinha mais familiares,ficavasó no mundo. Vieram pessoas da aldeia, tentaram consolá-lo. Mas como, meu Deus, como pode haver consolo, se perdera tudo?! A vida, para si, deixava de ter sentido, nem os corposrestavampara seremadorados. Nunca mais o Ti Francisco teve alegria, nunca mais se viu um sorriso naqueles lábios, deitava-se e não dormia; como queriaestarcomeles!… Veio o Inverno, as noites maiores eram um tormento que nunca mais acabava. Quantas noites passou junto à janela, olhando o caminho que ligava à estrada, imaginando o carro do seu Américo a chegar com a sua Emília! Veio a natal. Recebeu convites para passar a noite mas não quis, tinha até já recusado a oferta do lar da Junta para se mudar para lá, acreditava que um dia ainda se lhe iamjuntaros seusfamiliares. Na noite de Natal, o frio era tanto que a neve caía com aaaa FLOCOS DE NEVE
  • 37. intensidade. O Ti Francisco, postado à janela, perscrutava a rua, algo lhe apertava o coração, não sabia o que era, apenas olhava a rua tentando ver o que não aparecia. Sentiu frio, olhou o lume, estava quase apagado. Levantou-se, foi pôr mais uma cavaca, sentiu um aperto mais forte no coração; bateram à porta, com toques leves écerto, masbateram. Correu a abrir a porta. O coração quase lhe saltava do peito, não viu ninguém, apenas dois flocos de neve ali estavamà sua frente,estranho, estavamparados. Ficou surpreendido quando viu os flocos entrarem para dentro de casa, sentiu algo estranho, mas não teve medo, tão pouco o sentiu, quando um dos flocos falou e disse: « - Não te assustes! somos nós, Francisco!» - era a voz da sua Emília. Tocou o floco, não era frio, sentiu mesmo o calor da sua companheira; o floco começou a ganhar a forma da sua Emília. Tocou o outro e ouviu: «-obrigado, pai!». Não, não era possível,o seuAméricoestavaalitambém. Abraçaram-se, choravam,riam. Conversaram, contaram como tudo tinha acontecido, fora tudo muito rápido, não foi possível evitar a colisão por causa do gelo, ninguém tivera culpa, mas isso não interessava, nunca mais se iriam separar, ficariam para sempre juntos. Todos fizeram essa jura, nada mais seria capaz deos separar. Láfora, a nevecontinuavaa cairea noiteestavafria. Pela manhã, parou a carrinha do centro de dia, vinha trazer o almoço, hojemelhorado, porserdiadeNatal. Estranho!... A porta estava aberta. Entraram. O Ti Francisco jazia no chão, estava branco como a neve e na cara umsorrisocomo nunca lhetinhamvisto. Partira, caíra maisumfloco deneve… “Joaquinzinho” Nota do autor: nem sempre os contos de natal podem ter um final tido como feliz, nem todos têm um feliz natal, mas a felicidade também nem sempre é a mesma coisa para todos, quantas pequenas coisas tornam felizesa uns, quea outros não? NA VOZ DO POVO DE PROENÇA-A-NOVA FLOCOS DE NEVE
  • 39. SERFELIZ… Ao Raulito, desde miúdo que se lhe conheciam aquelas faculdades. Ao pé dele não havia tristeza, imperavasemprea boa disposição. O Raul nascera em Lisboa, mas em miúdo vinha nas férias à terra de familiares, na Beira Baixa. Talvez os bons ares do pinhal o tivessem ajudado, pois cresceu saudável,alegreedivertido. Cedo a veia artística o levou para os palcos, cedo se distinguiu como o melhor entre os melhores. Porém, nunca deixou de estar ligado à terra e ser solidário para com o seu semelhante; foi com este espírito que sempre colaborou nas festas de natal dos hospitais, dar sem recebernada dematerial. Aquicomeçaa ficção, começao nosso “conto”. Um dia, o pequeno João, o filho do Raul, de cinco anos, adoece, tinha febres altas, vómitos, tonturas e uma diarreiaconstante. Por mais exames que lhe fizessem os médicos nada conseguiam detectar de anormal, nunca se lhes deparara um caso assim, nem os exames feitos nos melhores centros da Europa e dos Estados Unidos foram capazesdedarresposta a tal doença. A cada dia que passava, a terrível doença agravava-se mais e mais. Os médicos aconselharam a que fosse transferido para casa, pois nada mais a medicina podiafazer.Restavaesperar pelofim. Impotente, o pai olhava o filho desesperado, por vezes questionava: -- ” mas as crianças, Senhor?... Porque lhesdaistanta dor?...”- Como diziao poeta. Passava o tempo livre junto à cabeceira da cama ondeo filhoagonizava,impotentepara o salvar. Continuava a trabalhar no teatro, fazia rir os outros, quando a si lhe apetecia chorar. Era com esta contradição que ia angariando fundos para pagar os medicamentos dofilho,tinhaquecontinuar a trabalhar. Saiu de casa com o coração angustiado. Nunca vira o seu filho tão mal como naquele dia, achou mesmo estranho que lhe sorrisse quando lhe deu o beijo de despedida. Nesse dia tinha o compromisso de actuar no natal doshospitais,que,porironia dodestino, era, nesse NA VOZ DO POVO DE PROENÇA-A-NOVA
  • 40. O NATAL ano, dedicadoàs crianças. Saiu mais cedo de casa, queria descomprimir, não podia deixar que os seus problemas se reflectissem na sua actuação, para mais sendo dedicada às crianças de queeletanto adorava. Vagueou pelo jardim, próximo do hospital. À hora, foi-se aproximando; entrou e cumprimentou os colegas.Todosfizeram a mesmapergunta: _ Então, Raul, como vai o Joãozinho? - A todos respondeu da mesma maneira: -Lá vai, como Deus deixa… Todos sabiam que o caso não tinha cura, era questão detempo, talvezdias,talvezmesesou atéhoras… Chegou ao camarim e o telemóvel tocou. Sentiu um aperto no coração ao ver que era de sua casa, atendeu. Do outro lado veio a notícia que sabia iria chegar, mas que lhe parecia um pesadelo: o Joãozinho tinha deixado desofrer, partira para a longa viagem. Duas lágrimas acudiram-lhe aos olhos, mal teve tempo de desligar o telemóvel, quando três pancadas na porta do camarim anunciavam a sua vez de entrar em cena. Limpou as lágrimas rebeldes, levantou-se e entrou emcena. A sala estava repleta de crianças doentes; olhou- as, levantou os olhos para o céu e começou o espectáculo; ele que sempre fora bom actor, estava hoje completamente fora de série; conseguiu pôr todas as crianças a rira bandeiras despregadas. Todas estavam felizes. Tinham esquecido as suas dores e sofrimentos, até os colegas do actor estavam maravilhados com a alegria que o Raul estava a conseguir transmitir no seu espectáculo. Ninguém mais sabia da tragédia quelhetinhaacontecido. Terminada a sua actuação, as crianças pediram mais e o Raul deu-lhes mais momentos de alegria e boa disposição. Quando voltava a preparar-se para sair, as crianças voltaram a pedir mais e o Raul deu-lhes mais… No final, pequenos e graúdos, de pé, aplaudiram a mais alegre e extraordinária actuação que jamais tinham presenciado.Então o Raul agradeceu esaíu decena. Os colegas, que assistiram à sua actuação, foram felicitá-lo à saída de cena. Encontraram-no de mãos na aaa SER FELIZ…
  • 41. cara, chorando compulsivamente. Surpresos, indagaram o que se passava; o Raul contou então a tragédia que tinha acontecido pouco antes de começar a actuar. Aquela actuação fora a prenda de natal que já não podia dar ao seuJoãozinho; fizera-a poreleeporamora ele. Recebeu dos colegas uma das maiores ovações da sua vida. Em todos os olhos escorria uma lágrima, mas também uma enorme admiração pelo homem que conseguira, apesar da sua dor, transmitir e doar aos outros uma enorme onda de amor, alegria e esperança; o verdadeiro espírito natalício. Sem dizer nada, saiu enrolado no seu sofrimento. “Sol nado” Nota do autor: Qualquer semelhança com personagem real pode não ser pura coincidência, é no entanto fruto de uma admiração total por um homem que sempre me fascinou e a quem quis prestar uma simples homenagem, agora que também ele partiu para a sua mais longa actuação. Quantas vezeschorando pordentro, nos fezsorrirporfora? AdeusRaul Solnado. Como elegostavadedizer: Façam favor deserfelizes! NA VOZ DO POVO DE PROENÇA-A-NOVA SER FELIZ…
  • 43. OPINHEIROVAIDOSO Quando as pinhas caem, largando as sementes, nunca se sabe o que vai acontecer; podem ou não germinar, depende das condições que encontram, ou até vira seralimento dealguma ave. Daquela pinha que caíra junto do tronco do pinheiro que a criara, nasceram diversas plantas, porém, só duas conseguiram ultrapassar a primeira e mais difícil fasedavida. Lentamente, segundo as leis da natureza, foram crescendo lado a lado, por sinal bem em frente à casa dos proprietários do terreno; dali podiam ver a entrada, a sala, a cozinhaeo quarto dosmiúdos. Cedo, um dos dois pinheiros se distinguiu pela sua vaidade. Era vê-lo ao sabor do vento, compondo as suas finas folhas, para ficar mais atraente, pavoneando-se diante do irmão, a quem chamava desajeitado e de horrívelaparência. Detestava que as aves lhe poisassem em cima, commedoqueo sujassemenão gostavadeinsectos. Um dia, viu sair da casa o dono do terreno acompanhado pelos dois filhos. Chegados junto dos pinheiros o paidisse-lhes: -Escolham o pinheiro mais bonito para levarmos para casa eservirdeárvoredenatal. Quando ouviu isto, o pinheiro vaidoso todo se abanou, tentando chamar a atenção dos miúdos. De tal modo o fez que conseguiu; eles escolheram-no a ele. O pai voltou a casa, trouxe um machado e zás, cortou o pinheiro elevou-o para casa. Apesar de ter sentido uma dor no tronco, o pinheiro estava todo vaidoso. Ia morar com os donos e livrar-se do frio, da chuva e do vento forte que lhe desalinhava a folhas. Nem se despediu da mãe nem do irmão. Mal chegou a casa, meteram-lhe o tronco num vasocomareiaesentiuumagradávelalívionas dores. Os donos da casa começaram logo e enfeitá-lo com fitas coloridas e brilhantes, umas figuras reluzentes, bem lá no alto colocaram-lhe uma estrela dourada; isto sim, era vida, pensava ele. Olhava pela janela, com desdém para os outros pinheiros no bosque; coitados, lá estavam, ao frio a NA VOZ DO POVO DE PROENÇA-A-NOVA
  • 44. O NATAL eà chuva,enquanto eleera coroado como umrei. Ouviu dizer que era Natal. Ficou extasiado quando viu as luzes coloridas que o enfeitavam a apagar e acender; imaginou a inveja que estaria a causar aos outros, que o viam através da janela. Que sorte tivera! No entanto, achava tudo normal, já que se julgava o mais belodetodosos pinheiros dobosque. Cada dia estava mais vaidoso, mas notava uma ligeira quebra nas forças. À medida que os dias iam passando, esta situação parecia até que se agravava; não dava grande importância ao assunto uma vez que cada dia pareciacrescero interessepelasua presençanaquelacasa. Puseram-lhe aos pés uns grandes embrulhos, penduraram-lhe nos ramos figuras de chocolate embrulhadas em pratas coloridas. Sentiu-se mais feliz que nunca, não pudera imaginar ter tanta prenda só para ele; mirou-se, mais uma vez, no grande espelho da sala, na parede, à sua frente. Estava lindo de morrer, olhou os irmãos lá fora. Continuavam, ao frio e à chuva. Como o deviaminvejar! A dona da casa, nesse dia, entrava e saía da sala, ia compondo a mesa, que estava também enfeitada; quando passava junto dele olhava, ajeitava quase sempre mais alguma coisa. Pensou que seria um jantar em sua homenagemeainda ficou maisvaidoso. Chegou a hora do jantar. Vieram mais convidados, que se iam sentando à mesa, rindo e conversando. No ar pairava um odor forte emanado da comida. O pinheiro não tinha fome, apesar de se sentir cada vez mais fraco; pensou até que o vapor que saía das travessasdacomidalhepodiaestragar o penteado. Quando acabaram de comer, todos se dirigiram para o pinheiro. Os miúdos agarravam nas figuras de chocolate arrancando-as com violência. Depois, todos agarraram nos embrulhos, abriram-nos, deitando os papéis com desdém para junto do seu tronco. Afinal, as prendasnão eram para ele. Por fim, todos saíram, rindo e falando. O pinheiro ficou só, tinham-lhe apagado as luzes, sentiu um ligeiro desconforto e olhou pela janela; os seus irmãos continuavam lá fora, iluminados apenas pela luz da lua cheia,abanando ao sabor dovento. O PINHEIRO VAIDOSO
  • 45. NA VOZ DO POVO DE PROENÇA-A-NOVA No outro dia de manhã, os donos da casa vieram, arrancaram as fitas, tiraram-lhe os enfeites, as luzes… Sentiu-se elevar no ar e, ao mesmo tempo, muito fraco acabando poradormecer. Quando acordou, estava no bosque, junto do irmão, prostrado no chão. Olhou-o. Lá estava de pé, abanando ao vento; sentiu a chuva cair, tão fria que parecia neve. Não se conseguiu levantar, sentiu-se morrer aos poucos. Afinal tudo não passara de uma felicidade efémera. Como invejava agora o irmão! Mas...era demasiado tarde. Estava arrependido. Descobriu que a vaidade não compensa,cegara-o. Eadormeceueternamente... «Bibaru» O PINHEIRO VAIDOSO
  • 47. POEMAS DE NATAL (INÉDITOS) NA VOZ DO POVO DE PROENÇA-A-NOVA II
  • 49. ONATALNAVOZDOPOVO/ 2009 Avoz dopovo éa chama Queacendea tradição! Etoda a gentereclama Pelafesta daunião! Agrande preocupação São as prendaseos manjares Euma enormesatisfação Para abraçar familiares! Mas a verdadeira tradição Perdeu-sepelocaminho Atéo melhorcristão Já esqueceuo seuhino! Enum rodopioconstante Opovo anda rezingão! Esqueceo maisimportante Falando dacriseemvão! Umasociedadeexigente Queexpulsou sua raiz! Commuito ou pouco écarente Não consegueserfeliz! Sehouvessemaishumildade Ealguma ponderação! Talvez,viessea bondade Ao encontro darazão! Eo Natal teriamaissabor Comgestos deamizade! Tudo seriamelhor Comamorefraternidade! Vamos festejaro Natal Edeixara nostalgia! Comuma esperança real Para quechegueumnovo dia! Alberta2009 NA VOZ DO POVO DE PROENÇA-A-NOVA
  • 50. O NATAL PRECE AO MENINO JESUS Oh Jesus! Se és meu amigo, Desculpa-me a ousadia, Realiza o meu sonho antigo, Oferece-me esta alegria! Não quero nenhum presente Nem outro bem material, Eu peço para toda a gente Um santo e feliz natal: Olhai pelos ignorantes, Que aguardam compreensão E também pelos errantes, Que anseiam perdão; Pelas crianças carentes Rogo a vossa compaixão; E a todos os doentes, Jesus, dai-lhes a salvação; Aos velhos que vivem só Atenuai a solidão, Eles são os nossos avós, Precisam da nossa mão; Aos jovens do meu país, Que perderam o seu rumo, Conduz a um futuro feliz, De valores e de aprumo. E todos, sem excepção, Neste mundo desigual, Peço a restituição De um permanente Natal! Ascensão, 2009
  • 51. ONATALDEOUTROSTEMPOS ONatal na minhaaldeia Era semostentação! Àpobreluzdacandeia Sefazia umgrande serão! Todos juntos à lareira Numa grande animação! Reunidaa famíliainteira Era uma grande emoção! Asfilhóseram a tradição! Obacalhau, não havia! Como não faltavao pão Já toda a gentecomia! Todos tinhammuito pouco Mas não haviaqueixume! Aqueletempoera outro! Avidasemazedume! Anoiteescura efria Cheiravaa cedro queimado, Ocrepitarqueseouvia Era a fogueira no adro! Ao rigorera a fogueira Equantos maisceposmelhor! Todos ficavamà beira, Aquecendo-seao esplendor! Do Natal era a canção Ealguémtocavao sino! Tambémnaquelesertão Seaclamavao Deusmenino! Maria do Cerro, 2009 NA VOZ DO POVO DE PROENÇA-A-NOVA
  • 52. O NATAL NATAL DE GENTE SOFRIDA Natal!... Tanta gente sem família... É tanta a solidão, Tudo continua igual! Que grande desilusão: É guerra, ódio, ganância; Não há paz, Sinto tanta tristeza Por ver tanta gente sofrida Numa guerra já perdida. Natal!... Tanta criança triste, a chorar, Sem roupa, sem brinquedos, sem brincar Sem um lar, onde possam estar... Perdidos de fome, famintos de amor, Jesus!... Eu quero ter esperança De um dia sonhar Com um mundo melhor, De uma vida com amor E muito menos dor. Joskua, 2009
  • 53. NOITEDENATAL Énoitedenatal! Muita genteanda semdestino, Chora desolidão... Éumdesatino: Muitas famíliasestão separadas, Não têmamor, não têmnada; Andamna rua, desesperadas, Meu Deus! Euquero teresperança Detodos nós termos Umnatal digno, Detodos nós termos Algopara comer, Denão passara NoitedeNatal só! Denão chorar desolidão, Derenascerpara a vida Comamorepaz, Porquetodos os dias Énatal. Maria, 2009 NA VOZ DO POVO DE PROENÇA-A-NOVA
  • 54. O NATAL NATAISDAMEMÓRIA(inédito) Entro nos Nataisdamemória Evou juntando os fragmentos Da infância povoada demilhistórias, Nos filmesprojectadospelamente: Cheiros, cores,sons harmónicos Dum tempoantigo ainda bempresente! Lembro bemNataispassados… Quanta simplicidadeepureza! Delirismopopularbemrecheados Comsua aura demagiaedebeleza… Quemdera revê-losassimcelebrados, Quena autenticidadetinhamsua riqueza! Da tradição escrita eoral Chegamhistóriasmuito belas, Quepodemabrirjanelas Para entendero Natal. Mas seráqueatravésdelas Entra a luzessencial?... Umtempoluminoso desceà aldeia: ÉDezembro, éNatal, étempodeventura Aligaros elosdalonga cadeia, Quevemvencendoo tempoea lonjura! Mas seráquea sua força ainda semeia Osfrutos dapazedaternura?... Andamosemcorrerias Numa vertigemdeloucos Vivemosincertos dias Coma esperança a perder-seaos poucos… Quempodesonharainda No “salve-sequempuder”queseinstalou!? VIVALDI (pseudónimo) -Agosto de 2009
  • 55. REFLEXÕESSOBREONATAL(inédito) Nos maisdecempovoados DispersospeloConcelho, EmProença, na Sobreira, Nos Montesou na Figueira, Chegao Natal eregressam Rituaiscompresépiosefogueiras! Alvorada esplendorosa Vairaiando o santo dia, Repicamos sinosdatorre Emvibrações dealegria. Coma memóriaquenão morre, Hámilénios,emBelém,Jesusnascia! Natal, fecundamensagem, Eternasementequegermina, Umcicloquenão termina Nesta estreita passagem… Mas seráqueainda ilumina Anossa incerta viagem?... Na lareira, o fogo e,na mesa,o pão… Mais uma quadra deNatal quesedeseja Umafesta daFamília,dapaz,derenovação Da remota chamaquesemantémacesa! Poderáainda esempreo coração Suportartão pesadaleveza!? No silêncioazul dematinaisgeadas, Denovo como frioo Natal regressa! Ouvem-sedeNortea Sul novaspromessas Dequeviveremostodosdemãos dadas… Mas os quepõemo mundo às avessas São os actoresdefarsasmalrepresentadas! VIVALDI (pseudónimo) -Agosto de 2009 NA VOZ DO POVO DE PROENÇA-A-NOVA