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SEIS SÉCULOS DE
PINTURA CHINESA
Coleção do Musée Cernuschi, Paris
SEIS SÉCULOS DE PINTURA CHINESA – COLEÇÃO DO MUSÉE CERNUSCHI, PARIS2
Realização
Apoio
SEIS SÉCULOS DE
PINTURA CHINESA
Coleção do Musée Cernuschi, Paris
SEIS SÉCULOS DE PINTURA CHINESA – COLEÇÃO DO MUSÉE CERNUSCHI, PARIS4
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO
A PINTURA CHINESA NO MUSÉE CERNUSCHI
HENRI CERNUSCHI E A PINTURA CHINESA
AS DEZ ETAPAS DE UMA “VIAGEM IMÓVEL” NA PINTURA CHINESA
DINASTIA MING
DINASTIA QING
O MOVIMENTO EPIGRÁFICO E A RENOVAÇÃO DA PINTURA CHINESA
VIAJANDO NO JAPÃO
DESCOBRINDO O OESTE
RENASCIMENTO DA PAISAGEM
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75
93
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APRESENTAÇÃO
É uma grande satisfação para a Pinacoteca do Estado de São Paulo apresentar a
nossos visitantes a mostra Seis séculos de pintura chinesa no Musée Cernuschi,
Paris que dá sequência a nosso programa de exposições temporárias com enfoque
em momentos relevantes da história da arte mundial. A arte chinesa, e mais
especificamente a pintura, ainda hoje é um tema pouquíssimo conhecido entre nós.
Quase desconhecido, poderíamos até dizer. Pautada por uma concepção de mundo
absolutamente diversa da ocidental, impregnada da noção de continuidade – em
oposição a nosso entendimento, baseado na ruptura –, a arte chinesa demanda
de seus apreciadores uma posição distinta. Disponibilizar a todos as ferramentas
necessárias para a apreciação dessa arte é um dos objetivos deste catálogo.
A exposição desse conjunto de pinturas na Pinacoteca do Estado também nos
dá a oportunidade de nos aproximar de uma figura que, apesar de não estar
incluída na tradicional história da arte no Brasil, viveu cerca de vinte anos no país
e expôs em Bienais de São Paulo: Zhang Daqian. Ele chegou aqui em 1953, após
uma passagem por Mendoza, na Argentina, e manteve residência no Brasil até
1972, quando se mudou para a Califórnia, nos Estados Unidos. Construiu em Mogi
das Cruzes (SP) um refúgio, onde viveu e trabalhou, e que serviu de palco para o
Jardim das oito virtudes [Bade yuan], hoje infelizmente desaparecido. Nesse local,
havia um túmulo para seus pincéis usados e o artista criava animais tipicamente
chineses, como o gibão. Algumas das obras aqui expostas foram executadas
durante sua permanência no Brasil, e esta mostra nos dá oportunidade de vê-las
no lugar onde foram produzidas.
Esta publicação foi pensada para servir como um guia ampliado da exposição.
Além de reproduções de obras, apresenta textos críticos sobre a história do Musée
Cernuschi e seu fundador, uma introdução à pintura chinesa e comentários sobre
as obras. Para atender o maior número possível de pessoas e nos alinhar com
os novos formatos editoriais do mundo contemporâneo, experimentamos, pela
primeira vez, o formato digital de publicação, que está disponível para download
gratuito no site da Pinacoteca.
A curadoria desta exposição coube a Éric Lefebvre, a quem gostaria de registrar
nossos mais profundos agradecimentos pelo entusiasmo, pela dedicação e
competência em todos os momentos, assim como a Christine Shimizu, diretora
do Musée Cernuschi. Esta mostra não teria sido possível sem o apoio do
Consulado Geral da França em São Paulo, nosso parceiro de longa data. Também
gostaria de agradecer a todos que colaboraram direta ou indiretamente conosco
na concretização deste projeto, que busca oferecer ao público a oportunidade de
conhecer estas magníficas pinturas.
Ivo Mesquita
Diretor Técnico
SEIS SÉCULOS DE PINTURA CHINESA – COLEÇÃO DO MUSÉE CERNUSCHI, PARIS8
O reduzido número de pinturas chinesas e japonesas que constam do primeiro
inventário do Musée Cernuschi confirma a preferência de seu fundador pelo
bronze e pela cerâmica. No entanto, os raros documentos visuais que mostram
as salas do museu em 1898 indicam que as pinturas tinham um papel mais
importante na mostra das coleções asiáticas de Henri Cernuschi (1821-1896)
do que se supunha por seu número. A análise das pinturas chinesas revela um
interesse singular pela pintura a dedo, interesse ilustrado por obras monumentais
assinadas pelos maiores mestres dessa técnica, entre eles Gao Qipei (1672-1734).
Esses dois aspectos são característicos das primeiras gerações de colecionadores
europeus de pintura chinesa. De fato, o interesse espontâneo pela pintura
de personagem precede a descoberta da paisagem, sobre a qual deviam se
concentrar as pesquisas de vários historiadores ocidentais no século XX. No
entanto, a originalidade do processo e o caráter virtuoso das pinturas a dedo
impressionaram por muito tempo os apreciadores franceses. Assim, as obras de
Fu Wen (ativo de 1744 a 1765), um dos seguidores mais importantes de Gao Qipei,
de quem Henri Cernuschi adquirira duas pinturas entre 1871 e 1873, figuravam
muito bem tanto na exposição organizada a partir do acervo reunido por Paul
Pelliot (1878-1945), no Louvre, em 1904,1
quanto na do Musée Cernuschi, em 1912.
Aos olhos dos melhores especialistas do início do século XX, parecia impossível
apresentar a pintura chinesa a um público leigo sem mencionar exemplos da
técnica a dedo, ainda que se assumisse uma posição contrária a essas pinturas,
como Raphaël Petrucci (1872-1907), que as considerava “virtuosidades inúteis,
que afastam do domínio da arte”.2
O comentário desse crítico de arte indica o modo como o desenvolvimento
dos conhecimentos sobre a pintura chinesa desviaria, progressivamente, os
apreciadores da pintura a dedo tão estimada por Cernuschi.3
Entretanto, é
importante observar que Henri Cernuschi adquirira diferentes exemplares
do manual de pintura Jiezi yuan huachuan, do qual ele havia pressentido
um interesse documental, mais de trinta anos antes de Petrucci se dedicar
A PINTURA CHINESA NO MUSÉE CERNUSCHI
1. Chavannes, 1904, p. 322.
2. Chavannes e Petrucci, 1914, p. 60.
3. A pintura a dedo iria passar por um
longo período de esquecimento, até que
a grande exposição dedicada a Gao Qipei
pelo Rijksmuseum de Amsterdã, em 1992,
devolvesse-lhe a atenção (Ruitenbeek 1992).
SEIS SÉCULOS DE PINTURA CHINESA – COLEÇÃO DO MUSÉE CERNUSCHI, PARISSEIS SÉCULOS DE PINTURA CHINESA – COLEÇÃO DO MUSÉE CERNUSCHI, PARIS 1110
ao estudo da obra principal, que ele traduzia pelo título Enseignementes de
la peinture du jardin grand comme un grain de moutarde. Encyclopédie de
la peinture chinoise. Com Édouard Chavannes (1865-1918), Petrucci seria um
dos principais artífices da primeira exposição de pintura chinesa do Musée
Cernuschi, organizada pelo curador Henri d’Ardenne de Tizac (1877-1932),4
em
1912. Essa mostra, que compreendia 144 pinturas, era composta exclusivamente
de empréstimos concedidos pelos principais colecionadores e negociantes. A
exposição, que reunia as obras por gênero e assunto, pretendia contribuir
para o estudo histórico dessas pinturas, designando-lhes datas e autoria.
A publicação de um catálogo ilustrado, incluindo a transcrição e a tradução
das inscrições das pinturas, testemunha a ambição científica desse projeto.
A exposição, que reunia os intelectuais e os colecionadores mais importantes
da época, não foi, no entanto, imediatamente seguida de aquisições. Em uma
carta datada de setembro de 1912, Henri d’Ardenne de Tizac, ao evocar o gosto
de Victor Segalen (1878-1919) pela pintura chinesa, exclamou: “Que bom que ele
consegue descobrir coisas belas! Há alguns meses, o que chega a Paris é muito
fraco. Contudo, recebi do sr. Freer, que certamente é o maior colecionador
americano, as fotografias de algumas peças que lhe pertencem: elas me
fizeram mergulhar nas profundezas da felicidade”. Realmente, o curador do
Musée Cernuschi precisou esperar até 1920 para finalmente adquirir a primeira
pintura chinesa que correspondesse às expectativas formuladas naquela carta.
A chegada de uma pintura representando um falcão, tema este que constituía
uma das partes da exposição de 1912, pode, realmente, ser considerada
o resultado de pesquisas realizadas nos tempos de sua colaboração com
Chavannes e Petrucci. Essa aquisição deveria ficar isolada. A morte desses
dois intelectuais e as difíceis condições do período entreguerras impediram
qualquer nova exposição de uma envergadura como a de 1912. O interesse de
D’Ardenne de Tizac pela pintura chinesa,5
somado à sua fascinação pela China
antiga, orientou-o para a coleta e o estudo dos relevos impressos sobre papel,
sobretudo das séries provenientes do monumento funerário Wu Liang ci.
Na época da primeira exposição de pintura chinesa, Henri d’Ardenne de
Tizac queria que as obras dos pintores da China antiga inspirassem a criação
contemporânea:
Há quarenta anos, a arte japonesa veio renovar nossa arte decorativa.
Não poderia a arte chinesa também desempenhar esse papel? Conheço
jovens pintores que ficam um pouco irritados quando exaltamos as
obras do passado, e que frequentam mais as galerias da Madeleine do
que as salas do Louvre. Surpreendi-os sonhando diante de Ma-Lin [Ma
Lin] e de Tchao-mong-fou [Zhao Mengfu]. Seria um sinal dos tempos?
Paradoxalmente, foi a chegada a Paris dos artistas chineses que vieram se formar
no Ocidente que favoreceu a aproximação entre o Musée Cernuschi e a criação
contemporânea. É conhecido o importante papel que Xu Beihong (1895-1953)
exerceu na organização da exposição de pintura chinesa apresentada no museu
Jeu de Paume, em Paris, em 1933. Esse evento foi um precedente notável para a
exposição de pinturas chinesas contemporâneas que ocorreu no Musée Cernuschi
em 1946. Organizada por Vadime Elisseeff (1918-2002), sob o patronato de René
Grousset (1885-1952), a exposição de 1946 reuniu mais de uma centena de obras
representando diversas tendências da pintura e da escultura contemporâneas.
Paralelamente às composições dos pintores ativos na China, estavam as obras
dos membros da associação dos artistas chineses na França. Para compreender a
origem dessa exposição, é importante lembrar os laços estabelecidos por Elisseeff
com o meio artístico chinês durante os anos da 2ª Guerra, assim como o papel dos
artistas chineses de Paris que, reunidos em torno de personalidades como Zhou Lin
ou Pan Yuliang (1895-1977), formavam uma rede muito dinâmica. Diferentemente
da exposição de 1912, a de 1946 foi o ponto de partida de uma política de aquisição
e de exposição que vincularia, por muito tempo, o Musée Cernuschi à aventura da
pintura chinesa contemporânea. Cerca de cinquenta obras apresentadas em 1946
provinham da coleção de Guo Youshou (1900-1978), que, a partir de 1953, seria o
cerne da coleção de pinturas modernas e contemporâneas do Musée Cernuschi.
Guo Youshou, que estudara na Europa nos anos 1920, havia tecido desde essa
época laços de amizade com os artistas chineses de Paris, como Sanyu [Chang Yu]
(1901-1966) e Xu Beihong (1895-1953). Tendo obtido seu doutorado, ele retornou
à China, onde seguiu carreira na área de administração, sendo responsável,
sobretudo, pela educação pública da província de Sichuan durante os anos da
guerra. Foi nessa época que ele teria acumulado maior parte de sua coleção,
como o atestam numerosos colofões e dedicatórias registradas nas obras pelos
artistas. Essa coleção ainda foi enriquecida ao longo das missões que ele cumpriu
na China em 1947 e 1948 a serviço da Unesco, onde ocupava o cargo de diretor
da seção educativa. Após a doação inicial de 76 pinturas em 1953, Guo Youshou
continuou sendo amigo do museu, colaborando ativamente na organização de
importantes eventos, como as exposições dedicadas a Zhang Dagian (1899-1983),
em 1956 e 1961.6
Ao longo da segunda metade do século XX, não menos do que
vinte exposições de pintura chinesa foram organizadas no Musée Cernuschi, das
4. Curador do Musée Cernuschi de 1905
a 1932.
5. Um interesse que se manifesta tanto
por suas traduções como pelas obras de
sua coleção pessoal.
6. Em 1956, no Museu de Arte Moderna e
no Musée Cernuschi. Em 1961, no Musée
Cernuschi.
SEIS SÉCULOS DE PINTURA CHINESA – COLEÇÃO DO MUSÉE CERNUSCHI, PARIS12
quais dois terços foram dedicadas à obra de artistas contemporâneos. Algumas
tendências decorrem dessas numerosas mostras, como a atenção para o trabalho
com a tinta, ou o lugar cedido às artistas mulheres.7
Entre esses eventos, alguns
conquistaram um interesse histórico, como a exposição Lin Fon-Min [Lin Fengmian],
peintre chinois contemporain [Lin Fon-Min, pintor chinês contemporâneo], em
1979, a primeira dedicada ao artista por um museu estrangeiro após sua partida da
China; ou Wu Guanzhong: peintre chinois de notre temps [Wu Guanzhong: pintor
chinês de nosso tempo], em 1993, que partilhava do reconhecimento internacional
do mestre. Ao mesmo tempo, os laços estabelecidos com os artistas levariam o
museu a recolher numerosas doações: assim, a grande exposição das pinturas
contemporâneas do acervo do museu organizada em 1985 por Marie-Thérèse
Bobot, curadora do Musée Cernuschi, não contava menos do que oitenta obras
introduzidas na coleção, graças à generosidade de seus criadores. Os pintores
chineses, estivessem produzindo quer na França, quer na China, continuaram, desde
então, a acompanhar o Musée Cernuschi, como indicam as doações simultâneas de
Chu Teh-chun [Zhu Dequn] (1920) e de Wu Guanzhong (1919-2010), em 1993.
A partir dos anos 1990, a restauração das pinturas chinesas se tornou uma
das prioridades do museu. De fato, ao longo dos anos, as pinturas chinesas
haviam sofrido efeitos de uma exposição prolongada. A multiplicação das trocas
culturais com a China desde os anos 1980 permitiu desenvolver no Ocidente os
conhecimentos nas áreas da restauração e da montagem tradicional chinesas.
Desdeentão,foipossívelpensarumalongacampanhaderestauração.Paralelamente
às obras dos grandes mestres do século XX, esse trabalho levaria à reavaliação
das pinturas antigas conservadas no museu, entre as quais se encontravam
algumas obras de grande importância, como a grande composição representando
a Academia Hanlin [Hànlín Yuàn], adquirida pela Sociedade dos Amigos do Musée
Cernuschi em 1975. Então, parecia pertinente estender as aquisições para as
pinturas chinesas antigas, uma política iniciada com a compra da antiga coleção
Reubi, o que não poderia ser concluída sem a ajuda do círculo dos especialistas de
Cernuschi. Os leques Ming e as folhas de álbum Qing, outrora reunidos por Jean-
Pierre Dubosc (1904-1988) e François Reubi (1917-1997), permitem apresentar pela
primeira vez aos visitantes as pinturas antigas e modernas do Musée Cernuschi em
um percurso que evoca seis séculos de pintura chinesa.
HENRI CERNUSCHI E A PINTURA CHINESA
Durante sua viagem ao Oriente de 1871 a 1873, na companhia de Théodore Duret
(1838-1927), Henri Cernuschi adquiriu quase 5 mil objetos de arte que comporiam
a base das coleções do futuro Musée Cernuschi. Entre essas obras, os bronzes
chineses e japoneses, majoritários em número, despertaram a admiração
dos críticos na época da exibição temporária organizada em 1873 no Palais de
l’Industrie.1
Após a abertura do museu ao público, em 1898, os bronzes antigos
prevaleceram em uma coleção focada na descoberta dos “momentos áureos da
arte chinesa”. Já as pinturas asiáticas, estas deveriam conhecer um outro destino.
Provavelmente penduradas nos salões do primeiro andar da mansão da avenida
Velásquez, enquanto Cernuschi estava vivo, elas sem dúvida foram vítimas dessa
exposição prolongada, mesmo que tenham sido retiradas do local e guardadas
nos primeiros anos seguintes à criação do museu. “Em 1912, durante a primeira
exposição de pintura chinesa, uma obra de Fu Wen foi objeto de empréstimo,
enquanto duas de suas pinturas adquiridas por Henri Cernuschi eram conservadas
no museu. Isso leva a pensar que, a partir dessa época, a montagem das obras
não permitia mais pendurá-las.”
Se o conjunto formado por essas pinturas é modesto na quantidade, em
contrapartida ele é extremamente coerente. Apresenta a particularidade de
privilegiar a figura humana a ponto de não contar com nenhuma pintura de
paisagem. Esse gênero, que exerceria influência decisiva sobre a recepção da
pintura chinesa no Ocidente, não conquistou o interesse de Henri Cernuschi. À
exceção de algumas pinturas de flores e de pássaros, a grande maioria das obras
representa personagens: imortais taoistas e santos do budismo, lindas mulheres e
caçadores de demônios. Paralelamente às imagens de divindades e às ilustrações
populares, sempre anônimas, encontra-se certo número de pinturas assinadas por
grandes nomes ou por pequenos mestres.
A preocupação em compor séries iconográficas ou formais parece ter regido as
escolhas de Henri Cernuschi. Assim, entre os diferentes temas ilustrados pelas
pinturas da coleção, a figura de Zhong Kui impõe-se de modo incontornável. A
imagem do caçador de demônios transcende os registros da pintura popular e da
pintura erudita. Mesmo aparecendo em algumas páginas de álbum da Dinastia
7. Sobretudo Zeng Youhe (1924), Ling
Shuhua (1904-1990), Pan Yuliang, Fang
Junbi (1898-1986), Xiao Shufang (1911).
1. Maucuer, 1998, p. 35-37.
SEIS SÉCULOS DE PINTURA CHINESA – COLEÇÃO DO MUSÉE CERNUSCHI, PARISSEIS SÉCULOS DE PINTURA CHINESA – COLEÇÃO DO MUSÉE CERNUSCHI, PARIS 1514
Ming, suas representações mais surpreendentes são grandes rolos verticais
datados da Dinastia Qing. Essas impressionantes figuras em pé, executadas
sempre de modo despojado, têm qualidades expressivas muito particulares.
De fato, elas apresentam grande diversidade de fisionomias: assustadoras,
truculentas ou grotescas. A associação dessas imagens com as festas de ano-
-novo de Duanwu atestam o caráter profilático das figuras.
Sabemos que Henri Cernuschi e seu companheiro de viagem, Théodore Duret,
nada sabiam sobre as línguas chinesas. A coleção de livros ilustrados trazidos
da China por Henri Cernuschi demonstra, contudo, a vontade de reunir uma
documentação relativa aos objetos que estava adquirindo. Assim, a biblioteca de
Henri Cernuschi tinha várias edições do tratado de pintura Jiezi yuan huachuan [O
jardim tão grande quanto um grão de mostarda]. Diferentemente dos catálogos
dedicados aos bronzes, essa obra, destinada ao ensino da pintura, convida o leitor
a se colocar na perspectiva do criador. O manual, dividido por gênero e tema,
aborda sobretudo as questões de técnica pictórica. Tal interesse pela prática
da pintura na China influenciou as escolhas do colecionador. Paralelamente às
pinturas executadas com pincel, Henri Cernuschi era apaixonado também pela
técnica chinesa da pintura a dedo, que ainda existia na época de sua viagem. No
entanto, seus principais representantes viveram no século anterior. Gao Qipei,
que deu ao gênero da pintura a dedo seu toque de nobreza, está representado
por uma vasta composição, síntese monumental dos diferentes aspectos de sua
técnica. As pinturas de Li Shizhuo e de Fu Wen ilustram a continuação dessa
tradição entre os chineses integrados às bandeiras manchus. Por fim, o modo
como Su Liupeng soube adaptar essa técnica para a criação de cenas da vida do
povo atesta sua popularidade no século XIX.
As pinturas a dedo reunidas por Henri Cernuschi permitem retraçar os principais
momentos da história dessa técnica, que foi apreciada na corte chinesa antes
de ser adotada pelos meios mais populares. Assim, a coleção de Cernuschi,
aparentemente composta em função de princípios iconográficos, também pode
ser considerada de um ponto de vista histórico. Se adotarmos essa perspectiva,
perceberemos que os nomes dos pintores que ele reuniu evocam algumas
das mais importantes etapas da evolução da pintura de personagens. Esses
elementos nos convidam a considerar o método de Cernuschi menos como o de
um viajante colecionando imagens que refletem seu percurso no Oriente, do que
como o de um apreciador de pintura ocidental procurando compreender uma arte
desconhecida segundo uma lógica pictórica.
SEIS SÉCULOS DE PINTURA CHINESA – COLEÇÃO DO MUSÉE CERNUSCHI, PARIS16
É sempre intrigante observar a multidão de chineses que visita os museus oci-
dentais: por dia, quantos deles veem a Mona Lisa? Os museus chineses não
são tão frequentados assim. No entanto, por muito tempo, fiquei admirado de
não encontrar nenhuma dificuldade em acessar a vitrine da Primavera precoce
(uma das obras-primas mais importantes da coleção do Museu do Palácio) em
Taipei. Disso, deduzimos que o público – ocidental, naturalmente, mas também
chinês – está bem menos preparado para olhar uma pintura chinesa do que uma
europeia, mas também que se trata de um tipo de arte talvez menos adaptada à
contemplação “de massa”.
As pinturas europeias foram feitas para “educar as multidões”, atraí-las em dire-
ção à imagem: as cores radiantes convidam o olhar dos menos iniciados, o realis-
mo das posturas garante a essas telas a admiração de todos, e a composição exe-
cutada pelo pintor obedece às leis da ótica para que o espectador possa ver tudo
num piscar de olhos. A pintura chinesa não foi pensada como um espetáculo;
normalmente, ela necessita de outra aproximação. Mais intimista – mais próxima
do desenho –, ela não é menos rica de maravilhas, e a intenção deste artigo é
fornecer ao leitor algumas ferramentas que lhe permitirão melhor contemplá-las.
1. Os formatos
As pinturas colecionadas pelos apreciadores chineses (que é preciso diferenciar
das pinturas rituais) devem ocasionalmente sair de suas caixas para serem apre-
sentadas a alguns estetas. O apreciador, que não é um espectador, mas que
pretende descobrir uma obra, deve ir em sua direção de modo ativo e entrar em
uma paisagem às vezes sombria e a princípio pouco legível.
AS DEZ ETAPAS DE UMA
“VIAGEM IMÓVEL” NA PINTURA CHINESA
Cédric Laurent, Université de Haute-Bretagne-(Rennes II).
SEIS SÉCULOS DE PINTURA CHINESA – COLEÇÃO DO MUSÉE CERNUSCHI, PARISSEIS SÉCULOS DE PINTURA CHINESA – COLEÇÃO DO MUSÉE CERNUSCHI, PARIS 1918
As pinturas são montadas em rolos horizontais (juan, huajuan), verticais (zhou,
lizhou) ou em álbum (ce, huace; antigamente também em biombos ou em le-
ques). A armação de seda responde a uma estética de sobriedade, mas também a
preocupações de conservação: o enrolamento protege da poeira e da luz. Se por
um lado o colecionador suspende com frequência os rolos verticais para explorar
livremente seu interior, por outro, ele raramente desenrola os rolos horizontais,
sobre uma mesa, seção por seção, sozinho ou acompanhado de dois ou três cui-
dadosos apreciadores. Os álbuns também são objetos de coleção que costumam
ser organizados com os livros na biblioteca dos letrados.
2. O percurso visual
Somente a folha de álbum (geralmente similar a um formato A4), mais compatível
com o campo de visão, possibilita olhar a pintura instantaneamente. Os rolos
horizontais não permitem que isso aconteça; de modo geral, eles compõem uma
dezena de metros de comprimento e são desenrolados progressivamente, cena
por cena. Assim, o pintor os concebe como uma sucessão de pontos de vista
ritmados por elementos de paisagem ou de arquitetura, que permitem marcar as
pausas ao serem desenrolados. A verticalidade dos rolos zhou faz que eles nor-
malmente sejam olhados a partir de três pontos de vista contínuos, de baixo para
cima. Para sustentar esse movimento, o pintor organiza três diferentes perspecti-
vas: uma vista um pouco inclinada para a parte baixa, uma vista frontal ao centro
e uma vista contrária, inclinada para a terceira parte alta. Assim, o apreciador da
pintura é ativo, e pode deslocar seu olhar para a superfície do rolo (2009, cat. 22:
Xu Zhang-cat. 40: Yao Hua).
É bastante comum que as paisagens sejam habitadas por personagens que intro-
duzem uma temporalidade: o suposto deslocamento dos personagens sustenta o
movimento do olhar e introduz essa temporalidade na obra. O apreciador deve se
aproximar da pintura, encontrar uma brecha nos bosques, tomar um caminho e
atravessar um ponto para alcançar quem espera por ele ao pé de uma árvore. Ali,
o ponto de chegada é desvendado entre as nuvens e, do alto, um extraordinário
panorama se oferece a nós que, de observadores, nos tornamos andarilhos. A
crítica clássica chinesa considera essas paisagens “viagens imóveis” (woyou). Uma
pintura não é uma janela que deveria se abrir sobre uma paisagem respondendo
às leis da perspectiva centrada; é o percurso visual que introduz a profundidade.
3. A montanha e a paisagem
Quando se diz paisagem, se diz montanha. Na China antiga, a montanha era
considerada o local de residência dos imortais e dos espíritos. Ir até ela corres-
pondia a uma experiência metafísica. Local de retiro e de austeridade, ela atraía
os ermitões taoistas, que aproveitavam a concentração de forças terrestres, e os
monges budistas, que viam ali o “deserto” necessário ao exercício do desapego.
A montanha passou a ser o local de todas as buscas: procura pela imortalidade,
visitas aos sábios, peregrinação e colheita de plantas medicinais. Desse modo,
a natureza foi sendo domesticada. As brumas dos picos eram cravadas por edi-
fícios, e as florestas atravessadas por estradas. Os andarilhos iam e vinham em
busca de lugares célebres: uma velha árvore de formas estranhas, uma falésia
gravada com caligrafia, o lugar de retiro de um poeta...
Para o pintor-poeta, a montanha se tornou o local de um isolamento espiritual
e de prazer do espírito. Se suas pinturas são “viagens imóveis” que narram cami-
nhadas, também são a ocasião de comentar acontecimentos recentes e, claro, de
se entregar a maravilhosos exercícios estéticos.
A montanha também se reveste de um valor moral para os seguidores de Con-
fúcio: “O homem inteligente se satisfaz com a água, o homem bondoso, com a
montanha; a um o movimento, ao outro, o descanso. O homem inteligente vive
feliz, o homem bondoso vive por muito tempo” (Lunyu, VI 21). Assim, a montanha
é símbolo de longevidade ou imagem da estabilidade moral de um homem. Era
comum oferecer essas pinturas para cumprimentar uma pessoa, sobretudo em
ocasiões de aniversário.
A paisagem, pouco fiel à realidade, é toda composta de símbolos e não é inco-
mum que aquilo que percebemos como simples paisagens sejam, na verdade,
representações de paraísos de imortalidade ou cenas procedentes de literatura
da história.
Árvores floridas enquadram uma gruta, uma embarcação leve está presa à mar-
gem: é A fonte com flores de pessegueiro, célebre texto de Tao Yuanming (372-
427). Em uma paisagem de outono, uma tocadora de alaúde está sentada em
um barco: é O passeio do Pipa, de Bai Juyi (772-846). Vários personagens estão
sentados à beira de um riacho sinuoso onde taças flutuam: é O pavilhão das
orquídeas, de Wang Xizhi (312-379) (cf. il. 2009, cat. 11 e 12)...
SEIS SÉCULOS DE PINTURA CHINESA – COLEÇÃO DO MUSÉE CERNUSCHI, PARISSEIS SÉCULOS DE PINTURA CHINESA – COLEÇÃO DO MUSÉE CERNUSCHI, PARIS 2120
Os letrados a quem as pinturas eram destinadas se tratavam de poetas que des-
de a infância viviam debruçados sobre os livros e, para atender aos seus gostos,
era comum que os pintores incrementassem suas composições com alusões lite-
rárias que hoje são difíceis de decifrar.
4. Do “vermelho e verde” ao preto e branco
Na China, a pintura clássica ganhou fôlego no início da dinastia Tang (618-907),
com grandes composições coloridas ilustrando temas históricos. As cores vivas
eram essenciais para a própria concepção da pintura, às vezes designada pela
expressão “vermelho e verde” (danqing). Sobre a seda preparada, eram aplicadas
várias camadas finas de pigmento de malaquita para representar as montanhas
e escarlate para representar a arquitetura. A técnica era complexa, o trabalho
longo, e o resultado deslumbrante. Entretanto, um dos pintores-letrados mais
famosos do período, Wang Wei (699-759), fez uma pergunta fundamental para
o desenvolvimento da arte pictórica: não seriam a tinta e as variações de cinza
capazes de representar a variedade das cores (Yun mo er wu cai ju)? Não que os
letrados tenham simplesmente rejeitado as cores, mas eles valorizaram uma arte
tecnicamente menos reprimida, mais sóbria. A tinta, por meio do processo de
diluição, possibilita uma infinita variedade de nuances que são suficientes para
evocar as cores do mundo.
Esse interesse pela monocromia, no entanto, não levava ao abandono da cor.
No início da dinastia Ming (1368-1644), pintores da Escola de Zhe produziam
grandes paisagens realçadas com aguadas levemente coloridas, formando um
panorama de cenas históricas destinadas à exortação moral da corte (2009, cat.
4 e 5). Além disso, as paisagens chamadas “azul e verde” (qinglü shanshui), que
num primeiro momento continuaram sendo realizadas na corte, se tornariam um
tema predominante da arte de Suzhou (Escola de Wu) no século XV. É preciso
dizer que, no contexto artístico dessa época, muito marcado pela monocromia
(cf. 2009, cat. 3), o uso da cor na arte letrada reformularia profundamente a
pintura. Essas paisagens com atmosferas radiantes, passando da cor turquesa
ao ocre, reintroduziram, na pintura letrada, técnicas complexas de aplicação das
cores em “três camadas de alume e nove de pigmentos” (san fan jiu ceng).
5. A tinta e o pincel
As pinturas chinesas mais antigas foram elaboradas sobre seda, porém, a partir
do século XI, o uso do papel, normalmente menos dispendioso do que a seda,
difundiu-se com muita rapidez. Suas qualidades de absorção e a diversidade de
texturas interessaram os pintores porque permitiam valorizar o trabalho do pincel
e as variações da tinta (2009, cat. 44: Qi Baishi). Além disso, o traço, derivado
da arte caligráfica, portanto próprio aos letrados, ganhou importância em obras
monocromáticas.
Os letrados pintavam com instrumentos de seus escritórios – pincel, papel e tinta
–, os quais dominavam com muita naturalidade, assim como Da Vinci dominava a
pena com que desenhava. O pincel estava de tal forma domesticado que passou
a ser considerado não somente um prolongamento da mão, mas a expressão do
coração. Ele era capaz de transmitir as emoções diretamente, e é por isso que
uma atmosfera específica, um certo tipo de alma, habita a pintura.
Ao se concentrar nas técnicas de tinta e de pincel, o pintor deslocou o olhar do
apreciador de arte. Este, que normalmente também praticava a pintura, passou a
sentir a pressão do pincel sobre o papel, as hesitações ou a energia de uma curva.
Avaliou sobretudo o traço: os contornos das formas, a linha dos galhos vegetais,
a tensão das varas de bambu, a leveza das folhas de uma orquídea (2009, cat.
14), e observou a apresentação das matérias, o pincel seco que parece arranhar a
superfície do papel sobre os contornos de uma rocha, a tinta efêmera da umida-
de das brumas (ver também 2009, cat. 20).
6. Transmissão e aplicação dos antigos estilos
Uma das missões dos letrados consistia em transmitir, em primeiro lugar, os clás-
sicos, dedicando-se a um trabalho de cópia dos textos. Era preciso copiar para
conservar o espírito dos Antigos. A aprendizagem da pintura, baseada na da
caligrafia, também passava por uma cópia. Era bem tarde, quando já estivesse
introduzido na sociedade, que um mestre era escolhido para ser primeiramente
iniciado na arte antiga e, em seguida, orientado a encontrar seu próprio estilo. O
mestre instruía seus discípulos, e estes permaneciam a seu lado até sua morte.
Dessas relações nasceram redes, genealogias e escolas. Normalmente, os pinto-
SEIS SÉCULOS DE PINTURA CHINESA – COLEÇÃO DO MUSÉE CERNUSCHI, PARISSEIS SÉCULOS DE PINTURA CHINESA – COLEÇÃO DO MUSÉE CERNUSCHI, PARIS 2322
res dominavam uma vasta palheta de estilos e os utilizavam como se costumava
fazer em literatura, por meio de citações e às vezes até mesmo de pastiches.
Assim, não devemos nos assustar ao encontrar, no início do período Ming (sécu-
lo XIV), um retorno ao estilo do período Song (século XI), método que também
permitia afirmar uma continuidade política.
Paradoxalmente, as pesquisas estilísticas e a referência aos velhos mestres às
vezes impulsionaram uma grande fase criativa, sobretudo no trabalho de alguns
pintores do final da dinastia Ming, como Chen Hongshou (1598-1652). A estra-
nheza dos personagens e a simplificação das formas remetem à ideia de arcaís-
mo (guguai), em uma livre interpretação (ver também 2009, p. 78 e cat. 37: Su
Liupeng).
A citação estilística torna-se a via pela qual a arte da paisagem se afirmará como
pintura erudita, concentrada no emparelhamento das formas e na composição
no espaço. Enquanto os pintores de Wu, no século XV, privilegiavam a represen-
tação de caminhadas ou de reuniões de letrados, os paisagistas do século XVII,
mais austeros, excluíram quase sistematicamente os personagens (2009, cat. 19).
O mais célebre deles, Dong Qichang (1555-1636) (2009, cat. 15), reivindicando-se
herdeiro da Escola de Wu, rejeitava completamente a particularidade histórica
e fazia da paisagem uma pintura essencialmente dedicada à citação de estilo.
Desse modo, as escolhas estilísticas ditas “letradas” garantiam à paisagem sua
nobreza e elegância (wenya). Essa concepção logo culminou em um formalismo
que seria útil aos profissionais: graças ao domínio do estilo de certos mestres,
eles, a partir de então, conferiam às suas produções uma elegância da qual sua
clientela podia finalmente se apropriar.
7. Letrados e profissionais
A pintura já havia se emancipado quando mestres do início da dinastia Song
criaram grandes obras que se tornariam modelos clássicos. Porém, algumas mu-
tações sociais ainda provocariam mudanças no mundo pictórico. Era a primeira
vez, certamente, que os letrados conquistavam a posição mais importante na
administração: graças a um sistema de exames, os detentores do saber literário
podiam assumir cargos públicos.
Novos desafios se apresentaram então para esses letrados que praticavam a
arte como apreciadores: como demarcar a arte de uma elite que não é mais dife-
renciada pelo nascimento, mas por seu nível de cultura? Ao considerar a pintura
como uma arte “poética” – o conteúdo cultural e o poder evocatório da obra
foram comparados à poesia, que era então predominante –, o pintor não poderia
ser nada além de um letrado, um homem que, de acordo com o ideal confuciano,
era funcionário e, por esse mesmo motivo, estava protegido da necessidade. A
arte “nobre” passa a ser considerada desinteressada e sincera, ao contrário de
uma arte de corte que depende de encomendas.
A pintura se torna indissociável das “artes letradas”, a partir de então referência
em matéria de elegância. Assim, a arte de encomenda iria de tal forma se inspirar
nessa referência que a oposição pintura letrada versus pintura profissional só
iria se manifestar, com mais frequência, na teoria. Entretanto, a distinção é real
quando se trata de sua formação. Os profissionais, pintores da corte ou de ateli-
ês privados, eram geralmente considerados artesãos. Eles começaram a aprender
muito jovens e trabalhavam em obras coletivas de acordo com suas especialida-
des: um com as árvores, outro com a arquitetura, os mais habilidosos pintavam
rostos ou composições florais. Dito isso, alguns letrados também eram assistidos
por discípulos e chegavam a formar verdadeiros ateliês para atender às neces-
sidades de suas redes, pois se por um lado eles não necessariamente vendiam,
as pinturas serviam de objeto de troca e de presentes destinados a uma notável
clientela (no sentido medieval do termo).
8. Excêntricos e mercado de arte
Durante a dinastia Qing (1644-1911), alguns pintores se distanciaram claramente
da ortodoxia encarnada na obra dos “Quatro Wang”, concentrada sobretudo na
citação estilística e no arranjo dos elementos da paisagem. Com traços largos e
aguadas contrastadas, Zhu Da (dito Bada Shanren, 1626-1705) e Shitao (1642-
1707) reivindicam mais uma expressão pessoal do que a marca dos antigos mes-
tres. Por meio de sua pintura, Shitao se apresentava como um letrado íntegro,
imagem à qual sua clientela (aqui, no sentido comercial) era sensível.
A arte dita “letrada” foi objeto de um mercado muito desenvolvido. A perso-
nalidade de Shitao inspirou os “Oito excêntricos de Yangzhou” e, na primeira
SEIS SÉCULOS DE PINTURA CHINESA – COLEÇÃO DO MUSÉE CERNUSCHI, PARISSEIS SÉCULOS DE PINTURA CHINESA – COLEÇÃO DO MUSÉE CERNUSCHI, PARIS 2524
metade do século XVIII, a originalidade teve um enorme sucesso. Um grande
número daqueles que hoje são chamados “excêntricos” defendiam, na verdade,
uma originalidade convencional. A característica mais surpreendente da pintura
Qing reside na diversidade das escolas e dos centros de produção, e nosso co-
nhecimento sobre ela é apenas fragmentário.
Nessa época, Yangzhou era o centro artístico mais importante, e seus pintores pro-
fissionais vendiam em toda a China. Os grandes comerciantes da província de Anhui
apoiavam seus pintores e viram nascer mestres muito importantes, como Mei Qing
(1623-1697). Suzhou e Hangzhou continuavam sendo centros muito ativos em que
pintores como Qian Du (1763-1844) (cf. 2009, cat. 33, 34, 35) retomavam a tradi-
ção clássica. Finalmente, Nanjing e Guangzhou privilegiavam uma tradição original.
Todos os centros artísticos se alimentavam de um movimento constante entre as
fortalecidas tradições locais e a ortodoxia patrocinada pela corte.
9. Modernidade e tradição
No começo do século XVII, a China se mostrou receptiva às contribuições oci-
dentais. Na corte, isso se caracterizou pelo uso da perspectiva linear (cf. 2009,
cat. 23: Jin Kun) e por um novo sentido da cor. Naturalmente, o trabalho com a
cor teve importantes repercussões na pintura de flores – principalmente na obra
de Zou Yigui (1686-1772) –, em que as pétalas e as folhas são, a partir de então,
apresentadas diretamente por uma aguada colorida, sem contornos prévios de
tinta. Essa discreta revolução também teria implicações no que se refere à paisa-
gem: Wang Yuanqi (1642-1715) usa diretamente as pinceladas coloridas no topo
das árvores e mistura as pedras com cores de meia tonalidade, muito diferentes
dos pigmentos antes utilizados.
Nesse contexto, e certamente com o estímulo das gravuras ocidentais que circu-
lavam tanto em Tianjin quanto em Xangai, em Guangzhou ou em Fujian, o novo
uso da cor também se impôs fora da corte, sobretudo nos antigos centros artís-
ticos da província de Jiangnan – por exemplo na obra de Fang Xun (1737-1799).
Assim, o século XIX foi marcado por um deslocamento dos centros de interesse;
a arte de paisagem não ocupava mais o lugar dominante que ocupara até então,
e ambiciosas composições florais foram realizadas. As cores brilhantes eram tra-
balhadas como os antigos mestres manejavam a tinta (2009, cat. 41: Yao Hua).
A obra da Escola de Xangai constitui uma formidável renovação da arte pictórica
na China, assim como no domínio da pintura de personagens. Os temas tradi-
cionais foram então apresentados em novos formatos, em que os personagens
ocupavam a parte principal do espaço, e novos temas apareceram na pintura
letrada: os heróis dos romances e do teatro.
Assim, no que se refere à pintura de paisagem, o século XIX representa uma
pausa antes das grandes realizações do século XX, sobretudo nas experiências de
Zhang Daqian (1899-1983), que utilizará o azul e verde sobre grandes blocos de
tinta. Também irão aparecer as densas paisagens de Huang Binhong (1865-1955)
em que a tinta encarna em uma nova matéria (2009, cat. 47).
10. Redefinição na arte internacional
Em contrapartida à abertura da China para a pintura europeia, ocidentais pas-
saram a se interessar pela expressividade do pincel chinês. O traçado vigoroso
de Qi Baishi (1864-1957) (2009, cat. 43-44) algumas vezes assumiu o posto de
embaixador da arte chinesa durante a reconstrução da República da China (1911).
Impressionados com as consecutivas derrotas da China para a Europa (Guerras
do Ópio, Saque a Pequim), os intelectuais chineses partiram em busca de uma
nova cultura chinesa (Xin wenhua yundong, Movimento de 4 de Maio de 1919),
melhor inserida no mundo e detentora da força tecnológica ocidental. Todos os
aspectos da educação, da língua, da arte foram novamente questionados pelos
maiores intelectuais que partiram para a Europa, para a América ou para o Japão,
a fim de apreender os conceitos ocidentais.
Lin Fengmian (1900-1991) e Xu Beihong (1895-1953) (2009, cat. 79), que viveram na
França, são os exemplos mais representativos deles. Fundadores das novas insti-
tuições que até hoje formam os artistas chineses, eles redefiniram a arte chinesa
no contexto mundial. Lin Fengmian desempenhou um papel crucial de pedagogo,
ilustrando alternadamente as novas correntes pictóricas ocidentais (cubismo, im-
pressionismo, fauvismo) por meio de técnicas da pintura a partir de então chama-
da de “tradicional” – ou “pintura nacional” (guohua) (2009, cat. 82-1).
SEIS SÉCULOS DE PINTURA CHINESA – COLEÇÃO DO MUSÉE CERNUSCHI, PARISSEIS SÉCULOS DE PINTURA CHINESA – COLEÇÃO DO MUSÉE CERNUSCHI, PARIS 2726
É nesse contexto iconoclasta que se deve compreender a obra de Zhang Da-
qian ilustrando os grandes temas da pintura tradicional (2009, cat. 62; 58) ou
explorando a então esquecida arte rupestre da dinastia Tang (618-907) (2009, p.
161: Dame Li). Fu Baoshi (1904-1965), utilizando a tinta com uma nova técnica, a
partir de conhecimentos de trabalhos contemporâneos japoneses (2009, cat. 67),
interessava-se em refazer os temas da arte clássica (2009, cat. 69) e em mostrar
as grandes figuras da cultura chinesa (2009, cat. 70).
Graças a essa nova definição da “pintura tradicional”, a China manifestou afeição
à sua própria identidade e se preparou para a mundialização, possibilitando que
sua cultura atravessasse vitoriosamente o século XX.
DINASTIA MING
O falcão, empoleirado sozinho sobre um rochedo, domina as ondas com
segurança. O tratamento pictórico, em contraste com a precisão da plumagem
e com o movimento estilizado das ondas, reforça a oposição entre a postura
imóvel do pássaro e a agitada superfície da água. O conjunto cria uma impressão
de poder.
Na China antiga, os pássaros de caça eram sempre designados, genericamente,
como águia, ying. Por isso as pinturas que representam uma ave de rapina isolada
sobre uma elevação são tradicionalmente intituladas yingxiong duli, frase que
sugere que o ser de exceção não encontra semelhante sob o céu.1
Se as aves de rapina apareceram na pintura chinesa no século IV,a representação
de uma majestosa águia solitária certamente foi sistematizada sob o reino do
imperador Huizong (1082-1135). Hoje parece impossível atribuir uma pintura
desse estilo ao pincel do célebre “imperador-pintor”; no entanto, cópias e fontes
literárias atestam a importância de tais representações. Nessas obras, a cabeça
da águia está sempre abaixo do símbolo imperial e da menção yubi, “traçada pelo
pincel imperial”. Tais imagens, que refletem o poder do soberano, participavam
de um amplo projeto de política cultural.
A pintura do Museé Cernuschi inscreve-se nessa tradição. Ainda que suas
margens tenham sido divididas em uma época indeterminada, a pintura conserva
o traço visível de um símbolo imperial da era Xuanhe (1119-1125) e da menção yubi.2
Se, por um lado, parece difícil determinar uma data baseada nesses elementos
incompletos, por outro, o estreito parentesco estilístico entre essa pintura e uma
obra do Museu do Palácio de Taipei permite identificar a época de sua criação, o
século XIV.3
Falcão sobre um rochedo, século XIV
Autor não identificado
nanquim sobre seda | 120,6 x 62,6 cm
1. Essa associação se baseia na homofonia
entre ying, a águia, e a primeira letra da
palavra yingxiong, o herói.
2. As letras do símbolo incompleto na
parte superior parecem ter sido “Xianhe [?]
bao [?]”. Mesmo que muito apagado, um
segundo símbolo, neifu zhencang, indica
que a obra integrava coleções imperiais.
3. A obra do Museu do Palácio, outrora
atribuída à época dos Song, foi objeto
de uma nova atribuição baseada em uma
comparação com um conjunto de obras
conservadas no Japão. Para Sung Hou-mei,
os colofões afixados na obra, datados
dos primeiros anos da dinastia Ming, são
contemporâneos à sua criação (Sung,
1992, p. 161). Entretanto, a pintura foi
recentemente atribuída ao fim da dinastia
Yuan (Age of the Great Khan, 2001, p. 38,
291-292).
SEIS SÉCULOS DE PINTURA CHINESA NO MUSEU CERNUSCHI30
SEIS SÉCULOS DE PINTURA CHINESA NO MUSEU CERNUSCHI32
Inscrição e assinatura: Pintado em um barco em Piling durante o verão do ano
Dingwel da era Jiajing [1567], Gao Gu, Shimen Zi [alcunha do pintor].
Pintor e calígrafo originário de Fuzhou, Gao Gu esteve ativo durante a primeira
metade do século XVI. Foi autor de um tratado de caligrafia dedicado à escrita
dos escribas, Lishu lun, e de poemas reunidos em uma antologia de suas obras,
Shimen ji. Quanto às suas pinturas, a maior parte desapareceu. Segundo as fontes
literárias, ele teria sido um artista versátil, capaz de se expressar nos gêneros
paisagem, personagens, flores e pássaros.
A pintura representando os imortais demonstra esses diferentes dons: a paisagem
que acolhe essa reunião é pintada com concisão e energia, contrastando com
a representação – de uma grande acuidade – do rosto dos personagens e a
representação das flores do primeiro plano, pintados em estilo minucioso e natural.
Por seu tamanho e estilo, essa pintura faz referência às extensas composições
apreciadas no âmbito imperial. Na dinastia Ming, o repertório estilístico da
pintura da corte tomava muito emprestado dos mestres da época Song. Também
é possível observar esses empréstimos na pintura de Gao Gu, em que o traço
das árvores e a superfície das rochas evocam o estilo dos pintores da academia
dos Song do sul. A maneira como os quatro imortais se integram à paisagem
também pode ser comparada a algumas pinturas de corte datadas do fim do
século XV.1
A filiação estilística entre a obra de Gao Gu, datada de 1567, e os
pintores pertencentes ao apogeu da Academia Imperial, atesta a continuação de
uma tradição pictórica à margem das inovações introduzidas pelos pintores da
escola de Wu a partir dessa época.
Imortais, 1547
Gao Gu (ativo na primeira metade do século XVI)
nanquim e cores sobre seda | 237 x 165 cm
1. Como a obra de Liu Jun (ativo de
1475 a 1505), Protesto ao imperador,
conservada no Metropolitan Museum
of Art, em Nova York.
Inscrição e assinatura: No décimo sexto dia da sétima lua do ano Renxu [1082],
fui em um barco com alguns companheiros ao pé da falésia vermelha. Um vento
fresco soprava levemente e não levantava nenhuma onda. Ergui minha caneca
para convidar meus amigos a beber e recitei um poema no qual uma lua brilhava,
era uma canção muito bonita. Pouco depois, a lua subiu no alto da montanha
do leste; ela hesitava entre a grande Ursa e a estrela do Boieiro. Um orvalho
branco recobria o rio e o brilho da água se juntava ao céu. Não sabíamos onde
estávamos, mas tínhamos a impressão de voar como se abandonássemos o
mundo humano, como se asas tivessem nascido em nós, e subíamos, como se
fôssemos imortais.
Começamos então a beber e fomos contagiados por uma grande felicidade.
Cantávamos ao longo do barco, entoando o ritmo. Nossa música dizia:
“Revestimento de caneleira, ramas de magnólia. Atravessamos uma água clara
e transparente e subimos a brilhante correnteza. Meus pensamentos partem
para longe e meu olhar se voltam para uma linda mulher que se encontra num
pedaço do céu”. Um de nossos companheiros tocava gaita para nós. Sua música
melodiosa também tinha um pouco de rancor e de ressentimento; dir-se-ia que
ele chorava e se lamentava; e o som prosseguia como um fio que se estende sem
se romper.
Talvez ele fizesse dançar um dragão escondido no fundo das grutas sombrias
e fizesse chorar uma viúva sozinha no barco solitário. Fiquei muito triste com
aquilo e, arrumando meu casaco e endireitando-me em meu lugar, perguntei
ao músico: “Por que essa melodia?”. E ele me respondeu: “A lua brilha, as
estrelas são raras, as gralhas voam para o sul: não estariam aí os versos de
A falésia vermelha, entre 1490 e 1559
Wen Zhengming (1470-1559)
nanquim e cores sobre papel | 17,4 x 49 cm
A DINASTIA MING 35
em “pequena regular”, xiaokai, na parte superior da composição. Esse tema
literário, particularmente apreciado nas pinturas da escola de Wu, foi tratado
várias vezes por Wen Zhengming, normalmente no formato de rolo horizontal.1
O
texto de Ode à falésia vermelha, que foi objeto de numerosas transcrições feitas
por Wen Zhengming em diferentes estilos, podia ser associado diretamente a
uma pintura, como no caso desse leque.
Uma história conta que Wen Zhengming, então com 86 anos, havia caligrafado
a Ode à falésia vermelha de Su Dongpo no estilo da “pequena regular”, a fim
de pagar uma dívida adquirida em uma partida de xadrez.2
Seja essa narrativa
autêntica ou não, ela atesta a reputação adquirida por Wen Zhengming em um
estilo de caligrafia que necessita, ao mesmo tempo, de altas qualidades técnicas
e de uma energia intacta. Para o autor dessa história, a prática da “pequena
regular” simbolizava a integridade das forças físicas e morais do ancião. Essa
concepção, sem dúvida partilhada pelos contemporâneos de Wen Zhengming e,
mais tarde, pelos colecionadores de sua obra, poderia ter-se aplicado à pintura
do Musée Cernuschi, datada de 1552.
A delicadeza do traço realizado na caligrafia também caracteriza a paisagem.
Em contraponto ao uso minucioso do pincel, as cores, hoje apagadas, deviam
desempenhar um papel importante na composição. Se o vermelho das folhagens
do primeiro plano conservou seu brilho, o verde e, sobretudo, o azul das
montanhas perderam sua intensidade. A simplicidade do conjunto, que revela
certo gosto pela antiguidade, também se harmoniza com a natureza meditativa
do texto de Su Dongpo. Esse tipo de diagramação devia ter sido instaurado como
modelo, como demonstra uma pintura sobre o leque de Wen Boren (1502-1575),
conservado no Museu de Xangai, que empresta sua composição à obra de Wen
Zhengming, conferindo-lhe certa amplidão decorativa.3
A DINASTIA MING 37SEIS SÉCULOS DE PINTURA CHINESA NO MUSEU CERNUSCHI36
1. Laurent, 2006, p. 17-32.
2. Goodrich e Fang, 1976, p. 1473.
3. ZGGDSHTM, t. 2, p. 322, n. 1_1037.
Cao Cao? Se olhamos em direção ao oeste, vemos Xiakou, em direção ao leste,
Wuchang; montanhas e rio se juntam em um lúgubre verde escuro; não seria
aqui que Cao Cao fora derrotado por Zhou Yu? Ele havia capturado Jingzhou e
descido o rio até Jiangling. Seus barcos, que seguiam a correnteza em direção
ao leste, espalhavam-se em mil léguas, e seus estandartes escondiam a vista
do véu. Ele se serviu de vinho, aproximou-se do rio e, segurando uma alabarda,
compôs esse poema. Certamente, ele foi o herói de toda uma geração, mas
onde ele se encontra hoje? Ou, ainda, o que vai acontecer com vocês, comigo,
pescadores e lenhadores à beira do rio, conosco, que temos peixes e camarões
como companheiros, a corça e o cervo como amigos, que prosseguimos em um
esquife parecido a uma folha, que erguemos cantis e canecas convidando-nos
uns aos outros a beber? Fomos enviados ao universo como seres efêmeros e
mariposas, grãos de arroz no oceano. Fico triste com o breve destino de minha
vida, invejo o infinito do longo do rio, queria voar seguindo os imortais, enlaçar
a lua e durar o mesmo tempo que ela. Mas sei que isso é impossível, e confio
minha melodia ao triste vento”.
Eu respondi: “Você também conhece a água e a lua? Elas passam como
essa correnteza, mas nunca vão embora. O cheio e o vazio são como elas, e
finalmente, não existe morte nem continuação. Se pensarmos no que de nós
mesmos se transforma no universo, nada permanece, nem mesmo o tempo de
um piscar de olhos; e se considerarmos o que continua sem se transformar,
então tudo é infinito, inclusive eu. O que devemos invejar então? Além disso, no
mundo, cada coisa tem um mestre. Se alguma coisa não me pertence, não posso
segurá-la. Mas a brisa sobre o rio, a lua sobre as montanhas que meus sentidos
transformam em som e em cores, nada me impede que eu absorva essas coisas,
e posso aproveitar isso infinitamente. É um tesouro imensurável da criação,
este de que eu e você podemos gozar juntos.”
Todos os meus companheiros puseram-se a rir. Tínhamos lavado as canecas e
voltamos a beber; quando terminamos a carne e as frutas, as taças e o pratos
estavam desarrumados. Servindo-nos todos de travesseiros, dormimos no
barco sem nos darmos conta de que o leste embranquecia.
Escrito por Zhengming, no ano Renzi [1552]
Essa pintura representa um tema clássico inspirado na Primeira ode à falésia
vermelha, de Su Dongpo. O texto desse poema foi traçado por Wen Zhengming
Inscrição e assinatura: Pintado para a despedida de meu irmão Chun, dia 15 da
primeira lua do ano Jhiai [1659], Lan Ying.
Mesmo que seus biógrafos façam alusão a suas longas viagens realizadas na
juventude, a atividade profissional de Lan Yiang parece estar concentrada
em sua cidade natal, Hangzhou, em Zhejiang.1
Lan Ying, como vários de seus
contemporâneos, era simpático às ideias de Dong Qichang (1555-1636), que
exerceram influência direta em sua formação e prática pictórica. Assim como
as pinturas de Dong Qichang, as obras de Lan Ying apresentam numerosas
referências aos mestres do passado. Se no gênero da paisagem o artista se
inspirava preferencialmente em Huang Gongwang (1269-1354), uma folha de
álbum do Musée Cernuschi representando um rochedo pintado “à maneira de
Wang Meng”, indica o alcance do repertório do artista.
Não é impossível que essa folha de álbum tenha participado de uma
série representando exclusivamente os singulares rochedos em variadas
representações.2
De fato, Lan Ying parece ter ilustrado a si mesmo nesse gênero,
estimado sobretudo por seus contemporâneos. De suas pedras emana uma
monumentalidade, e o artista lhe confere, naturalmente, um papel estruturante
em suas composições. Essa função é atestada na pintura sobre o leque, em que
a massa do rochedo apoia o pinho torto que ocupa a parte central. Essa estrutura
original é intensificada pelo audacioso uso da cor, que é, talvez, a mais radical das
inovações pictóricas introduzidas por Lan Ying.3
Esse trabalho pode ser comparado a uma obra-prima da pintura sobre leque
atribuída a Lan Ying, conservada no Museu de Nanquim.4
De fato, essas duas
obras datadas de 1659 procedem de um mesmo veio criativo. No caso da pintura
do Musée Cernuschi, a inscrição especifica as circunstâncias da gênese da
obra; trata-se de um presente oferecido na ocasião de uma partida. O papel
desempenhado pelos leques pintados na vida social das elites da época está aqui
explicitado.5
Paisagem com pinho e rochedo, 1659
Lan Ying (c. 1585-1664)
nanquim e cores sobre papel | 16,4 x 48,5 cm
1. Para a biografia de Lan Ying, cf.
Goodrich e Fang, 1976, p. 786-788; Yang,
1997, p. 234-236.
2. Parecido com o álbum reproduzido em
ZGGDSHTM, t. 1, p. 148-149.
3. Uma folha de álbum conservada no
Museu do Palácio de Pequim atesta o uso
original da cor (Giès, 2004, p. 248).
4. Xu, 1998, p. 22.
5. Matteo Ricci (1552-1610) notara a
importância das doações de leques. Ele
dizia até ter constituído um pequeno
conjunto dos que recebera, a fim de
poder se debruçar sobre o rito social dos
presentes, oferecendo-os por sua vez
(Ricci e Trigault, 1978, p. 90).
A DINASTIA MING 41
SEIS SÉCULOS DE PINTURA CHINESA – COLEÇÃO DO MUSÉE CERNUSCHI, PARISSEIS SÉCULOS DE PINTURA CHINESA – COLEÇÃO DO MUSÉE CERNUSCHI, PARIS 4544
DINASTIA QING
Inscrição e assinatura: Pintura dos mil outonos e das três eternidades.
Qiedao Ren [alcunha do pintor] de Tieling, Zhitou shenghuo [mote do pintor].
Essa obra monumental ilustra a técnica de pintura a dedo à qual o nome de Gao
Qipei é associado. O pintor pertencia a uma família chinesa originária de Tieling,
na Manchúria. No contexto político da dinastia Qing, essa origem podia favorecer
uma carreira oficial.1
Esse foi o caso de Gao Qipei, que, seguindo seu pai, serviria
tanto nas províncias de Yunnan, Zheijiang e Sichuan, como em Pequim. Introduzido
na corte, ele se diferenciaria por seus talentos de pintor, sobretudo por suas obras
feitas a dedo, um gênero de pintura que virou moda por causa do imperador
Shunzhi (1638-1661).2
A pintura apresenta, no centro, um casal de cervídeos. Esse
motivo de bom agouro foi representado várias vezes por Gao Qipei. Assim, uma
de suas obras de mesmo tema, conservada no Museu da Capital, em Pequim, tem
algumas semelhanças com a composição do Musée Cernuschi.3
A representação do
cervo sugere as diferentes técnicas adotadas pelo pintor: traço de contorno com
o dedo para dar mais movimento à silhueta, impressões digitais progressivamente
afinadas para a pelagem manchada do animal, detalhes de cílios e sobrancelhas
realizados com a ponta da unha. A atenção dedicada ao trabalho de tinta de Gao
Qipei às vezes ocultou a originalidade de seu uso das cores. O tratado de seu neto
Gao Bing indica, no entanto, o caráter pouco convencional do uso das cores na
pintura do avô. Ele observa que o vermelho, normalmente utilizado com leveza, era
aplicado em grossas camadas por Gao Qipei, que se divertia, aliás, aplicando o verde
e o azul, sobrepondo-os em largas superfícies empastadas.4
Por causa de alguns
detalhes, a pintura do Musée Cernuschi é a ilustração exata dessas propostas: um
morcego de um vermelho profundo sai dos galhos dos pinheiros, enquanto os
cogumelos da imortalidade, traçados a tinta, estão salpicados de verde e azul. Esse
uso da cor ressalta visualmente a presença desses dois elementos essenciais para
o significado da pintura. Ao referir-se aos mil outonos, o título dessa obra constitui
em si uma fórmula de desejo de longevidade. A idade vetusta, shou, é evocada
pelos cogumelos da imortalidade, lingzhi, e também pelos pinhos, enquanto a
felicidade, fu, é anunciada pelo morcego, fu. Finalmente, os cervídeos, lu, referem-
-se às heranças, lu. Reunidos, eles formam a tríade fu, lu, shou, síntese visual dos
votos que se pode desejar na ocasião de um aniversário.
Pintura dos mil outonos, entre 1700 e 1730
Gao Qipei (1672-1734)
nanquim e cores sobre papel | 227 x 115,2 cm
SEIS SÉCULOS DE PINTURA CHINESA NO MUSEU CERNUSCHI46
1. Quando o sistema manchu de oito
bandeiras foi adotado para governar
o império em 1644, os chineses da
Manchúria, que foram incorporados à
bandeira amarela, desempenharam um
papel de retaguarda particularmente
importante para o novo poder. Assim,
o pai de Gao Qipei, Gao Tianjue, tomou
partido na luta contra legitimistas Ming,
e assim foi morto. Esse fim glorioso
favoreceria a carreira de seu filho. A
propósito da biografia de Gao Qipei, cf.
Ruitenbeek, 1992.
2. Uma célebre pintura a dedo
representando Zhong Kui, conservada
no Museu do Palácio, foi atribuída ao
imperador Shunzhi.
3. Shoudu Bowuguan, 1995, p. 42-43.
4. Para uma tradução em inglês do texto
de Gao Bing, cf. Ruitenbeek, 1992, p.
296-312.
SEIS SÉCULOS DE PINTURA CHINESA – COLEÇÃO DO MUSÉE CERNUSCHI, PARIS48
Essa pintura monumental foi criada para comemorar o banquete oferecido
pelo imperador Qianlong em 1744, na ocasião da renovação arquitetônica
da Academia Hanlin, uma das instituições fundamentais da China
imperial. Essa descrição exata da arquitetura da academia e da cerimônia
oficial que ocorreu em seu interior foi realizada por um conjunto de seis
pintores, todos membros da Academia Imperial de Pintura. As caligrafias
que aparecem na pintura são obra de três importantes funcionários, Li
Zongwan (1705-1759), Ji Huang (1711-1794) e Zhang Zhao (1691-1745).
Trata-se de transcrições de composições poéticas realizadas durante as
festividades que marcaram esse dia.
Diferentes fontes históricas permitem conhecer a ordem em que aconteceu
a cerimônia. No dia dessa celebração, o imperador se apresentou
pessoalmente na Academia Hanlin, onde foi recebido por Zou Ertai (1677-
-1745) e Zhang Tingyu (1672-1755), que presidia essa instituição. Antes que
o banquete começasse, o imperador havia pedido aos letrados da Academia
Hanlin que realizassem uma primeira composição poética coletiva. Na
sequência dos poemas do imperador e dos grandes letrados, cada um
dos membros da Academia criou um verso de cinco caracteres, inserindo
aí, sucessivamente, um dos caracteres do poema Dogbi tushu fu, xiyuan
hanmolin, de Zhang Shuo (667-730). Esse caractere também tinha a função
de indicar a rima a ser adotada. Mais tarde, eles foram transcritos por Li
ZongwannaparteinferiordireitadapinturadaAcademiaHanlin.Obanquete,
A Academia Hanlin, 1744-1745
Jin Kun (ativo entre 1717 e 1749)
Sun Hu (ativo entre 1728 e 1746)
Lu Zhan (ativo em meados do século XVIII)
Wu Yu (ativo em meados do século XVIII)
Zhang Qi (ativo em meados do século XVIII)
Cheng Liang (ativo em meados do século XVIII)
nanquim e cores sobre seda | 193,5 x 625,5 cm
A DINASTIA QING 49
SEIS SÉCULOS DE PINTURA CHINESA – COLEÇÃO DO MUSÉE CERNUSCHI, PARIS 51
que representam os grandes acontecimentos do reino dos imperadores
Qing. Foi exatamente na ocasião da realização de uma das mais célebres
dentre essas pinturas, o Sexagésimo aniversário do imperador Kangxi,
datado de 1717, que Jin Kun foi recrutado como pintor na corte. Durante
os anos a serviço dos imperadores Kangxi, Yongzheng e Qianlong, Jin Kun
foi chamado para participar de vários programas de grande envergadura,
implicando um domínio da técnica jiehua, que permite representar os
elementos da arquitetura. Durante o reinado de Yongzheng, ele colaborou
com a versão do Qingming shanghe tu, de Chen Mei (1694-1745), ao lado
de Sun Hu e de dois outros pintores. Em 1735, Jin Kun e Sun Hu produziram
quadros a pedido do príncipe Hongli, futuro imperador Qianlong. Em
1741, quando os quinze pintores da Academia Imperial, huahuaren, foram
classificados em três categorias, Jin Kun e Sun Hu ocuparam a primeira
posição. Lu Zhan e Wu Yu, que também deviam participar da realização
da Academia Hanlin, foram classificados na terceira categoria. Se for
considerado que Cheng Liang – cujo nome é citado por último entre os
signatários – era aluno de Jin Kun, então se torna evidente a hierarquia
intrínseca da equipe de pintores que trabalharam nesse vasto projeto.
Projetos de tal envergadura frequentemente mobilizavam um grande
número de pintores durante vários anos. Mas é provável que A Academia
Hanlin tenha sido realizada mais rapidamente, como sugere a presença,
na obra, da caligrafia de Zhang Zhao, morto em 1745, ano seguinte ao
acontecimento representado.
Essa pintura se distingue na produção da Academia Imperial pela
originalidade de seu formato, que permitiu aos pintores a prática de um
tipo de perspectiva complexa. A obra constitui, aliás, um importante
testemunho relativo a uma instituição que exerceu papel artístico essencial
na formação das elites da China imperial desde a época dos Tang. Por
fim, essa pintura é, sem dúvida, a imagem mais fiel de um conjunto de
arquitetura e elementos urbanos hoje desaparecidos: a Academia Hanlin e
sua biblioteca foram quase completamente destruídas em 1900, durante
a Guerra dos Boxers.
do qual participaram sessenta pessoas, foi acompanhado por música e por
uma apresentação teatral. Depois, na sequência do imperador, os letrados
da Academia realizaram novas composições poéticas encadeando versos de
sete caracteres, de acordo com o modelo dos poemas antigos boliang ti.
Essas peças foram, mais tarde, transcritas na parte superior da pintura por
Ji Huang. Quando o banquete chegou ao fim, o imperador se retirou para
o pavilhão Qingbi, onde compôs novamente quatro poemas em versos de
sete caracteres, que, provavelmente, são peças transcritas na parte inferior
direita da pintura por Zhang Zhao, um dos maiores calígrafos de seu tempo,
que, sob ordem imperial, podia substituir seu pincel pelo de Qianlog.
Essas informações permitem compreender que o momento da cerimônia
descrito na pintura é aquele em que o imperador se retirou para o pavilhão
Qingbi. Sua presença, destacada pelo dossel imperial, explica que vários
letrados se mantêm em uma atitude respeitosa perto do pavilhão, que se
localiza em um pátio contíguo ao pátio principal onde ocorreu o banquete.
Os prédios do pátio principal receberam decoração temporária. O trono
do imperador, instalado sob o pavilhão central, está voltado para o palco,
situado do outro lado do pátio. Os membros da Academia permanecem
de pé no centro do pátio, organizados de acordo com sua categoria. No
primeiro pátio, os presentes oferecidos pelo imperador estão dispostos
sobre as mesas: trata-se de célebres chás, preciosos rolos de seda e papéis
coloridos. O guarda do imperador, boowei ban, fica nesse local. Para além
da porta da Academia, o cortejo imperial forma uma barreira de honra até
as portas do palácio.
O momento da cerimônia escolhido para a representação permitiu realizar
uma descrição viva e contrastada desse acontecimento. Se, por um lado, os
membros da Academia que ficam no pátio principal observam uma atitude
protocolar, por outro, os funcionários, guardas e empregados que estão
no primeiro pátio, assim como o cortejo imperial no exterior da Academia,
são representados em repouso. Ainda que essa obra pertença à categoria
dos tieluo, um tipo de pintura destinada a ser pregada diretamente em
uma parede, ela mantém várias relações com os longos rolos horizontais
A DINASTIA QING 51SEIS SÉCULOS DE PINTURA CHINESA NO MUSEU CERNUSCHI50
Inscrição e assinatura: Agitada, ela leva as cores da montanha
Luminosa, reflete a sombra da floresta.
Quando ela ressoa por sobre a pedra,
Lembramos da calma [que reina] no coração da montanha.
Xi An [sobrenome do pintor] Zhang Yin.
Zhang Yin pertencia a uma família de ricos mercadores de Zhenjiang, em Jiangsu.
Seupaieseutioerammecenasdegrandeimportância.Entreaspersonalidadesque
seu pai costumava receber, o calígrafo e colecionador Wang Wenzhi (1730-1802)
e o pintor Pan Gongshou (1741-1794) exerceram uma profunda influência sobre
Zhang Yin. Pan Gongshou deve tê-lo apresentado à obra de Wen Zhengming,
que se tornou seu modelo preferido durante a juventude. Quando Zhang Yin
ultrapassou os cinquenta anos, as inundações provocadas pela enchente do rio
Jingjiang o arruinaram, e ele precisou deixar sua antiga residência para se instalar
na cidade, onde praticou a pintura profissionalmente.1
Seus últimos anos, vividos
na miséria, foram extremamente criativos. Nas composições de grande formato,
Zhang Yin passa a captar o caráter monumental dos mestres da paisagem dos
Song do norte. O poder dessas obras com policromia acentuada o levou a se
tornar líder da escola de Zhenjiang.
O formato e as tonalidades da paisagem Solitário sob os pinhos contemplando
as ondas correspondem a esse último período. A respeito das massas rochosas,
o tratamento da tinta trai a influência dos modelos da época dos Song. Os
espinhos em forma de leque dos grandes pinhos, cuja intensidade matizada
1. A propósito da biografia de Zhang Yin,
cf. Zhai, 1998, e Wan, 2005, p. 70-74.
Solitário sob os pinhos contemplando
as ondas, entre 1819 e 1829
Zhang Yin (1761-1829)
nanquim e cores sobre papel | 141 x 80,5 cm
A DINASTIA QING 55
sugere as profundezas da folhagem, são características do estilo de Zhang Yin. A
composição é muito próxima de outras pinturas realizadas no começo dos anos
1820, como a Contemplação de uma cascata no outono, do Museu de Xangai.2
A
singularidade da pintura conservada no Musée Cernuschi deve-se ao fato de que
Zhang Yin substituiu a concentração de ondas por picos montanhosos.
O tema é uma interpretação original de outro, frequentemente tratado pelo
artista, o da contemplação de uma cachoeira.3
A inscrição, tomada emprestada
de um poeta da época dos Tang, Huang Fuzeng (721?-785?), descreve o curso
de um rio de montanha. O poeta ressalta o contraste entre a fúria da torrente
e a serenidade que reina no alto das montanhas. O fato de o pintor ter
voluntariamente omitido o título do poema, A fonte ao pé da montanha, sugere
que ele, talvez, tivesse mais a intenção de evocar um rio turbulento do que uma
paisagem de montanha. Vista a importância dedicada às célebres regiões de
Zhenjiang4
em sua obra, Zhang Yin pode ter sido inspirado pelas paisagens dos
arredores do grande rio.
SEIS SÉCULOS DE PINTURA CHINESA NO MUSEU CERNUSCHI56
2. ZGMSQJ, Qing dai huihua (xia), n. 108.
3. Uma pintura em leque da antiga
coleção de Zhang Xueliang (1901?-2001)
apresenta uma composição muito próxima
à pintura do Musée Cernuschi (venda no
dia 10 de abril de 1994, Sotheby’s, Taipei).
4. Lugares célebres de Zhenjiang, Museu
de Zhenjiang, ZGGDSHTM, t. 6, p. 289;
e Três elevações de Jingjiang, Museu do
Palácio de Pequim, Nie, 1997, p. 292.
SEIS SÉCULOS DE PINTURA CHINESA – COLEÇÃO DO MUSÉE CERNUSCHI, PARISSEIS SÉCULOS DE PINTURA CHINESA – COLEÇÃO DO MUSÉE CERNUSCHI, PARIS 5958
O MOVIMENTO EPIGRÁFICO E A
RENOVAÇÃO DA PINTURA CHINESA
A ESCOLA EPIGRÁFICA 61
Inscrição e assinatura: O grande rio corre em direção ao oeste, suas ondas
varrem os nobres nomes de outrora. Caóticas pedras
e nuvens despedaçadas, lâminas terríveis atingem o rochedo.1
Para o senhor Pu Tang [Georges Lecomte (1867-1968)], Kang Youwei.
Kang Youwei é originário de Nanhai, na província de Cantão. Após formar-se
na academia Xuehai Tang, ingressa no doutorado em 1895. Ele expressa suas
ideias inovadoras em duas obras principais: Estudo crítico dos falsos clássicos
estabelecidos pelos eruditos da Dinastia Xin, [Xinxue wijing kao], em 1891, em que
repensa a leitura oficial dos clássicos, e Estudo crítico de Confúcio, reformador
das instituições [Kongzi gaizhi kao], em 1897, que apresenta uma visão renovada e
progressista sobre Confúcio. Em 1898, ele ganha importância no governo e, entre
outras reformas, propõe a instituição de uma monarquia parlamentar. Devido à
reação de milhares de conservadores, vê-se obrigado a deixar o país e vive em
exílio até 1916, viajando principalmente pelo Ocidente. Além do campo político, o
pensamento de Kang Youwei aborda os domínios sociais, filosóficos e religiosos,
como revela sua obra testamental, o Livro da grande unidade, [Datong shu].
Ao longo de suas viagens, as comparações que ele estabeleceu, no campo das
artes, entre as tradições pictóricas ocidental e chinesa, levaram-no a constatar
uma decadência da pintura chinesa. Esse admirador de Rafael (1483-1520) e dos
mestres das dinastias Song e Yuan considerou a necessidade de reorientar a arte
chinesa, apoiando-se, por um lado, no estudo da arte ocidental e inspirando-se,
por outro, nas tradições responsáveis pela grandeza da arte da academia dos Song.
Essa defesa do realismo na arte exerceu uma influência considerável em pintores
como Xu Beihong (1895-1953) e Liu Haisu (1896–1994), que seguiram suas lições.2
Caligrafia, entre 1913 e 1927
Kang Youwei (1858-1927)
nanquim sobre papel | 175,6 x 89,7 cm
1. Esses versos foram retirados do poema
Lembrança da passagem pela falésia
vermelha, de Su Dongpo, inspirado em
Lembrança de sua frágil beleza (Su Dongpo
quanji, 1936 e Egan, 1994, p. 226-227).
2. Wu, 1990, p. 46-53.
SEIS SÉCULOS DE PINTURA CHINESA NO MUSEU CERNUSCHI62
No campo da caligrafia, Kang Youwei inscreve-se na linha das ideias formuladas
por Ruan Yuan (1764-1849) e Bao Shichen (1775-1855), em seus escritos fundadores
da escola de estudo de estelas, Beixue pai. Kang Youwei se distancia, portanto,
da tradição caligráfica iniciada por Wang Xizhi (303-361) para se dedicar a estelas
antigas. Em sua caligrafia, ele faz referência especialmente às inscrições da época
dos Han e dos Wei do norte. Os grandes caracteres de Kang Youwei, com o traço
propositalmente malfeito, têm um aspecto monumental inspirado no estudo
das inscrições sobre pedra, como o Shimen Ming. Essa escritura derivada do
estilo dos escribas, lishu, desenvolve-se, entretanto, de modo cursivo. O pincel,
cheio de tinta, embebe a folha em diferentes lugares enquanto alguns caracteres
apresentam-se extremamente secos. Resulta, desse contraste, uma manifestação
singular de energia.
SEIS SÉCULOS DE PINTURA CHINESA – COLEÇÃO DO MUSÉE CERNUSCHI, PARIS64
Inscrição e assinatura: Milhares de caracteres foram escritos no Eremitério
Lütianan,1
Sob o pincel [de Huaisu], dragões e serpentes2
vão ao altar do Buda.
Espera-se que as [qualidades das] folhas de bananeira e folhas de papel sejam
similares,
Nanquim e meditação desde os tempos antigos sempre foram orientados para
o despertar.
Traçado por Wang Zhen [dito] Bailong shanren, durante o outono do ano Renxu.
“Homem de negócios, filantrópico e artista”, segundo os termos de Tsao Hsing-
yuan,3
Wang Zhen é uma figura muito característica da escola de Xangai. De
condição modesta, ele teria sido aprendiz em um ateliê de montagem de pintura
durante sua juventude,4
onde estudou com Ren Bonan (1840-1896),cujainfluência
seria preponderante nas obras do jovem Wang Zhen. Durante a maturidade,
sua pintura foi profundamente renovada pelas visitas de Wu Changshuo. Ele
conheceria o sucesso nos negócios como representante de diferentes sociedades
japonesas, ocupando as funções de presidente das câmaras de Agricultura,
de Manufaturas e do Comércio de Xangai.5
Paralelamente a suas atividades
comerciais, Wang Zhen foi um criador prolífico. Seu traço forte e as cores fracas,
herdados do mestre, aplicam-se de modo privilegiado na pintura de personagens,
gênero pelo qual Ren Bonan se tornou conhecido. Budista fervoroso, ele soube
comunicar um vigor intenso em suas representações de santos e monges,
como demonstram suas várias imagens de Bodhidharma, entre as quais uma,
monumental, entrou para as coleções nacionais francesas em 1934 e hoje está
conservada no Musée Guimet. Além de suas realizações artísticas pessoais, seu
papel de mecenas favoreceu a disseminação da obra de Wu Changshou (1843-
-1927) no Japão.
Huaisu escrevendo sobre uma folha
de bananeira, 1922
Wang Zhen (1867-1938)
130 x 33,2 cm | nanquim e cores sobre papel
1. O local do Eremitério do Céu Verde
(Lütianan), onde morava o monge Huaisu,
era cercado de bananeiras, que lhe
acarretaram o nome.
2. A expressão “dragões e serpentes”
designa a caligrafia cursiva.
3. A forgotten celebrity, Wan Zhen (1867-
1938), Businessman Philanthrope and
Artist. In: Ju-His Chou (Ed.), Art at the
Close of China’s Empire. Phoebus, n. *, p.
94-109.
4. XIAO, Fenqi. Wang Yiting. Shijiazhuang,
Pequim: Hebei Jiaoyu Chubanshe, 2002,
p. 28-29.
5. FONG, Wen. Between Two Cultures,
Late Nineteenth- and Twentieth-Century
Chinese Painting from the Robert H.
Ellsworth Collection in the Metropolitan
Museum of Art. Nova York: Yale University
Press, 2001. p. 78-79.
A ESCOLA EPIGRÁFICA 65
Essas duas obras de Wang Zhen pertencem à maturidade do artista. A
representação de Huaisu (c. 735-800), o mestre da dita cursiva insana, escrevendo
em uma folha de bananeira inscreve-se em tradição antiga.6
De fato, a biografia
de Huaisu por Tao Gu (903-970) relata que esse monge budista havia plantado
bananeiras ao redor de seu eremitério, e que ele fazia uso das folhas para suas
caligrafias. Essa história, que enfatizava a pobreza de Huaisu, mas também seu
empenho no estudo da caligrafia, se tornaria um tema pictórico por si só, e um
assunto especialmente caro a Ren Bonan.7
A pintura de Wang Zhen é caracterizada
por seu frequente traço forte à margem do primeiro plano e nos bambus do plano
de fundo. Contrastando com esses traços, cuja força contribui para o gesto do
calígrafo, o rosto do monge foi feito com a técnica mogu (sem ossos), os detalhes
dos olhos e da barba são retomados com um pincel leve. A segunda pintura
constitui uma hábil síntese entre o gênero dos personagens e a arte da paisagem.
Os personagens representados são Hanshan e Shide, duas figuras do budismo
chinês cuja estreita associação deu origem a uma iconografia original que
confere, aos dois sábios, os mesmos traços grosseiros. Como a biografia do poeta
Hanshan, que viveu na época dos Tang, é muito lacunar, a legenda foi atribuída a
ele. No prefácio de Lu Qiuyin aos poemas de Hanshan, ele foi apresentado como
um monge budista ligado às cozinhas do templo Guoqing Si nos montes Tiantai.
Inseparável de Shide, ele é conhecido como o inapreensível, encontra refúgio
nos montes Hansam, onde escreve seus poemas em uma parede das falésias.
Essa obra, assim como o retrato de Huaisu, evoca, consequentemente, figuras
fundadoras que ilustram os laços entre o despertar budista e a inspiração artística
a que Wang Zhen se dedicou em sua obra de pintor.
6. LAUER, Uta. Portrait of the Artist as a
Poor Man the Significance of Writing on a
Banana Leaf. In: BLANCHON, Flora (Dir.).
La question de l’Art en Asie Orientale.
Paris: Presses de l’Université Paris-
Sorbonne, 2008. p. 251-263.
7. Lauer, 2008, fig. 4 e 13.
SEIS SÉCULOS DE PINTURA CHINESA NO MUSEU CERNUSCHI66
1. Inscriçãoe assinatura:Afastadohá muitotempo do pavilhão Bayan, Qi Baishi,
com oitenta e sete anos, pintou esses seres com sua velha mão.
2. Inscrição e assinatura: Anos duradouros e grande prosperidade. Para o
Senhor Zhicheng. Baishi em seu octogésimo sétimo ano.
3. Inscrição e assinatura: Para o Senhor Hongqu, em homenagem. No oitavo
mês do outono do ano Jiahai [Dinghai], pintado por Laishi em seu octogésimo
sétimo ano, na antiga Yanjing [Pequim].
4. Inscrição e assinatura: Feito pelo velho Baishi em seu octogésimo sétimo ano
em Jinghua [Pequim].
Qi Baishi é originário do vilarejo de Xingdou Tang, no distrito de Xiangtan em
Hunan. Nascido em um meio modesto, ele aprendeu desde sua adolescência o
ofício de gravador na madeira. Essa formação artesanal favoreceu a apropriação
do repertório decorativo tradicional, sobretudo floral. No fim de seu aprendizado,
ele estava determinado a se formar na pintura como autodidata com base nos
modelos do manual de pintura Jiezi yuan huachuan, exercendo seu ofício de
gravador. O estudo da técnica do retrato junto com Xiao Zhuanxin levou-o a
se estabelecer como retratista a partir de 1889.1
No mesmo ano, ele se tornou
aluno de Hu Qinyuan (?-1914), com quem aprendeu a técnica gongbi. No entanto,
essas qualidades encontrariam uma expressão mais bem-acabada nas pinturas de
insetos e de flores, às quais ele dedicou suas pesquisas de 1895 até a época de
sua mudança para Pequim, nos anos 1920. De 1902 a 1909, ele fez várias viagens,
que o levaram a visitar regiões e cidades muitos distintas, como Xi’an, Pequim,
Guilin e Cantão. As obras que viu e as personalidades que conheceu ao longo
Pintinhos, Peixes, Junco e Gralha
com melancia, 1947
Qi Baishi (1863-1957)
nanquim e cores sobre papel | 103,3 x 34,2 cm;
103,7 x 34,4 cm; 102 x 34 cm; 101,3 x 33,9 cm
desses périplos levaram-no a adotar novos modelos, como Zhu Da (1626-1705),
Jin Nong (1687-1764) e Xu Wei (1521-1593) para a pintura, e Zhao Zhiqian (1829-
1884) para a gravura de símbolos. Essas influências participaram da evolução de
seu estilo, que se emancipa progressivamente de seu traço minucioso.
Contudo, é somente no momento de sua instalação em Pequim, em 1917, em
consequência de seu encontro com Chen Shizeng (1876-1923), que ele se orienta
para o que culminará na expressão de seu estilo pessoal. Além da influência
de seus escritos, talvez fosse a importância dedicada à obra de Wu Changshuo
(1844-1927) por Cheng Shizeng e os membros de seu círculo, como Chen Banding
(1877-1970) ou Yao Hua (1876-1930), que levaria Qi Baishi a tomar por modelo
a obra do mestre da escola de Xangai. Ao final do que Qi Baishi chamava de
“reforma artística em uma idade avançada”, ele emergiu rapidamente na cena
artística nacional. A originalidade de suas composições, a energia do pincel e
a audácia no emprego das cores caracterizam, no plano formal, as obras dessa
época. Entretanto, a simplicidade direta de sua obra deve-se ao caráter rústico,
salpicado de humor, de seu universo pictórico. Após a revolução de 1949, foi
consagrado o representante mais importante da pintura chinesa tradicional.
As quatro pinturas, doadas ao Musée Cernuschi por Guo Youshou (1900-
1978), formam um conjunto característico da maturidade de Qi Baishi. Além
das reminiscências sensíveis, por exemplo, por meio do perfil do bagre que
evoca a pintura de Zhu Da,2
essas obras constituem uma perfeita introdução
ao universo pictórico de Qi Baishi. Os animais, apreendidos na espontaneidade
de seus movimentos, como a ninhada de pintinhos brincando espalhados ou o
pássaro bicando a melancia, têm, certas vezes, um significado simbólico. Assim,
a associação do bagre, nianyu, e de uma espécie de salmão, guiyu, corresponde
à fórmula de desejos chang nian da gui, cujos termos são equivalentes fonéticos
de nomes de dois peixes.3
Da ilustração dessas frases populares emana uma
poesia concreta própria a Qi Baishi.
1. Um retrato de seu mestre Hu Qinyuan,
conservado no museu da província
Liaoning, evidencia uma execução
extremamente realista (Wu, 2000, p. 18).
SEIS SÉCULOS DE PINTURA CHINESA NO MUSEU CERNUSCHI68
2. Fong, 2001, p. 148-149.
3. Do mesmo modo, as pinturas de
pintinhos sempre recebem o título Duo
zi, “várias crianças”, uma fórmula que
corresponde ao desejo clássico de uma
família numerosa.
A ESCOLA EPIGRÁFICA 69
SEIS SÉCULOS DE PINTURA CHINESA – COLEÇÃO DO MUSÉE CERNUSCHI, PARISSEIS SÉCULOS DE PINTURA CHINESA – COLEÇÃO DO MUSÉE CERNUSCHI, PARIS 7372
VIAJANDO NO JAPÃO
Inscrição e assinatura: “Na descrição de qualquer coisa, a apresentação, a
forma, não vale a percepção do movimento, a percepção do movimento não
vale a compreensão do ritmo, mas a compreensão do ritmo não equivale à
apreensão da essência.” Tais são as palavras de Zhu Lan [Li Rihua], aquele que
as compreender pode falar de pintura. Xue Weng [alcunha do pintor].
Chen Zhifo nasceu na atual cidade de Cixi, em Zhejiang.1
Paralelamente à sua
obra de pintor, ele é considerado um dos pioneiros do grafismo moderno na
China. Seu interesse pelo estudo dos temas decorativos data de sua formação
nas técnicas industriais têxteis, entre 1912 e 1916. De 1918 a 1923, Chen Zhifo
dá continuidade a seus estudos no Japão, no departamento de artes aplicadas
da Escola de Belas-Artes de Tóquio.2
De volta à China, ele se instala em Xangai,
onde dá aulas de grafismo. Suas pesquisas, que correspondem à ascensão da
prensa ilustrada, demonstram seu interesse tanto pelo vocabulário decorativo
das antigas civilizações, como pelas manifestações da modernidade. Em 1931,
ele dá aulas na Universidade de Nanquim. Esse novo ambiente desempenhou
um papel importante no desenvolvimento de sua obra de pintor. Em 1934, ele
expõe pela primeira vez uma pintura representando pássaros, com o nome de
Xue Weng. Essa obra foi realizada no estilo gongbi, uma técnica minuciosa que
possibilita uma representação exata dos animais e da natureza. Na obra de Chen
Zhifo, esses efeitos naturalistas são acompanhados de uma qualidade decorativa
herdada de suas pesquisas gráficas. Sua obra de pintor só será totalmente
reconhecida a partir de 1942: durante sua primeira exposição individual, Chen
Shuren (1884-1948) vê nele um “Huang Quan (903-965) moderno”.4
Durante
os anos pós-guerra, continua a explorar o vasto registro de flores e pássaros,
mantendo-se fiel à técnica exigente do gongbi até sua morte, em 1962.
Gansos selvagens, entre 1940 e 1945
Chen Zhifo (1896-1962)
nanquim e cores sobre papel | 106,3 x 36,8 cm
1. Para a biografia de Chen Zhifo, cf. Chen
e Gu, 2002.
2. A propósito da influência do Japão
sobre a formação e a obra de Chen Zhifo,
cf. Yuen-Wong, 2006, p. 25-27.
3. Ele colabora sobretudo com o
Dongfang zazhi, publicado pelo
Commercial Press de Xangai, de 1925 a
1930 (Chen e Gu, 2002, p. 105-107).
4. Essa célebre assertiva foi inscrita
por Chen Shuren sobre uma pintura de
Chen Zhifo que representa bambus e
crisântemos. Huang Quan é um dos mais
ilustres pintores de flores e de pássaros
da história da China. Seu estilo, que foi
transmitido à corte da dinastia dos Song
por seu filho, tornou-se o modelo com
base no qual a pintura acadêmica de flores
e de pássaros se desenvolveria.
VIAJANDO NO JAPÃO 75
A pintura dos Gansos selvagens representa perfeitamente o estilo de Chen Zhifo.
A própria natureza do tema pintado, assim como os princípios de composição,
evoca os modelos da época dos Song, sobretudo as obras atribuídas à Academia
Imperial. No caso de Codornizes, essa influência é especialmente perceptível. O
pintor reconheceu a profunda impressão deixada por esse tipo de pintura antiga,
que contemplou pela primeira vez durante uma exposição que data do início dos
anos 1930, pouco antes de realizar suas primeiras criações nesse gênero.5
Essa
pintura de acentos naturalistas, fundada em uma tradição chinesa esquecida
durante as duas últimas dinastias, responde a seu modo às aspirações de uma
parte da intelligentsia que Kang Youwei (1858-1927) defendeu desde os primeiros
anos do período republicano.
5. Não é impossível, no entanto, que ele
tenha visto essa obras atribuídas aos Song
desde o tempo de sua formação no Japão.
A técnica do gongbi, baseada na exatidão
do traço de contorno, frequentemente
implica o recurso a clichês, fenben. Esse
uso pode ser ressaltado no caso da pintura
dos Gansos selvagens. Uma pintura
datada de 1947 e conservada no Museu de
Nanquim é uma réplica exata da obra do
Musée Cernuschi, com uma única exceção:
a neve que recobre o tema da pintura do
Museu de Nanquim (Chen e Gu, 2002, p.
136-137). Aliás, é provável que a técnica
empregada por Chen Zhifo para evocar a
neve seja de origem japonesa.
SEIS SÉCULOS DE PINTURA CHINESA – COLEÇÃO DO MUSÉE CERNUSCHI, PARIS76
Inscrição e assinatura: Durante o mês suplementar1
do ano Dinghai [1947], eu
estava em Wanyangyun Xuan. Em frente ao Pavilhão da Longevidade Feliz havia
umamagnóliaemplenafloração.Lembrei-meentãodemeuamigo,osenhorLin,
que, em seu jardim à beira do Hu, tinha uma magnólia composta de dois troncos
em único toco, como uma única árvore, e isso sem que houvesse enxerto. Era
algo extraordinário. A macieira selvagem ofusca os olhos, [o perfume] do lilás
toma o pátio. [Pintado] e inscrito por Fei’an.
YuZhao,conhecidopelonomedeYuFei’an,nasceuemPequim.2
Emsuajuventude,
formou-se em pintura com Wang Runxuan, um artista popular. Jornalista e
professor, ele deu aulas de pintura e de caligrafia em diversas instituições
acadêmicas de Pequim no período entreguerras. A partir de 1935, trabalhou no
departamento de exposições da Cidade Proibida. Desse momento em diante,
começou a pesquisar a pintura antiga e copiar as obras dos mestres conservadas
nas coleções do novo museu, aberto ao público em 1931. Esse acesso às pinturas
antigas coincidiu com uma virada decisiva em sua obra: a partir de 1935, passou a
se dedicar exclusivamente ao gênero da pintura de flores e de pássaros no estilo
minucioso, o gongbi. Depois de sua primeira exposição individual, em 1936, ele
prosperou rapidamente como um dos mestres desse gênero. Após 1949, ocupou
posições importantes na Associação para a Pesquisa sobre a Pintura Chinesa e na
Academia de Pintura de Pequim.
Na opinião de Yu Fei’an, suas pesquisas a respeito das flores e dos pássaros
podem ser divididas em três momentos principais.3
O primeiro período é dominado
pelos modelos antigos, sobretudo pelos mestres das dinastias Song e Yuan, assim
como Chen Hongshou (1598-1652). Em um segundo momento, seu interesse
Dois pássaros verdes sobre uma magnólia, 1947
Yu Fei’an (1889-1959)
nanquim e cores sobre papel | 89,1 x 46,2 cm
1. No calendário lunar, é preciso introduzir
um mês suplementar a cada dois ou três
anos. Esse sistema é equivalente aos anos
bissextos no calendário solar.
2. Para a biografia de Yu Fei’an, cf. Yu,
1988, introdução, p. 11-14.
3. Essa opinião foi registrada por Yu
Fei’an, que a gravou em uma pintura feita
pouco tempo antes de sua morte.
VIAJANDO NO JAPÃO 79
se voltaria exclusivamente para as pinturas do imperador Huizong (1082-1135)
dos Song e sua caligrafia no estilo “ouro lançado”, shoujin. Por fim, o estudo
direto da natureza ter-lhe-ia permitido completar seu estudo histórico por meio
de uma abordagem empírica. Seus escritos, sobretudo seu importante tratado
consagrado às cores na pintura chinesa,4
demonstram, contudo, um profundo
conhecimento das tradições da pintura popular.
Dois pássaros verdes sobre uma magnólia data da maturidade do artista.
Além das referências à pintura antiga, perceptíveis na composição, a obra é
apresentada por Yu Fei’an como resultado de uma observação direta de uma
árvore florida. Os termos da inscrição revelam o interesse do pintor pela botânica.
As cores contrastadas são aplicadas com uma grande delicadeza de nuances,
demonstrando as pesquisas do pintor a respeito da cor.
4. Essa obra, publicada em 1955, foi
traduzida para o inglês; ela aparece na
bibliografia sob a referência Yu, 1988.
SEIS SÉCULOS DE PINTURA CHINESA NO MUSEU CERNUSCHI80
Inscrição e assinatura: Sou Guachou [Shao Mi], o eterno excêntrico.
Por minha vida, tomado por um estranho orgulho, eu me mantive à distância.
Meus empregados, jovens e velhos, roubam-me e insultam-me, minha mulher
ansiosa faz cenas de escândalos.
Magro como um cisne, ocioso como uma gaivota, manchado de tinta, será que
conheci a paz algum dia?
Um dos Nove amigos da pintura de Wu Meicun [Wu Weiye]. Fu Baoshi.
Ao lado da pedra com tinta e de outros tesouros do letrado, a longa folha de
papel apresenta uma superfície imaculada. As pinturas e as caligrafias em rolos,
apertadas em um jarro, mantêm relação com o pote de pincel que enfeita o canto
da mesa. O pintor, com o pincel na mão, dirige os olhos à janela, onde um homem
barbudo e uma criança observam a distância.
Os versos que acompanham essa pintura foram emprestados do poema de Wu
Weiye (1609-1672),1
o Canto dos nove amigos da pintura, Hua zhong jiu you ge.
Nesses versos que concluem sua obra, o poeta evoca o excêntrico destino do
pintor Shao Mi (1592?-1672). O estado de espírito do pintor é expresso por um
sentimento de orgulho cansado que pode ser lido em seu rosto.
Se, por um lado, as representações dos poetas do passado, como Tao Yuanming
(365 ou 372-427) e Du Fu (712-770), são numerosas na obra de Fu Baoshi, por
outro, as imagens de caligrafias e de pintores, como Huaisu e Shitao, não estão
absolutamente ausentes. Essas representações de artistas foram às vezes
consideradas autorretratos disfarçados de Fu Baoshi.2
À luz dessas considerações,
O pintor em sua mesa de trabalho,
entre 1925 e 1965
Fu Baoshi (1904-1965)
31,1 x 36,7 cm | nanquim e cores sobre papel
1. Wu Weiye, como Cheng Sui e Shitao,
viveu durante o período turbulento da
transição dinástica do século XVII.
2. Fong, 2001, p. 111-112.
parece possível olhar essa associação de versos de Wu Weiye com o retrato de
Shao Mi como a expressão íntima do estado de espírito de Fu Baoshi.
Depois de ter cogitado o projeto de realização de uma série de pinturas com
base no poema de Wu Weiye, Fu Baoshi parece ter se dedicado exclusivamente
à representação de Shao Mi. Entretanto, como é bastante comum na obra de Fu
Baoshi, esse tema foi representado pelo artista várias vezes. Assim, uma pintura
da coleção Michael e Khoan Sullivan,3
de idêntica composição, apresenta uma
técnica muito diferente, no limite da dissolução das formas. É provável que a
pintura do Musée Cernuschi seja um pouco anterior a essa obra, datada de 1948.4
SEIS SÉCULOS DE PINTURA CHINESA NO MUSEU CERNUSCHI82 VIAJANDO NO JAPÃO 83
3. Sullivan, 2001, p. 76.
4. Vale observar que a obra do Musée
Cernuschi pertence à antiga coleção
Zhou Lin.
Inscriçãoeassinatura:Antigamente,aluabrilhanteerachamadadereservatório
de jade branca,
Muitos sentimentos se refletem na barreira de jade.
O vento do oeste, carregado com seu perfume, soprou durante a noite.
No palácio das águas, vestido com gaze, sinto o frio intenso.
No ano Yiwei [1955], no momento de Chongjiu [a festa no duplo nove], sobre
o lago Shinobazu, lembro das caminhadas cotidianas e do leve perfume que
penetrava pelas mangas do meu vestido.
Eu pensava [o quanto] o verso de Dongpo [Su Shi] em “O palácio das águas e o
vento que sobe”, nos afeta [?] folhas amassadas que recobrem o lago.
A pintura de lótus foi um dos espaços de experimentação mais fecundos da obra
de Zhang Daqian. Seus modelos devem, sem dúvida, ser procurados na pintura de
Zhu Da (1626-1705), que dera a suas representações uma excepcional dimensão
monumental. Os lótus monocromáticos datados de 1937 são exemplos do modo
como Zhang Daqian conseguiu captar essa monumentalidade para orientá-la em
outra direção.1
Após sua estadia em Dunhuang, que lhe possibilitou contemplar e
copiar composições murais, Zhang Daqian começou a arriscar os grandes formatos.
Essa vontade, que foi aplicada em todos os gêneros da pintura que praticou,
culminaria na realização da vista do Monte Lu, de 1981 a 1983.2
Entretanto, a pintura
de lótus levou-o a se arriscar no grande formato desde 1945.3
Essas obras eram
realizadas na forma de polípticos: rolos verticais paralelos ou biombos. As pinturas
de tamanho cada vez mais relevante deviam orientar a evolução de sua obra.
As implicações técnicas dessa ambição monumental se revelam extremamente
complexas. A elaboração de superfícies tão carregadas envolve não apenas a
Lótus sob o vento, 1955
Zhang Daqian (1899-1983)
nanquim e cores sobre papel | 184,4 x 95,2 cm
1. Zhang, 2002, p. 95. Essa pintura já
apresenta o traço específico das folhas
de lótus observável na pintura doada por
Zhang Daqian ao Musée Cernuschi.
2. A obra, uma pintura sobre seda de
178,5 x 994,5 cm, foi feita de 1981 a 1983.
3. Uma obra de 385 x 600 cm (Elisseeff,
1961, p. 3).
VIAJANDO NO JAPÃO 87
SEIS SÉCULOS DE PINTURA CHINESA NO MUSEU CERNUSCHI88
seleção de materiais adaptados, mas também o domínio do equilíbrio entre a
livre distribuição da tinta e o controle do pincel. Nesse sentido, não é impossível
que a técnica da tinta e das cores salpicadas, pomo pocai, que renovaria suas
pinturas de paisagens a partir dos anos 1960, tenha sido fruto das experiências
feitas na pintura de lótus desde os anos 1940. Na pintura do Musée Cernuschi,
datada de 1955, a cor desempenha ainda um papel discreto que faz sobressair a
intensidade da tinta.4
O contraste entre o profundo negro das folhas de lótus e
a brancura das flores cria um efeito luminoso que prefigura a utilização de papel
dourado nas composições de lótus sobre biombos realizadas nos últimos anos
de sua vida.5
4. Esse papel da sustentação da cor já
estava presente na série de lótus gigantes
dos anos 1940 (Zhang, 2002, p. 57).
5. Fu e Stuart, 1991, p. 248-249.
SEIS SÉCULOS DE PINTURA CHINESA – COLEÇÃO DO MUSÉE CERNUSCHI, PARISSEIS SÉCULOS DE PINTURA CHINESA – COLEÇÃO DO MUSÉE CERNUSCHI, PARIS 9190
DESCOBRINDO O OESTE
Inscrição e assinatura: O demônio búfalo e o espírito serpente (parte do título)
Beihong, Guiwei (1943)
Xu Beihong nasceu em Qitingqiao Zhen, no distrito de Yixing em Jiangsu, e
aprendeu sua arte com seu pai, Xu Dazhang (?-1914).1
Arruinados por uma
inundação, pai e filho tiveram de levar uma vida de artistas itinerantes até
que a reputação emergente de Xu Beihong lhe permitisse dar aulas em Yixing.
De 1914 a 1917, Xu Beihong vive em Xangai: inscreve-se na Université l’Aurore
[Zhendan Daxue], onde estuda francês, e dá palestras na univesidade Mingzhi. É
incentivado por Gao Jianfu (1879-1951) e Gao Qifeng (1889-1933), assim como por
Kang Youwei (1858-1927), que lhe encomenda obras e lhe dá livre acesso a suas
coleções de estampas e caligrafias.
Em 1917, Xu Beihong passa a morar no Japão.2
Com o apoio de Cai Yuanpei
(1868-1940), obtém uma bolsa para estudar na França, onde vive de 1920 a
1927.3
Formado na École Nationale Supérieure des Beaux-Arts, em Paris, ele se
orienta mais em direção aos mestres do passado do que aos vanguardistas. Sua
admiração pelo pintor acadêmico Pascal Dagnan-Bouveret (1852-1929), junto com
quem estuda desenho e pintura a óleo, confirma essa inclinação. Sua estadia na
Alemanha em 1921, no ateliê de Arthur Kampf (1864-1950), desperta seu interesse
pelo realismo e pela pintura de animais.4
De volta à China, ele leciona em Xangai e Nanquim, antes de ser nomeado diretor
da Academia de Belas-Artes de Pequim, em 1929. Durante esses anos, ele cria
monumentais obras a óleo, ilustrando temas inspirados na história da China. Seus
escritos defendem o realismo na arte. Em 1933, vai à França para organizar a
O demônio búfalo e o espírito serpente, 1943
Xu Beihong (1895-1953)
nanquim e cores sobre papel | 85,1 x 57,9 cm
1. Além da aprendizagem tradicional do
ofício, seu pai o aconselha a copiar as
obras do célebre pintor e ilustrador Wu
Jiayou (?-1893), mais conhecido pelo nome
Wu Youru, cujos trabalhos contêm vários
elementos influenciados pelas técnicas de
desenho ocidentais.
2. O modo como os artistas japoneses
souberam assimilar as técnicas da pintura
ocidental conforta sua visão reformista da
pintura chinesa.
3. Durante esse período, no entanto, Xu
Beihong retornou uma vez à China, em
1925.
4. Estudos de animais realizados no
jardim zoológico de Berlim em 1922 estão
conservados no museu Xu Beihong, em
Pequim (Liao, 1995, p. 79).
DESCOBRINDO O OESTE 93
exposição de arte chinesa antiga e moderna, realizada no museu Jeu de Paume,
em Paris, antes de viajar à Itália, à Bélgica e à Alemanha. Em 1937, a Academia
de Belas-Artes se retira a Chongqing. Em 1938, ele visita o Sudoeste Asiático
e, em 1940, a Índia, a convite de Rabindranath Tagore (1861-1941). De volta a
Chongqing, em 1943, ele ingressa na Academia de Belas-Artes. O período de
guerra é extremamente produtivo: inspira algumas de suas maiores composições,5
que, ao ilustrar a história da China, ajudam a resistência nacional. Outras obras
mais modestas, como a pintura do Musée Cernuschi intitulada O demônio búfalo
e o espírito serpente,6
têm, na verdade, um sentido parecido. Como essa pintura
data de 1943, o contexto leva a pensar que a serpente ameaçadora da pintura é
uma representação simbólica do Japão atacando a China.7
Em 1949, Xu Beihong é nomeado diretor da Academia Central de Belas-Artes de
Pequim. Sua defesa do realismo e sua concepção do aprendizado do desenho e
da pintura terão uma importância considerável para o ensino da arte na China
popular durante a segunda metade do século XX.
SEIS SÉCULOS DE PINTURA CHINESA NO MUSEU CERNUSCHI94
5. Assim, a pintura representando O velho
maluco movendo as montanhas, feita na
Índia, em 1940, transpõe o espírito de suas
composições a óleo, no domínio da pintura
chinesa tradicional. A obra está conservada
no museu Xu Beihong, em Pequim.
6. A expressão, de origem budista,
geralmente designa o mal e os malfeitores.
7. O mesmo tipo de oposição entre um
leão e uma serpente, datado de 1939
(Liao, 1995, p. 46), é um precedente sem
ambiguidade, já que o leão ferido foi
escolhido como alegoria da China, atacada
a partir de 1938.
Seis séculos de pintura chinesa no Musée Cernuschi
Seis séculos de pintura chinesa no Musée Cernuschi
Seis séculos de pintura chinesa no Musée Cernuschi
Seis séculos de pintura chinesa no Musée Cernuschi
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Seis séculos de pintura chinesa no Musée Cernuschi

  • 1. SEIS SÉCULOS DE PINTURA CHINESA Coleção do Musée Cernuschi, Paris
  • 2. SEIS SÉCULOS DE PINTURA CHINESA – COLEÇÃO DO MUSÉE CERNUSCHI, PARIS2 Realização Apoio SEIS SÉCULOS DE PINTURA CHINESA Coleção do Musée Cernuschi, Paris
  • 3. SEIS SÉCULOS DE PINTURA CHINESA – COLEÇÃO DO MUSÉE CERNUSCHI, PARIS4 SUMÁRIO APRESENTAÇÃO A PINTURA CHINESA NO MUSÉE CERNUSCHI HENRI CERNUSCHI E A PINTURA CHINESA AS DEZ ETAPAS DE UMA “VIAGEM IMÓVEL” NA PINTURA CHINESA DINASTIA MING DINASTIA QING O MOVIMENTO EPIGRÁFICO E A RENOVAÇÃO DA PINTURA CHINESA VIAJANDO NO JAPÃO DESCOBRINDO O OESTE RENASCIMENTO DA PAISAGEM 9 11 15 19 31 47 61 75 93 103
  • 4. APRESENTAÇÃO É uma grande satisfação para a Pinacoteca do Estado de São Paulo apresentar a nossos visitantes a mostra Seis séculos de pintura chinesa no Musée Cernuschi, Paris que dá sequência a nosso programa de exposições temporárias com enfoque em momentos relevantes da história da arte mundial. A arte chinesa, e mais especificamente a pintura, ainda hoje é um tema pouquíssimo conhecido entre nós. Quase desconhecido, poderíamos até dizer. Pautada por uma concepção de mundo absolutamente diversa da ocidental, impregnada da noção de continuidade – em oposição a nosso entendimento, baseado na ruptura –, a arte chinesa demanda de seus apreciadores uma posição distinta. Disponibilizar a todos as ferramentas necessárias para a apreciação dessa arte é um dos objetivos deste catálogo. A exposição desse conjunto de pinturas na Pinacoteca do Estado também nos dá a oportunidade de nos aproximar de uma figura que, apesar de não estar incluída na tradicional história da arte no Brasil, viveu cerca de vinte anos no país e expôs em Bienais de São Paulo: Zhang Daqian. Ele chegou aqui em 1953, após uma passagem por Mendoza, na Argentina, e manteve residência no Brasil até 1972, quando se mudou para a Califórnia, nos Estados Unidos. Construiu em Mogi das Cruzes (SP) um refúgio, onde viveu e trabalhou, e que serviu de palco para o Jardim das oito virtudes [Bade yuan], hoje infelizmente desaparecido. Nesse local, havia um túmulo para seus pincéis usados e o artista criava animais tipicamente chineses, como o gibão. Algumas das obras aqui expostas foram executadas durante sua permanência no Brasil, e esta mostra nos dá oportunidade de vê-las no lugar onde foram produzidas. Esta publicação foi pensada para servir como um guia ampliado da exposição. Além de reproduções de obras, apresenta textos críticos sobre a história do Musée Cernuschi e seu fundador, uma introdução à pintura chinesa e comentários sobre as obras. Para atender o maior número possível de pessoas e nos alinhar com os novos formatos editoriais do mundo contemporâneo, experimentamos, pela primeira vez, o formato digital de publicação, que está disponível para download gratuito no site da Pinacoteca. A curadoria desta exposição coube a Éric Lefebvre, a quem gostaria de registrar nossos mais profundos agradecimentos pelo entusiasmo, pela dedicação e competência em todos os momentos, assim como a Christine Shimizu, diretora do Musée Cernuschi. Esta mostra não teria sido possível sem o apoio do Consulado Geral da França em São Paulo, nosso parceiro de longa data. Também gostaria de agradecer a todos que colaboraram direta ou indiretamente conosco na concretização deste projeto, que busca oferecer ao público a oportunidade de conhecer estas magníficas pinturas. Ivo Mesquita Diretor Técnico
  • 5. SEIS SÉCULOS DE PINTURA CHINESA – COLEÇÃO DO MUSÉE CERNUSCHI, PARIS8 O reduzido número de pinturas chinesas e japonesas que constam do primeiro inventário do Musée Cernuschi confirma a preferência de seu fundador pelo bronze e pela cerâmica. No entanto, os raros documentos visuais que mostram as salas do museu em 1898 indicam que as pinturas tinham um papel mais importante na mostra das coleções asiáticas de Henri Cernuschi (1821-1896) do que se supunha por seu número. A análise das pinturas chinesas revela um interesse singular pela pintura a dedo, interesse ilustrado por obras monumentais assinadas pelos maiores mestres dessa técnica, entre eles Gao Qipei (1672-1734). Esses dois aspectos são característicos das primeiras gerações de colecionadores europeus de pintura chinesa. De fato, o interesse espontâneo pela pintura de personagem precede a descoberta da paisagem, sobre a qual deviam se concentrar as pesquisas de vários historiadores ocidentais no século XX. No entanto, a originalidade do processo e o caráter virtuoso das pinturas a dedo impressionaram por muito tempo os apreciadores franceses. Assim, as obras de Fu Wen (ativo de 1744 a 1765), um dos seguidores mais importantes de Gao Qipei, de quem Henri Cernuschi adquirira duas pinturas entre 1871 e 1873, figuravam muito bem tanto na exposição organizada a partir do acervo reunido por Paul Pelliot (1878-1945), no Louvre, em 1904,1 quanto na do Musée Cernuschi, em 1912. Aos olhos dos melhores especialistas do início do século XX, parecia impossível apresentar a pintura chinesa a um público leigo sem mencionar exemplos da técnica a dedo, ainda que se assumisse uma posição contrária a essas pinturas, como Raphaël Petrucci (1872-1907), que as considerava “virtuosidades inúteis, que afastam do domínio da arte”.2 O comentário desse crítico de arte indica o modo como o desenvolvimento dos conhecimentos sobre a pintura chinesa desviaria, progressivamente, os apreciadores da pintura a dedo tão estimada por Cernuschi.3 Entretanto, é importante observar que Henri Cernuschi adquirira diferentes exemplares do manual de pintura Jiezi yuan huachuan, do qual ele havia pressentido um interesse documental, mais de trinta anos antes de Petrucci se dedicar A PINTURA CHINESA NO MUSÉE CERNUSCHI 1. Chavannes, 1904, p. 322. 2. Chavannes e Petrucci, 1914, p. 60. 3. A pintura a dedo iria passar por um longo período de esquecimento, até que a grande exposição dedicada a Gao Qipei pelo Rijksmuseum de Amsterdã, em 1992, devolvesse-lhe a atenção (Ruitenbeek 1992).
  • 6. SEIS SÉCULOS DE PINTURA CHINESA – COLEÇÃO DO MUSÉE CERNUSCHI, PARISSEIS SÉCULOS DE PINTURA CHINESA – COLEÇÃO DO MUSÉE CERNUSCHI, PARIS 1110 ao estudo da obra principal, que ele traduzia pelo título Enseignementes de la peinture du jardin grand comme un grain de moutarde. Encyclopédie de la peinture chinoise. Com Édouard Chavannes (1865-1918), Petrucci seria um dos principais artífices da primeira exposição de pintura chinesa do Musée Cernuschi, organizada pelo curador Henri d’Ardenne de Tizac (1877-1932),4 em 1912. Essa mostra, que compreendia 144 pinturas, era composta exclusivamente de empréstimos concedidos pelos principais colecionadores e negociantes. A exposição, que reunia as obras por gênero e assunto, pretendia contribuir para o estudo histórico dessas pinturas, designando-lhes datas e autoria. A publicação de um catálogo ilustrado, incluindo a transcrição e a tradução das inscrições das pinturas, testemunha a ambição científica desse projeto. A exposição, que reunia os intelectuais e os colecionadores mais importantes da época, não foi, no entanto, imediatamente seguida de aquisições. Em uma carta datada de setembro de 1912, Henri d’Ardenne de Tizac, ao evocar o gosto de Victor Segalen (1878-1919) pela pintura chinesa, exclamou: “Que bom que ele consegue descobrir coisas belas! Há alguns meses, o que chega a Paris é muito fraco. Contudo, recebi do sr. Freer, que certamente é o maior colecionador americano, as fotografias de algumas peças que lhe pertencem: elas me fizeram mergulhar nas profundezas da felicidade”. Realmente, o curador do Musée Cernuschi precisou esperar até 1920 para finalmente adquirir a primeira pintura chinesa que correspondesse às expectativas formuladas naquela carta. A chegada de uma pintura representando um falcão, tema este que constituía uma das partes da exposição de 1912, pode, realmente, ser considerada o resultado de pesquisas realizadas nos tempos de sua colaboração com Chavannes e Petrucci. Essa aquisição deveria ficar isolada. A morte desses dois intelectuais e as difíceis condições do período entreguerras impediram qualquer nova exposição de uma envergadura como a de 1912. O interesse de D’Ardenne de Tizac pela pintura chinesa,5 somado à sua fascinação pela China antiga, orientou-o para a coleta e o estudo dos relevos impressos sobre papel, sobretudo das séries provenientes do monumento funerário Wu Liang ci. Na época da primeira exposição de pintura chinesa, Henri d’Ardenne de Tizac queria que as obras dos pintores da China antiga inspirassem a criação contemporânea: Há quarenta anos, a arte japonesa veio renovar nossa arte decorativa. Não poderia a arte chinesa também desempenhar esse papel? Conheço jovens pintores que ficam um pouco irritados quando exaltamos as obras do passado, e que frequentam mais as galerias da Madeleine do que as salas do Louvre. Surpreendi-os sonhando diante de Ma-Lin [Ma Lin] e de Tchao-mong-fou [Zhao Mengfu]. Seria um sinal dos tempos? Paradoxalmente, foi a chegada a Paris dos artistas chineses que vieram se formar no Ocidente que favoreceu a aproximação entre o Musée Cernuschi e a criação contemporânea. É conhecido o importante papel que Xu Beihong (1895-1953) exerceu na organização da exposição de pintura chinesa apresentada no museu Jeu de Paume, em Paris, em 1933. Esse evento foi um precedente notável para a exposição de pinturas chinesas contemporâneas que ocorreu no Musée Cernuschi em 1946. Organizada por Vadime Elisseeff (1918-2002), sob o patronato de René Grousset (1885-1952), a exposição de 1946 reuniu mais de uma centena de obras representando diversas tendências da pintura e da escultura contemporâneas. Paralelamente às composições dos pintores ativos na China, estavam as obras dos membros da associação dos artistas chineses na França. Para compreender a origem dessa exposição, é importante lembrar os laços estabelecidos por Elisseeff com o meio artístico chinês durante os anos da 2ª Guerra, assim como o papel dos artistas chineses de Paris que, reunidos em torno de personalidades como Zhou Lin ou Pan Yuliang (1895-1977), formavam uma rede muito dinâmica. Diferentemente da exposição de 1912, a de 1946 foi o ponto de partida de uma política de aquisição e de exposição que vincularia, por muito tempo, o Musée Cernuschi à aventura da pintura chinesa contemporânea. Cerca de cinquenta obras apresentadas em 1946 provinham da coleção de Guo Youshou (1900-1978), que, a partir de 1953, seria o cerne da coleção de pinturas modernas e contemporâneas do Musée Cernuschi. Guo Youshou, que estudara na Europa nos anos 1920, havia tecido desde essa época laços de amizade com os artistas chineses de Paris, como Sanyu [Chang Yu] (1901-1966) e Xu Beihong (1895-1953). Tendo obtido seu doutorado, ele retornou à China, onde seguiu carreira na área de administração, sendo responsável, sobretudo, pela educação pública da província de Sichuan durante os anos da guerra. Foi nessa época que ele teria acumulado maior parte de sua coleção, como o atestam numerosos colofões e dedicatórias registradas nas obras pelos artistas. Essa coleção ainda foi enriquecida ao longo das missões que ele cumpriu na China em 1947 e 1948 a serviço da Unesco, onde ocupava o cargo de diretor da seção educativa. Após a doação inicial de 76 pinturas em 1953, Guo Youshou continuou sendo amigo do museu, colaborando ativamente na organização de importantes eventos, como as exposições dedicadas a Zhang Dagian (1899-1983), em 1956 e 1961.6 Ao longo da segunda metade do século XX, não menos do que vinte exposições de pintura chinesa foram organizadas no Musée Cernuschi, das 4. Curador do Musée Cernuschi de 1905 a 1932. 5. Um interesse que se manifesta tanto por suas traduções como pelas obras de sua coleção pessoal. 6. Em 1956, no Museu de Arte Moderna e no Musée Cernuschi. Em 1961, no Musée Cernuschi.
  • 7. SEIS SÉCULOS DE PINTURA CHINESA – COLEÇÃO DO MUSÉE CERNUSCHI, PARIS12 quais dois terços foram dedicadas à obra de artistas contemporâneos. Algumas tendências decorrem dessas numerosas mostras, como a atenção para o trabalho com a tinta, ou o lugar cedido às artistas mulheres.7 Entre esses eventos, alguns conquistaram um interesse histórico, como a exposição Lin Fon-Min [Lin Fengmian], peintre chinois contemporain [Lin Fon-Min, pintor chinês contemporâneo], em 1979, a primeira dedicada ao artista por um museu estrangeiro após sua partida da China; ou Wu Guanzhong: peintre chinois de notre temps [Wu Guanzhong: pintor chinês de nosso tempo], em 1993, que partilhava do reconhecimento internacional do mestre. Ao mesmo tempo, os laços estabelecidos com os artistas levariam o museu a recolher numerosas doações: assim, a grande exposição das pinturas contemporâneas do acervo do museu organizada em 1985 por Marie-Thérèse Bobot, curadora do Musée Cernuschi, não contava menos do que oitenta obras introduzidas na coleção, graças à generosidade de seus criadores. Os pintores chineses, estivessem produzindo quer na França, quer na China, continuaram, desde então, a acompanhar o Musée Cernuschi, como indicam as doações simultâneas de Chu Teh-chun [Zhu Dequn] (1920) e de Wu Guanzhong (1919-2010), em 1993. A partir dos anos 1990, a restauração das pinturas chinesas se tornou uma das prioridades do museu. De fato, ao longo dos anos, as pinturas chinesas haviam sofrido efeitos de uma exposição prolongada. A multiplicação das trocas culturais com a China desde os anos 1980 permitiu desenvolver no Ocidente os conhecimentos nas áreas da restauração e da montagem tradicional chinesas. Desdeentão,foipossívelpensarumalongacampanhaderestauração.Paralelamente às obras dos grandes mestres do século XX, esse trabalho levaria à reavaliação das pinturas antigas conservadas no museu, entre as quais se encontravam algumas obras de grande importância, como a grande composição representando a Academia Hanlin [Hànlín Yuàn], adquirida pela Sociedade dos Amigos do Musée Cernuschi em 1975. Então, parecia pertinente estender as aquisições para as pinturas chinesas antigas, uma política iniciada com a compra da antiga coleção Reubi, o que não poderia ser concluída sem a ajuda do círculo dos especialistas de Cernuschi. Os leques Ming e as folhas de álbum Qing, outrora reunidos por Jean- Pierre Dubosc (1904-1988) e François Reubi (1917-1997), permitem apresentar pela primeira vez aos visitantes as pinturas antigas e modernas do Musée Cernuschi em um percurso que evoca seis séculos de pintura chinesa. HENRI CERNUSCHI E A PINTURA CHINESA Durante sua viagem ao Oriente de 1871 a 1873, na companhia de Théodore Duret (1838-1927), Henri Cernuschi adquiriu quase 5 mil objetos de arte que comporiam a base das coleções do futuro Musée Cernuschi. Entre essas obras, os bronzes chineses e japoneses, majoritários em número, despertaram a admiração dos críticos na época da exibição temporária organizada em 1873 no Palais de l’Industrie.1 Após a abertura do museu ao público, em 1898, os bronzes antigos prevaleceram em uma coleção focada na descoberta dos “momentos áureos da arte chinesa”. Já as pinturas asiáticas, estas deveriam conhecer um outro destino. Provavelmente penduradas nos salões do primeiro andar da mansão da avenida Velásquez, enquanto Cernuschi estava vivo, elas sem dúvida foram vítimas dessa exposição prolongada, mesmo que tenham sido retiradas do local e guardadas nos primeiros anos seguintes à criação do museu. “Em 1912, durante a primeira exposição de pintura chinesa, uma obra de Fu Wen foi objeto de empréstimo, enquanto duas de suas pinturas adquiridas por Henri Cernuschi eram conservadas no museu. Isso leva a pensar que, a partir dessa época, a montagem das obras não permitia mais pendurá-las.” Se o conjunto formado por essas pinturas é modesto na quantidade, em contrapartida ele é extremamente coerente. Apresenta a particularidade de privilegiar a figura humana a ponto de não contar com nenhuma pintura de paisagem. Esse gênero, que exerceria influência decisiva sobre a recepção da pintura chinesa no Ocidente, não conquistou o interesse de Henri Cernuschi. À exceção de algumas pinturas de flores e de pássaros, a grande maioria das obras representa personagens: imortais taoistas e santos do budismo, lindas mulheres e caçadores de demônios. Paralelamente às imagens de divindades e às ilustrações populares, sempre anônimas, encontra-se certo número de pinturas assinadas por grandes nomes ou por pequenos mestres. A preocupação em compor séries iconográficas ou formais parece ter regido as escolhas de Henri Cernuschi. Assim, entre os diferentes temas ilustrados pelas pinturas da coleção, a figura de Zhong Kui impõe-se de modo incontornável. A imagem do caçador de demônios transcende os registros da pintura popular e da pintura erudita. Mesmo aparecendo em algumas páginas de álbum da Dinastia 7. Sobretudo Zeng Youhe (1924), Ling Shuhua (1904-1990), Pan Yuliang, Fang Junbi (1898-1986), Xiao Shufang (1911). 1. Maucuer, 1998, p. 35-37.
  • 8. SEIS SÉCULOS DE PINTURA CHINESA – COLEÇÃO DO MUSÉE CERNUSCHI, PARISSEIS SÉCULOS DE PINTURA CHINESA – COLEÇÃO DO MUSÉE CERNUSCHI, PARIS 1514 Ming, suas representações mais surpreendentes são grandes rolos verticais datados da Dinastia Qing. Essas impressionantes figuras em pé, executadas sempre de modo despojado, têm qualidades expressivas muito particulares. De fato, elas apresentam grande diversidade de fisionomias: assustadoras, truculentas ou grotescas. A associação dessas imagens com as festas de ano- -novo de Duanwu atestam o caráter profilático das figuras. Sabemos que Henri Cernuschi e seu companheiro de viagem, Théodore Duret, nada sabiam sobre as línguas chinesas. A coleção de livros ilustrados trazidos da China por Henri Cernuschi demonstra, contudo, a vontade de reunir uma documentação relativa aos objetos que estava adquirindo. Assim, a biblioteca de Henri Cernuschi tinha várias edições do tratado de pintura Jiezi yuan huachuan [O jardim tão grande quanto um grão de mostarda]. Diferentemente dos catálogos dedicados aos bronzes, essa obra, destinada ao ensino da pintura, convida o leitor a se colocar na perspectiva do criador. O manual, dividido por gênero e tema, aborda sobretudo as questões de técnica pictórica. Tal interesse pela prática da pintura na China influenciou as escolhas do colecionador. Paralelamente às pinturas executadas com pincel, Henri Cernuschi era apaixonado também pela técnica chinesa da pintura a dedo, que ainda existia na época de sua viagem. No entanto, seus principais representantes viveram no século anterior. Gao Qipei, que deu ao gênero da pintura a dedo seu toque de nobreza, está representado por uma vasta composição, síntese monumental dos diferentes aspectos de sua técnica. As pinturas de Li Shizhuo e de Fu Wen ilustram a continuação dessa tradição entre os chineses integrados às bandeiras manchus. Por fim, o modo como Su Liupeng soube adaptar essa técnica para a criação de cenas da vida do povo atesta sua popularidade no século XIX. As pinturas a dedo reunidas por Henri Cernuschi permitem retraçar os principais momentos da história dessa técnica, que foi apreciada na corte chinesa antes de ser adotada pelos meios mais populares. Assim, a coleção de Cernuschi, aparentemente composta em função de princípios iconográficos, também pode ser considerada de um ponto de vista histórico. Se adotarmos essa perspectiva, perceberemos que os nomes dos pintores que ele reuniu evocam algumas das mais importantes etapas da evolução da pintura de personagens. Esses elementos nos convidam a considerar o método de Cernuschi menos como o de um viajante colecionando imagens que refletem seu percurso no Oriente, do que como o de um apreciador de pintura ocidental procurando compreender uma arte desconhecida segundo uma lógica pictórica.
  • 9. SEIS SÉCULOS DE PINTURA CHINESA – COLEÇÃO DO MUSÉE CERNUSCHI, PARIS16 É sempre intrigante observar a multidão de chineses que visita os museus oci- dentais: por dia, quantos deles veem a Mona Lisa? Os museus chineses não são tão frequentados assim. No entanto, por muito tempo, fiquei admirado de não encontrar nenhuma dificuldade em acessar a vitrine da Primavera precoce (uma das obras-primas mais importantes da coleção do Museu do Palácio) em Taipei. Disso, deduzimos que o público – ocidental, naturalmente, mas também chinês – está bem menos preparado para olhar uma pintura chinesa do que uma europeia, mas também que se trata de um tipo de arte talvez menos adaptada à contemplação “de massa”. As pinturas europeias foram feitas para “educar as multidões”, atraí-las em dire- ção à imagem: as cores radiantes convidam o olhar dos menos iniciados, o realis- mo das posturas garante a essas telas a admiração de todos, e a composição exe- cutada pelo pintor obedece às leis da ótica para que o espectador possa ver tudo num piscar de olhos. A pintura chinesa não foi pensada como um espetáculo; normalmente, ela necessita de outra aproximação. Mais intimista – mais próxima do desenho –, ela não é menos rica de maravilhas, e a intenção deste artigo é fornecer ao leitor algumas ferramentas que lhe permitirão melhor contemplá-las. 1. Os formatos As pinturas colecionadas pelos apreciadores chineses (que é preciso diferenciar das pinturas rituais) devem ocasionalmente sair de suas caixas para serem apre- sentadas a alguns estetas. O apreciador, que não é um espectador, mas que pretende descobrir uma obra, deve ir em sua direção de modo ativo e entrar em uma paisagem às vezes sombria e a princípio pouco legível. AS DEZ ETAPAS DE UMA “VIAGEM IMÓVEL” NA PINTURA CHINESA Cédric Laurent, Université de Haute-Bretagne-(Rennes II).
  • 10. SEIS SÉCULOS DE PINTURA CHINESA – COLEÇÃO DO MUSÉE CERNUSCHI, PARISSEIS SÉCULOS DE PINTURA CHINESA – COLEÇÃO DO MUSÉE CERNUSCHI, PARIS 1918 As pinturas são montadas em rolos horizontais (juan, huajuan), verticais (zhou, lizhou) ou em álbum (ce, huace; antigamente também em biombos ou em le- ques). A armação de seda responde a uma estética de sobriedade, mas também a preocupações de conservação: o enrolamento protege da poeira e da luz. Se por um lado o colecionador suspende com frequência os rolos verticais para explorar livremente seu interior, por outro, ele raramente desenrola os rolos horizontais, sobre uma mesa, seção por seção, sozinho ou acompanhado de dois ou três cui- dadosos apreciadores. Os álbuns também são objetos de coleção que costumam ser organizados com os livros na biblioteca dos letrados. 2. O percurso visual Somente a folha de álbum (geralmente similar a um formato A4), mais compatível com o campo de visão, possibilita olhar a pintura instantaneamente. Os rolos horizontais não permitem que isso aconteça; de modo geral, eles compõem uma dezena de metros de comprimento e são desenrolados progressivamente, cena por cena. Assim, o pintor os concebe como uma sucessão de pontos de vista ritmados por elementos de paisagem ou de arquitetura, que permitem marcar as pausas ao serem desenrolados. A verticalidade dos rolos zhou faz que eles nor- malmente sejam olhados a partir de três pontos de vista contínuos, de baixo para cima. Para sustentar esse movimento, o pintor organiza três diferentes perspecti- vas: uma vista um pouco inclinada para a parte baixa, uma vista frontal ao centro e uma vista contrária, inclinada para a terceira parte alta. Assim, o apreciador da pintura é ativo, e pode deslocar seu olhar para a superfície do rolo (2009, cat. 22: Xu Zhang-cat. 40: Yao Hua). É bastante comum que as paisagens sejam habitadas por personagens que intro- duzem uma temporalidade: o suposto deslocamento dos personagens sustenta o movimento do olhar e introduz essa temporalidade na obra. O apreciador deve se aproximar da pintura, encontrar uma brecha nos bosques, tomar um caminho e atravessar um ponto para alcançar quem espera por ele ao pé de uma árvore. Ali, o ponto de chegada é desvendado entre as nuvens e, do alto, um extraordinário panorama se oferece a nós que, de observadores, nos tornamos andarilhos. A crítica clássica chinesa considera essas paisagens “viagens imóveis” (woyou). Uma pintura não é uma janela que deveria se abrir sobre uma paisagem respondendo às leis da perspectiva centrada; é o percurso visual que introduz a profundidade. 3. A montanha e a paisagem Quando se diz paisagem, se diz montanha. Na China antiga, a montanha era considerada o local de residência dos imortais e dos espíritos. Ir até ela corres- pondia a uma experiência metafísica. Local de retiro e de austeridade, ela atraía os ermitões taoistas, que aproveitavam a concentração de forças terrestres, e os monges budistas, que viam ali o “deserto” necessário ao exercício do desapego. A montanha passou a ser o local de todas as buscas: procura pela imortalidade, visitas aos sábios, peregrinação e colheita de plantas medicinais. Desse modo, a natureza foi sendo domesticada. As brumas dos picos eram cravadas por edi- fícios, e as florestas atravessadas por estradas. Os andarilhos iam e vinham em busca de lugares célebres: uma velha árvore de formas estranhas, uma falésia gravada com caligrafia, o lugar de retiro de um poeta... Para o pintor-poeta, a montanha se tornou o local de um isolamento espiritual e de prazer do espírito. Se suas pinturas são “viagens imóveis” que narram cami- nhadas, também são a ocasião de comentar acontecimentos recentes e, claro, de se entregar a maravilhosos exercícios estéticos. A montanha também se reveste de um valor moral para os seguidores de Con- fúcio: “O homem inteligente se satisfaz com a água, o homem bondoso, com a montanha; a um o movimento, ao outro, o descanso. O homem inteligente vive feliz, o homem bondoso vive por muito tempo” (Lunyu, VI 21). Assim, a montanha é símbolo de longevidade ou imagem da estabilidade moral de um homem. Era comum oferecer essas pinturas para cumprimentar uma pessoa, sobretudo em ocasiões de aniversário. A paisagem, pouco fiel à realidade, é toda composta de símbolos e não é inco- mum que aquilo que percebemos como simples paisagens sejam, na verdade, representações de paraísos de imortalidade ou cenas procedentes de literatura da história. Árvores floridas enquadram uma gruta, uma embarcação leve está presa à mar- gem: é A fonte com flores de pessegueiro, célebre texto de Tao Yuanming (372- 427). Em uma paisagem de outono, uma tocadora de alaúde está sentada em um barco: é O passeio do Pipa, de Bai Juyi (772-846). Vários personagens estão sentados à beira de um riacho sinuoso onde taças flutuam: é O pavilhão das orquídeas, de Wang Xizhi (312-379) (cf. il. 2009, cat. 11 e 12)...
  • 11. SEIS SÉCULOS DE PINTURA CHINESA – COLEÇÃO DO MUSÉE CERNUSCHI, PARISSEIS SÉCULOS DE PINTURA CHINESA – COLEÇÃO DO MUSÉE CERNUSCHI, PARIS 2120 Os letrados a quem as pinturas eram destinadas se tratavam de poetas que des- de a infância viviam debruçados sobre os livros e, para atender aos seus gostos, era comum que os pintores incrementassem suas composições com alusões lite- rárias que hoje são difíceis de decifrar. 4. Do “vermelho e verde” ao preto e branco Na China, a pintura clássica ganhou fôlego no início da dinastia Tang (618-907), com grandes composições coloridas ilustrando temas históricos. As cores vivas eram essenciais para a própria concepção da pintura, às vezes designada pela expressão “vermelho e verde” (danqing). Sobre a seda preparada, eram aplicadas várias camadas finas de pigmento de malaquita para representar as montanhas e escarlate para representar a arquitetura. A técnica era complexa, o trabalho longo, e o resultado deslumbrante. Entretanto, um dos pintores-letrados mais famosos do período, Wang Wei (699-759), fez uma pergunta fundamental para o desenvolvimento da arte pictórica: não seriam a tinta e as variações de cinza capazes de representar a variedade das cores (Yun mo er wu cai ju)? Não que os letrados tenham simplesmente rejeitado as cores, mas eles valorizaram uma arte tecnicamente menos reprimida, mais sóbria. A tinta, por meio do processo de diluição, possibilita uma infinita variedade de nuances que são suficientes para evocar as cores do mundo. Esse interesse pela monocromia, no entanto, não levava ao abandono da cor. No início da dinastia Ming (1368-1644), pintores da Escola de Zhe produziam grandes paisagens realçadas com aguadas levemente coloridas, formando um panorama de cenas históricas destinadas à exortação moral da corte (2009, cat. 4 e 5). Além disso, as paisagens chamadas “azul e verde” (qinglü shanshui), que num primeiro momento continuaram sendo realizadas na corte, se tornariam um tema predominante da arte de Suzhou (Escola de Wu) no século XV. É preciso dizer que, no contexto artístico dessa época, muito marcado pela monocromia (cf. 2009, cat. 3), o uso da cor na arte letrada reformularia profundamente a pintura. Essas paisagens com atmosferas radiantes, passando da cor turquesa ao ocre, reintroduziram, na pintura letrada, técnicas complexas de aplicação das cores em “três camadas de alume e nove de pigmentos” (san fan jiu ceng). 5. A tinta e o pincel As pinturas chinesas mais antigas foram elaboradas sobre seda, porém, a partir do século XI, o uso do papel, normalmente menos dispendioso do que a seda, difundiu-se com muita rapidez. Suas qualidades de absorção e a diversidade de texturas interessaram os pintores porque permitiam valorizar o trabalho do pincel e as variações da tinta (2009, cat. 44: Qi Baishi). Além disso, o traço, derivado da arte caligráfica, portanto próprio aos letrados, ganhou importância em obras monocromáticas. Os letrados pintavam com instrumentos de seus escritórios – pincel, papel e tinta –, os quais dominavam com muita naturalidade, assim como Da Vinci dominava a pena com que desenhava. O pincel estava de tal forma domesticado que passou a ser considerado não somente um prolongamento da mão, mas a expressão do coração. Ele era capaz de transmitir as emoções diretamente, e é por isso que uma atmosfera específica, um certo tipo de alma, habita a pintura. Ao se concentrar nas técnicas de tinta e de pincel, o pintor deslocou o olhar do apreciador de arte. Este, que normalmente também praticava a pintura, passou a sentir a pressão do pincel sobre o papel, as hesitações ou a energia de uma curva. Avaliou sobretudo o traço: os contornos das formas, a linha dos galhos vegetais, a tensão das varas de bambu, a leveza das folhas de uma orquídea (2009, cat. 14), e observou a apresentação das matérias, o pincel seco que parece arranhar a superfície do papel sobre os contornos de uma rocha, a tinta efêmera da umida- de das brumas (ver também 2009, cat. 20). 6. Transmissão e aplicação dos antigos estilos Uma das missões dos letrados consistia em transmitir, em primeiro lugar, os clás- sicos, dedicando-se a um trabalho de cópia dos textos. Era preciso copiar para conservar o espírito dos Antigos. A aprendizagem da pintura, baseada na da caligrafia, também passava por uma cópia. Era bem tarde, quando já estivesse introduzido na sociedade, que um mestre era escolhido para ser primeiramente iniciado na arte antiga e, em seguida, orientado a encontrar seu próprio estilo. O mestre instruía seus discípulos, e estes permaneciam a seu lado até sua morte. Dessas relações nasceram redes, genealogias e escolas. Normalmente, os pinto-
  • 12. SEIS SÉCULOS DE PINTURA CHINESA – COLEÇÃO DO MUSÉE CERNUSCHI, PARISSEIS SÉCULOS DE PINTURA CHINESA – COLEÇÃO DO MUSÉE CERNUSCHI, PARIS 2322 res dominavam uma vasta palheta de estilos e os utilizavam como se costumava fazer em literatura, por meio de citações e às vezes até mesmo de pastiches. Assim, não devemos nos assustar ao encontrar, no início do período Ming (sécu- lo XIV), um retorno ao estilo do período Song (século XI), método que também permitia afirmar uma continuidade política. Paradoxalmente, as pesquisas estilísticas e a referência aos velhos mestres às vezes impulsionaram uma grande fase criativa, sobretudo no trabalho de alguns pintores do final da dinastia Ming, como Chen Hongshou (1598-1652). A estra- nheza dos personagens e a simplificação das formas remetem à ideia de arcaís- mo (guguai), em uma livre interpretação (ver também 2009, p. 78 e cat. 37: Su Liupeng). A citação estilística torna-se a via pela qual a arte da paisagem se afirmará como pintura erudita, concentrada no emparelhamento das formas e na composição no espaço. Enquanto os pintores de Wu, no século XV, privilegiavam a represen- tação de caminhadas ou de reuniões de letrados, os paisagistas do século XVII, mais austeros, excluíram quase sistematicamente os personagens (2009, cat. 19). O mais célebre deles, Dong Qichang (1555-1636) (2009, cat. 15), reivindicando-se herdeiro da Escola de Wu, rejeitava completamente a particularidade histórica e fazia da paisagem uma pintura essencialmente dedicada à citação de estilo. Desse modo, as escolhas estilísticas ditas “letradas” garantiam à paisagem sua nobreza e elegância (wenya). Essa concepção logo culminou em um formalismo que seria útil aos profissionais: graças ao domínio do estilo de certos mestres, eles, a partir de então, conferiam às suas produções uma elegância da qual sua clientela podia finalmente se apropriar. 7. Letrados e profissionais A pintura já havia se emancipado quando mestres do início da dinastia Song criaram grandes obras que se tornariam modelos clássicos. Porém, algumas mu- tações sociais ainda provocariam mudanças no mundo pictórico. Era a primeira vez, certamente, que os letrados conquistavam a posição mais importante na administração: graças a um sistema de exames, os detentores do saber literário podiam assumir cargos públicos. Novos desafios se apresentaram então para esses letrados que praticavam a arte como apreciadores: como demarcar a arte de uma elite que não é mais dife- renciada pelo nascimento, mas por seu nível de cultura? Ao considerar a pintura como uma arte “poética” – o conteúdo cultural e o poder evocatório da obra foram comparados à poesia, que era então predominante –, o pintor não poderia ser nada além de um letrado, um homem que, de acordo com o ideal confuciano, era funcionário e, por esse mesmo motivo, estava protegido da necessidade. A arte “nobre” passa a ser considerada desinteressada e sincera, ao contrário de uma arte de corte que depende de encomendas. A pintura se torna indissociável das “artes letradas”, a partir de então referência em matéria de elegância. Assim, a arte de encomenda iria de tal forma se inspirar nessa referência que a oposição pintura letrada versus pintura profissional só iria se manifestar, com mais frequência, na teoria. Entretanto, a distinção é real quando se trata de sua formação. Os profissionais, pintores da corte ou de ateli- ês privados, eram geralmente considerados artesãos. Eles começaram a aprender muito jovens e trabalhavam em obras coletivas de acordo com suas especialida- des: um com as árvores, outro com a arquitetura, os mais habilidosos pintavam rostos ou composições florais. Dito isso, alguns letrados também eram assistidos por discípulos e chegavam a formar verdadeiros ateliês para atender às neces- sidades de suas redes, pois se por um lado eles não necessariamente vendiam, as pinturas serviam de objeto de troca e de presentes destinados a uma notável clientela (no sentido medieval do termo). 8. Excêntricos e mercado de arte Durante a dinastia Qing (1644-1911), alguns pintores se distanciaram claramente da ortodoxia encarnada na obra dos “Quatro Wang”, concentrada sobretudo na citação estilística e no arranjo dos elementos da paisagem. Com traços largos e aguadas contrastadas, Zhu Da (dito Bada Shanren, 1626-1705) e Shitao (1642- 1707) reivindicam mais uma expressão pessoal do que a marca dos antigos mes- tres. Por meio de sua pintura, Shitao se apresentava como um letrado íntegro, imagem à qual sua clientela (aqui, no sentido comercial) era sensível. A arte dita “letrada” foi objeto de um mercado muito desenvolvido. A perso- nalidade de Shitao inspirou os “Oito excêntricos de Yangzhou” e, na primeira
  • 13. SEIS SÉCULOS DE PINTURA CHINESA – COLEÇÃO DO MUSÉE CERNUSCHI, PARISSEIS SÉCULOS DE PINTURA CHINESA – COLEÇÃO DO MUSÉE CERNUSCHI, PARIS 2524 metade do século XVIII, a originalidade teve um enorme sucesso. Um grande número daqueles que hoje são chamados “excêntricos” defendiam, na verdade, uma originalidade convencional. A característica mais surpreendente da pintura Qing reside na diversidade das escolas e dos centros de produção, e nosso co- nhecimento sobre ela é apenas fragmentário. Nessa época, Yangzhou era o centro artístico mais importante, e seus pintores pro- fissionais vendiam em toda a China. Os grandes comerciantes da província de Anhui apoiavam seus pintores e viram nascer mestres muito importantes, como Mei Qing (1623-1697). Suzhou e Hangzhou continuavam sendo centros muito ativos em que pintores como Qian Du (1763-1844) (cf. 2009, cat. 33, 34, 35) retomavam a tradi- ção clássica. Finalmente, Nanjing e Guangzhou privilegiavam uma tradição original. Todos os centros artísticos se alimentavam de um movimento constante entre as fortalecidas tradições locais e a ortodoxia patrocinada pela corte. 9. Modernidade e tradição No começo do século XVII, a China se mostrou receptiva às contribuições oci- dentais. Na corte, isso se caracterizou pelo uso da perspectiva linear (cf. 2009, cat. 23: Jin Kun) e por um novo sentido da cor. Naturalmente, o trabalho com a cor teve importantes repercussões na pintura de flores – principalmente na obra de Zou Yigui (1686-1772) –, em que as pétalas e as folhas são, a partir de então, apresentadas diretamente por uma aguada colorida, sem contornos prévios de tinta. Essa discreta revolução também teria implicações no que se refere à paisa- gem: Wang Yuanqi (1642-1715) usa diretamente as pinceladas coloridas no topo das árvores e mistura as pedras com cores de meia tonalidade, muito diferentes dos pigmentos antes utilizados. Nesse contexto, e certamente com o estímulo das gravuras ocidentais que circu- lavam tanto em Tianjin quanto em Xangai, em Guangzhou ou em Fujian, o novo uso da cor também se impôs fora da corte, sobretudo nos antigos centros artís- ticos da província de Jiangnan – por exemplo na obra de Fang Xun (1737-1799). Assim, o século XIX foi marcado por um deslocamento dos centros de interesse; a arte de paisagem não ocupava mais o lugar dominante que ocupara até então, e ambiciosas composições florais foram realizadas. As cores brilhantes eram tra- balhadas como os antigos mestres manejavam a tinta (2009, cat. 41: Yao Hua). A obra da Escola de Xangai constitui uma formidável renovação da arte pictórica na China, assim como no domínio da pintura de personagens. Os temas tradi- cionais foram então apresentados em novos formatos, em que os personagens ocupavam a parte principal do espaço, e novos temas apareceram na pintura letrada: os heróis dos romances e do teatro. Assim, no que se refere à pintura de paisagem, o século XIX representa uma pausa antes das grandes realizações do século XX, sobretudo nas experiências de Zhang Daqian (1899-1983), que utilizará o azul e verde sobre grandes blocos de tinta. Também irão aparecer as densas paisagens de Huang Binhong (1865-1955) em que a tinta encarna em uma nova matéria (2009, cat. 47). 10. Redefinição na arte internacional Em contrapartida à abertura da China para a pintura europeia, ocidentais pas- saram a se interessar pela expressividade do pincel chinês. O traçado vigoroso de Qi Baishi (1864-1957) (2009, cat. 43-44) algumas vezes assumiu o posto de embaixador da arte chinesa durante a reconstrução da República da China (1911). Impressionados com as consecutivas derrotas da China para a Europa (Guerras do Ópio, Saque a Pequim), os intelectuais chineses partiram em busca de uma nova cultura chinesa (Xin wenhua yundong, Movimento de 4 de Maio de 1919), melhor inserida no mundo e detentora da força tecnológica ocidental. Todos os aspectos da educação, da língua, da arte foram novamente questionados pelos maiores intelectuais que partiram para a Europa, para a América ou para o Japão, a fim de apreender os conceitos ocidentais. Lin Fengmian (1900-1991) e Xu Beihong (1895-1953) (2009, cat. 79), que viveram na França, são os exemplos mais representativos deles. Fundadores das novas insti- tuições que até hoje formam os artistas chineses, eles redefiniram a arte chinesa no contexto mundial. Lin Fengmian desempenhou um papel crucial de pedagogo, ilustrando alternadamente as novas correntes pictóricas ocidentais (cubismo, im- pressionismo, fauvismo) por meio de técnicas da pintura a partir de então chama- da de “tradicional” – ou “pintura nacional” (guohua) (2009, cat. 82-1).
  • 14. SEIS SÉCULOS DE PINTURA CHINESA – COLEÇÃO DO MUSÉE CERNUSCHI, PARISSEIS SÉCULOS DE PINTURA CHINESA – COLEÇÃO DO MUSÉE CERNUSCHI, PARIS 2726 É nesse contexto iconoclasta que se deve compreender a obra de Zhang Da- qian ilustrando os grandes temas da pintura tradicional (2009, cat. 62; 58) ou explorando a então esquecida arte rupestre da dinastia Tang (618-907) (2009, p. 161: Dame Li). Fu Baoshi (1904-1965), utilizando a tinta com uma nova técnica, a partir de conhecimentos de trabalhos contemporâneos japoneses (2009, cat. 67), interessava-se em refazer os temas da arte clássica (2009, cat. 69) e em mostrar as grandes figuras da cultura chinesa (2009, cat. 70). Graças a essa nova definição da “pintura tradicional”, a China manifestou afeição à sua própria identidade e se preparou para a mundialização, possibilitando que sua cultura atravessasse vitoriosamente o século XX.
  • 16. O falcão, empoleirado sozinho sobre um rochedo, domina as ondas com segurança. O tratamento pictórico, em contraste com a precisão da plumagem e com o movimento estilizado das ondas, reforça a oposição entre a postura imóvel do pássaro e a agitada superfície da água. O conjunto cria uma impressão de poder. Na China antiga, os pássaros de caça eram sempre designados, genericamente, como águia, ying. Por isso as pinturas que representam uma ave de rapina isolada sobre uma elevação são tradicionalmente intituladas yingxiong duli, frase que sugere que o ser de exceção não encontra semelhante sob o céu.1 Se as aves de rapina apareceram na pintura chinesa no século IV,a representação de uma majestosa águia solitária certamente foi sistematizada sob o reino do imperador Huizong (1082-1135). Hoje parece impossível atribuir uma pintura desse estilo ao pincel do célebre “imperador-pintor”; no entanto, cópias e fontes literárias atestam a importância de tais representações. Nessas obras, a cabeça da águia está sempre abaixo do símbolo imperial e da menção yubi, “traçada pelo pincel imperial”. Tais imagens, que refletem o poder do soberano, participavam de um amplo projeto de política cultural. A pintura do Museé Cernuschi inscreve-se nessa tradição. Ainda que suas margens tenham sido divididas em uma época indeterminada, a pintura conserva o traço visível de um símbolo imperial da era Xuanhe (1119-1125) e da menção yubi.2 Se, por um lado, parece difícil determinar uma data baseada nesses elementos incompletos, por outro, o estreito parentesco estilístico entre essa pintura e uma obra do Museu do Palácio de Taipei permite identificar a época de sua criação, o século XIV.3 Falcão sobre um rochedo, século XIV Autor não identificado nanquim sobre seda | 120,6 x 62,6 cm 1. Essa associação se baseia na homofonia entre ying, a águia, e a primeira letra da palavra yingxiong, o herói. 2. As letras do símbolo incompleto na parte superior parecem ter sido “Xianhe [?] bao [?]”. Mesmo que muito apagado, um segundo símbolo, neifu zhencang, indica que a obra integrava coleções imperiais. 3. A obra do Museu do Palácio, outrora atribuída à época dos Song, foi objeto de uma nova atribuição baseada em uma comparação com um conjunto de obras conservadas no Japão. Para Sung Hou-mei, os colofões afixados na obra, datados dos primeiros anos da dinastia Ming, são contemporâneos à sua criação (Sung, 1992, p. 161). Entretanto, a pintura foi recentemente atribuída ao fim da dinastia Yuan (Age of the Great Khan, 2001, p. 38, 291-292). SEIS SÉCULOS DE PINTURA CHINESA NO MUSEU CERNUSCHI30
  • 17. SEIS SÉCULOS DE PINTURA CHINESA NO MUSEU CERNUSCHI32 Inscrição e assinatura: Pintado em um barco em Piling durante o verão do ano Dingwel da era Jiajing [1567], Gao Gu, Shimen Zi [alcunha do pintor]. Pintor e calígrafo originário de Fuzhou, Gao Gu esteve ativo durante a primeira metade do século XVI. Foi autor de um tratado de caligrafia dedicado à escrita dos escribas, Lishu lun, e de poemas reunidos em uma antologia de suas obras, Shimen ji. Quanto às suas pinturas, a maior parte desapareceu. Segundo as fontes literárias, ele teria sido um artista versátil, capaz de se expressar nos gêneros paisagem, personagens, flores e pássaros. A pintura representando os imortais demonstra esses diferentes dons: a paisagem que acolhe essa reunião é pintada com concisão e energia, contrastando com a representação – de uma grande acuidade – do rosto dos personagens e a representação das flores do primeiro plano, pintados em estilo minucioso e natural. Por seu tamanho e estilo, essa pintura faz referência às extensas composições apreciadas no âmbito imperial. Na dinastia Ming, o repertório estilístico da pintura da corte tomava muito emprestado dos mestres da época Song. Também é possível observar esses empréstimos na pintura de Gao Gu, em que o traço das árvores e a superfície das rochas evocam o estilo dos pintores da academia dos Song do sul. A maneira como os quatro imortais se integram à paisagem também pode ser comparada a algumas pinturas de corte datadas do fim do século XV.1 A filiação estilística entre a obra de Gao Gu, datada de 1567, e os pintores pertencentes ao apogeu da Academia Imperial, atesta a continuação de uma tradição pictórica à margem das inovações introduzidas pelos pintores da escola de Wu a partir dessa época. Imortais, 1547 Gao Gu (ativo na primeira metade do século XVI) nanquim e cores sobre seda | 237 x 165 cm 1. Como a obra de Liu Jun (ativo de 1475 a 1505), Protesto ao imperador, conservada no Metropolitan Museum of Art, em Nova York.
  • 18. Inscrição e assinatura: No décimo sexto dia da sétima lua do ano Renxu [1082], fui em um barco com alguns companheiros ao pé da falésia vermelha. Um vento fresco soprava levemente e não levantava nenhuma onda. Ergui minha caneca para convidar meus amigos a beber e recitei um poema no qual uma lua brilhava, era uma canção muito bonita. Pouco depois, a lua subiu no alto da montanha do leste; ela hesitava entre a grande Ursa e a estrela do Boieiro. Um orvalho branco recobria o rio e o brilho da água se juntava ao céu. Não sabíamos onde estávamos, mas tínhamos a impressão de voar como se abandonássemos o mundo humano, como se asas tivessem nascido em nós, e subíamos, como se fôssemos imortais. Começamos então a beber e fomos contagiados por uma grande felicidade. Cantávamos ao longo do barco, entoando o ritmo. Nossa música dizia: “Revestimento de caneleira, ramas de magnólia. Atravessamos uma água clara e transparente e subimos a brilhante correnteza. Meus pensamentos partem para longe e meu olhar se voltam para uma linda mulher que se encontra num pedaço do céu”. Um de nossos companheiros tocava gaita para nós. Sua música melodiosa também tinha um pouco de rancor e de ressentimento; dir-se-ia que ele chorava e se lamentava; e o som prosseguia como um fio que se estende sem se romper. Talvez ele fizesse dançar um dragão escondido no fundo das grutas sombrias e fizesse chorar uma viúva sozinha no barco solitário. Fiquei muito triste com aquilo e, arrumando meu casaco e endireitando-me em meu lugar, perguntei ao músico: “Por que essa melodia?”. E ele me respondeu: “A lua brilha, as estrelas são raras, as gralhas voam para o sul: não estariam aí os versos de A falésia vermelha, entre 1490 e 1559 Wen Zhengming (1470-1559) nanquim e cores sobre papel | 17,4 x 49 cm A DINASTIA MING 35
  • 19. em “pequena regular”, xiaokai, na parte superior da composição. Esse tema literário, particularmente apreciado nas pinturas da escola de Wu, foi tratado várias vezes por Wen Zhengming, normalmente no formato de rolo horizontal.1 O texto de Ode à falésia vermelha, que foi objeto de numerosas transcrições feitas por Wen Zhengming em diferentes estilos, podia ser associado diretamente a uma pintura, como no caso desse leque. Uma história conta que Wen Zhengming, então com 86 anos, havia caligrafado a Ode à falésia vermelha de Su Dongpo no estilo da “pequena regular”, a fim de pagar uma dívida adquirida em uma partida de xadrez.2 Seja essa narrativa autêntica ou não, ela atesta a reputação adquirida por Wen Zhengming em um estilo de caligrafia que necessita, ao mesmo tempo, de altas qualidades técnicas e de uma energia intacta. Para o autor dessa história, a prática da “pequena regular” simbolizava a integridade das forças físicas e morais do ancião. Essa concepção, sem dúvida partilhada pelos contemporâneos de Wen Zhengming e, mais tarde, pelos colecionadores de sua obra, poderia ter-se aplicado à pintura do Musée Cernuschi, datada de 1552. A delicadeza do traço realizado na caligrafia também caracteriza a paisagem. Em contraponto ao uso minucioso do pincel, as cores, hoje apagadas, deviam desempenhar um papel importante na composição. Se o vermelho das folhagens do primeiro plano conservou seu brilho, o verde e, sobretudo, o azul das montanhas perderam sua intensidade. A simplicidade do conjunto, que revela certo gosto pela antiguidade, também se harmoniza com a natureza meditativa do texto de Su Dongpo. Esse tipo de diagramação devia ter sido instaurado como modelo, como demonstra uma pintura sobre o leque de Wen Boren (1502-1575), conservado no Museu de Xangai, que empresta sua composição à obra de Wen Zhengming, conferindo-lhe certa amplidão decorativa.3 A DINASTIA MING 37SEIS SÉCULOS DE PINTURA CHINESA NO MUSEU CERNUSCHI36 1. Laurent, 2006, p. 17-32. 2. Goodrich e Fang, 1976, p. 1473. 3. ZGGDSHTM, t. 2, p. 322, n. 1_1037. Cao Cao? Se olhamos em direção ao oeste, vemos Xiakou, em direção ao leste, Wuchang; montanhas e rio se juntam em um lúgubre verde escuro; não seria aqui que Cao Cao fora derrotado por Zhou Yu? Ele havia capturado Jingzhou e descido o rio até Jiangling. Seus barcos, que seguiam a correnteza em direção ao leste, espalhavam-se em mil léguas, e seus estandartes escondiam a vista do véu. Ele se serviu de vinho, aproximou-se do rio e, segurando uma alabarda, compôs esse poema. Certamente, ele foi o herói de toda uma geração, mas onde ele se encontra hoje? Ou, ainda, o que vai acontecer com vocês, comigo, pescadores e lenhadores à beira do rio, conosco, que temos peixes e camarões como companheiros, a corça e o cervo como amigos, que prosseguimos em um esquife parecido a uma folha, que erguemos cantis e canecas convidando-nos uns aos outros a beber? Fomos enviados ao universo como seres efêmeros e mariposas, grãos de arroz no oceano. Fico triste com o breve destino de minha vida, invejo o infinito do longo do rio, queria voar seguindo os imortais, enlaçar a lua e durar o mesmo tempo que ela. Mas sei que isso é impossível, e confio minha melodia ao triste vento”. Eu respondi: “Você também conhece a água e a lua? Elas passam como essa correnteza, mas nunca vão embora. O cheio e o vazio são como elas, e finalmente, não existe morte nem continuação. Se pensarmos no que de nós mesmos se transforma no universo, nada permanece, nem mesmo o tempo de um piscar de olhos; e se considerarmos o que continua sem se transformar, então tudo é infinito, inclusive eu. O que devemos invejar então? Além disso, no mundo, cada coisa tem um mestre. Se alguma coisa não me pertence, não posso segurá-la. Mas a brisa sobre o rio, a lua sobre as montanhas que meus sentidos transformam em som e em cores, nada me impede que eu absorva essas coisas, e posso aproveitar isso infinitamente. É um tesouro imensurável da criação, este de que eu e você podemos gozar juntos.” Todos os meus companheiros puseram-se a rir. Tínhamos lavado as canecas e voltamos a beber; quando terminamos a carne e as frutas, as taças e o pratos estavam desarrumados. Servindo-nos todos de travesseiros, dormimos no barco sem nos darmos conta de que o leste embranquecia. Escrito por Zhengming, no ano Renzi [1552] Essa pintura representa um tema clássico inspirado na Primeira ode à falésia vermelha, de Su Dongpo. O texto desse poema foi traçado por Wen Zhengming
  • 20.
  • 21. Inscrição e assinatura: Pintado para a despedida de meu irmão Chun, dia 15 da primeira lua do ano Jhiai [1659], Lan Ying. Mesmo que seus biógrafos façam alusão a suas longas viagens realizadas na juventude, a atividade profissional de Lan Yiang parece estar concentrada em sua cidade natal, Hangzhou, em Zhejiang.1 Lan Ying, como vários de seus contemporâneos, era simpático às ideias de Dong Qichang (1555-1636), que exerceram influência direta em sua formação e prática pictórica. Assim como as pinturas de Dong Qichang, as obras de Lan Ying apresentam numerosas referências aos mestres do passado. Se no gênero da paisagem o artista se inspirava preferencialmente em Huang Gongwang (1269-1354), uma folha de álbum do Musée Cernuschi representando um rochedo pintado “à maneira de Wang Meng”, indica o alcance do repertório do artista. Não é impossível que essa folha de álbum tenha participado de uma série representando exclusivamente os singulares rochedos em variadas representações.2 De fato, Lan Ying parece ter ilustrado a si mesmo nesse gênero, estimado sobretudo por seus contemporâneos. De suas pedras emana uma monumentalidade, e o artista lhe confere, naturalmente, um papel estruturante em suas composições. Essa função é atestada na pintura sobre o leque, em que a massa do rochedo apoia o pinho torto que ocupa a parte central. Essa estrutura original é intensificada pelo audacioso uso da cor, que é, talvez, a mais radical das inovações pictóricas introduzidas por Lan Ying.3 Esse trabalho pode ser comparado a uma obra-prima da pintura sobre leque atribuída a Lan Ying, conservada no Museu de Nanquim.4 De fato, essas duas obras datadas de 1659 procedem de um mesmo veio criativo. No caso da pintura do Musée Cernuschi, a inscrição especifica as circunstâncias da gênese da obra; trata-se de um presente oferecido na ocasião de uma partida. O papel desempenhado pelos leques pintados na vida social das elites da época está aqui explicitado.5 Paisagem com pinho e rochedo, 1659 Lan Ying (c. 1585-1664) nanquim e cores sobre papel | 16,4 x 48,5 cm 1. Para a biografia de Lan Ying, cf. Goodrich e Fang, 1976, p. 786-788; Yang, 1997, p. 234-236. 2. Parecido com o álbum reproduzido em ZGGDSHTM, t. 1, p. 148-149. 3. Uma folha de álbum conservada no Museu do Palácio de Pequim atesta o uso original da cor (Giès, 2004, p. 248). 4. Xu, 1998, p. 22. 5. Matteo Ricci (1552-1610) notara a importância das doações de leques. Ele dizia até ter constituído um pequeno conjunto dos que recebera, a fim de poder se debruçar sobre o rito social dos presentes, oferecendo-os por sua vez (Ricci e Trigault, 1978, p. 90). A DINASTIA MING 41
  • 22.
  • 23. SEIS SÉCULOS DE PINTURA CHINESA – COLEÇÃO DO MUSÉE CERNUSCHI, PARISSEIS SÉCULOS DE PINTURA CHINESA – COLEÇÃO DO MUSÉE CERNUSCHI, PARIS 4544 DINASTIA QING
  • 24. Inscrição e assinatura: Pintura dos mil outonos e das três eternidades. Qiedao Ren [alcunha do pintor] de Tieling, Zhitou shenghuo [mote do pintor]. Essa obra monumental ilustra a técnica de pintura a dedo à qual o nome de Gao Qipei é associado. O pintor pertencia a uma família chinesa originária de Tieling, na Manchúria. No contexto político da dinastia Qing, essa origem podia favorecer uma carreira oficial.1 Esse foi o caso de Gao Qipei, que, seguindo seu pai, serviria tanto nas províncias de Yunnan, Zheijiang e Sichuan, como em Pequim. Introduzido na corte, ele se diferenciaria por seus talentos de pintor, sobretudo por suas obras feitas a dedo, um gênero de pintura que virou moda por causa do imperador Shunzhi (1638-1661).2 A pintura apresenta, no centro, um casal de cervídeos. Esse motivo de bom agouro foi representado várias vezes por Gao Qipei. Assim, uma de suas obras de mesmo tema, conservada no Museu da Capital, em Pequim, tem algumas semelhanças com a composição do Musée Cernuschi.3 A representação do cervo sugere as diferentes técnicas adotadas pelo pintor: traço de contorno com o dedo para dar mais movimento à silhueta, impressões digitais progressivamente afinadas para a pelagem manchada do animal, detalhes de cílios e sobrancelhas realizados com a ponta da unha. A atenção dedicada ao trabalho de tinta de Gao Qipei às vezes ocultou a originalidade de seu uso das cores. O tratado de seu neto Gao Bing indica, no entanto, o caráter pouco convencional do uso das cores na pintura do avô. Ele observa que o vermelho, normalmente utilizado com leveza, era aplicado em grossas camadas por Gao Qipei, que se divertia, aliás, aplicando o verde e o azul, sobrepondo-os em largas superfícies empastadas.4 Por causa de alguns detalhes, a pintura do Musée Cernuschi é a ilustração exata dessas propostas: um morcego de um vermelho profundo sai dos galhos dos pinheiros, enquanto os cogumelos da imortalidade, traçados a tinta, estão salpicados de verde e azul. Esse uso da cor ressalta visualmente a presença desses dois elementos essenciais para o significado da pintura. Ao referir-se aos mil outonos, o título dessa obra constitui em si uma fórmula de desejo de longevidade. A idade vetusta, shou, é evocada pelos cogumelos da imortalidade, lingzhi, e também pelos pinhos, enquanto a felicidade, fu, é anunciada pelo morcego, fu. Finalmente, os cervídeos, lu, referem- -se às heranças, lu. Reunidos, eles formam a tríade fu, lu, shou, síntese visual dos votos que se pode desejar na ocasião de um aniversário. Pintura dos mil outonos, entre 1700 e 1730 Gao Qipei (1672-1734) nanquim e cores sobre papel | 227 x 115,2 cm SEIS SÉCULOS DE PINTURA CHINESA NO MUSEU CERNUSCHI46 1. Quando o sistema manchu de oito bandeiras foi adotado para governar o império em 1644, os chineses da Manchúria, que foram incorporados à bandeira amarela, desempenharam um papel de retaguarda particularmente importante para o novo poder. Assim, o pai de Gao Qipei, Gao Tianjue, tomou partido na luta contra legitimistas Ming, e assim foi morto. Esse fim glorioso favoreceria a carreira de seu filho. A propósito da biografia de Gao Qipei, cf. Ruitenbeek, 1992. 2. Uma célebre pintura a dedo representando Zhong Kui, conservada no Museu do Palácio, foi atribuída ao imperador Shunzhi. 3. Shoudu Bowuguan, 1995, p. 42-43. 4. Para uma tradução em inglês do texto de Gao Bing, cf. Ruitenbeek, 1992, p. 296-312.
  • 25. SEIS SÉCULOS DE PINTURA CHINESA – COLEÇÃO DO MUSÉE CERNUSCHI, PARIS48 Essa pintura monumental foi criada para comemorar o banquete oferecido pelo imperador Qianlong em 1744, na ocasião da renovação arquitetônica da Academia Hanlin, uma das instituições fundamentais da China imperial. Essa descrição exata da arquitetura da academia e da cerimônia oficial que ocorreu em seu interior foi realizada por um conjunto de seis pintores, todos membros da Academia Imperial de Pintura. As caligrafias que aparecem na pintura são obra de três importantes funcionários, Li Zongwan (1705-1759), Ji Huang (1711-1794) e Zhang Zhao (1691-1745). Trata-se de transcrições de composições poéticas realizadas durante as festividades que marcaram esse dia. Diferentes fontes históricas permitem conhecer a ordem em que aconteceu a cerimônia. No dia dessa celebração, o imperador se apresentou pessoalmente na Academia Hanlin, onde foi recebido por Zou Ertai (1677- -1745) e Zhang Tingyu (1672-1755), que presidia essa instituição. Antes que o banquete começasse, o imperador havia pedido aos letrados da Academia Hanlin que realizassem uma primeira composição poética coletiva. Na sequência dos poemas do imperador e dos grandes letrados, cada um dos membros da Academia criou um verso de cinco caracteres, inserindo aí, sucessivamente, um dos caracteres do poema Dogbi tushu fu, xiyuan hanmolin, de Zhang Shuo (667-730). Esse caractere também tinha a função de indicar a rima a ser adotada. Mais tarde, eles foram transcritos por Li ZongwannaparteinferiordireitadapinturadaAcademiaHanlin.Obanquete, A Academia Hanlin, 1744-1745 Jin Kun (ativo entre 1717 e 1749) Sun Hu (ativo entre 1728 e 1746) Lu Zhan (ativo em meados do século XVIII) Wu Yu (ativo em meados do século XVIII) Zhang Qi (ativo em meados do século XVIII) Cheng Liang (ativo em meados do século XVIII) nanquim e cores sobre seda | 193,5 x 625,5 cm A DINASTIA QING 49
  • 26. SEIS SÉCULOS DE PINTURA CHINESA – COLEÇÃO DO MUSÉE CERNUSCHI, PARIS 51 que representam os grandes acontecimentos do reino dos imperadores Qing. Foi exatamente na ocasião da realização de uma das mais célebres dentre essas pinturas, o Sexagésimo aniversário do imperador Kangxi, datado de 1717, que Jin Kun foi recrutado como pintor na corte. Durante os anos a serviço dos imperadores Kangxi, Yongzheng e Qianlong, Jin Kun foi chamado para participar de vários programas de grande envergadura, implicando um domínio da técnica jiehua, que permite representar os elementos da arquitetura. Durante o reinado de Yongzheng, ele colaborou com a versão do Qingming shanghe tu, de Chen Mei (1694-1745), ao lado de Sun Hu e de dois outros pintores. Em 1735, Jin Kun e Sun Hu produziram quadros a pedido do príncipe Hongli, futuro imperador Qianlong. Em 1741, quando os quinze pintores da Academia Imperial, huahuaren, foram classificados em três categorias, Jin Kun e Sun Hu ocuparam a primeira posição. Lu Zhan e Wu Yu, que também deviam participar da realização da Academia Hanlin, foram classificados na terceira categoria. Se for considerado que Cheng Liang – cujo nome é citado por último entre os signatários – era aluno de Jin Kun, então se torna evidente a hierarquia intrínseca da equipe de pintores que trabalharam nesse vasto projeto. Projetos de tal envergadura frequentemente mobilizavam um grande número de pintores durante vários anos. Mas é provável que A Academia Hanlin tenha sido realizada mais rapidamente, como sugere a presença, na obra, da caligrafia de Zhang Zhao, morto em 1745, ano seguinte ao acontecimento representado. Essa pintura se distingue na produção da Academia Imperial pela originalidade de seu formato, que permitiu aos pintores a prática de um tipo de perspectiva complexa. A obra constitui, aliás, um importante testemunho relativo a uma instituição que exerceu papel artístico essencial na formação das elites da China imperial desde a época dos Tang. Por fim, essa pintura é, sem dúvida, a imagem mais fiel de um conjunto de arquitetura e elementos urbanos hoje desaparecidos: a Academia Hanlin e sua biblioteca foram quase completamente destruídas em 1900, durante a Guerra dos Boxers. do qual participaram sessenta pessoas, foi acompanhado por música e por uma apresentação teatral. Depois, na sequência do imperador, os letrados da Academia realizaram novas composições poéticas encadeando versos de sete caracteres, de acordo com o modelo dos poemas antigos boliang ti. Essas peças foram, mais tarde, transcritas na parte superior da pintura por Ji Huang. Quando o banquete chegou ao fim, o imperador se retirou para o pavilhão Qingbi, onde compôs novamente quatro poemas em versos de sete caracteres, que, provavelmente, são peças transcritas na parte inferior direita da pintura por Zhang Zhao, um dos maiores calígrafos de seu tempo, que, sob ordem imperial, podia substituir seu pincel pelo de Qianlog. Essas informações permitem compreender que o momento da cerimônia descrito na pintura é aquele em que o imperador se retirou para o pavilhão Qingbi. Sua presença, destacada pelo dossel imperial, explica que vários letrados se mantêm em uma atitude respeitosa perto do pavilhão, que se localiza em um pátio contíguo ao pátio principal onde ocorreu o banquete. Os prédios do pátio principal receberam decoração temporária. O trono do imperador, instalado sob o pavilhão central, está voltado para o palco, situado do outro lado do pátio. Os membros da Academia permanecem de pé no centro do pátio, organizados de acordo com sua categoria. No primeiro pátio, os presentes oferecidos pelo imperador estão dispostos sobre as mesas: trata-se de célebres chás, preciosos rolos de seda e papéis coloridos. O guarda do imperador, boowei ban, fica nesse local. Para além da porta da Academia, o cortejo imperial forma uma barreira de honra até as portas do palácio. O momento da cerimônia escolhido para a representação permitiu realizar uma descrição viva e contrastada desse acontecimento. Se, por um lado, os membros da Academia que ficam no pátio principal observam uma atitude protocolar, por outro, os funcionários, guardas e empregados que estão no primeiro pátio, assim como o cortejo imperial no exterior da Academia, são representados em repouso. Ainda que essa obra pertença à categoria dos tieluo, um tipo de pintura destinada a ser pregada diretamente em uma parede, ela mantém várias relações com os longos rolos horizontais A DINASTIA QING 51SEIS SÉCULOS DE PINTURA CHINESA NO MUSEU CERNUSCHI50
  • 27.
  • 28. Inscrição e assinatura: Agitada, ela leva as cores da montanha Luminosa, reflete a sombra da floresta. Quando ela ressoa por sobre a pedra, Lembramos da calma [que reina] no coração da montanha. Xi An [sobrenome do pintor] Zhang Yin. Zhang Yin pertencia a uma família de ricos mercadores de Zhenjiang, em Jiangsu. Seupaieseutioerammecenasdegrandeimportância.Entreaspersonalidadesque seu pai costumava receber, o calígrafo e colecionador Wang Wenzhi (1730-1802) e o pintor Pan Gongshou (1741-1794) exerceram uma profunda influência sobre Zhang Yin. Pan Gongshou deve tê-lo apresentado à obra de Wen Zhengming, que se tornou seu modelo preferido durante a juventude. Quando Zhang Yin ultrapassou os cinquenta anos, as inundações provocadas pela enchente do rio Jingjiang o arruinaram, e ele precisou deixar sua antiga residência para se instalar na cidade, onde praticou a pintura profissionalmente.1 Seus últimos anos, vividos na miséria, foram extremamente criativos. Nas composições de grande formato, Zhang Yin passa a captar o caráter monumental dos mestres da paisagem dos Song do norte. O poder dessas obras com policromia acentuada o levou a se tornar líder da escola de Zhenjiang. O formato e as tonalidades da paisagem Solitário sob os pinhos contemplando as ondas correspondem a esse último período. A respeito das massas rochosas, o tratamento da tinta trai a influência dos modelos da época dos Song. Os espinhos em forma de leque dos grandes pinhos, cuja intensidade matizada 1. A propósito da biografia de Zhang Yin, cf. Zhai, 1998, e Wan, 2005, p. 70-74. Solitário sob os pinhos contemplando as ondas, entre 1819 e 1829 Zhang Yin (1761-1829) nanquim e cores sobre papel | 141 x 80,5 cm A DINASTIA QING 55
  • 29. sugere as profundezas da folhagem, são características do estilo de Zhang Yin. A composição é muito próxima de outras pinturas realizadas no começo dos anos 1820, como a Contemplação de uma cascata no outono, do Museu de Xangai.2 A singularidade da pintura conservada no Musée Cernuschi deve-se ao fato de que Zhang Yin substituiu a concentração de ondas por picos montanhosos. O tema é uma interpretação original de outro, frequentemente tratado pelo artista, o da contemplação de uma cachoeira.3 A inscrição, tomada emprestada de um poeta da época dos Tang, Huang Fuzeng (721?-785?), descreve o curso de um rio de montanha. O poeta ressalta o contraste entre a fúria da torrente e a serenidade que reina no alto das montanhas. O fato de o pintor ter voluntariamente omitido o título do poema, A fonte ao pé da montanha, sugere que ele, talvez, tivesse mais a intenção de evocar um rio turbulento do que uma paisagem de montanha. Vista a importância dedicada às célebres regiões de Zhenjiang4 em sua obra, Zhang Yin pode ter sido inspirado pelas paisagens dos arredores do grande rio. SEIS SÉCULOS DE PINTURA CHINESA NO MUSEU CERNUSCHI56 2. ZGMSQJ, Qing dai huihua (xia), n. 108. 3. Uma pintura em leque da antiga coleção de Zhang Xueliang (1901?-2001) apresenta uma composição muito próxima à pintura do Musée Cernuschi (venda no dia 10 de abril de 1994, Sotheby’s, Taipei). 4. Lugares célebres de Zhenjiang, Museu de Zhenjiang, ZGGDSHTM, t. 6, p. 289; e Três elevações de Jingjiang, Museu do Palácio de Pequim, Nie, 1997, p. 292.
  • 30. SEIS SÉCULOS DE PINTURA CHINESA – COLEÇÃO DO MUSÉE CERNUSCHI, PARISSEIS SÉCULOS DE PINTURA CHINESA – COLEÇÃO DO MUSÉE CERNUSCHI, PARIS 5958 O MOVIMENTO EPIGRÁFICO E A RENOVAÇÃO DA PINTURA CHINESA
  • 31. A ESCOLA EPIGRÁFICA 61 Inscrição e assinatura: O grande rio corre em direção ao oeste, suas ondas varrem os nobres nomes de outrora. Caóticas pedras e nuvens despedaçadas, lâminas terríveis atingem o rochedo.1 Para o senhor Pu Tang [Georges Lecomte (1867-1968)], Kang Youwei. Kang Youwei é originário de Nanhai, na província de Cantão. Após formar-se na academia Xuehai Tang, ingressa no doutorado em 1895. Ele expressa suas ideias inovadoras em duas obras principais: Estudo crítico dos falsos clássicos estabelecidos pelos eruditos da Dinastia Xin, [Xinxue wijing kao], em 1891, em que repensa a leitura oficial dos clássicos, e Estudo crítico de Confúcio, reformador das instituições [Kongzi gaizhi kao], em 1897, que apresenta uma visão renovada e progressista sobre Confúcio. Em 1898, ele ganha importância no governo e, entre outras reformas, propõe a instituição de uma monarquia parlamentar. Devido à reação de milhares de conservadores, vê-se obrigado a deixar o país e vive em exílio até 1916, viajando principalmente pelo Ocidente. Além do campo político, o pensamento de Kang Youwei aborda os domínios sociais, filosóficos e religiosos, como revela sua obra testamental, o Livro da grande unidade, [Datong shu]. Ao longo de suas viagens, as comparações que ele estabeleceu, no campo das artes, entre as tradições pictóricas ocidental e chinesa, levaram-no a constatar uma decadência da pintura chinesa. Esse admirador de Rafael (1483-1520) e dos mestres das dinastias Song e Yuan considerou a necessidade de reorientar a arte chinesa, apoiando-se, por um lado, no estudo da arte ocidental e inspirando-se, por outro, nas tradições responsáveis pela grandeza da arte da academia dos Song. Essa defesa do realismo na arte exerceu uma influência considerável em pintores como Xu Beihong (1895-1953) e Liu Haisu (1896–1994), que seguiram suas lições.2 Caligrafia, entre 1913 e 1927 Kang Youwei (1858-1927) nanquim sobre papel | 175,6 x 89,7 cm 1. Esses versos foram retirados do poema Lembrança da passagem pela falésia vermelha, de Su Dongpo, inspirado em Lembrança de sua frágil beleza (Su Dongpo quanji, 1936 e Egan, 1994, p. 226-227). 2. Wu, 1990, p. 46-53.
  • 32. SEIS SÉCULOS DE PINTURA CHINESA NO MUSEU CERNUSCHI62 No campo da caligrafia, Kang Youwei inscreve-se na linha das ideias formuladas por Ruan Yuan (1764-1849) e Bao Shichen (1775-1855), em seus escritos fundadores da escola de estudo de estelas, Beixue pai. Kang Youwei se distancia, portanto, da tradição caligráfica iniciada por Wang Xizhi (303-361) para se dedicar a estelas antigas. Em sua caligrafia, ele faz referência especialmente às inscrições da época dos Han e dos Wei do norte. Os grandes caracteres de Kang Youwei, com o traço propositalmente malfeito, têm um aspecto monumental inspirado no estudo das inscrições sobre pedra, como o Shimen Ming. Essa escritura derivada do estilo dos escribas, lishu, desenvolve-se, entretanto, de modo cursivo. O pincel, cheio de tinta, embebe a folha em diferentes lugares enquanto alguns caracteres apresentam-se extremamente secos. Resulta, desse contraste, uma manifestação singular de energia.
  • 33. SEIS SÉCULOS DE PINTURA CHINESA – COLEÇÃO DO MUSÉE CERNUSCHI, PARIS64 Inscrição e assinatura: Milhares de caracteres foram escritos no Eremitério Lütianan,1 Sob o pincel [de Huaisu], dragões e serpentes2 vão ao altar do Buda. Espera-se que as [qualidades das] folhas de bananeira e folhas de papel sejam similares, Nanquim e meditação desde os tempos antigos sempre foram orientados para o despertar. Traçado por Wang Zhen [dito] Bailong shanren, durante o outono do ano Renxu. “Homem de negócios, filantrópico e artista”, segundo os termos de Tsao Hsing- yuan,3 Wang Zhen é uma figura muito característica da escola de Xangai. De condição modesta, ele teria sido aprendiz em um ateliê de montagem de pintura durante sua juventude,4 onde estudou com Ren Bonan (1840-1896),cujainfluência seria preponderante nas obras do jovem Wang Zhen. Durante a maturidade, sua pintura foi profundamente renovada pelas visitas de Wu Changshuo. Ele conheceria o sucesso nos negócios como representante de diferentes sociedades japonesas, ocupando as funções de presidente das câmaras de Agricultura, de Manufaturas e do Comércio de Xangai.5 Paralelamente a suas atividades comerciais, Wang Zhen foi um criador prolífico. Seu traço forte e as cores fracas, herdados do mestre, aplicam-se de modo privilegiado na pintura de personagens, gênero pelo qual Ren Bonan se tornou conhecido. Budista fervoroso, ele soube comunicar um vigor intenso em suas representações de santos e monges, como demonstram suas várias imagens de Bodhidharma, entre as quais uma, monumental, entrou para as coleções nacionais francesas em 1934 e hoje está conservada no Musée Guimet. Além de suas realizações artísticas pessoais, seu papel de mecenas favoreceu a disseminação da obra de Wu Changshou (1843- -1927) no Japão. Huaisu escrevendo sobre uma folha de bananeira, 1922 Wang Zhen (1867-1938) 130 x 33,2 cm | nanquim e cores sobre papel 1. O local do Eremitério do Céu Verde (Lütianan), onde morava o monge Huaisu, era cercado de bananeiras, que lhe acarretaram o nome. 2. A expressão “dragões e serpentes” designa a caligrafia cursiva. 3. A forgotten celebrity, Wan Zhen (1867- 1938), Businessman Philanthrope and Artist. In: Ju-His Chou (Ed.), Art at the Close of China’s Empire. Phoebus, n. *, p. 94-109. 4. XIAO, Fenqi. Wang Yiting. Shijiazhuang, Pequim: Hebei Jiaoyu Chubanshe, 2002, p. 28-29. 5. FONG, Wen. Between Two Cultures, Late Nineteenth- and Twentieth-Century Chinese Painting from the Robert H. Ellsworth Collection in the Metropolitan Museum of Art. Nova York: Yale University Press, 2001. p. 78-79. A ESCOLA EPIGRÁFICA 65
  • 34. Essas duas obras de Wang Zhen pertencem à maturidade do artista. A representação de Huaisu (c. 735-800), o mestre da dita cursiva insana, escrevendo em uma folha de bananeira inscreve-se em tradição antiga.6 De fato, a biografia de Huaisu por Tao Gu (903-970) relata que esse monge budista havia plantado bananeiras ao redor de seu eremitério, e que ele fazia uso das folhas para suas caligrafias. Essa história, que enfatizava a pobreza de Huaisu, mas também seu empenho no estudo da caligrafia, se tornaria um tema pictórico por si só, e um assunto especialmente caro a Ren Bonan.7 A pintura de Wang Zhen é caracterizada por seu frequente traço forte à margem do primeiro plano e nos bambus do plano de fundo. Contrastando com esses traços, cuja força contribui para o gesto do calígrafo, o rosto do monge foi feito com a técnica mogu (sem ossos), os detalhes dos olhos e da barba são retomados com um pincel leve. A segunda pintura constitui uma hábil síntese entre o gênero dos personagens e a arte da paisagem. Os personagens representados são Hanshan e Shide, duas figuras do budismo chinês cuja estreita associação deu origem a uma iconografia original que confere, aos dois sábios, os mesmos traços grosseiros. Como a biografia do poeta Hanshan, que viveu na época dos Tang, é muito lacunar, a legenda foi atribuída a ele. No prefácio de Lu Qiuyin aos poemas de Hanshan, ele foi apresentado como um monge budista ligado às cozinhas do templo Guoqing Si nos montes Tiantai. Inseparável de Shide, ele é conhecido como o inapreensível, encontra refúgio nos montes Hansam, onde escreve seus poemas em uma parede das falésias. Essa obra, assim como o retrato de Huaisu, evoca, consequentemente, figuras fundadoras que ilustram os laços entre o despertar budista e a inspiração artística a que Wang Zhen se dedicou em sua obra de pintor. 6. LAUER, Uta. Portrait of the Artist as a Poor Man the Significance of Writing on a Banana Leaf. In: BLANCHON, Flora (Dir.). La question de l’Art en Asie Orientale. Paris: Presses de l’Université Paris- Sorbonne, 2008. p. 251-263. 7. Lauer, 2008, fig. 4 e 13. SEIS SÉCULOS DE PINTURA CHINESA NO MUSEU CERNUSCHI66
  • 35. 1. Inscriçãoe assinatura:Afastadohá muitotempo do pavilhão Bayan, Qi Baishi, com oitenta e sete anos, pintou esses seres com sua velha mão. 2. Inscrição e assinatura: Anos duradouros e grande prosperidade. Para o Senhor Zhicheng. Baishi em seu octogésimo sétimo ano. 3. Inscrição e assinatura: Para o Senhor Hongqu, em homenagem. No oitavo mês do outono do ano Jiahai [Dinghai], pintado por Laishi em seu octogésimo sétimo ano, na antiga Yanjing [Pequim]. 4. Inscrição e assinatura: Feito pelo velho Baishi em seu octogésimo sétimo ano em Jinghua [Pequim]. Qi Baishi é originário do vilarejo de Xingdou Tang, no distrito de Xiangtan em Hunan. Nascido em um meio modesto, ele aprendeu desde sua adolescência o ofício de gravador na madeira. Essa formação artesanal favoreceu a apropriação do repertório decorativo tradicional, sobretudo floral. No fim de seu aprendizado, ele estava determinado a se formar na pintura como autodidata com base nos modelos do manual de pintura Jiezi yuan huachuan, exercendo seu ofício de gravador. O estudo da técnica do retrato junto com Xiao Zhuanxin levou-o a se estabelecer como retratista a partir de 1889.1 No mesmo ano, ele se tornou aluno de Hu Qinyuan (?-1914), com quem aprendeu a técnica gongbi. No entanto, essas qualidades encontrariam uma expressão mais bem-acabada nas pinturas de insetos e de flores, às quais ele dedicou suas pesquisas de 1895 até a época de sua mudança para Pequim, nos anos 1920. De 1902 a 1909, ele fez várias viagens, que o levaram a visitar regiões e cidades muitos distintas, como Xi’an, Pequim, Guilin e Cantão. As obras que viu e as personalidades que conheceu ao longo Pintinhos, Peixes, Junco e Gralha com melancia, 1947 Qi Baishi (1863-1957) nanquim e cores sobre papel | 103,3 x 34,2 cm; 103,7 x 34,4 cm; 102 x 34 cm; 101,3 x 33,9 cm desses périplos levaram-no a adotar novos modelos, como Zhu Da (1626-1705), Jin Nong (1687-1764) e Xu Wei (1521-1593) para a pintura, e Zhao Zhiqian (1829- 1884) para a gravura de símbolos. Essas influências participaram da evolução de seu estilo, que se emancipa progressivamente de seu traço minucioso. Contudo, é somente no momento de sua instalação em Pequim, em 1917, em consequência de seu encontro com Chen Shizeng (1876-1923), que ele se orienta para o que culminará na expressão de seu estilo pessoal. Além da influência de seus escritos, talvez fosse a importância dedicada à obra de Wu Changshuo (1844-1927) por Cheng Shizeng e os membros de seu círculo, como Chen Banding (1877-1970) ou Yao Hua (1876-1930), que levaria Qi Baishi a tomar por modelo a obra do mestre da escola de Xangai. Ao final do que Qi Baishi chamava de “reforma artística em uma idade avançada”, ele emergiu rapidamente na cena artística nacional. A originalidade de suas composições, a energia do pincel e a audácia no emprego das cores caracterizam, no plano formal, as obras dessa época. Entretanto, a simplicidade direta de sua obra deve-se ao caráter rústico, salpicado de humor, de seu universo pictórico. Após a revolução de 1949, foi consagrado o representante mais importante da pintura chinesa tradicional. As quatro pinturas, doadas ao Musée Cernuschi por Guo Youshou (1900- 1978), formam um conjunto característico da maturidade de Qi Baishi. Além das reminiscências sensíveis, por exemplo, por meio do perfil do bagre que evoca a pintura de Zhu Da,2 essas obras constituem uma perfeita introdução ao universo pictórico de Qi Baishi. Os animais, apreendidos na espontaneidade de seus movimentos, como a ninhada de pintinhos brincando espalhados ou o pássaro bicando a melancia, têm, certas vezes, um significado simbólico. Assim, a associação do bagre, nianyu, e de uma espécie de salmão, guiyu, corresponde à fórmula de desejos chang nian da gui, cujos termos são equivalentes fonéticos de nomes de dois peixes.3 Da ilustração dessas frases populares emana uma poesia concreta própria a Qi Baishi. 1. Um retrato de seu mestre Hu Qinyuan, conservado no museu da província Liaoning, evidencia uma execução extremamente realista (Wu, 2000, p. 18). SEIS SÉCULOS DE PINTURA CHINESA NO MUSEU CERNUSCHI68 2. Fong, 2001, p. 148-149. 3. Do mesmo modo, as pinturas de pintinhos sempre recebem o título Duo zi, “várias crianças”, uma fórmula que corresponde ao desejo clássico de uma família numerosa. A ESCOLA EPIGRÁFICA 69
  • 36.
  • 37. SEIS SÉCULOS DE PINTURA CHINESA – COLEÇÃO DO MUSÉE CERNUSCHI, PARISSEIS SÉCULOS DE PINTURA CHINESA – COLEÇÃO DO MUSÉE CERNUSCHI, PARIS 7372 VIAJANDO NO JAPÃO
  • 38. Inscrição e assinatura: “Na descrição de qualquer coisa, a apresentação, a forma, não vale a percepção do movimento, a percepção do movimento não vale a compreensão do ritmo, mas a compreensão do ritmo não equivale à apreensão da essência.” Tais são as palavras de Zhu Lan [Li Rihua], aquele que as compreender pode falar de pintura. Xue Weng [alcunha do pintor]. Chen Zhifo nasceu na atual cidade de Cixi, em Zhejiang.1 Paralelamente à sua obra de pintor, ele é considerado um dos pioneiros do grafismo moderno na China. Seu interesse pelo estudo dos temas decorativos data de sua formação nas técnicas industriais têxteis, entre 1912 e 1916. De 1918 a 1923, Chen Zhifo dá continuidade a seus estudos no Japão, no departamento de artes aplicadas da Escola de Belas-Artes de Tóquio.2 De volta à China, ele se instala em Xangai, onde dá aulas de grafismo. Suas pesquisas, que correspondem à ascensão da prensa ilustrada, demonstram seu interesse tanto pelo vocabulário decorativo das antigas civilizações, como pelas manifestações da modernidade. Em 1931, ele dá aulas na Universidade de Nanquim. Esse novo ambiente desempenhou um papel importante no desenvolvimento de sua obra de pintor. Em 1934, ele expõe pela primeira vez uma pintura representando pássaros, com o nome de Xue Weng. Essa obra foi realizada no estilo gongbi, uma técnica minuciosa que possibilita uma representação exata dos animais e da natureza. Na obra de Chen Zhifo, esses efeitos naturalistas são acompanhados de uma qualidade decorativa herdada de suas pesquisas gráficas. Sua obra de pintor só será totalmente reconhecida a partir de 1942: durante sua primeira exposição individual, Chen Shuren (1884-1948) vê nele um “Huang Quan (903-965) moderno”.4 Durante os anos pós-guerra, continua a explorar o vasto registro de flores e pássaros, mantendo-se fiel à técnica exigente do gongbi até sua morte, em 1962. Gansos selvagens, entre 1940 e 1945 Chen Zhifo (1896-1962) nanquim e cores sobre papel | 106,3 x 36,8 cm 1. Para a biografia de Chen Zhifo, cf. Chen e Gu, 2002. 2. A propósito da influência do Japão sobre a formação e a obra de Chen Zhifo, cf. Yuen-Wong, 2006, p. 25-27. 3. Ele colabora sobretudo com o Dongfang zazhi, publicado pelo Commercial Press de Xangai, de 1925 a 1930 (Chen e Gu, 2002, p. 105-107). 4. Essa célebre assertiva foi inscrita por Chen Shuren sobre uma pintura de Chen Zhifo que representa bambus e crisântemos. Huang Quan é um dos mais ilustres pintores de flores e de pássaros da história da China. Seu estilo, que foi transmitido à corte da dinastia dos Song por seu filho, tornou-se o modelo com base no qual a pintura acadêmica de flores e de pássaros se desenvolveria. VIAJANDO NO JAPÃO 75
  • 39. A pintura dos Gansos selvagens representa perfeitamente o estilo de Chen Zhifo. A própria natureza do tema pintado, assim como os princípios de composição, evoca os modelos da época dos Song, sobretudo as obras atribuídas à Academia Imperial. No caso de Codornizes, essa influência é especialmente perceptível. O pintor reconheceu a profunda impressão deixada por esse tipo de pintura antiga, que contemplou pela primeira vez durante uma exposição que data do início dos anos 1930, pouco antes de realizar suas primeiras criações nesse gênero.5 Essa pintura de acentos naturalistas, fundada em uma tradição chinesa esquecida durante as duas últimas dinastias, responde a seu modo às aspirações de uma parte da intelligentsia que Kang Youwei (1858-1927) defendeu desde os primeiros anos do período republicano. 5. Não é impossível, no entanto, que ele tenha visto essa obras atribuídas aos Song desde o tempo de sua formação no Japão. A técnica do gongbi, baseada na exatidão do traço de contorno, frequentemente implica o recurso a clichês, fenben. Esse uso pode ser ressaltado no caso da pintura dos Gansos selvagens. Uma pintura datada de 1947 e conservada no Museu de Nanquim é uma réplica exata da obra do Musée Cernuschi, com uma única exceção: a neve que recobre o tema da pintura do Museu de Nanquim (Chen e Gu, 2002, p. 136-137). Aliás, é provável que a técnica empregada por Chen Zhifo para evocar a neve seja de origem japonesa. SEIS SÉCULOS DE PINTURA CHINESA – COLEÇÃO DO MUSÉE CERNUSCHI, PARIS76
  • 40. Inscrição e assinatura: Durante o mês suplementar1 do ano Dinghai [1947], eu estava em Wanyangyun Xuan. Em frente ao Pavilhão da Longevidade Feliz havia umamagnóliaemplenafloração.Lembrei-meentãodemeuamigo,osenhorLin, que, em seu jardim à beira do Hu, tinha uma magnólia composta de dois troncos em único toco, como uma única árvore, e isso sem que houvesse enxerto. Era algo extraordinário. A macieira selvagem ofusca os olhos, [o perfume] do lilás toma o pátio. [Pintado] e inscrito por Fei’an. YuZhao,conhecidopelonomedeYuFei’an,nasceuemPequim.2 Emsuajuventude, formou-se em pintura com Wang Runxuan, um artista popular. Jornalista e professor, ele deu aulas de pintura e de caligrafia em diversas instituições acadêmicas de Pequim no período entreguerras. A partir de 1935, trabalhou no departamento de exposições da Cidade Proibida. Desse momento em diante, começou a pesquisar a pintura antiga e copiar as obras dos mestres conservadas nas coleções do novo museu, aberto ao público em 1931. Esse acesso às pinturas antigas coincidiu com uma virada decisiva em sua obra: a partir de 1935, passou a se dedicar exclusivamente ao gênero da pintura de flores e de pássaros no estilo minucioso, o gongbi. Depois de sua primeira exposição individual, em 1936, ele prosperou rapidamente como um dos mestres desse gênero. Após 1949, ocupou posições importantes na Associação para a Pesquisa sobre a Pintura Chinesa e na Academia de Pintura de Pequim. Na opinião de Yu Fei’an, suas pesquisas a respeito das flores e dos pássaros podem ser divididas em três momentos principais.3 O primeiro período é dominado pelos modelos antigos, sobretudo pelos mestres das dinastias Song e Yuan, assim como Chen Hongshou (1598-1652). Em um segundo momento, seu interesse Dois pássaros verdes sobre uma magnólia, 1947 Yu Fei’an (1889-1959) nanquim e cores sobre papel | 89,1 x 46,2 cm 1. No calendário lunar, é preciso introduzir um mês suplementar a cada dois ou três anos. Esse sistema é equivalente aos anos bissextos no calendário solar. 2. Para a biografia de Yu Fei’an, cf. Yu, 1988, introdução, p. 11-14. 3. Essa opinião foi registrada por Yu Fei’an, que a gravou em uma pintura feita pouco tempo antes de sua morte. VIAJANDO NO JAPÃO 79
  • 41. se voltaria exclusivamente para as pinturas do imperador Huizong (1082-1135) dos Song e sua caligrafia no estilo “ouro lançado”, shoujin. Por fim, o estudo direto da natureza ter-lhe-ia permitido completar seu estudo histórico por meio de uma abordagem empírica. Seus escritos, sobretudo seu importante tratado consagrado às cores na pintura chinesa,4 demonstram, contudo, um profundo conhecimento das tradições da pintura popular. Dois pássaros verdes sobre uma magnólia data da maturidade do artista. Além das referências à pintura antiga, perceptíveis na composição, a obra é apresentada por Yu Fei’an como resultado de uma observação direta de uma árvore florida. Os termos da inscrição revelam o interesse do pintor pela botânica. As cores contrastadas são aplicadas com uma grande delicadeza de nuances, demonstrando as pesquisas do pintor a respeito da cor. 4. Essa obra, publicada em 1955, foi traduzida para o inglês; ela aparece na bibliografia sob a referência Yu, 1988. SEIS SÉCULOS DE PINTURA CHINESA NO MUSEU CERNUSCHI80
  • 42. Inscrição e assinatura: Sou Guachou [Shao Mi], o eterno excêntrico. Por minha vida, tomado por um estranho orgulho, eu me mantive à distância. Meus empregados, jovens e velhos, roubam-me e insultam-me, minha mulher ansiosa faz cenas de escândalos. Magro como um cisne, ocioso como uma gaivota, manchado de tinta, será que conheci a paz algum dia? Um dos Nove amigos da pintura de Wu Meicun [Wu Weiye]. Fu Baoshi. Ao lado da pedra com tinta e de outros tesouros do letrado, a longa folha de papel apresenta uma superfície imaculada. As pinturas e as caligrafias em rolos, apertadas em um jarro, mantêm relação com o pote de pincel que enfeita o canto da mesa. O pintor, com o pincel na mão, dirige os olhos à janela, onde um homem barbudo e uma criança observam a distância. Os versos que acompanham essa pintura foram emprestados do poema de Wu Weiye (1609-1672),1 o Canto dos nove amigos da pintura, Hua zhong jiu you ge. Nesses versos que concluem sua obra, o poeta evoca o excêntrico destino do pintor Shao Mi (1592?-1672). O estado de espírito do pintor é expresso por um sentimento de orgulho cansado que pode ser lido em seu rosto. Se, por um lado, as representações dos poetas do passado, como Tao Yuanming (365 ou 372-427) e Du Fu (712-770), são numerosas na obra de Fu Baoshi, por outro, as imagens de caligrafias e de pintores, como Huaisu e Shitao, não estão absolutamente ausentes. Essas representações de artistas foram às vezes consideradas autorretratos disfarçados de Fu Baoshi.2 À luz dessas considerações, O pintor em sua mesa de trabalho, entre 1925 e 1965 Fu Baoshi (1904-1965) 31,1 x 36,7 cm | nanquim e cores sobre papel 1. Wu Weiye, como Cheng Sui e Shitao, viveu durante o período turbulento da transição dinástica do século XVII. 2. Fong, 2001, p. 111-112. parece possível olhar essa associação de versos de Wu Weiye com o retrato de Shao Mi como a expressão íntima do estado de espírito de Fu Baoshi. Depois de ter cogitado o projeto de realização de uma série de pinturas com base no poema de Wu Weiye, Fu Baoshi parece ter se dedicado exclusivamente à representação de Shao Mi. Entretanto, como é bastante comum na obra de Fu Baoshi, esse tema foi representado pelo artista várias vezes. Assim, uma pintura da coleção Michael e Khoan Sullivan,3 de idêntica composição, apresenta uma técnica muito diferente, no limite da dissolução das formas. É provável que a pintura do Musée Cernuschi seja um pouco anterior a essa obra, datada de 1948.4 SEIS SÉCULOS DE PINTURA CHINESA NO MUSEU CERNUSCHI82 VIAJANDO NO JAPÃO 83 3. Sullivan, 2001, p. 76. 4. Vale observar que a obra do Musée Cernuschi pertence à antiga coleção Zhou Lin.
  • 43.
  • 44. Inscriçãoeassinatura:Antigamente,aluabrilhanteerachamadadereservatório de jade branca, Muitos sentimentos se refletem na barreira de jade. O vento do oeste, carregado com seu perfume, soprou durante a noite. No palácio das águas, vestido com gaze, sinto o frio intenso. No ano Yiwei [1955], no momento de Chongjiu [a festa no duplo nove], sobre o lago Shinobazu, lembro das caminhadas cotidianas e do leve perfume que penetrava pelas mangas do meu vestido. Eu pensava [o quanto] o verso de Dongpo [Su Shi] em “O palácio das águas e o vento que sobe”, nos afeta [?] folhas amassadas que recobrem o lago. A pintura de lótus foi um dos espaços de experimentação mais fecundos da obra de Zhang Daqian. Seus modelos devem, sem dúvida, ser procurados na pintura de Zhu Da (1626-1705), que dera a suas representações uma excepcional dimensão monumental. Os lótus monocromáticos datados de 1937 são exemplos do modo como Zhang Daqian conseguiu captar essa monumentalidade para orientá-la em outra direção.1 Após sua estadia em Dunhuang, que lhe possibilitou contemplar e copiar composições murais, Zhang Daqian começou a arriscar os grandes formatos. Essa vontade, que foi aplicada em todos os gêneros da pintura que praticou, culminaria na realização da vista do Monte Lu, de 1981 a 1983.2 Entretanto, a pintura de lótus levou-o a se arriscar no grande formato desde 1945.3 Essas obras eram realizadas na forma de polípticos: rolos verticais paralelos ou biombos. As pinturas de tamanho cada vez mais relevante deviam orientar a evolução de sua obra. As implicações técnicas dessa ambição monumental se revelam extremamente complexas. A elaboração de superfícies tão carregadas envolve não apenas a Lótus sob o vento, 1955 Zhang Daqian (1899-1983) nanquim e cores sobre papel | 184,4 x 95,2 cm 1. Zhang, 2002, p. 95. Essa pintura já apresenta o traço específico das folhas de lótus observável na pintura doada por Zhang Daqian ao Musée Cernuschi. 2. A obra, uma pintura sobre seda de 178,5 x 994,5 cm, foi feita de 1981 a 1983. 3. Uma obra de 385 x 600 cm (Elisseeff, 1961, p. 3). VIAJANDO NO JAPÃO 87
  • 45. SEIS SÉCULOS DE PINTURA CHINESA NO MUSEU CERNUSCHI88 seleção de materiais adaptados, mas também o domínio do equilíbrio entre a livre distribuição da tinta e o controle do pincel. Nesse sentido, não é impossível que a técnica da tinta e das cores salpicadas, pomo pocai, que renovaria suas pinturas de paisagens a partir dos anos 1960, tenha sido fruto das experiências feitas na pintura de lótus desde os anos 1940. Na pintura do Musée Cernuschi, datada de 1955, a cor desempenha ainda um papel discreto que faz sobressair a intensidade da tinta.4 O contraste entre o profundo negro das folhas de lótus e a brancura das flores cria um efeito luminoso que prefigura a utilização de papel dourado nas composições de lótus sobre biombos realizadas nos últimos anos de sua vida.5 4. Esse papel da sustentação da cor já estava presente na série de lótus gigantes dos anos 1940 (Zhang, 2002, p. 57). 5. Fu e Stuart, 1991, p. 248-249.
  • 46. SEIS SÉCULOS DE PINTURA CHINESA – COLEÇÃO DO MUSÉE CERNUSCHI, PARISSEIS SÉCULOS DE PINTURA CHINESA – COLEÇÃO DO MUSÉE CERNUSCHI, PARIS 9190 DESCOBRINDO O OESTE
  • 47. Inscrição e assinatura: O demônio búfalo e o espírito serpente (parte do título) Beihong, Guiwei (1943) Xu Beihong nasceu em Qitingqiao Zhen, no distrito de Yixing em Jiangsu, e aprendeu sua arte com seu pai, Xu Dazhang (?-1914).1 Arruinados por uma inundação, pai e filho tiveram de levar uma vida de artistas itinerantes até que a reputação emergente de Xu Beihong lhe permitisse dar aulas em Yixing. De 1914 a 1917, Xu Beihong vive em Xangai: inscreve-se na Université l’Aurore [Zhendan Daxue], onde estuda francês, e dá palestras na univesidade Mingzhi. É incentivado por Gao Jianfu (1879-1951) e Gao Qifeng (1889-1933), assim como por Kang Youwei (1858-1927), que lhe encomenda obras e lhe dá livre acesso a suas coleções de estampas e caligrafias. Em 1917, Xu Beihong passa a morar no Japão.2 Com o apoio de Cai Yuanpei (1868-1940), obtém uma bolsa para estudar na França, onde vive de 1920 a 1927.3 Formado na École Nationale Supérieure des Beaux-Arts, em Paris, ele se orienta mais em direção aos mestres do passado do que aos vanguardistas. Sua admiração pelo pintor acadêmico Pascal Dagnan-Bouveret (1852-1929), junto com quem estuda desenho e pintura a óleo, confirma essa inclinação. Sua estadia na Alemanha em 1921, no ateliê de Arthur Kampf (1864-1950), desperta seu interesse pelo realismo e pela pintura de animais.4 De volta à China, ele leciona em Xangai e Nanquim, antes de ser nomeado diretor da Academia de Belas-Artes de Pequim, em 1929. Durante esses anos, ele cria monumentais obras a óleo, ilustrando temas inspirados na história da China. Seus escritos defendem o realismo na arte. Em 1933, vai à França para organizar a O demônio búfalo e o espírito serpente, 1943 Xu Beihong (1895-1953) nanquim e cores sobre papel | 85,1 x 57,9 cm 1. Além da aprendizagem tradicional do ofício, seu pai o aconselha a copiar as obras do célebre pintor e ilustrador Wu Jiayou (?-1893), mais conhecido pelo nome Wu Youru, cujos trabalhos contêm vários elementos influenciados pelas técnicas de desenho ocidentais. 2. O modo como os artistas japoneses souberam assimilar as técnicas da pintura ocidental conforta sua visão reformista da pintura chinesa. 3. Durante esse período, no entanto, Xu Beihong retornou uma vez à China, em 1925. 4. Estudos de animais realizados no jardim zoológico de Berlim em 1922 estão conservados no museu Xu Beihong, em Pequim (Liao, 1995, p. 79). DESCOBRINDO O OESTE 93
  • 48. exposição de arte chinesa antiga e moderna, realizada no museu Jeu de Paume, em Paris, antes de viajar à Itália, à Bélgica e à Alemanha. Em 1937, a Academia de Belas-Artes se retira a Chongqing. Em 1938, ele visita o Sudoeste Asiático e, em 1940, a Índia, a convite de Rabindranath Tagore (1861-1941). De volta a Chongqing, em 1943, ele ingressa na Academia de Belas-Artes. O período de guerra é extremamente produtivo: inspira algumas de suas maiores composições,5 que, ao ilustrar a história da China, ajudam a resistência nacional. Outras obras mais modestas, como a pintura do Musée Cernuschi intitulada O demônio búfalo e o espírito serpente,6 têm, na verdade, um sentido parecido. Como essa pintura data de 1943, o contexto leva a pensar que a serpente ameaçadora da pintura é uma representação simbólica do Japão atacando a China.7 Em 1949, Xu Beihong é nomeado diretor da Academia Central de Belas-Artes de Pequim. Sua defesa do realismo e sua concepção do aprendizado do desenho e da pintura terão uma importância considerável para o ensino da arte na China popular durante a segunda metade do século XX. SEIS SÉCULOS DE PINTURA CHINESA NO MUSEU CERNUSCHI94 5. Assim, a pintura representando O velho maluco movendo as montanhas, feita na Índia, em 1940, transpõe o espírito de suas composições a óleo, no domínio da pintura chinesa tradicional. A obra está conservada no museu Xu Beihong, em Pequim. 6. A expressão, de origem budista, geralmente designa o mal e os malfeitores. 7. O mesmo tipo de oposição entre um leão e uma serpente, datado de 1939 (Liao, 1995, p. 46), é um precedente sem ambiguidade, já que o leão ferido foi escolhido como alegoria da China, atacada a partir de 1938.