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Deixa ela entrar
Deixa ela entrar
John Ajvide Lindqvist
Tradução do sueco
Marisol Santos Moreira
Copyright © 2004 John Ajvide Lindqvist
Copyright da tradução © 2012 Editora Globo S.A.
Publicado segundo acordo com Ordfront Förlag (Estocolmo)
e Leonhardt & Høier Literary Agency A/S (Copenhague).
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser apropriada e estocada em sistema de banco de dados ou processo similar, em qualquer forma
ou meio, seja eletrônico, de fotocópia, gravação etc., sem a permissão dos detentores dos copyrights.
Título original: Låt den rätte komma in
Texto fixado conforme as regras do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (Decreto Legislativo nº 54, de 1995).
Editor responsável Camila Saraiva
Assistente editorial Lucas de Sena Lima
Tradução Marisol Santos Moreira
Preparação Silvia Massimini Felix
Revisão Erika Nakahata e Carmem T. S. Costa
Capa, fotomontagem da capa e projeto gráfico retina78
Crédito da epígrafe da página 187 trecho de Romeu e Julieta,
tradução de Bárbara Heliodora. © Pepeeme Traduções e Serviços Ltda, gentilmente cedido pelas Empresas Ediouro Publicações.
Editor Digital, Erick Santos Cardoso
Produção para ebook, S2 Books
1ª edição, 2012
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Lindqvist, John Ajvide
Deixa ela entrar / John Ajvide Lindqvist; tradução do sueco de Marisol Santos Moreira. São Paulo: Globo, 2012.
2.615 kb; ePUB
Título original: Låt den rätte komma in
ISBN 978-85-250-5294-0
1. Ficção sueca I. Título.
12-07143 CDD-839.73
Índice para catálogo sistemático:
1. Ficção : Literatura sueca 839.73
Direitos de edição em língua portuguesa para o Brasil adquiridos por Editora Globo S.A.
Av. Jaguaré, 1.485 – 05346-902 – São Paulo – Brasil
www.globolivros.com.br
Para Mia, minha Mia
Sumário
Capa
Folha de rosto
Créditos
Dedicatória
Primeira Parte
Quarta-feira, 21 de outubro de 1981
Quinta-feira, 22 de outubro
Sexta-feira, 23 de outubro
Sábado, 24 de outubro
Segunda Parte
Quarta-feira, 28 de outubro
Quinta-feira, 29 de outubro
Sexta-feira, 30 de outubro
Sábado, 31 de outubro
Terceira Parte
Quinta-Feira, 5 de Novembro
Sábado, 7 de novembro
Sábado, 7 de novembro (noite)
Sábado, 7 de novembro (madrugada)
Quarta Parte
Domingo, 8 de novembro
Domingo, 8 de novembro (noite)
Domingo, 8 de novembro (noite/madrugada)
Segunda-feira, 9 de novembro
Quinta Parte
Segunda-feira, 9 de novembro
Terça-feira, 10 de novembro
Quarta-feira, 11 de novembro
Quinta-feira, 12 de novembro
Epílogo
O LUGAR
Blackeberg.
Faz a gente pensar em trufas de coco, talvez em drogas. No filme Ett anständigt liv.[1] Talvez
em estação de metrô, em subúrbio. Depois não há muito mais em que pensar. Existe gente que
mora ali, assim como em outros lugares. É por isso que Blackeberg foi construída; para as
pessoas terem um canto para morar.
Não é um lugar que foi crescendo naturalmente, não mesmo. Aqui tudo estava dividido em
unidades desde o início. As pessoas tiveram de se mudar para o que já existia ali. Edifícios de
cimento em tons terra, jogados no meio do verde.
Quando essa história acontece, faz trinta anos que Blackeberg existe como lugar. A gente
poderia imaginar um espírito pioneiro. Mayflower; uma terra desconhecida. O.k. Imaginar as
casas desabitadas esperando por seus moradores.
E lá vêm eles!
Marchando pela ponte de Traneberg com o brilho do sol e os sonhos no olhar. O ano é 1952.
As mães carregam seus filhos nos braços ou em carrinhos de bebê, levam-nos pela mão. Os pais
não trazem enxadas nem pás, mas sim eletrodomésticos e móveis funcionais. Provavelmente
cantam alguma coisa. “A Internacional”, talvez. Ou “Se vi gå upp till Jerusalem”,[2] dependendo
da preferência.
A coisa é grande. É nova. É moderna.
Mas, na verdade, não foi bem assim.
Eles chegaram de metrô. Ou de carro, camionetes de mudança. Um de cada vez. Entraram aos
poucos nos apartamentos prontos e trouxeram coisas. Organizaram tudo em divisórias e
prateleiras pré-fabricadas, deixaram os móveis alinhados no piso de linóleo. Compraram coisas
novas para preencher os espaços vazios.
Quando tudo estava pronto, levantaram os olhos e contemplaram a terra que lhes foi
concedida. Saíram dos prédios e descobriram que toda a terra já estava aberta e revolvida. Era
só se sujeitar ao que havia ali.
Havia um centro. Havia parques enormes para as crianças. Havia amplas áreas verdes bem ao
lado. Havia muitas calçadas.
Um lugar bom. As pessoas diziam isso umas às outras à mesa da cozinha mais ou menos um
mês depois da mudança.
— Viemos para um lugar bom.
Só uma coisa estava faltando. Uma história. No colégio, as crianças não podiam fazer nenhum
trabalho escolar sobre o passado de Blackeberg, já que tal passado não existia. Não, minto.
Havia a história de um moinho. De um grande industrial do rapé. Construções antigas e estranhas
lá embaixo no lago. Mas isso aconteceu muito tempo atrás e não tem nenhuma relação com o
presente.
No lugar onde está agora o prédio de três andares, antes era só mato.
As pessoas estavam fora de alcance dos mistérios do passado; nem sequer tinham uma igreja.
Um lugar com dez mil habitantes sem uma igreja.
Isso diz algo sobre a modernidade e a racionalidade do lugar. Isso diz algo sobre o quanto se
estava livre dos fantasmas e do terror da história.
Isso explica em parte o quanto se estava despreparado.
Ninguém viu quando eles se mudaram.
Quando a polícia finalmente conseguiu localizar, em dezembro, o motorista que levou a
mudança, ele não tinha muito o que contar. Em seus registros de 1981, lia-se apenas: “Dia 18 de
outubro: Norrköping para Blackeberg (Estocolmo)”. Lembrou que eram um homem e sua filha,
uma graça de menina.
— Ah, espere… Eles não trouxeram quase nada. Um sofá, uma poltrona, uma cama. Serviço
fácil, nesse sentido. E… bem, eles queriam que a mudança fosse de madrugada. Eu disse que
ficaria muito mais caro com o adicional noturno. Mas não teve problema. Era só a gente fazer de
madrugada. Isso é o que importava. Aconteceu alguma coisa?
O motorista da mudança ficou sabendo do que se tratava, quem ele levara no caminhão.
Arregalou os olhos e viu suas anotações.
— Caramba…
Sua boca se contorceu numa careta, como se ele tivesse ficado com nojo da própria caligrafia.
Dia 18 de outubro: Norrköping para Blackeberg (Estocolmo).
Havia sido ele quem levara os dois. O homem e a menina.
Ele não ia contar pra ninguém. Nunca.
PRIMEIRA PARTE
Feliz daquele que tem
um amigo como esse
Problemas de amor
causam muita dor,
rapazes!
Siw Malmkvist,
“Kärleksgrubbel”
I never wanted to kill, I am not naturally evil
Such things I do
Just to make myself more attractive to you
Have I failed?
Morrissey,
“The last of the famous international playboys”
Quarta-feira, 21 de outubro de 1981
Quarta-feira, 21 de outubro de 1981
— E isso aqui, o que vocês acham que é?
Gunnar Holmberg, comissário da polícia de Vällingby, segurava no alto um saquinho plástico
contendo um pó branco.
Talvez heroína, mas ninguém arriscava dizer alguma coisa. Ninguém queria parecer suspeito
de conhecer esse tipo de coisa. Especialmente se tivesse um irmão ou um amigo do irmão que
mexesse com isso. Que injetasse heroína. Até mesmo as meninas estavam caladas. O policial
sacudiu o saquinho.
— Será que é fermento em pó? Farinha?
Um burburinho dizendo que não. O policial não podia sair dali achando que a turma do 6º ano
B era um bando de idiotas. É verdade que era impossível afirmar o que havia no saquinho, mas a
lição era sobre drogas, então dava para tirar certas conclusões. O policial se virou para a
professora.
— O que a senhora ensina na aula de economia doméstica?
A professora sorriu e encolheu os ombros. A turma caiu na risada; o policial era legal. Alguns
dos meninos tinham até tocado em seu revólver antes do início da aula. Não estava carregado, é
verdade, mas ainda assim…
O peito de Oskar fervia. Sabia a resposta da pergunta. Doía-lhe não falar quando sabia.
Queria que o policial olhasse para ele. Olhasse e lhe dissesse algo depois que ele desse a
resposta correta. Era uma burrice fazer isso, Oskar sabia, mas mesmo assim levantou a mão.
— Diga.
— É heroína, não é?
— É, sim. — O policial olhou para ele com simpatia. — Como você adivinhou?
Todos se viraram em sua direção, curiosos com o que ele iria dizer.
— Bem, é que… eu leio muito, só isso.
O policial balançou a cabeça, aprovando.
— Isso é bom. Ler. — Ele sacudiu o saquinho plástico. — Não se tem muito tempo para
leituras quando se toma isso aqui. Quanto será que custa um desses, o que vocês acham?
Oskar não precisava dizer mais nada. Recebera o olhar e a atenção que queria. Até pôde dizer
para o policial que lia muito. Era mais do que tinha esperado.
Sonhou acordado. Com o policial que ia em sua direção depois da aula e estava interessado
nele, sentava-se ao seu lado. Então ele contaria tudo. E o policial entenderia. Faria um afago em
seu cabelo e diria que ele era um menino bom; abraçaria Oskar e diria…
— Dedo-duro de uma figa.
Jonny Forsberg cutucou Oskar de lado com o dedo. O irmão de Jonny andava com uma turma
que usava drogas e Jonny sabia um monte de palavras que os outros garotos da turma aprendiam
rapidamente. Jonny provavelmente sabia o valor exato daquele saquinho, mas não dedurava. Não
ficava de papo com policial.
Era hora do intervalo e Oskar parou perto de onde os casacos estavam pendurados, indeciso.
Jonny queria bater nele — qual seria o melhor jeito de escapar? Ficar no corredor ou ir para
fora? Jonny e os outros saíram em disparada para o pátio da escola.
Isso; o policial ficaria com a viatura no pátio e aqueles que tivessem interesse podiam olhá-la
de perto. Jonny não ousaria ir para cima dele enquanto o policial estivesse ali.
Oskar desceu para a entrada da escola e olhou pela vidraça. Toda a turma estava, como ele
tinha previsto, em volta da viatura. Oskar também queria estar ali, mas nem pensar. Alguém daria
uma joelhada nele, outro puxaria sua cueca para cima, que ficaria enfiada bem no meio da bunda,
com polícia ou sem polícia.
Mas de qualquer forma ele teve uma prorrogação, nesse intervalo das aulas. Foi para o pátio
da escola e deu a volta, indo discretamente para os fundos do prédio, até o banheiro.
Lá dentro Oskar aguçou os ouvidos e tossiu, limpando a garganta. O som ecoou entre os
sanitários. Rapidamente, tirou da cueca a Bola do Mijo, um pedaço de espuma do tamanho de
uma tangerina que ele cortara de um colchão velho, com um furo para enfiar o pênis. Cheirou a
espuma.
É, ele já tinha se mijado um pouco. Oskar lavou a espuma debaixo da torneira e a torceu,
tirando dela o máximo de água.
Incontinência. Era esse o nome. Havia lido sobre isso num folheto informativo que pegara
escondido na farmácia. Era mais um problema de mulher velha.
E meu.
Havia paliativos à venda, estava escrito no folheto, mas ele não usaria a mesada para passar
vergonha na farmácia. E não ia de jeito nenhum contar isso para a mãe; ela sentiria tanta pena
dele que Oskar ia ficar doente.
Ele tinha a Bola do Mijo e ela funcionava, contanto que a coisa não piorasse.
Passos lá fora, vozes. Com a bola apertada na mão, Oskar deslizou para dentro de um
sanitário e se trancou ali, ao mesmo tempo que a porta do banheiro se abriu. Ele subiu sem fazer
barulho na tampa do vaso e se encolheu, de forma que os pés não aparecessem caso alguém
olhasse por debaixo da porta. Tentou não respirar.
— Pooorco?
Jonny, é claro.
— Porco, você está aí?
E Micke. Os piores. Não, Tomas era mais sacana, mas quase nunca participava quando havia
socos e arranhões. Esperto demais para isso. Provavelmente estava puxando o saco do policial
agora. Se a Bola do Mijo fosse descoberta, seria Tomas quem realmente se aproveitaria disso
para humilhá-lo durante um bom tempo. Jonny e Micke dariam um soco e pronto. De certa forma,
ainda bem que…
— Porco? A gente sabe que você está aqui.
Eles sentiram a porta. Sacudiram a porta. Golpearam a porta. Oskar passou os braços em
volta dos joelhos e trincou os dentes para não gritar.
Saiam daqui! Deixem-me em paz! Por que vocês não me deixam em paz?
Agora Jonny falou com voz de veludo.
— Ô, porquinho, se você não sair daí agora a gente vai ter que te pegar depois da escola. É
isso que você quer?
O banheiro ficou em silêncio por um instante. Oskar respirou com cuidado.
Eles atacaram a porta com chutes e socos. Foi um estrondo e o trinco envergou para dentro.
Ele devia abrir, ir até eles antes que ficassem zangados demais, mas não conseguia.
— Pooorco?
Ele tinha levantado a mão, afirmado que existia, que podia alguma coisa. Isso era proibido.
Para ele. Eles inventavam um monte de desculpas para justificar por que Oskar precisava ser
torturado; era gordo demais, feio demais, nojento demais. Mas o problema verdadeiro era o
simples fato de ele existir, e cada lembrança da sua existência era um crime.
Provavelmente eles só iriam “batizá-lo”. Enfiar a cabeça dele no vaso e puxar a descarga.
Independentemente do que fossem aprontar, sempre era um grande alívio quando tudo terminava.
Mas por que Oskar não levantava o trinco, que se abriria de qualquer jeito, e deixava que eles se
divertissem?
Olhou para o trinco que se dobrou e saiu do gancho produzindo um estalo, olhou para a porta
que se escancarou batendo na parede do sanitário, para o sorriso triunfante na cara de Micke
Siskov, e ele sabia.
Porque o jogo não era assim.
Ele não levantara o trinco e eles não tinham pulado para dentro do sanitário em três segundos
porque as regras do jogo não eram assim.
O êxtase do caçador era deles, o pavor da vítima era de Oskar. Uma vez que ele fosse
capturado, a diversão se acabava e a punição em si era mais uma obrigação a ser cumprida. Se
Oskar desistisse cedo demais, havia o risco de eles colocarem toda a energia deles na punição, e
não na caça. E isso seria pior.
A cabeça de Jonny Forsberg apareceu.
— Escute aqui, você precisa abrir a tampa do vaso pra cagar. Agora grite que nem um porco.
Oskar gritou que nem um porco. Fazia parte. Se ele gritasse como um porco, às vezes eles
podiam deixar a punição de lado. Ele se esforçou mais que o normal, com medo de que durante a
punição eles o obrigassem a abrir a mão e, com isso, descobrissem seu segredo nojento.
Ele franziu o nariz imitando um focinho de porco, grunhiu e gritou, grunhiu e gritou. Jonny e
Micke riam.
— Porra, porco. Mais.
Oskar continuou. Apertou os olhos e continuou. Cerrou tanto os punhos que as unhas entraram
nas palmas das mãos. Continuou. Grunhiu e berrou até sentir um gosto estranho na boca. Então
parou. Abriu os olhos.
Eles tinham ido embora.
Oskar continuou sentado, encolhido em cima da tampa do vaso, olhando para o chão. Uma
mancha vermelha no ladrilho embaixo dele. Enquanto olhava, caiu no chão mais uma gota de
sangue do seu nariz. Ele arrancou um pedaço de papel higiênico do rolo e tapou o nariz.
Isso acontecia quando ele ficava com medo. Seu nariz começava a sangrar, assim, sem mais
nem menos. Isso ajudava em algumas ocasiões quando eles iam lhe bater, pois desistiam ao ver
que ele já estava sangrando.
Oskar Eriksson estava sentado todo encolhido com um pedaço de papel numa das mãos e a
Bola do Mijo na outra. Sangrando e se mijando, falando demais. Vazando por todos os buracos
do corpo. Não demoraria muito e também começaria a se borrar nas calças. Porco.
Ele se levantou e saiu do banheiro. Deixou a mancha de sangue onde estava. Tomara que
alguém veja a mancha, que fique pensando nela. Que ache que alguém foi morto aqui, já que
alguém tinha sido morto aqui. Pela centésima vez.
Håkan Bengtsson — um homem de quarenta e cinco anos com um começo de barriga
protuberante, os cabelos rareando e domicílio desconhecido para as autoridades — estava no
metrô olhando lá fora pela janela, estudando aquilo que seria seu novo lar.
Um pouco feio, é verdade. Norrköping era uma cidade mais bonita. Mesmo assim, esses
subúrbios da parte oeste não se pareciam em nada com os subúrbios de Estocolmo que ele vira
na tv; Kista, Rinkeby e Hallonbergen. Este aqui era diferente.
“próxima estação: råcksta.”
Um pouco mais arredondado, mais suave. Embora aqui houvesse um arranha-céu de verdade.
Ele esticou o pescoço para ver até o andar mais alto do complexo de salas comerciais da
empresa Vattenfall. Não podia se lembrar de um edifício desse tipo em Norrköping. Mas também
nunca estivera no centro da cidade.
Era na próxima estação que ele saltaria, não era? Olhou para o mapa das conexões do metrô
colado nas portas. Isso. Era na próxima.
“cuidado com as portas. elas serão fechadas.”
Será que alguém estava olhando para ele?
Não, havia bem poucas pessoas no vagão, todas concentradas em seus jornais. Amanhã
trariam notícias sobre ele.
Seus olhos pousaram num cartaz de anúncio de roupa íntima. Uma mulher numa pose
provocante de calcinha de renda e sutiã. Um absurdo. Por toda parte pele desnuda. Como é que
se permitia uma coisa dessas? O que isso fazia com a cabeça das pessoas, com o amor?
As mãos de Håkan tremiam e ele as repousou sobre as pernas. Estava extremamente nervoso.
— Será que não existe mesmo um outro jeito?
— Você acha que eu ia submetê-lo a isso se houvesse outro jeito?
— Não, mas…
— Não existe nenhum outro jeito.
Nenhum outro jeito. Restava apenas fazer. E fazer direito. Ele consultara o mapa no catálogo
telefônico e escolhera uma área verde que provavelmente servia, depois arrumou a bolsa e
partiu.
Arrancara o logotipo da Adidas com a faca que agora estava na bolsa entre seus pés. Isso foi
uma das coisas que deram errado em Norrköping. Alguém se lembrou da marca da bolsa e depois
a polícia a encontrou num contêiner onde Håkan a jogara, não muito longe do apartamento deles.
Hoje ele levaria a bolsa para casa. Devia cortá-la, fazê-la em pedacinhos, jogar tudo no vaso
e dar descarga. Era assim que se fazia?
Como é que se costuma fazer?
“parada final para todos os passageiros.”
O metrô vomitou sua carga e Håkan seguiu os outros com a bolsa na mão. Ela pesava, embora
a única coisa ali dentro que tinha algum peso fosse o cilindro de alta pressão. Ele se esforçou
para andar normalmente, não como um homem a caminho da própria execução. Não devia chamar
a atenção das pessoas.
Mas as pernas pareciam chumbo, queriam se fundir com a estação. E se ele apenas ficasse
ali? E se ficasse imóvel, não movesse nenhum músculo e não saísse dali? Esperasse que a
madrugada viesse, que alguém o notasse, telefonasse para… alguém que iria buscá-lo. Que o
levaria para outro lugar.
Continuou andando num ritmo normal. Perna direita, perna esquerda. Não podia falhar. Coisas
terríveis aconteceriam se ele falhasse. O pior que se podia imaginar.
Lá em cima, nas catracas, olhou ao redor. Seu senso de orientação espacial era ruim. Para que
lado estava a área do bosque? É claro que ele não podia perguntar a ninguém. Tinha que arriscar.
Ande, acabe logo com isso. Perna direita, perna esquerda.
Deve haver outro jeito.
Mas ele não conseguia pensar em nada. Havia certas condições, certos critérios. Essa era a
única maneira de obedecê-los.
Håkan fizera isso duas vezes, e nas duas não fizera direito. Em Växjö foi menos grave, mas
ruim o suficiente para que eles fossem obrigados a se mudar. Hoje ele faria tudo certinho, e seria
muito elogiado.
Carícias, talvez.
Duas vezes. Ele já estava condenado. Que importância tinha uma terceira vez? Nenhuma. A
punição da sociedade provavelmente seria a mesma. Prisão perpétua.
E a punição moral? Quantas voltas com a cauda, rei Minos?
O caminho do parque mudava de direção mais à frente, onde o bosque começava. Deve ser o
bosque que ele tinha visto no mapa. O cilindro de alta pressão e a faca esbarravam um no outro.
Tentou carregar a bolsa sem sacudi-la.
Uma criança apareceu no caminho, à sua frente. Uma menina de uns oito anos voltando da
escola, com a mochila batendo no quadril.
Não! Nunca!
Isso já era demais. Não com uma criança tão pequena. Melhor com ele mesmo, até cair duro
no chão. A menina cantarolava alguma coisa. Ele apressou os passos para se aproximar dela,
para poder ouvi-la.
Du lilla solsken som tittar in
igenom fönstret i stugan min…[3]
As crianças ainda cantavam isso? Talvez a menina tivesse uma professora antiga. Que bacana
que essa canção ainda existia. Ele queria ficar mais perto para ouvir melhor, tão perto a ponto de
sentir o cheiro do cabelo da menina.
Diminuiu o passo. Não devia aprontar nada. A menina saiu do caminho do parque e continuou
por uma trilha no bosque. Provavelmente morava nos prédios do outro lado. Como é que os pais
a deixavam andar assim, totalmente sozinha? Era muito pequena.
Ele parou, deixou a menina ganhar distância e desaparecer no bosque.
Continue andando, menina. Não pare para brincar no bosque.
Ele esperou talvez por um minuto, ouviu um tentilhão cantando numa árvore ao lado. Depois
foi atrás da menina.
Oskar voltava da escola para casa, com a cabeça pesada. Sentia-se pior quando conseguia
escapar do castigo deste jeito: imitando porco ou qualquer outra coisa. Pior do que se tivesse
sido castigado. Ele sabia que era assim, entretanto não conseguia aceitar o castigo quando a hora
chegava. Era melhor se rebaixar e fazer qualquer coisa. Zero de orgulho.
Robin Hood e o Homem-Aranha tinham orgulho. Se Sir John ou Doutor Octopus lhes
pusessem numa situação difícil, eles cuspiam na cara do perigo mesmo que não houvesse
nenhuma chance de escapar.
Mas o que o Homem-Aranha sabia, afinal de contas? Já que mesmo assim ele sempre
conseguia escapar, apesar de ser impossível. Ele era um personagem de história em quadrinhos e
precisava sobreviver para o próximo número. Tinha os poderes de aranha; Oskar, o grunhido de
porco. Qualquer coisa servia para sobreviver.
Oskar precisava de consolo. Teve um dia de cão e agora teria a compensação. Apesar do
risco de encontrar Jonny e Micke, foi para o centro de Blackeberg, até o supermercado Sabis.
Arrastou-se pela rampa em zigue-zague em vez de subir as escadas. Juntava forças. Precisava
ficar calmo, não suar.
Tinha sido pego uma vez por pequenos furtos no Konsum, um ano atrás. O segurança quis ligar
para a mãe de Oskar, mas ela estava no trabalho e o menino não sabia o número de lá, não sabia,
de jeito nenhum. Durante uma semana, Oskar ficara agoniado a cada toque do telefone, mas em
vez disso veio uma carta, endereçada à sua mãe.
Uma idiotice. Até dava para ler “Polícia da Província de Estocolmo” no envelope, e
naturalmente Oskar abriu a carta, leu sobre seus crimes, falsificou a assinatura da mãe e enviou a
correspondência de volta para confirmar que tinha lido. Talvez covarde, mas burro, não.
Sobre ser covarde. Será que era uma covardia o que ele estava fazendo agora? Encher os
bolsos do casaco de chocolates Dajm, Japp, Coco e Bounty. Para finalizar, um saco de balas
entre a barriga e o cós das calças. Foi ao caixa e pagou por um pirulito Dumle.
No caminho de casa, andou com a cabeça erguida e passos leves. Ele não era o porco em
quem todo mundo queria bater, era o Grande Ladrão que desafiava os perigos e sobrevivia.
Podia enganar todos eles.
Depois de cruzar a entrada do pátio do prédio, Oskar estava seguro. Nenhum dos seus
inimigos morava no pátio, um círculo irregular no interior do círculo maior da Ibsengatan. Uma
fortaleza em dobro. Aqui ele se sentia em segurança. Aqui nesse pátio nada de ruim jamais lhe
acontecera. No geral.
Aqui ele crescera e aqui tivera amigos antes de entrar na escola. Foi só no quinto ano que
Oskar começou a ser excluído de verdade. Quando o quinto ano estava acabando, foi nomeado o
bobalhão da turma e isso contagiou até mesmo colegas que não eram da sua turma, que
telefonavam cada vez menos chamando-o para brincar.
Também foi nessa época que Oskar começou com o álbum de recortes. Aquele que estava em
casa e com o qual ele iria se deliciar agora.
Vruuum!
Um zunido e alguma coisa bateu em seus pés. Um carrinho vermelho- -escuro movido a
controle remoto deu ré para longe, virou-se e subiu a ladeira em direção à porta do prédio de
Oskar em alta velocidade. Atrás das urzes à direita da entrada do pátio estava Tommy com uma
antena comprida despontando da barriga; ele riu.
— Peguei você de surpresa, não foi?
— Ele anda bem rápido.
— É. Quer comprar?
— … quanto?
— Trezentos.
— Não dá. Não tenho.
Tommy chamou Oskar com o indicador, deu meia-volta no carro na ladeira e fez o brinquedo
descer numa velocidade de carro de corrida. O carrinho parou derrapando na frente dos seus pés,
e Tommy apanhou o brinquedo, deu uma batidinha nele e disse em voz baixa:
— Custa novecentos na loja.
— É.
Tommy olhou para o carro, em seguida olhou para Oskar de cima a baixo.
— Duzentos, vai? Olhe aí, está novinho em folha.
— É, ele é bem bonito, mas…
— Mas?
— Não.
Tommy balançou a cabeça aceitando, pôs o carrinho no chão de novo e comandou o brinquedo
para o meio dos arbustos de forma que as rodas grandes e cheias de protuberâncias sacudiram.
Deixou o brinquedo dar a volta no lugar onde se limpavam tapetes, ir para a rua e depois subir a
ladeira.
— Posso provar?
Tommy olhou para Oskar, pensando se ele merecia ou não, depois entregou o controle remoto
e apontou para o lábio superior do menino.
— Levou porrada? Você está com sangue. Aqui.
Oskar passou o indicador no lábio, uns pontinhos marrons ficaram agarrados.
— Não, eu só…
Era melhor não contar. Não adiantava nada. Tommy era três anos mais velho. Durão. Só
aconselharia que ele revidasse e Oskar diria “claro”, e o único resultado seria cair ainda mais no
conceito de Tommy.
Oskar comandou o carrinho durante um tempo e depois ficou olhando enquanto Tommy
dirigia. Desejou ter duzentos contos para que pudessem fazer negócio. Fazer algo juntos. Enfiou
as mãos nos bolsos do casaco e sentiu os doces.
— Quer um Dajm?
— Não, não gosto de Dajm.
— E um Japp?
Tommy tirou os olhos do controle remoto e sorriu.
— Você tem os dois?
— Tenho.
— Surrupiou?
— … é.
— O.k.
Tommy abriu a mão e Oskar pôs nela um Japp, que Tommy enfiou no bolso de trás do jeans.
— Obrigado. Tchau.
— Tchau.
Chegando em casa, Oskar esparramou todos os doces na cama. Começaria com o chocolate
Dajm para então comer os pedaços duplos e arremataria com um Bounty, o favorito dele. Depois
as balas, que limpavam a boca.
Oskar arrumou os doces fazendo no chão uma fileira que acompanhava a cama, na ordem em
que seriam comidos. Na geladeira, achou uma cola-cola pela metade com um pedaço de papel-
alumínio tapando o gargalo, obra da sua mãe. Perfeito. Ele gostava mais de coca-cola meio sem
gás, especialmente com doces.
Tirou o papel-alumínio e depositou a garrafa no chão ao lado dos doces, deitou-se de barriga
para baixo na cama e examinou a estante de livros. Uma coleção quase completa da série A hora
do arrepio, completada aqui e ali com Suspense da hora do arrepio.
A maior parte da coleção era composta de duas sacolas de papel com livros que Oskar
comprara por duzentas coroas através de um anúncio no Gula Tidningen. Pegara o metrô para
Midsommarkransen e seguira a descrição do caminho até encontrar o apartamento. O homem que
abriu a porta era gordo, de tez amarelada e silvava ao falar. Felizmente ele não convidou Oskar
para entrar, apenas levou as sacolas com os livros para o corredor, recebeu as duzentas coroas
com um aceno de cabeça, disse “Divirta-se” e fechou a porta.
Então Oskar ficou preocupado. Fazia meses que ele procurava pelos números antigos dessa
série nos sebos de quadrinhos da Götgatan. Ao telefone, o homem dissera que se tratava
justamente dos números antigos. Tudo foi fácil demais.
Assim que Oskar ficou fora da vista do homem, pôs as sacolas no chão e examinou o
conteúdo. Não tinha sido enganado. Quarenta e cinco livros, do número 2 ao 46.
Essas revistas não estavam mais à venda. Só duzentos contos!
Não foi estranho ter ficado com um pouco de medo do homem. O que ele tinha acabado de
fazer era nada mais nada menos que roubar o tesouro do duende.
Mesmo assim, elas não ganhavam do seu álbum de recortes.
Do esconderijo debaixo da pilha de revistas em quadrinhos, depois de ficar remexendo, ele
tirou o álbum. O caderno em si era apenas um bloco grande de desenho que ele tinha surrupiado
da loja Åhlens em Vällingby; saíra calmamente da loja com o bloco debaixo do braço, assim
mesmo — quem disse que ele era covarde? —, mas o conteúdo…
Oskar abriu o Dajm, deu uma grande mordida, saboreando o crocante que dava pontadas nos
dentes, e abriu o álbum. O primeiro recorte era da revista Hemmets Journal: a história de uma
assassina nos Estados Unidos dos anos 1940. Ela conseguira envenenar catorze velhinhos com
arsênico antes de ser presa, condenada e executada na cadeira elétrica. Ela pediu para ser
executada com veneno, bastante lógico, mas o estado onde ela atuara utilizava a cadeira, e foi a
cadeira o que se usou.
Este era um dos sonhos de Oskar: poder ver alguém sendo executado na cadeira elétrica. Ele
havia lido que o sangue começava a ferver, que o corpo se retorcia em ângulos impossíveis.
Imaginava também que os cabelos pegassem fogo, mas não tinha nenhuma confirmação disso por
escrito.
Mesmo assim, era o máximo.
Ele continou folheando. O próximo recorte era do jornal Aftonbladet e dizia respeito a um
assassino sueco que desmembrava os corpos. Uma foto de passaporte ruinzinha. Parecia uma
pessoa comum. Mesmo assim, matara dois michês homossexuais na sauna dele, cortara os corpos
com uma serra elétrica e enterrara tudo atrás da sauna. Oskar comeu o último pedaço do Dajm e
olhou de perto o rosto do homem. Uma pessoa comum.
Podia ser eu daqui a vinte anos.
Håkan encontrara um bom lugar para ficar de guarda, de onde tinha uma clara visão da trilha
no bosque em ambas as direções. Mais no interior do bosque, descobriu uma baixada escondida
no terreno com uma árvore no meio e deixou a bolsa com o equipamento ali. O cilindro de alta
pressão com halotano estava pendurado numa correia debaixo do seu sobretudo.
Agora era só esperar.
Jag ville också en gång bli stor
och så förståndig som far och mor[4]
Ele não ouvia ninguém cantar essa canção desde a época de escola. Será que era Alice
Tegnér? Vejam só quantas canções bonitas desapareceram, canções que ninguém mais cantava.
Tudo de belo que desaparecera.
Não se respeitava o belo. Coisa característica da sociedade de hoje. As obras dos grandes
mestres podiam no máximo ser usadas como referências irônicas ou para fazer parte de anúncios.
Em A criação de Adão de Michelangelo, por exemplo, alguém pusera calças jeans no lugar da
centelha da vida.
O sentido da obra, da forma como ele via, eram esses dois corpos monumentais que
terminavam em dois indicadores que quase, mas na realidade não se tocavam. Havia um espaço
vazio de um milímetro entre eles. E nesse espaço vazio: a Vida. A enormidade escultural desse
afresco e a riqueza de detalhes eram apenas uma moldura, uma obra secundária para acentuar
ainda mais o vazio milimétrico no meio dela. O ponto vazio onde havia espaço para tudo.
E, no lugar dele, alguém pusera calças jeans.
Uma pessoa vinha pela trilha. Håkan se agachou, sentindo as batidas do coração nos ouvidos.
Não. Um homem velho com um cachorro. Erro em dobro. Por um lado, um cachorro que ele tinha
que aquietar; por outro, a qualidade ruim.
Muito grito por pouca lã, disse ele que cortou o pelo do porco.
Olhou o relógio. Dentro de duas horas seria noite. Se não viesse alguém que servisse dentro
de uma hora, ele tinha que pegar o primeiro que aparecesse. Precisava estar em casa antes de
escurecer.
O homem disse alguma coisa. Será que vira Håkan? Não, ele falava com o cachorro.
“Iiisso, como você estava apertaaada, minha filha. Quando a gente chegar em casa, vou te dar
um pedaço de patê de fígado. Vai ganhar do papai uma bela fatia.”
O cilindro com halotano se espremeu contra o peito de Håkan quando ele enterrou a cabeça
nas mãos e suspirou. Pobres seres humanos. Pobres seres humanos solitários num mundo sem
beleza.
Håkan sentia frio. O vento esfriara de tarde: ia apanhar a capa de chuva da bolsa e vesti-la
por cima da roupa para se proteger do vento. Não. Isso tiraria sua agilidade na hora em que
precisava ser rápido. Além do mais, podia levantar suspeitas antecipadamente.
Passaram duas moças de uns vinte anos. Não. Não aguentava duas. Conseguiu fisgar
fragmentos da conversa.
— … que ela não vai tirá-lo agora.
— … é um palhaço. Ele precisa entender que…
— … a culpa é dela, já que… não com anticoncepcional…
— Mas é que ele precisa…
— … você pode imaginar… ele como pai…
Alguma colega que estava grávida. Um garoto que não assumia a responsabilidade. As coisas
eram assim. O tempo todo. Todo mundo só pensava em si mesmo. Minha felicidade, meu
sucesso, era só o que se ouvia. Amor é depositar nossa vida aos pés de outra pessoa, e isso os
indivíduos de hoje são incapazes de fazer.
O frio penetrava em suas articulações, ele se atrapalharia seja lá de que jeito fizesse. Enfiou a
mão no interior do casaco e apertou o gatilho do cilindro. Um chiado. Funcionava. Largou o
gatilho.
Ficou mexendo com os braços para a frente e para trás a fim de se aquecer. Tomara que
chegue alguém agora. Sozinho. Consultou o relógio. Mais meia hora. Tomara que chegue alguém
agora. Em nome da vida e do amor.
Mas eu quero no coração ser criança sempre
Pois às crianças o reino de Deus pertence.
Já começara a anoitecer quando Oskar acabou de folhear o álbum inteiro. Comera todos os
doces. Como sempre, depois de tanto doce, ele se sentia empanturrado e com a consciência
pesada.
A mãe só chegava daqui a duas horas. Então iam jantar. Depois Oskar ia fazer o dever de
inglês e de matemática. Em seguida ia ler um livro ou ver televisão com a mãe. Nada de especial
na tv hoje à noite. Depois iam beber chocolate quente e comer pão doce, conversar um pouco. E
aí ele ia se deitar e ter dificuldade de dormir de tão angustiado que ficava com o dia seguinte.
Se ele tivesse alguém para quem ligar… Oskar podia, é claro, ligar para Johan, esperar que
ele não estivesse fazendo nada.
Johan era da sua classe e os dois se divertiam quando estavam juntos, mas, se houvesse uma
alternativa, Oskar não era a escolha dele. Era Johan quem ligava para Oskar quando estava
entediado, não o contrário.
O apartamento estava em silêncio. Não acontecia nada. As paredes de cimento se fechavam ao
seu redor. Ele estava sentado na cama com as mãos no colo, o estômago pesado de doces.
Como se fosse acontecer alguma coisa. Agora.
Oskar prendeu a respiração e aguçou os ouvidos. Um pavor pegajoso foi tomando conta dele
de mansinho. Alguma coisa se aproximava. Um gás incolor vazava das paredes, ameaçava tomar
a forma de algo, engoli-lo. Ele estava petrificado, com a respiração suspensa e os ouvidos
aguçados. Esperando.
O momento passou. Oskar voltou a respirar de novo.
Foi para a cozinha, bebeu um copo d’água e apanhou a maior faca que havia na barra
magnética. Testou o gume na unha do polegar, como o pai tinha ensinado. Cega. Passou a faca no
amolador algumas vezes e testou de novo. Uma lasca microscópica saiu da sua unha.
Agora sim.
Oskar enrolou o jornal em volta da faca fazendo uma bainha provisória, passou fita adesiva
nele e pôs o embrulho entre o cós das calças e o lado esquerdo do quadril. Apenas o cabo
apontava para fora. Tentou andar. A lâmina estava na frente da sua perna; ele virou a faca para
baixo e a dispôs ao comprido da virilha. Desconfortável, mas dava.
No corredor, vestiu o casaco. Lembrou-se em seguida de todos os papéis de doces espalhados
pelo chão do quarto. Juntou os papéis, amassou e enfiou tudo no bolso do casaco, no caso de a
mãe chegar em casa antes dele. Podia deixar os papéis embaixo de alguma pedra no bosque.
Verificou mais uma vez para ver se não havia deixado nenhum vestígio.
A brincadeira começara. Ele era um serial killer temido. Cartorze pessoas já tinham sido
mortas com sua faca afiada, isso sem deixar nem sequer uma pista. Nem mesmo um fio de cabelo,
nenhum papel de doce. Ele era temido pela polícia.
Agora ia para o bosque à procura da próxima vítima.
Estranhamente, ele já sabia seu nome, que cara ela tinha. Jonny Forsberg, com o cabelo longo
e os olhos grandes e maus. Ele precisaria implorar para ficar vivo, gritar como um porco, mas
seria em vão. A faca dará a última palavra e o chão sorverá o sangue dele.
Oskar leu essas palavras num livro e gostou delas.
“O chão sorverá o sangue dele.”
Enquanto trancava a porta de casa e saía do prédio com a mão esquerda no cabo da faca,
repetia a frase como se fosse um mantra.
O chão sorverá o sangue dele. O chão sorverá o sangue dele.
A entrada que Oskar usara para chegar ao pátio estava na ponta direita do seu bloco, mas ele
pegou a esquerda, passou por dois prédios e pela abertura onde os carros podiam entrar. Saiu da
parte interna da fortaleza. Cruzou a Ibsengatan e continuou descendo uma ladeira. Saiu da parte
externa da fortaleza. Continuou em direção ao bosque.
O chão sorverá o sangue dele.
Era a segunda vez neste dia que Oskar se sentia quase feliz.
Faltavam apenas dez minutos para o prazo final estabelecido por Håkan, quando um garoto
apareceu sozinho na trilha. De uns treze, catorze anos, segundo o que ele podia ver. Perfeito.
Pensou em correr agachado para a outra ponta da trilha e ir ao encontro do escolhido.
Mas agora as pernas não queriam mesmo sair do lugar. O menino andava descontraído pela
trilha e não havia muito tempo. A cada segundo que passava, diminuía a chance de que o
desempenho fosse perfeito. Ainda assim, as pernas se negavam a se mexer. Ele ficou olhando
paralisado enquanto o escolhido, o perfeito, seguia em frente, em breve na altura dele, bem à sua
frente. Em breve tarde demais.
Preciso. Preciso. Preciso.
Se não fizesse, teria que se matar. Não podia chegar em casa sem nada. Era assim. Ou ele ou o
garoto. Era só escolher.
Ele se pôs em movimento tarde demais. Agora vinha afoito tropeçando pelo caminho, bem na
direção do garoto, em vez de se aproximar calmamente do rapaz na trilha. Idiota. Só dá mancada.
Agora o garoto ficaria desconfiado, vigilante.
— Olá! — exclamou para o menino. — Com licença!
O garoto parou. Pelo menos não fugiu, ainda bem. Tinha que dizer alguma coisa, perguntar
algo. Ele se aproximou do menino, que esperava receoso na trilha.
— Perdão, mas… que horas são?
O garoto olhou furtivamente para o relógio de pulso de Håkan.
— É que o meu parou.
O corpo do garoto estava tenso quando ele consultou o relógio. Mais nada a fazer. Håkan
enfiou a mão dentro do sobretudo e pousou o indicador no gatilho do cilindro enquanto esperava
pela resposta do menino.
Oskar desceu a ladeira perto da gráfica e entrou na trilha do bosque. O nó no estômago
desapareceu, foi substituído por uma excitação inebriante. No caminho para o bosque, a fantasia
tomou conta de tudo ao redor e agora era realidade.
Ele via o mundo através dos olhos de um assassino, pelo menos através dos olhos de um
assassino que a fantasia de um menino de treze anos era capaz de criar. Um mundo bonito. Um
mundo onde Oskar tinha controle das coisas, que estremecia perante sua vontade.
Ele caminhava pela trilha do bosque procurando por Jonny Forsberg.
O chão sorverá o sangue dele.
Começou a escurecer e as árvores o envolviam como se fossem uma multidão calada,
vigiando os mínimos movimentos do assassino, temendo que uma delas fosse a eleita. Mas o
assassino atravessou a multidão e deixou-a para trás; já avistara sua vítima.
Jonny Forsberg estava numa elevação talvez a uns cinquenta metros da trilha. Tinha as mãos
nos quadris, o sorriso debochado estampado na cara. Achava que seria como de costume. Que ia
jogar Oskar no chão, tapar o nariz dele e enfiar agulhas de pinheiros e musgo em sua boca, ou
algo do tipo.
Mas ele se enganou. Não era Oskar quem vinha, era o Assassino, e a mão do Assassino
apertava agora o cabo da faca, preparando-se.
O Assassino se aproximou lenta e altivamente de Jonny Forsberg, olhou-o nos olhos e disse:
— Olá, Jonny.
— Olá, porquinho. Você tem permissão para ficar na rua a essa hora?
O Assassino tirou a faca. E deu o primeiro golpe.
— Quinze para as cinco, mais ou menos.
— Certo. Obrigado.
O garoto não foi embora. Ficou olhando para Håkan, que tentou dar um passo. O garoto não se
mexia, acompanhava Håkan com os olhos. Isso aqui não deu certo. Naturalmente o menino estava
desconfiado. Uma pessoa chegara fazendo um estardalhaço danado no bosque para saber as horas
e agora parecia um Napoleão com a mão enfiada no sobretudo.
— O que você tem aí?
O garoto apontou com a cabeça na direção do coração de Håkan. Sua cabeça estava vazia, ele
não sabia o que fazer. Tirou o cilindro de alta pressão do casaco e mostrou-o para o garoto.
— E o que é isso?
— Halotano.
— E por que você anda com isso por aí?
— Porque… — Ele passou os dedos na máscara bucal revestida de espuma e tentou pensar
em algo para dizer. Não sabia mentir. Era sua desgraça. — Bem, porque… faz parte do meu
trabalho.
— Que tipo de trabalho?
O garoto tinha relaxado um pouquinho. Uma bolsa de esporte parecida com a que Håkan
deixara na baixada estava na mão do garoto. Com a mão que segurava o cilindro, ele apontou na
direção da bolsa.
— Você vai para o treino?
Quando o garoto virou os olhos para a bolsa, Håkan aproveitou a chance.
Seus braços voaram, a mão que estava livre segurou a cabeça do garoto, a máscara do
cilindro foi pressionada em sua boca e o gatilho foi apertado até o nível máximo. Ouviu-se um
chiado como o de uma cobra grande e o garoto tentou soltar a cabeça, mas ela estava presa nas
mãos de Håkan como se estivesse num torno.
O garoto se jogou para trás e Håkan foi junto. O som sibilante da cobra abafou todos os outros
ruídos quando os dois caíram na serragem da trilha. Desesperadamente, Håkan manteve a cabeça
do garoto apertada entre suas mãos para a máscara não sair do lugar enquanto eles rolavam pela
trilha.
Depois de respirar fundo algumas vezes, o corpo do garoto começou a relaxar. Håkan
segurava a máscara no lugar e olhava ao redor.
Nenhuma testemunha.
O chiado do cilindro encheu seu cérebro como se fosse uma enxaqueca fortíssima. Travou o
gatilho e soltou com cuidado a mão livre, pegou a tira elástica e passou-a em volta da cabeça do
garoto. A máscara estava firme no lugar.
Levantou-se com os braços doloridos e olhou para a presa.
O garoto estava deitado com os braços afastados do corpo, a máscara cobria-lhe o nariz e a
boca, o recipiente com halotano estava em cima do seu peito. Håkan olhou ao redor mais uma
vez, apanhou a bolsa do garoto e depositou-a em cima da barriga dele. Depois levantou a carga
toda nos braços e carregou tudo para a baixada.
O garoto era mais pesado do que imaginava. Muitos músculos. Peso inconsciente.
Respirava com dificuldade depois do esforço de carregar o garoto para a baixada enquanto o
chiado do cilindro penetrava em seus ouvidos como as serras de uma faca. Resfolegou mais alto
de propósito para não ter de ouvir o barulho.
Com os braços dormentes e o suor escorrendo-lhe pelas costas, chegou por fim à baixada. Ali
depositou o garoto no ponto mais fundo do terreno. Em seguida se deitou ao lado dele. Fechou o
gás halotano e tirou a máscara da vítima. Tudo ficou em silêncio. O peito do garoto subia e
descia. Dentro de oito minutos, no máximo, o garoto acordaria. Mas isso não aconteceu.
Håkan estava deitado ao lado do rapaz, estudou seu rosto, acariciou-o com o indicador.
Depois foi para mais perto do menino, abraçou o corpo molenga e puxou-o para bem junto de si.
Beijou-o carinhosamente no rosto, sussurrou “perdão” no ouvido dele e se levantou.
As lágrimas queriam transbordar quando ele viu o corpo indefeso no chão. Håkan ainda podia
parar.
Universos paralelos. Um consolo para a mente.
Havia um universo paralelo onde Håkan não fazia isso que estava prestes a fazer. Um
universo onde ele ia embora e deixava o menino acordar, imaginando o que tinha acontecido.
Mas não neste universo. Neste universo ele ia agora até a bolsa e a abria. Não podia demorar.
Rapidamente, vestiu a capa de chuva por cima da roupa e apanhou os utensílios. A faca, uma
corda, um funil grande e um garrafão de plástico de cinco litros.
Depositou tudo no chão ao lado do garoto e contemplou o corpo jovem uma última vez.
Depois apanhou a corda e começou a trabalhar.
Oskar golpeou, golpeou e golpeou. Depois do primeiro golpe, Jonny entendeu que essa não
seria uma ocasião igual às outras. Com o sangue jorrando de um corte profundo na bochecha, ele
tentou escapar, mas o Assassino foi mais rápido. Com algumas incisões ligeiras, rompeu os
tendões da parte de trás dos joelhos da vítima e Jonny caiu no chão, ficou se contorcendo no
musgo e suplicando por clemência.
Mas o Assassino não se deixou persuadir. Jonny gritou que nem… um porco quando o
Assassino se jogou em cima dele e o chão sorveu seu sangue.
Uma facada por aquilo no banheiro hoje. Uma pela vez que você me enganou no pôquer de
nós dos dedos. Seus lábios, eu corto fora por causa de tudo de ruim que você me falou.
Jonny vazava por todos os buracos e não podia mais dizer ou fazer nada de mal. Já estava
morto havia muito tempo. Oskar finalizou furando-lhe o globo ocular arregalado, tchuqui,
tchuqui, levantou-se e contemplou a obra.
Pedaços grandes da árvore tombada e carcomida, que tinham sido o Jonny caído, haviam se
soltado e o tronco estava perfurado pelos golpes. Farpas espalhadas ao pé da árvore saudável
que tinha sido o Jonny quando ele estava em pé.
A mão direita, a mão da faca, doía. Um corte pequeno quase em cima do pulso; a lâmina deve
ter escorregado na hora em que ele desferia os golpes. Não era uma faca boa para essa
finalidade. Lambeu a mão e limpou a ferida com a língua. Era o sangue de Jonny que ele bebia.
Limpou o resto do sangue na bainha de jornal, enfiou a faca ali e pôs-se a caminho de casa.
O bosque, que alguns anos atrás parecia ameaçador, uma toca de inimigos, era agora o lar e o
refúgio de Oskar. As árvores se afastaram em sinal de respeito quando ele passou por elas. Não
sentia um pingo de medo, embora já começasse a escurecer de verdade. Nenhuma angústia em
relação ao dia seguinte, ele podia trazer o que fosse. Dormiria bem hoje à noite.
Já de volta ao pátio do prédio, sentou-se por um instante no canto de uma caixa de areia para
se acalmar antes de ir para casa. Amanhã arranjaria uma faca melhor, uma faca com punho ou,
como era mesmo o nome daquilo… punho em cesto, assim não se cortaria de novo. Porque ele
faria isso mais vezes.
Era uma brincadeira boa.
Quinta-feira, 22 de outubro
A mãe tinha lágrimas nos olhos quando pegou a mão de Oskar na mesa da cozinha e apertou-a
com força.
— Você está terminantemente proibido de se meter no bosque, está me ouvindo?
Um garoto da idade de Oskar tinha sido morto em Vällingby na noite anterior. Os jornais da
tarde haviam noticiado e a mãe estava totalmente fora de si quando chegou em casa.
— Podia ter sido… nem quero pensar nisso.
— Mas foi em Vällingby.
— E você acha que alguém que ataca crianças não ia pegar o metrô e andar mais duas
estações? Ou vir a pé? Vir para Blackeberg e fazer a mesma coisa mais uma vez? Você costuma
ficar no bosque?
— Não.
— Você não vai sair daqui do pátio a partir de hoje, enquanto esse… Até a polícia pegar esse
homem.
— Então eu não vou à escola?
— Vai sim, você vai à escola. Mas depois da escola você vem direto para casa e não vai sair
do prédio até eu chegar em casa.
— E depois?
A tristeza nos olhos da mãe misturou-se com a raiva.
— Você quer ser assassinado, quer? Quer se meter no bosque e ser morto, e eu aqui aflita
esperando enquanto você está caído lá no bosque e é… esquartejado bestialmente por alguém…
As lágrimas transbordaram dos seus olhos. Oskar pôs a mão em cima da dela.
— Eu não vou para o bosque. Prometo.
A mãe acariciou o rosto dele.
— Coração, você é tudo o que tenho. Nada pode lhe acontecer. Caso contrário, eu também
morro.
— Ahã. Como é que foi?
— O quê?
— Isso aí. O assassinato.
— Sei lá. Ele foi assassinado por algum maluco com uma faca. Está morto. A vida dos pais
está destruída.
— Não está no jornal?
— Não aguentei ler.
Oskar apanhou o jornal Expressen e o folheou. Quatro páginas dedicadas ao assassinato.
— Você não vai ler isso.
— Não, só estou dando uma olhada. Posso ficar com o jornal?
— Você não deve ler sobre isso. Não faz bem, junto com todas essas histórias de terror que
você vive lendo.
— Eu só vou olhar a programação da tv.
Oskar se levantou para ir para o quarto, com o jornal nas mãos. A mãe deu um abraço
desajeitado no filho e apertou seu rosto molhado no dele.
— Meu filho, você entende minha preocupação, não entende? Se alguma coisa acontecer com
você…
— Eu sei, mãe. Eu sei. Eu tomo cuidado.
Oskar retribuiu um pouco o abraço e depois se soltou com cuidado dos braços da mãe; foi
para o quarto enquanto limpava do rosto as lágrimas dela.
Isso aqui era o máximo.
Se ele entendeu bem, o garoto tinha sido morto quase ao mesmo tempo que ele estava
brincando no bosque. Infelizmente não fora Jonny Forsberg o assassinado, mas um garoto
desconhecido de Vällingby.
Havia um clima de enterro em Vällingby na parte da tarde. Ele tinha lido as manchetes dos
jornais antes de ir para lá, e talvez fosse apenas fruto da sua imaginação, mas achou que as
pessoas na praça falavam mais baixo, andavam mais devagar do que de costume.
Na loja de ferragens, Oskar surrupiara uma faca de caça extremamente bonita no valor de
trezentos contos. Tinha uma explicação caso fosse pego com a mão na massa.
— Desculpe, tio. Mas é que eu estou com muito medo do assassino.
Ele podia com certeza também forçar umas lágrimas, caso a coisa dependesse disso. Eles iam
deixá-lo ir. Sem sombra de dúvida. Mas Oskar não foi pego e a faca estava agora no esconderijo
perto do álbum de recortes.
Ele precisava pensar.
Será que sua brincadeira tinha de algum modo provocado o assassinato? Oskar achava que
não, mas a hipótese não podia ser eliminada. Os livros que lia estavam cheios dessas coisas. Um
pensamento num lugar causava um acontecimento em outro.
Telecinesia, vodu.
Mas exatamente onde, quando e principalmente como aconteceu o assassinato? Caso fossem
muitos golpes desferidos num corpo caído, então Oskar precisava de fato considerar a hipótese
de que simplesmente tinha um poder terrível nas mãos. Um poder que ele tinha que aceitar e
aprender a controlar.
Ou será que é… a árvore que é… o intermediário?
A árvore carcomida que ele tinha esfaqueado. Podia haver alguma coisa especial justamente
com essa árvore, aquilo que fosse feito nela depois… se espalhava.
Detalhes.
Oskar leu todas as reportagens sobre o assassinato. O policial que foi em sua escola falar
sobre drogas aparecia na foto. Ele não podia fazer nenhum comentário. Peritos do Laboratório
Nacional de Ciência Forense foram chamados para coletar os vestígios. Era necessário aguardar.
O retrato do garoto morto foi tirado do anuário da escola. Oskar nunca tinha visto o menino antes.
Ele parecia um Jonny ou um Micke. Vai ver que havia um Oskar na escola de Vällingby que
agora estava livre.
O garoto estava a caminho do treino de handebol na quadra de Vällingby e nunca chegou lá. O
treino começava às cinco e meia. O menino provavelmente saiu de casa perto das cinco horas.
Mais ou menos nesse intervalo. Oskar sentiu de repente uma tontura. Batia certinho. E o garoto
tinha sido assassinado no bosque.
Será que é isso? Sou eu quem…
Uma garota de dezesseis anos tinha encontrado o corpo por volta das oito da noite e chamado
a polícia de Vällingby. Ela estava agora “muito chocada” e sob cuidados médicos. Nada sobre o
estado do corpo. Mas o fato de a garota estar “muito chocada” significava que o corpo havia sido
mutilado de alguma maneira. Do contrário, só escreveriam “chocada”.
O que a garota estava fazendo no bosque, se já estava escuro? Provavelmente algo sem
importância. Tinha ido pegar pinha, qualquer coisa. Mas por que não havia nada no jornal sobre
como o menino foi morto? A única coisa que havia era uma foto do local do crime. A faixa de
isolamento com listras brancas e vermelhas em volta de uma baixada sem graça no bosque, com
uma árvore grande no meio. No dia seguinte ou no próximo haveria uma foto do mesmo lugar,
mas nesse caso com um monte de velas acesas e cartazes com “por quê?” e “saudades”. Oskar
já conhecia esse ritual; havia mais de um caso como este em seu álbum.
Provavelmente tudo não passou de uma coincidência. Mas e se.
Oskar colou o ouvido na porta. A mãe estava lavando louça. Ele se deitou de barriga para
baixo na cama e vasculhou até achar a faca de caça. O cabo estava talhado de forma a moldar-se
à mão e a faca pesava com certeza três vezes mais que a faca de cozinha que ele tinha usado no
dia anterior.
Oskar se levantou e foi para o meio do quarto com a faca na mão. Era bonita, dava poder à
mão que a segurava.
Tilintar de louça na cozinha. Ele desferiu alguns golpes no ar. O Assassino. Quando tivesse
aprendido a controlar sua força, Jonny, Micke e Tomas não iriam nunca mais atormentá-lo.
Estava prestes a dar mais uma investida, mas se deteve. Alguém podia vê-lo do pátio. Estava
escuro lá fora e a luz do quarto, acesa. Olhou de relance para o pátio, mas viu apenas o próprio
reflexo na vidraça da janela.
O Assassino.
Oskar guardou a faca de volta no esconderijo. Isso aqui era só uma brincadeira. Essas coisas
não aconteciam no mundo real. Mas ele precisava saber de detalhes. Precisa saber disso agora.
Tommy estava sentado na poltrona folheando uma revista sobre motos, balançando a cabeça e
resmungando. De vez em quando levantava a revista para Lasse e Robban sentados no sofá e
mostrava uma foto especialmente interessante, com um comentário sobre o volume do cilindro e a
velocidade máxima. A lâmpada no teto refletia no papel lustroso, jogando reflexos pálidos nas
paredes de cimento revestidas de madeira.
Ele deixou os outros dois na expectativa.
A mãe de Tommy namorava com Staffan, que trabalhava na polícia de Vällingby. Tommy não
gostava de Staffan. Um tipo que vivia com o dedo em riste, um puxa-saco. E religioso, ainda por
cima. Mas, através da mãe, Tommy ficou sabendo de umas coisas que Staffan não devia ter
contado para a mãe e que ela não devia ter contado para Tommy, mas…
Ele ficou sabendo, por exemplo, a quantas andava a investigação do roubo na loja de
aparelhos de som perto da praça Island. Roubo que ele, Robban e Lasse tinham praticado.
Nenhuma pista dos criminosos. A mãe dissera exatamente assim: “Nenhuma pista dos
criminosos”. Palavras de Staffan. Eles nem sequer tinham a descrição do carro.
Tommy e Robban tinham dezesseis anos e estavam no primeiro ano do ensino médio. Lasse
tinha dezenove e algum problema na cabeça; trabalhava organizando chapas metálicas na lm
Ericsson em Ulvsunda. Mas tinha carteira de motorista. E um Saab 74 branco cujo número da
placa eles tinham mudado com uma caneta hidrográfica antes de arrombar a loja. Perda de tempo,
já que ninguém tinha visto o carro.
Armazenaram os objetos roubados no abrigo antiaéreo fora de uso em frente ao depósito no
porão que era o local do clube deles. Romperam a corrente da porta com uma chave micha e
puseram um cadeado novo. Eles não sabiam direito como venderiam aquilo tudo, o
arrombamento em si é que tinha sido a sensação. Lasse vendeu um aparelho de fita cassete para
um colega de trabalho por duzentos contos, mas isso era tudo.
Era mais seguro ficar na deles com as mercadorias por um tempo. Especialmente não deixar
que Lasse fosse cuidar da venda, já que ele tinha… o miolo um pouco mole, como dizia a mãe.
Mas o roubo acontecera havia duas semanas e, no momento, a polícia estava ocupada com outros
casos.
Tommy folheou a revista e sorriu para si mesmo. É isso. Um monte de outros casos para
cuidar. Robban tamborilou com os dedos, produzindo estalos na coxa.
— Ande logo. Desembuche.
Tommy segurou a revista no alto para ele.
— Kawasaki. Trezentos centímetros cúbicos. Injeção direta e…
— Pare com isso. Desembuche.
— O quê… sobre o assassinato?
— É!
Tommy mordiscou o lábio; fingia estar pensando.
— Como é que foi mesmo…
Lasse inclinou o corpo comprido para a frente no sofá e se dobrou parecendo uma navalha.
— Ah! Fale logo!
Tommy deixou o jornal de lado e olhou bem na cara de Lasse.
— Tem certeza de que você quer ouvir? É bem sinistro.
— Ah!
Lasse estufou o peito, mas Tommy viu a aflição em seus olhos. Era só fazer cara feia, falar
com voz esquisita ou se negar a acabar de contar para que ele ficasse com medo de verdade. Uma
vez, Tommy e Robban tinham se pintado de zumbis com a maquiagem da mãe de Tommy,
desatarraxado a lâmpada do teto e esperado por Lasse. Tudo acabou com Lasse se borrando nas
calças e Robban com o olho roxo na mesma região onde se pintara com uma sombra azul-escura.
Depois daquele dia eles agiam com mais cautela quando assustavam Lasse.
Agora Lasse se remexia no sofá e cruzou os braços no peito para mostrar que estava
preparado para o que desse e viesse.
— Bem… isso aqui não foi um assassinato comum, se a gente usar esse termo. Eles acharam o
cara… pendurado numa árvore.
— Como assim? Pendurado? — perguntou Robban.
— É, pendurado. Mas não pelo pescoço. Pelos pés. Ou seja, ele estava pendurado de cabeça
para baixo. Na árvore.
— Mas como? É que não se morre disso.
Tommy ficou olhando por um bom tempo para Robban, como se ele tivesse feito uma
observação interessante, e prosseguiu:
— É. É verdade. Mas é que a garganta do cara estava cortada. E disso a gente morre. A
garganta toda. Cortada. Como um… melão. — Ele passou o indicador no pescoço para mostrar
como a faca fizera.
A mão de Lasse voou de repente para a garganta, como para protegê-la. Sacudiu devagar a
cabeça de um lado para o outro. — Mas por que ele estava pendurado desse jeito?
— Bem, o que você acha?
— Sei lá.
Tommy beliscou o lábio inferior e fez uma cara de quem pensava.
— Agora vocês vão saber da parte esquisita da história. Alguém corta a garganta de uma
pessoa para que ela morra. Então escorre bastante sangue, não é mesmo? — Lasse e Robban
balançaram a cabeça concordando. Tommy desfrutou por um instante da expectativa deles antes
de soltar a bomba.
— Mas lá no chão… embaixo de onde o cara estava pendurado. Não havia quase sangue
nenhum. Apenas umas gotas. E devem ter saído vários litros de sangue enquanto ele estava
pendurado ali.
O porão ficou em silêncio. Lasse e Robban olhavam fixamente para a frente com os olhos
vazios, até que Robban se endireitou no sofá e disse: — Eu sei. Ele foi morto em outro lugar. E
depois pendurado ali.
— Ahã. Mas nesse caso por que o assassino pendurou o garoto? Quando se mata alguém, a
gente quer se livrar do corpo.
— Ele pode ser… doente da cabeça.
— Pode ser. Mas eu acho outra coisa. Vocês já viram nos matadouros? Como fazem com os
porcos? Antes de esquartejar o bicho, tiram todo o seu sangue. E sabem como eles fazem isso?
Penduram o porco de cabeça para baixo. Num gancho. E cortam o pescoço dele.
— Então você quer dizer… assim, que o cara… que o assassino ia abater o garoto?
— Hããã? — Lasse olhou hesitante para Tommy e depois para Robban e para Tommy de novo
para ver se eles não estavam gozando com sua cara. Não viu nada que indicasse isso e disse:
— Eles fazem assim? Com os porcos?
— É, o que você achava?
— Que era uma espécie de… máquina.
— E você acha que por acaso seria melhor?
— Não, mas… eles ainda estão vivos? Quando… penduram os bichos?
— Sim. Estão vivos. E esperneiam. E gritam.
Tommy imitou um porco gritando e Lasse se afundou no sofá, olhando para o colo. Robban se
levantou, deu alguns passos para a frente e para trás e sentou-se no sofá de novo.
— Mas alguma coisa não bate. Se o assassino quisesse abater o garoto, então devia haver
sangue.
— Foi você quem disse que ele queria abater o garoto. Eu não acho que foi isso.
— O.k. E o que você acha?
— Acho que ele estava era atrás do sangue. Que foi por isso que matou o garoto. Para pegar
sangue. Que carregou o sangue com ele.
Robban balançou a cabeça lentamente e cutucou com o dedo a casca de ferida deixada por
uma espinha grande no canto da boca. — Mas para quê? Para beber o sangue, ou o quê?
— É. Por exemplo.
Tommy e Robban ficaram absortos imaginando o assassinato e o que acontecera depois dele.
Passado um tempo, Lasse levantou a cabeça e lançou um olhar interrogativo para eles. Tinha
lágrimas nos olhos.
— Eles morrem rápido, os porcos?
Tommy olhou bem sério nos olhos dele.
— Não.
— Eu vou dar uma saída.
— Não…
— Só vou ficar no pátio.
— Você não vai para lugar nenhum fora do pátio?
— Claro que não.
— Eu chamo você quando…
— Não. Eu venho. Estou com o relógio. Não me chame.
Oskar vestiu o casaco e o gorro. Deteve-se com um dos pés quase dentro da bota. Foi em
silêncio para o quarto, apanhou a faca e a enfiou dentro do casaco. Amarrou os sapatos. A voz da
mãe veio de novo da sala de estar.
— Está frio lá fora.
— Eu estou com o gorro.
— Na cabeça?
— Não. No pé.
— Não brinque com isso. Você sabe como são…
— Até logo.
— … seus ouvidos.
Ele saiu e consultou o relógio. Sete e quinze. Faltavam quarenta e cinco minutos para começar
o programa na tv. Provavelmente Tommy estava lá embaixo no porão, mas Oskar não tinha
coragem de ir até lá. Tommy era legal, mas os outros… Especialmente se tinham cheirado cola,
podiam ter umas ideias esquisitas.
Então desceu para o parquinho no meio do pátio. Duas árvores de tronco grosso que às vezes
eram usadas como trave de gol, um trepa-trepa com escorregador, uma caixa de areia e um
balanço com três pneus de carro pendurados em correntes. Sentou-se num dos pneus e balançou
devagar.
Oskar gostava daqui à noite. Ao seu redor, o quadrado grande de centenas de janelas com as
luzes acesas e ele sentado ali no escuro. Em segurança e sozinho ao mesmo tempo. Tirou a faca
da bainha. A lâmina era tão reluzente que ele podia ver as janelas refletidas nela. A lua.
Uma lua ensanguentada…
Oskar se levantou do balanço, aproximou-se de fininho de uma árvore e falou com ela.
— O que é que você está olhando, idiota? Quer morrer, hein?
A árvore não respondeu e Oskar enfiou a faca nela, com cuidado. Não queria estragar o gume
reluzente.
— É isso que dá. Ficar me encarando.
Ele girou a faca, fazendo uma lasquinha se soltar da árvore. Um pedaço de carne. Sussurrou:
— Agora grite que nem um porco.
Ele se deteve. Achou que ouvira alguma coisa. Com a faca junto do quadril, olhou ao redor.
Levantou a faca na altura dos olhos e a examinou. A ponta estava tão reluzente quanto antes. Fez
da lâmina um espelho e a virou na direção do trepa-trepa. Alguém estava ali. Alguém que não
estava ali agora há pouco. Um contorno difuso no metal limpo. Oskar abaixou a faca e olhou
diretamente para o trepa-trepa. Isso mesmo. Mas não era o assassino de Vällingby. Era uma
criança.
A luz foi suficiente para mostrar que era uma menina que ele nunca vira antes ali no pátio.
Oskar deu um passo na direção do trepa-trepa. A menina não se mexeu. Apenas continuou lá em
cima olhando para o garoto.
Ele deu mais um passo e de repente ficou com medo. De quê? De si mesmo. Com a faca na
mão, aproximou-se da menina para enfiar-lhe a faca. É claro que não era isso. Mas parecia que
era, por um instante. Como é que ela não ficou com medo?
Ele parou, empurrou a faca de volta na bainha e a enfiou dentro do casaco.
— Oi.
A menina não respondeu. Oskar estava tão perto agora que podia ver que o cabelo dela era
escuro, o rosto pequeno, os olhos grandes. Olhos bem abertos que olhavam calmamente para ele.
As mãos estavam pousadas no parapeito do trepa-trepa.
— Eu disse oi.
— Eu ouvi.
— Então por que você não responde?
A menina deu de ombros. Sua voz era tão clara quanto Oskar achou que seria. Parecia a voz
de alguém da idade dele.
Ela tinha uma cara estranha. O cabelo de tamanho médio, preto. O rosto redondo, nariz
pequeno. Como uma dessas bonecas de papel da seção infantil da revista Hemmets Journal.
Muito… bonita. Mas havia alguma coisa de estranho. Ela não estava com gorro nem casaco.
Apenas uma blusa rosa de pano leve, embora fizesse muito frio.
A menina apontou com a cabeça na direção da árvore que Oskar golpeara.
— O que você está fazendo?
Oskar ficou vermelho, mas não dava para ver no escuro, não é mesmo?
— Treinando.
— Para quê?
— Se o assassino vier.
— Que assassino?
— O de Vällingby. O que matou aquele garoto a facadas.
A menina soltou um suspiro e levantou os olhos para o céu. Depois se inclinou para a frente.
— Você está com medo?
— Não, mas um assassino, é que… é que é bom a gente poder… se proteger. Você mora aqui?
— Moro.
— Onde?
— Ali. — A menina apontou para a portaria do prédio ao lado do de Oskar. — Do seu lado…
— Como você sabe onde eu moro?
— Já vi você na janela.
Um calor subiu às bochechas de Oskar. Enquanto tentava pensar em alguma coisa para dizer, a
menina pulou do trepa-trepa e aterrissou na frente dele. Um salto de mais de dois metros.
Ela deve fazer ginástica olímpica ou algo desse tipo.
Ela era quase do mesmo tamanho dele, porém muito mais magra. A blusa rosa se apertava em
volta do corpo delgado, que não apresentava o menor vestígio de peitos. Seus olhos eram negros,
muito grandes no rostinho pálido. Ela levantou uma das mãos no ar à frente dele, como se
quisesse deter alguma coisa que se aproximava. Seus dedos eram longos, finos como ramos de
árvore.
— Eu não posso ser sua amiga. Só para você saber.
Oskar cruzou os braços no peito. Sentiu debaixo de uma das mãos o contorno do cabo da faca
no casaco.
— Como assim?
Um dos cantos da boca da menina se levantou, como numa espécie de sorriso.
— É preciso ter motivo? Só estou dizendo como as coisas são. Para você saber de uma vez.
— O.k., tudo bem.
A menina se virou e se afastou de Oskar, na direção do prédio. Quando ela já tinha dado
alguns passos, Oskar perguntou: — E você acha que eu queria ser seu amigo? Você é besta, é
isso que você é.
A menina parou. Ficou imóvel por um instante. Em seguida deu meia-volta e foi até Oskar.
Parou na frente dele. Entrelaçou os dedos e deixou os braços ficarem caídos.
— O que foi que disse?
Oskar cruzou ainda mais os braços no peito, apertou na mão o cabo da faca e olhou para o
chão.
— Você é besta… porque fica dizendo essas coisas.
— Verdade?
— É.
— Então desculpe. Mas é assim que tem que ser.
Eles estavam imóveis, a meio metro um do outro. Oskar continuou olhando para o chão. Um
cheiro estranho exalava do corpo dela.
Fazia um ano que o cachorro dele, Bobby, tivera uma infecção nas patas e eles tiveram que
sacrificá-lo. No último dia, Oskar não fora à escola para ficar em casa várias horas deitado ao
lado do cachorro doente, despedindo-se dele. Bobby tinha naquela ocasião o mesmo cheiro da
menina. Oskar franziu o nariz.
— É você que está com esse cheiro estranho?
— Acho que sim.
Oskar levantou os olhos do chão. Arrependeu-se do que dissera. Ela parecia tão… frágil
naquela blusa de pano fino. Ele destrançou os braços cruzados e fez um gesto na direção dela. —
Você não está com frio?
— Não.
— Por quê?
A menina franziu as sobrancelhas, contraiu o rosto e por um instante pareceu muitíssimo mais
velha do que era. Como uma velhinha a ponto de chorar.
— Acho que eu esqueci como se faz.
A menina se virou rapidamente e foi para a portaria do prédio. Oskar continuou onde estava,
seguindo-a com os olhos. Quando ela chegou na frente da porta pesada, Oskar achou que
precisaria das duas mãos para abri-la. Mas, pelo contrário, a menina pegou a maçaneta com uma
das mãos e escancarou a porta de modo que ela bateu na trave de metal do chão, quicou de volta
e se fechou atrás da garota.
Ele enfiou as mãos nos bolsos do casaco e ficou triste. Pensou em Bobby. Na cara do
cachorro deitado no caixão que o pai confeccionara. Na cruz que ele tinha feito na aula de
marcenaria e que se quebrou quando eles a enfiaram no chão congelado.
Ele devia fazer outra.
Sexta-feira, 23 de outubro
Håkan estava no metrô de novo, a caminho do centro da cidade. Dez notas de mil coroas
enroladas e presas com um elástico estavam no bolso da calça. Com esse dinheiro, iria fazer uma
coisa bonita. Salvaria uma vida.
Dez mil coroas era muito dinheiro e, se a gente considerasse as campanhas da Save the
Children sobre como “Mil coroas podem alimentar uma família inteira durante um ano” etc.,
então dez mil devia ser o bastante para salvar uma vida aqui na Suécia, não é?
Mas a vida de quem? Onde?
Não se podia dar o dinheiro na mão do primeiro viciado que aparecesse e esperar que… não.
E devia ser alguém jovem. Ele sabia que era uma bobagem, mas o ideal é que fosse uma dessas
crianças chorando como naqueles quadros. Uma criança que recebia o dinheiro com lágrimas nos
olhos e… e o quê?
Saltou na estação Odenplan sem saber por que e desceu para a Biblioteca Municipal. Na
época em que morava em Karlstad e era professor de sueco do sétimo ao nono ano, e ainda tinha
uma casa para morar, a Biblioteca Municipal de Estocolmo era conhecida como um… lugar bom.
Foi só quando viu a rotunda grande da biblioteca, famosa em fotos de livros e jornais, que
soube o motivo de ter saltado ali. Porque era um bom lugar. Alguém de suas relações,
provavelmente Gert, contara como se fazia para comprar serviços sexuais ali.
Håkan nunca fizera isso. Comprar sexo.
Uma vez Gert, Torgny e Ove conseguiram um menino cuja mãe havia sido trazida do Vietnã
por um conhecido de Ove. O menino devia ter uns doze anos e sabia o que se esperava dele,
recebera um bom dinheiro para isso. Mesmo assim, Håkan não conseguiu. Bebericou do Bacardi
com coca-cola e se deliciou muito com o corpo nu do garoto enquanto ele se retorcia na sala
onde eles tinham se reunido…
Mas não foi além disso.
Os outros tinham sido chupados na devida ordem pelo menino, mas, quando chegou a vez de
Håkan, ele sentiu um aperto no estômago. A situação toda era asquerosa demais. A sala cheirava
a excitação, bebida alcoólica e germes. Uma gota do esperma de Ove reluzia na face do menino.
Håkan afastou a cabeça do garoto quando ele se inclinou sobre sua região pélvica.
Os outros proferiram insultos, xingaram-no, fizeram ameaças. Ele tinha sido testemunha, era
conivente. Zombaram dele por causa dos seus escrúpulos, mas esse não foi o problema. É que
tudo aquilo era muito feio. O único cômodo do apartamento de Åke, as quatro poltronas
descombinadas dispostas especialmente ali para a ocasião, a música de conjuntos bregas tocando
no aparelho de som.
Håkan pagou sua parte na diversão e nunca mais viu os outros. Tinha suas revistas, suas fotos,
seus filmes. Já era o bastante. Provavelmente, ele tinha escrúpulos, que apenas nessa ocasião se
manifestaram numa aversão intensa à situação.
Então por que estou indo para a Biblioteca Municipal?
Pegaria um livro emprestado. O incêndio de três anos atrás tinha devorado toda a sua vida,
entre outras coisas seus livros. Isso. A joia da rainha de Almqvist, podia pegá-lo emprestado
antes de fazer a boa ação.
A biblioteca estava calma na parte da manhã. Homens idosos e estudantes, na maioria. Ele
encontrou rapidamente o livro que procurava. Leu as primeiras palavras:
Tintomara! Duas coisas são brancas
Inocência — Arsênico
e depositou o compêndio de volta na prateleira. Uma sensação ruim. Lembrava sua vida antiga.
Ele tinha adorado esse livro, até o utilizara na sala de aula. Ler suas palavras introdutórias lhe
despertou a saudade de uma poltrona de leitura. E poltronas de leitura estariam numa casa que
era sua, uma casa cheia de livros, e ele teria um trabalho de novo, teria e queria. Mas Håkan
encontrara o amor e esse amor agora ditava as regras. Nada de poltrona.
Ele esfregou as mãos uma na outra como para apagar o livro que elas tinham segurado e
entrou num salão lateral.
Havia uma mesa comprida com pessoas lendo. Palavras, palavras e mais palavras. No fundo
do salão estava sentado um garoto de casaco de couro se balançando na cadeira enquanto
folheava desinteressado um livro de ilustrações. Håkan se dirigiu para lá e fingiu estudar a
prateleira com livros de geografia, de vez em quando olhava furtivamente para o menino. Por
fim, o garoto levantou os olhos e encontrou os dele. Arqueou as sobrancelhas como se
perguntasse:
Quer?
Não, é claro que ele não queria. O menino tinha uns quinze anos, um rosto achatado de
europeu do Leste, espinhas, olhos fundos e puxados. Håkan deu de ombros e saiu do salão.
Lá fora, na entrada principal, o menino conseguiu alcançá-lo. Fez um gesto com o polegar e
perguntou:
— Fire?— Håkan sacudiu a cabeça.
— Don’t smoke.
— Okey.
O menino apanhou um isqueiro de plástico, acendeu um cigarro, olhou para ele através da
fumaça com os olhos apertados. — What you like?
— No, I…
— Young? You like young?
Ele se afastou do menino e da entrada principal, onde qualquer pessoa podia aparecer.
Precisava pensar. Não acreditava que seria tão fácil assim. É que tinha sido só uma espécie de
brincadeira, ver se era verdade o que Gert dissera.
O menino foi atrás, ficou ao seu lado perto do muro de pedra.
— How? Eight, nine? Is difficult, but…
— No!
Será que ele tinha cara de ser tão depravado assim? Besteira. Nem Ove nem Torgny não
pareciam nem um pouco… diferentes. Homens comuns com trabalhos comuns. Só Gert, que vivia
de uma herança deixada pelo pai e podia se permitir qualquer coisa, começara, depois das
muitas viagens para o exterior, a ter um aspecto bem nojento mesmo. Uma frouxidão ao redor da
boca, uma película na frente dos olhos.
O menino se calou quando Håkan levantou a voz e o examinou com os olhinhos que eram dois
rasgos. Deu mais uma pitada no cigarro, jogou-o no chão e pisou nele, abriu os braços.
— What?
— No, I just…
O menino deu a metade de um passo, aproximando-se de Håkan.
— What?
— I… maybe… twelve?
— Twelve? You like twelve?
— I… yes.
— Boy.
— Yes.
— Okey. You wait. Number two.
— Excuse me?
— Number two. Toilet.
— Oh. Yes.
— Ten minutes.
O menino abriu o zíper do casaco de couro e desapareceu escada abaixo.
Doze anos. Banheiro, número dois. Dez minutos.
Isso era uma burrice muito, muito grande. E se viesse um policial? Eles deviam saber o que se
passava aqui, depois de tantos anos. Então ele estava frito. Eles ligariam com o trabalho que
executara dois dias atrás e seria o fim. Não podia fazer isso.
Vou ao banheiro dar uma olhada, só isso.
Os banheiros estavam vazios. Um mictório e três sanitários. O número dois era provavelmente
o do meio. Ele enfiou uma moeda de uma coroa na fechadura, abriu a porta e entrou. Fechou o
banheiro e sentou-se na privada.
As portas do sanitário estavam cheias de pichações. Não era o que se esperava de uma
biblioteca municipal. Uma e outra citação literária:
harry me, marry me, bury me, bite me
mas a maioria se compunha de desenhos obscenos e piadas:
melhor uma bola no canal do que bolotas frias na parte anal.
tudo é fantástico com o baixo-ventre RASPADO.
Também havia uma quantidade extraordinária de números de telefone para os quais era
possível ligar caso tivessem desejos especiais. Alguns deles tinham assinatura e eram
provavelmente autênticos. Não apenas alguém gozando da cara de alguém.
Pronto. Agora ele já olhara. Agora devia se mandar dali. Nunca se sabe o que o garoto do
casaco de couro podia inventar. Levantou-se, urinou no sanitário e sentou-se de novo. Por que
mijara? Não estava propriamente apertado. Ele sabia por que mijara.
Em caso de.
A porta se abriu. Håkan prendeu a respiração. Alguma coisa nele esperava que fosse um
policial. Um policial grande e másculo que daria um chute na porta e o espancaria com cassetete
antes de prendê-lo.
Vozes cochichando, passos suaves, uma batida leve na porta.
— Sim?
A batida de novo. Ele engoliu um bolo espinhento de saliva e abriu.
Do lado de fora havia um menino de onze, doze anos. Louro, rosto com formato de cebola.
Lábios finos, olhos grandes e azuis e uma expressão vazia na cara. Um casaco acolchoado
vermelho um pouco grande demais. Bem atrás dele estava o garoto mais velho com casaco de
couro, que levantou os cinco dedos no ar.
— Five hundred. — Pronunciou “chundred ” em vez de “hundred ”.
Håkan assentiu, o menino mais velho conduziu o mais novo com cuidado para dentro do
banheiro e fechou a porta. E quinhentos não era bem caro? Não que fizesse alguma diferença,
mas…
Ele olhou para o menino que comprara. Alugara. Será que o garoto tomava algum tipo de
droga? Provavelmente. Seu olhar estava ausente, sem foco. O menino estava encostado na porta a
meio metro dele. Era tão baixo que Håkan não precisava levantar a cabeça para olhá-lo nos
olhos.
— Hello.
O menino não respondeu, apenas balançou a cabeça, apontou para o baixo-ventre de Håkan e
fez um gesto com o dedo: Abra a braguilha. Ele obedeceu. O menino fez um muxoxo, fez outro
gesto com o dedo: Tire o pênis daí.
Seu rosto ficou afogueado quando obedeceu ao menino. Era desse jeito. Ele obedecia ao
menino. Não tinha vontade própria. Não era ele quem fazia isso. O pênis curto de Håkan não
estava nem um pouco ereto, mal alcançava a tampa do vaso. Sentiu cócegas quando sua glande
encostou a superfície fria.
Håkan apertou os olhos e tentou transformar a fisionomia do menino de modo que ficasse mais
parecida com a do seu amado. Não funcionou muito. Seu amado era bonito. Não era o caso desse
menino que agora se ajoelhava e ia com a cabeça na direção do seu baixo-ventre.
A boca.
Alguma coisa estava errada com a boca do menino. Håkan pôs a mão na testa do garoto antes
que ele atingisse seu objetivo.
— Your mouth?
O menino sacudiu a cabeça de um lado para o outro e pressionou a testa na mão de Håkan
para continuar o trabalho. Mas agora não dava. Ele já ouvira falar nesse tipo de coisa.
Abaixou o polegar na direção do lábio superior do menino e puxou-o para cima. O menino era
desdentado. Alguém o esmurrara ou tirara seus dentes para que ele fizesse melhor o trabalho. O
menino se levantou; um farfalhar do casaco acolchoado quando ele cruzou os braços no peito.
Håkan recolheu o pênis, fechou a braguilha e ficou olhando para o chão.
Assim não. Assim nunca.
Alguma coisa apareceu em seu campo de visão. A mão bem aberta. Cinco dedos. Quinhentos.
Ele apanhou um maço de cédulas do bolso e entregou o dinheiro ao menino. O garoto tirou o
elástico do maço, passou o indicador na ponta das dez notas, pôs o elástico de volta e segurou o
maço no alto.
— Why?
— Because… your mouth. Maybe you can… get new teeth.
O garoto sorriu de fato. Não um sorriso radiante, mas o canto da sua boca se levantou um
pouco. Talvez apenas estivesse rindo da burrice de Håkan. O garoto refletiu, em seguida tirou
uma nota de mil do maço e a enfiou no bolso do lado de fora do casaco. O maço de notas do lado
de dentro. Håkan balançou a cabeça.
O menino abriu a porta, hesitou. Depois se virou na direção de Håkan e fez uma carícia em
seu rosto.
— Sank you.
Håkan pôs a mão em cima da mão do menino, apertou-a no rosto e cerrou os olhos. Se pelo
menos alguém pudesse.
— Forgive me.
— Yes.
O menino retirou a mão. Seu calor ainda estava no rosto de Håkan quando a porta se fechou
atrás do garoto. Ele continuou sentado no vaso, olhando para alguma coisa que alguém escrevera
no batente da porta.
“não importa quem tu és. eu te amo.”
Logo abaixo uma outra pessoa rabiscara:
“quer pau?”
Fazia muito tempo que o calor se apagara do rosto dele quando Håkan foi para o metrô e
comprou um jornal vespertino com as últimas coroas que tinha. Quatro páginas dedicadas ao
assassinato. Entre outras coisas, havia no jornal uma foto da baixada no bosque onde ele fizera a
coisa. O lugar estava cheio de velas acesas, flores. Olhou para a foto e não sentiu muita coisa.
Se vocês soubessem. Perdoem-me, mas se vocês soubessem.
A caminho de casa, Oskar parou embaixo das duas janelas do apartamento da garota. A janela
mais próxima estava apenas a dois metros da janela do quarto dele. As persianas estavam
fechadas e as janelas eram retângulos cinza-claros com o fundo de cimento cinza-escuro. Parecia
suspeito. Provavelmente eles eram uma… família estranha.
Viciados.
Oskar olhou ao redor, entrou depois no prédio e conferiu o quadro com o nome dos
moradores. Cinco sobrenomes soletrados com capricho, escritos em letras de plástico. Um lugar
estava vazio. O nome que ocupara antes o lugar, hellberg, esteve ali por tanto tempo que era
possível lê-lo pelo contorno escuro no fundo de veludo do quadro desbotado do sol. Mas nada de
letras de plástico. Nem sequer um pedaço de papel.
Ele subiu correndo os dois lances de escada até a porta da garota. O mesmo ali. Nada. A
plaqueta com o nome da caixa de correios na porta não tinha letras. Como costumava ser quando
um apartamento não era habitado.
Será que ela tinha mentido? Talvez não morasse ali. Mas entrara na portaria. Certo. Mas ela
podia de qualquer jeito ter entrado ali. Se ela…
A porta do prédio lá embaixo foi aberta.
Ele se afastou do apartamento e desceu rapidamente as escadas. Tomara que não seja ela.
Então a garota poderia achar que ele de algum modo… Mas não era ela.
A meio caminho do segundo lance de escada, Oskar encontrou um homem que nunca vira
antes. Um homem baixo, de ombros bastante largos, um pouco careca, que estava com um sorriso
tão grande que não era normal.
O homem avistou Oskar, levantou a cabeça e acenou, a boca ainda esticada naquele sorriso de
circo.
Lá embaixo, na entrada do prédio, Oskar parou e aguçou os ouvidos. Ouviu um barulho de
chaves e uma porta sendo aberta. A porta da garota. O homem era provavelmente seu pai. É
verdade que Oskar nunca vira um viciado tão velho, mas ele tinha um aspecto muito esquisito.
Não era de estranhar que ela fosse doida.
Oskar desceu para o parquinho, sentou-se na borda da caixa de areia e ficou de olho na janela
da menina para ver se as persianas seriam levantadas. Até mesmo a janela do banheiro parecia
estar coberta do lado de dentro; a vidraça fosca era mais escura que todas as janelas dos
banheiros dos outros apartamentos.
Do bolso do casaco, Oskar apanhou o cubo de Rubik.[5] O brinquedo estalava e rangia
quando ele o girava. Uma cópia. O original era muito mais macio, porém cinco vezes mais caro e
só era encontrado na loja de brinquedos bem vigiada de Vällingby.
Duas faces estavam resolvidas, de uma cor, e na terceira faltava apenas um pedacinho de
nada. Mas não era possível empurrá-lo para lá sem destruir as duas faces já prontas. Oskar
guardara uma página do jornal Expressen que descrevia sistemas diferentes de deslocamento das
partes do cubo — foi assim que conseguiu resolver as duas faces, mas depois ficou muito mais
difícil.
Ele olhou para o cubo, tentou achar na cabeça a solução em vez de sair virando. Não
funcionou. Seu cérebro não acompanhava. Apertou o cubo na testa, tentou penetrar em seu âmago.
Nenhuma resposta. Pôs o cubo no canto da caixa de areia a meio metro de distância e ficou
olhando para ele.
Gire. Gire. Gire.
Telecinesia era o nome disso. Foram feitos experimentos nos Estados Unidos. Havia pessoas
que podiam fazer essas coisas. pes. Percepção extrassensorial. Oskar teria dado qualquer coisa
para ter uma habilidade dessas.
E talvez… talvez ele tivesse.
O dia na escola não havia sido muito ruim. Tomas Ahlstedt tentara arrancar a cadeira do lugar
quando ele se sentou no refeitório, mas Oskar percebeu a tempo. E isso foi tudo. Ele iria para o
bosque com a faca para encontrar aquela árvore. Fazer um experimento mais sério. Não ficar tão
alterado como no dia anterior.
De um modo calmo e metódico, golpear a árvore com a faca, esfaqueá-la e ter o tempo todo o
rosto de Tomas Ahlstedt à sua frente. Mas… tinha aquilo com o assassino. O assassino de
verdade que estava em algum lugar.
Não. Ele tinha que esperar para fazer isso quando o assassino fosse pego. Por outro lado, se
fosse um assassino comum, o experimento era então inútil. Oskar olhou para o cubo e imaginou
um raio conectando seus olhos com o objeto.
Gire. Gire. Gire.
Não aconteceu nada. Oskar enfiou o cubo no bolso e se levantou, limpando um pouco de areia
das calças. Olhou para a janela da menina. As persianas ainda estavam fechadas.
Ele foi para casa trabalhar no álbum de recortes, cortar e colar os artigos sobre o assassinato
em Vällingby. Provavelmente acabariam sendo muitos, com o tempo. Especialmente se
acontecesse mais uma vez. Oskar esperava um pouco que isso acontecesse. De preferência em
Blackeberg.
De modo que a polícia fosse para a escola, de modo que os professores ficassem sérios e
preocupados, de modo que ficasse aquele clima na escola. Ele gostava disso.
— Nunca mais. Não importa o que você diga.
— Håkan…
— Não. Não e ponto final.
— Eu vou morrer.
— Então morra.
— Você quer isso?
— Não. Não quero. Mas você mesmo… pode.
— Eu estou fraco demais, ainda.
— Você não está fraco.
— Fraco demais para isso.
— Bem, então eu não sei. Mas eu não vou fazer de novo. É tão… repugnante, tão…
— Eu sei.
— Não, você não sabe. Para você é diferente, é…
— O que você sabe sobre como é para mim?
— Nada. Mas você é pelo menos…
— Você acha que eu… gosto disso?
— Não sei. Você gosta?
— Não.
— É, não. Bem, de qualquer forma… eu não vou fazer isso de novo. Talvez você tenha tido
outras pessoas que o ajudaram, que foram… melhores que eu.
— …
— Você teve?
— Tive.
— Sei…
— Håkan? Håkan…
— Eu amo você.
— O.k.
— Você me ama? Mesmo que seja um pouco?
— Você faria mais uma vez se eu dissesse que sim?
— Não.
— Então ainda assim devo amar você, é isso?
— Você me ama só se eu ajudá-lo a ficar vivo.
— É. Não é isso que é o amor?
— Se eu achasse que você me amava mesmo que eu não fizesse isso…
— Então?
— … então talvez eu fizesse.
— Eu amo você.
— Não acredito em você.
— Håkan. Eu aguento mais alguns dias, mas depois…
— Então trate de me amar.
Sexta-feira à noite no restaurante chinês. São quinze para as oito e a turma toda está reunida.
Exceto Karlsson, que está em casa assistindo ao Quebra-notas, e é melhor assim. Esse homem
não serve para nada. Chega tarde quando tudo já acabou e fica se gabando das perguntas que
sabia responder.
À mesa para seis perto da porta estão sentados agora Lacke, Morgan, Larry e Jocke. Lacke e
Jocke estão discutindo sobre que espécies de peixe vivem tanto em água doce quanto em água
salgada. Larry lê um jornal vespertino e as pernas de Morgan sobem e descem na cadeira, ele
bate os pés ao ritmo de outra música que não é aquela de elevador chinesa que sai discretamente
dos alto-falantes escondidos.
Na mesa diante deles há copos de cerveja mais ou menos cheios. Na parede acima do balcão
do bar estão pendurados seus retratos.
O dono do restaurante se viu obrigado a fugir da China na época da Revolução Cultural, por
causa das caricaturas satíricas que fazia dos poderosos. Agora ele usava esse talento com os
frequentadores assíduos do local. Na parede estão penduradas doze caricaturas afetuosas feitas
com canetas hidrográficas.
Um monte de homens. E Virginia. Os desenhos dos homens eram close-ups, em que as
imperfeições de suas fisionomias foram destacadas.
O rosto enrugado, quase descarnado de Larry e as duas orelhas enormes apontando da cabeça
fazem com que ele pareça um elefante bonzinho, mas faminto.
As sobrancelhas grossas de Jocke, quase se juntando, foram acentuadas e transformadas em
roseiras onde um passarinho — talvez um rouxinol — está pousado, cantando.
Devido ao seu estilo, Morgan tomou emprestado no retrato características do Elvis mais
velho. Costeletas e uma expressão nos olhos de “Hunka-hunka-lóóóve, baby”. A cabeça num
corpo pequeno que segura uma guitarra e faz uma pose de Elvis. Morgan gosta mais dessa
caricatura do que admite abertamente.
Lacke parece preocupado. Nesse desenho, os olhos foram aumentados e deu-se a eles uma
expressão exagerada de sofrimento. Um cigarro na boca e a fumaça se junta, formando uma
nuvem de chuva acima da cabeça dele.
Virginia é a única que está retratada de corpo inteiro. Com vestido longo, radiante como uma
estrela com lantejoulas cintilantes, ela está com os braços abertos, rodeada por um bando de
porcos que olha para ela sem entender. A pedido de Virginia, o dono do local fez mais uma
caricatura, exatamente a mesma, que Virginia pôde levar para casa.
Depois há outros. Alguns que não são da turma. Alguns que pararam de vir. Alguns que
morreram.
Certa noite, Charlie desmoronou na escada da entrada do seu prédio ao ir do restaurante para
casa. Fraturou o crânio no cimento salpicado. Gurkan teve cirrose hepática e morreu de um
sangramento na garganta. Semanas antes de morrer, uma noite ele levantou a blusa e mostrou uma
teia vermelha de veias que lhe saíam do umbigo. “Essa tatuagem foi os olhos da cara”, disse ele;
não demorou muito, morreu. Eles tinham homenageado sua memória deixando o retrato dele em
cima da mesa, onde ficavam bebendo com o falecido a noite inteira.
Karlsson não está retratado.
Essa noite de sexta-feira será a última em que eles estarão juntos. Amanhã um deles
desaparecerá para sempre. Virará mais uma caricatura pendurada na parede apenas como
lembrança. E nada será como antes.
Larry abaixou o jornal, pôs os óculos de leitura em cima da mesa e tomou um gole da cerveja.
— Caramba… Como é que deve ser dentro da cabeça de uma pessoa dessas?
Ele mostrou o jornal, no qual estava escrito “as crianças estão chocadas” acima de um
retrato da escola Vällingby e de uma foto menor de um homem de meia-idade. Morgan olhou de
relance para o jornal e apontou.
— É o assassino?
— Não. O diretor da escola.
— Tem cara de assassino, é o que eu acho. Cara típica de assassino.
Jocke estendeu a mão na direção do jornal.
— Deixe-me ver…
Larry passou-lhe o jornal e Jocke segurou-o a um metro da vista. Olhou para a foto.
— Acho que ele parece mais um político do partido moderado.
Morgan balançou a cabeça, concordando.
— Mas é isso que estou dizendo.
Jocke segurou o jornal para Lacke, para que ele pudesse olhar o retrato.
— O que você acha?
Lacke olhou um pouco relutante para ele.
— Bem, sei lá. Isso tudo me faz tão mal…
Larry bafejou os óculos e limpou-os na camisa.
— Ele vai ser pego. Não se escapa depois de uma coisa dessas.
Morgan tamborilava na mesa com os indicadores; esticou-se para pegar o jornal.
— Como o Arsenal se saiu?
Larry e Morgan passaram a conversar sobre a má fase pela qual o futebol inglês estava
passando. Jocke e Lacke ficaram calados por um tempo, bebericando suas cervejas e acendendo
cigarros. Depois Jocke tocou naquele assunto do bacalhau, como o peixe desapareceria do mar
Báltico. Assim prosseguiu a noite.
Karlsson não apareceu, mas lá pelas dez entrou um homem no restaurante que nenhum deles
tinha visto antes. A conversa a essa altura começara a ficar mais intensa e só notaram a cara nova
quando o sujeito se sentou sozinho a uma mesa do lado oposto do restaurante.
Jocke se inclinou para a frente, na direção de Larry.
— Quem é esse aí?
Larry olhou discretamente e sacudiu a cabeça.
— Não sei.
A cara nova recebeu uma dose grande de uísque e a entornou rapidamente. Pediu mais uma.
Morgan assoprou entre os lábios, produzindo um assobio.
— Ali não se perde tempo.
O homem parecia não estar ciente de que era observado. Estava apenas imóvel à mesa
olhando para as próprias mãos, tinha a cara de quem carregava todas as misérias do mundo numa
mochila pendurada nos ombros. Bebeu rapidamente o segundo copo de uísque e pediu mais um.
O garçom se debruçou sobre ele e disse alguma coisa. O homem enfiou a mão no bolso e
mostrou algumas cédulas. O garçom fez um gesto com as mãos como se dissesse que a intenção
dele não tinha sido essa, mas é claro que tinha sido justamente essa a intenção dele, e foi apanhar
o pedido.
Não era de admirar que a aparência do homem fosse questionada. Suas roupas estavam
amarrotadas e manchadas como se ele tivesse dormido em algum lugar onde se dormia mal. A
coroa de cabelos ao redor da careca não estava aparada e pendia por cima das orelhas, quase as
cobrindo. O rosto era dominado por um nariz bastante grande, bem vermelho e um queixo
saliente. Entre eles, dois lábios pequenos e carnudos que se mexiam de vez em quando, como se
o homem falasse sozinho. Seu rosto ficou impassível na hora que o uísque foi depositado na
mesa, à sua frente.
A turma voltou à conversa de antes: se Ulf Adelsohn seria bem pior do que Gösta Bohman
tinha sido. Apenas Lacke olhava às vezes furtivamente para o homem sozinho. Depois de um
tempo, na hora que o homem já pedira mais um uísque, ele disse: — Será que a gente não
devia… convidá-lo para se sentar aqui?
Morgan olhou rapidamente sobre os ombros do homem que agora se afundara ainda mais na
cadeira. — E por quê? A mulher deixou o cara, o gato morreu e a vida é uma droga. Disso eu já
sei.
— Pode ser que ele pague.
— Então a coisa é diferente. Então ele também pode ter câncer. — Morgan encolheu os
ombros. — A mim, não incomoda.
Lacke olhou para Larry e Jocke. Eles fizeram gestos mínimos para dizer que estava tudo bem.
Lacke se levantou e foi até o homem.
— Olá.
O homem ergueu os olhos para Lacke. Seu olhar estava bem embotado. O copo em cima da
mesa, quase vazio. Lacke se apoiou na cadeira do outro lado da mesa e se debruçou sobre o
homem.
— A gente só queria perguntar se você quer… se sentar com a gente.
O homem sacudiu devagar a cabeça e fez um movimento sonolento, de recusa com a mão.
— Não. Obrigado. Mas sente-se.
Lacke puxou uma cadeira e sentou-se. O homem bebeu o restante do copo e acenou para o
garçom.
— Quer alguma coisa? Eu convido.
— Nesse caso, o mesmo que você.
Lacke não queria dizer a palavra “uísque”, já que soava arrogante pedir a alguém para pagar
coisas tão caras, mas o homem apenas balançou a cabeça e, quando o garçom se aproximou, fez
um sinal de V com os dedos e apontou para Lacke. Lacke se recostou na cadeira. Quando foi a
última vez que ele bebeu uísque no local? Três anos. No mínimo.
O homem não deu nenhum sinal de querer iniciar uma conversa, então Lacke limpou a garganta
e disse: — Está um frio danado.
— É.
— A neve deve chegar logo.
— Ahã.
O uísque chegou à mesa e fez a conversa ficar supérflua por um instante. Aliás, Lacke recebeu
uma dose dupla e sentiu o olhar da turma queimando em sua nuca. Depois de uns golinhos,
levantou o copo.
— Saúde. E obrigado.
— Saúde.
— Você mora por aqui?
O homem olhava para o nada, parecia refletir sobre a pergunta como se fosse algo em que ele
próprio nunca pensara antes. Lacke não conseguiu saber se o movimento da cabeça dele foi uma
resposta à pergunta ou parte de algum diálogo interior.
Lacke tomou mais um gole e resolveu que, se o homem não respondesse à próxima pergunta,
significava que ele queria ficar em paz, não queria bater papo com ninguém. Então Lacke pegaria
o copo e iria se sentar com os outros de novo. Fizera o que a educação mandava ao ser
convidado por alguém. Esperava que o homem não respondesse.
— Sei. E o que você faz para matar o tempo?
— Eu…
O homem franziu as sobrancelhas; o canto da sua boca se arqueou de um modo espasmódico e
se retorceu numa careta, voltando para a posição inicial.
— … ajudo um pouco.
— Certo. Com o quê?
Uma espécie de insight passou por detrás da membrana ocular transparente e os olhos do
homem encontraram os de Lacke. Lacke sentiu uma pontada no final das costas como se uma
formiga negra o tivesse mordido acima do cóccix.
O homem massageou os olhos e pescou umas notas de cem do bolso das calças, depositou o
dinheiro em cima da mesa e se levantou.
— Com licença, eu preciso…
— O.k. Obrigado pelo uísque.
Lacke levantou o copo para o homem, mas ele já se aproximava dos cabides; conseguiu
desajeitadamente tirar o casaco de um gancho e saiu. Lacke continuou sentado de costas para a
turma, olhando para o montinho de cédulas. Cinco notas de cem. Uma dose dupla de uísque
custava sessenta, e foram cinco doses, talvez seis.
Lacke olhou de soslaio. O garçom estava ocupado recolhendo o pagamento de um casal de
idosos, os únicos que pediram comida. Enquanto Lacke se levantava, amassou rapidamente uma
nota de cem que virou uma bolinha em sua mão, enfiou-a no bolso e voltou para a mesa de
sempre.
No meio do caminho ele se lembrou de uma coisa: voltou para a mesa, derramou o que
restava do copo do homem no dele e levou-o embora.
Uma noite de êxito.
— Mas é Quebra-notas hoje de noite!
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Uma aula sobre drogas em Blackeberg

  • 1.
  • 3. Deixa ela entrar John Ajvide Lindqvist Tradução do sueco Marisol Santos Moreira
  • 4. Copyright © 2004 John Ajvide Lindqvist Copyright da tradução © 2012 Editora Globo S.A. Publicado segundo acordo com Ordfront Förlag (Estocolmo) e Leonhardt & Høier Literary Agency A/S (Copenhague). Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser apropriada e estocada em sistema de banco de dados ou processo similar, em qualquer forma ou meio, seja eletrônico, de fotocópia, gravação etc., sem a permissão dos detentores dos copyrights. Título original: Låt den rätte komma in Texto fixado conforme as regras do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (Decreto Legislativo nº 54, de 1995). Editor responsável Camila Saraiva Assistente editorial Lucas de Sena Lima Tradução Marisol Santos Moreira Preparação Silvia Massimini Felix Revisão Erika Nakahata e Carmem T. S. Costa Capa, fotomontagem da capa e projeto gráfico retina78 Crédito da epígrafe da página 187 trecho de Romeu e Julieta, tradução de Bárbara Heliodora. © Pepeeme Traduções e Serviços Ltda, gentilmente cedido pelas Empresas Ediouro Publicações. Editor Digital, Erick Santos Cardoso Produção para ebook, S2 Books 1ª edição, 2012 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Lindqvist, John Ajvide Deixa ela entrar / John Ajvide Lindqvist; tradução do sueco de Marisol Santos Moreira. São Paulo: Globo, 2012. 2.615 kb; ePUB Título original: Låt den rätte komma in ISBN 978-85-250-5294-0 1. Ficção sueca I. Título. 12-07143 CDD-839.73 Índice para catálogo sistemático: 1. Ficção : Literatura sueca 839.73 Direitos de edição em língua portuguesa para o Brasil adquiridos por Editora Globo S.A. Av. Jaguaré, 1.485 – 05346-902 – São Paulo – Brasil www.globolivros.com.br
  • 6. Sumário Capa Folha de rosto Créditos Dedicatória Primeira Parte Quarta-feira, 21 de outubro de 1981 Quinta-feira, 22 de outubro Sexta-feira, 23 de outubro Sábado, 24 de outubro Segunda Parte Quarta-feira, 28 de outubro Quinta-feira, 29 de outubro Sexta-feira, 30 de outubro Sábado, 31 de outubro Terceira Parte Quinta-Feira, 5 de Novembro Sábado, 7 de novembro Sábado, 7 de novembro (noite) Sábado, 7 de novembro (madrugada) Quarta Parte Domingo, 8 de novembro Domingo, 8 de novembro (noite) Domingo, 8 de novembro (noite/madrugada) Segunda-feira, 9 de novembro
  • 7. Quinta Parte Segunda-feira, 9 de novembro Terça-feira, 10 de novembro Quarta-feira, 11 de novembro Quinta-feira, 12 de novembro Epílogo
  • 8. O LUGAR Blackeberg. Faz a gente pensar em trufas de coco, talvez em drogas. No filme Ett anständigt liv.[1] Talvez em estação de metrô, em subúrbio. Depois não há muito mais em que pensar. Existe gente que mora ali, assim como em outros lugares. É por isso que Blackeberg foi construída; para as pessoas terem um canto para morar. Não é um lugar que foi crescendo naturalmente, não mesmo. Aqui tudo estava dividido em unidades desde o início. As pessoas tiveram de se mudar para o que já existia ali. Edifícios de cimento em tons terra, jogados no meio do verde. Quando essa história acontece, faz trinta anos que Blackeberg existe como lugar. A gente poderia imaginar um espírito pioneiro. Mayflower; uma terra desconhecida. O.k. Imaginar as casas desabitadas esperando por seus moradores. E lá vêm eles! Marchando pela ponte de Traneberg com o brilho do sol e os sonhos no olhar. O ano é 1952. As mães carregam seus filhos nos braços ou em carrinhos de bebê, levam-nos pela mão. Os pais não trazem enxadas nem pás, mas sim eletrodomésticos e móveis funcionais. Provavelmente cantam alguma coisa. “A Internacional”, talvez. Ou “Se vi gå upp till Jerusalem”,[2] dependendo da preferência. A coisa é grande. É nova. É moderna. Mas, na verdade, não foi bem assim. Eles chegaram de metrô. Ou de carro, camionetes de mudança. Um de cada vez. Entraram aos poucos nos apartamentos prontos e trouxeram coisas. Organizaram tudo em divisórias e prateleiras pré-fabricadas, deixaram os móveis alinhados no piso de linóleo. Compraram coisas novas para preencher os espaços vazios. Quando tudo estava pronto, levantaram os olhos e contemplaram a terra que lhes foi concedida. Saíram dos prédios e descobriram que toda a terra já estava aberta e revolvida. Era só se sujeitar ao que havia ali. Havia um centro. Havia parques enormes para as crianças. Havia amplas áreas verdes bem ao lado. Havia muitas calçadas. Um lugar bom. As pessoas diziam isso umas às outras à mesa da cozinha mais ou menos um mês depois da mudança. — Viemos para um lugar bom. Só uma coisa estava faltando. Uma história. No colégio, as crianças não podiam fazer nenhum trabalho escolar sobre o passado de Blackeberg, já que tal passado não existia. Não, minto. Havia a história de um moinho. De um grande industrial do rapé. Construções antigas e estranhas
  • 9. lá embaixo no lago. Mas isso aconteceu muito tempo atrás e não tem nenhuma relação com o presente. No lugar onde está agora o prédio de três andares, antes era só mato. As pessoas estavam fora de alcance dos mistérios do passado; nem sequer tinham uma igreja. Um lugar com dez mil habitantes sem uma igreja. Isso diz algo sobre a modernidade e a racionalidade do lugar. Isso diz algo sobre o quanto se estava livre dos fantasmas e do terror da história. Isso explica em parte o quanto se estava despreparado. Ninguém viu quando eles se mudaram. Quando a polícia finalmente conseguiu localizar, em dezembro, o motorista que levou a mudança, ele não tinha muito o que contar. Em seus registros de 1981, lia-se apenas: “Dia 18 de outubro: Norrköping para Blackeberg (Estocolmo)”. Lembrou que eram um homem e sua filha, uma graça de menina. — Ah, espere… Eles não trouxeram quase nada. Um sofá, uma poltrona, uma cama. Serviço fácil, nesse sentido. E… bem, eles queriam que a mudança fosse de madrugada. Eu disse que ficaria muito mais caro com o adicional noturno. Mas não teve problema. Era só a gente fazer de madrugada. Isso é o que importava. Aconteceu alguma coisa? O motorista da mudança ficou sabendo do que se tratava, quem ele levara no caminhão. Arregalou os olhos e viu suas anotações. — Caramba… Sua boca se contorceu numa careta, como se ele tivesse ficado com nojo da própria caligrafia. Dia 18 de outubro: Norrköping para Blackeberg (Estocolmo). Havia sido ele quem levara os dois. O homem e a menina. Ele não ia contar pra ninguém. Nunca.
  • 10. PRIMEIRA PARTE Feliz daquele que tem um amigo como esse Problemas de amor causam muita dor, rapazes! Siw Malmkvist, “Kärleksgrubbel” I never wanted to kill, I am not naturally evil Such things I do Just to make myself more attractive to you Have I failed? Morrissey, “The last of the famous international playboys”
  • 11. Quarta-feira, 21 de outubro de 1981 Quarta-feira, 21 de outubro de 1981 — E isso aqui, o que vocês acham que é? Gunnar Holmberg, comissário da polícia de Vällingby, segurava no alto um saquinho plástico contendo um pó branco. Talvez heroína, mas ninguém arriscava dizer alguma coisa. Ninguém queria parecer suspeito de conhecer esse tipo de coisa. Especialmente se tivesse um irmão ou um amigo do irmão que mexesse com isso. Que injetasse heroína. Até mesmo as meninas estavam caladas. O policial sacudiu o saquinho. — Será que é fermento em pó? Farinha? Um burburinho dizendo que não. O policial não podia sair dali achando que a turma do 6º ano B era um bando de idiotas. É verdade que era impossível afirmar o que havia no saquinho, mas a lição era sobre drogas, então dava para tirar certas conclusões. O policial se virou para a professora. — O que a senhora ensina na aula de economia doméstica? A professora sorriu e encolheu os ombros. A turma caiu na risada; o policial era legal. Alguns dos meninos tinham até tocado em seu revólver antes do início da aula. Não estava carregado, é verdade, mas ainda assim… O peito de Oskar fervia. Sabia a resposta da pergunta. Doía-lhe não falar quando sabia. Queria que o policial olhasse para ele. Olhasse e lhe dissesse algo depois que ele desse a resposta correta. Era uma burrice fazer isso, Oskar sabia, mas mesmo assim levantou a mão. — Diga. — É heroína, não é? — É, sim. — O policial olhou para ele com simpatia. — Como você adivinhou? Todos se viraram em sua direção, curiosos com o que ele iria dizer. — Bem, é que… eu leio muito, só isso. O policial balançou a cabeça, aprovando. — Isso é bom. Ler. — Ele sacudiu o saquinho plástico. — Não se tem muito tempo para leituras quando se toma isso aqui. Quanto será que custa um desses, o que vocês acham? Oskar não precisava dizer mais nada. Recebera o olhar e a atenção que queria. Até pôde dizer para o policial que lia muito. Era mais do que tinha esperado. Sonhou acordado. Com o policial que ia em sua direção depois da aula e estava interessado nele, sentava-se ao seu lado. Então ele contaria tudo. E o policial entenderia. Faria um afago em seu cabelo e diria que ele era um menino bom; abraçaria Oskar e diria… — Dedo-duro de uma figa. Jonny Forsberg cutucou Oskar de lado com o dedo. O irmão de Jonny andava com uma turma que usava drogas e Jonny sabia um monte de palavras que os outros garotos da turma aprendiam
  • 12. rapidamente. Jonny provavelmente sabia o valor exato daquele saquinho, mas não dedurava. Não ficava de papo com policial. Era hora do intervalo e Oskar parou perto de onde os casacos estavam pendurados, indeciso. Jonny queria bater nele — qual seria o melhor jeito de escapar? Ficar no corredor ou ir para fora? Jonny e os outros saíram em disparada para o pátio da escola. Isso; o policial ficaria com a viatura no pátio e aqueles que tivessem interesse podiam olhá-la de perto. Jonny não ousaria ir para cima dele enquanto o policial estivesse ali. Oskar desceu para a entrada da escola e olhou pela vidraça. Toda a turma estava, como ele tinha previsto, em volta da viatura. Oskar também queria estar ali, mas nem pensar. Alguém daria uma joelhada nele, outro puxaria sua cueca para cima, que ficaria enfiada bem no meio da bunda, com polícia ou sem polícia. Mas de qualquer forma ele teve uma prorrogação, nesse intervalo das aulas. Foi para o pátio da escola e deu a volta, indo discretamente para os fundos do prédio, até o banheiro. Lá dentro Oskar aguçou os ouvidos e tossiu, limpando a garganta. O som ecoou entre os sanitários. Rapidamente, tirou da cueca a Bola do Mijo, um pedaço de espuma do tamanho de uma tangerina que ele cortara de um colchão velho, com um furo para enfiar o pênis. Cheirou a espuma. É, ele já tinha se mijado um pouco. Oskar lavou a espuma debaixo da torneira e a torceu, tirando dela o máximo de água. Incontinência. Era esse o nome. Havia lido sobre isso num folheto informativo que pegara escondido na farmácia. Era mais um problema de mulher velha. E meu. Havia paliativos à venda, estava escrito no folheto, mas ele não usaria a mesada para passar vergonha na farmácia. E não ia de jeito nenhum contar isso para a mãe; ela sentiria tanta pena dele que Oskar ia ficar doente. Ele tinha a Bola do Mijo e ela funcionava, contanto que a coisa não piorasse. Passos lá fora, vozes. Com a bola apertada na mão, Oskar deslizou para dentro de um sanitário e se trancou ali, ao mesmo tempo que a porta do banheiro se abriu. Ele subiu sem fazer barulho na tampa do vaso e se encolheu, de forma que os pés não aparecessem caso alguém olhasse por debaixo da porta. Tentou não respirar. — Pooorco? Jonny, é claro. — Porco, você está aí? E Micke. Os piores. Não, Tomas era mais sacana, mas quase nunca participava quando havia socos e arranhões. Esperto demais para isso. Provavelmente estava puxando o saco do policial agora. Se a Bola do Mijo fosse descoberta, seria Tomas quem realmente se aproveitaria disso para humilhá-lo durante um bom tempo. Jonny e Micke dariam um soco e pronto. De certa forma, ainda bem que…
  • 13. — Porco? A gente sabe que você está aqui. Eles sentiram a porta. Sacudiram a porta. Golpearam a porta. Oskar passou os braços em volta dos joelhos e trincou os dentes para não gritar. Saiam daqui! Deixem-me em paz! Por que vocês não me deixam em paz? Agora Jonny falou com voz de veludo. — Ô, porquinho, se você não sair daí agora a gente vai ter que te pegar depois da escola. É isso que você quer? O banheiro ficou em silêncio por um instante. Oskar respirou com cuidado. Eles atacaram a porta com chutes e socos. Foi um estrondo e o trinco envergou para dentro. Ele devia abrir, ir até eles antes que ficassem zangados demais, mas não conseguia. — Pooorco? Ele tinha levantado a mão, afirmado que existia, que podia alguma coisa. Isso era proibido. Para ele. Eles inventavam um monte de desculpas para justificar por que Oskar precisava ser torturado; era gordo demais, feio demais, nojento demais. Mas o problema verdadeiro era o simples fato de ele existir, e cada lembrança da sua existência era um crime. Provavelmente eles só iriam “batizá-lo”. Enfiar a cabeça dele no vaso e puxar a descarga. Independentemente do que fossem aprontar, sempre era um grande alívio quando tudo terminava. Mas por que Oskar não levantava o trinco, que se abriria de qualquer jeito, e deixava que eles se divertissem? Olhou para o trinco que se dobrou e saiu do gancho produzindo um estalo, olhou para a porta que se escancarou batendo na parede do sanitário, para o sorriso triunfante na cara de Micke Siskov, e ele sabia. Porque o jogo não era assim. Ele não levantara o trinco e eles não tinham pulado para dentro do sanitário em três segundos porque as regras do jogo não eram assim. O êxtase do caçador era deles, o pavor da vítima era de Oskar. Uma vez que ele fosse capturado, a diversão se acabava e a punição em si era mais uma obrigação a ser cumprida. Se Oskar desistisse cedo demais, havia o risco de eles colocarem toda a energia deles na punição, e não na caça. E isso seria pior. A cabeça de Jonny Forsberg apareceu. — Escute aqui, você precisa abrir a tampa do vaso pra cagar. Agora grite que nem um porco. Oskar gritou que nem um porco. Fazia parte. Se ele gritasse como um porco, às vezes eles podiam deixar a punição de lado. Ele se esforçou mais que o normal, com medo de que durante a punição eles o obrigassem a abrir a mão e, com isso, descobrissem seu segredo nojento. Ele franziu o nariz imitando um focinho de porco, grunhiu e gritou, grunhiu e gritou. Jonny e Micke riam. — Porra, porco. Mais.
  • 14. Oskar continuou. Apertou os olhos e continuou. Cerrou tanto os punhos que as unhas entraram nas palmas das mãos. Continuou. Grunhiu e berrou até sentir um gosto estranho na boca. Então parou. Abriu os olhos. Eles tinham ido embora. Oskar continuou sentado, encolhido em cima da tampa do vaso, olhando para o chão. Uma mancha vermelha no ladrilho embaixo dele. Enquanto olhava, caiu no chão mais uma gota de sangue do seu nariz. Ele arrancou um pedaço de papel higiênico do rolo e tapou o nariz. Isso acontecia quando ele ficava com medo. Seu nariz começava a sangrar, assim, sem mais nem menos. Isso ajudava em algumas ocasiões quando eles iam lhe bater, pois desistiam ao ver que ele já estava sangrando. Oskar Eriksson estava sentado todo encolhido com um pedaço de papel numa das mãos e a Bola do Mijo na outra. Sangrando e se mijando, falando demais. Vazando por todos os buracos do corpo. Não demoraria muito e também começaria a se borrar nas calças. Porco. Ele se levantou e saiu do banheiro. Deixou a mancha de sangue onde estava. Tomara que alguém veja a mancha, que fique pensando nela. Que ache que alguém foi morto aqui, já que alguém tinha sido morto aqui. Pela centésima vez. Håkan Bengtsson — um homem de quarenta e cinco anos com um começo de barriga protuberante, os cabelos rareando e domicílio desconhecido para as autoridades — estava no metrô olhando lá fora pela janela, estudando aquilo que seria seu novo lar. Um pouco feio, é verdade. Norrköping era uma cidade mais bonita. Mesmo assim, esses subúrbios da parte oeste não se pareciam em nada com os subúrbios de Estocolmo que ele vira na tv; Kista, Rinkeby e Hallonbergen. Este aqui era diferente. “próxima estação: råcksta.” Um pouco mais arredondado, mais suave. Embora aqui houvesse um arranha-céu de verdade. Ele esticou o pescoço para ver até o andar mais alto do complexo de salas comerciais da empresa Vattenfall. Não podia se lembrar de um edifício desse tipo em Norrköping. Mas também nunca estivera no centro da cidade. Era na próxima estação que ele saltaria, não era? Olhou para o mapa das conexões do metrô colado nas portas. Isso. Era na próxima. “cuidado com as portas. elas serão fechadas.” Será que alguém estava olhando para ele? Não, havia bem poucas pessoas no vagão, todas concentradas em seus jornais. Amanhã trariam notícias sobre ele. Seus olhos pousaram num cartaz de anúncio de roupa íntima. Uma mulher numa pose provocante de calcinha de renda e sutiã. Um absurdo. Por toda parte pele desnuda. Como é que se permitia uma coisa dessas? O que isso fazia com a cabeça das pessoas, com o amor?
  • 15. As mãos de Håkan tremiam e ele as repousou sobre as pernas. Estava extremamente nervoso. — Será que não existe mesmo um outro jeito? — Você acha que eu ia submetê-lo a isso se houvesse outro jeito? — Não, mas… — Não existe nenhum outro jeito. Nenhum outro jeito. Restava apenas fazer. E fazer direito. Ele consultara o mapa no catálogo telefônico e escolhera uma área verde que provavelmente servia, depois arrumou a bolsa e partiu. Arrancara o logotipo da Adidas com a faca que agora estava na bolsa entre seus pés. Isso foi uma das coisas que deram errado em Norrköping. Alguém se lembrou da marca da bolsa e depois a polícia a encontrou num contêiner onde Håkan a jogara, não muito longe do apartamento deles. Hoje ele levaria a bolsa para casa. Devia cortá-la, fazê-la em pedacinhos, jogar tudo no vaso e dar descarga. Era assim que se fazia? Como é que se costuma fazer? “parada final para todos os passageiros.” O metrô vomitou sua carga e Håkan seguiu os outros com a bolsa na mão. Ela pesava, embora a única coisa ali dentro que tinha algum peso fosse o cilindro de alta pressão. Ele se esforçou para andar normalmente, não como um homem a caminho da própria execução. Não devia chamar a atenção das pessoas. Mas as pernas pareciam chumbo, queriam se fundir com a estação. E se ele apenas ficasse ali? E se ficasse imóvel, não movesse nenhum músculo e não saísse dali? Esperasse que a madrugada viesse, que alguém o notasse, telefonasse para… alguém que iria buscá-lo. Que o levaria para outro lugar. Continuou andando num ritmo normal. Perna direita, perna esquerda. Não podia falhar. Coisas terríveis aconteceriam se ele falhasse. O pior que se podia imaginar. Lá em cima, nas catracas, olhou ao redor. Seu senso de orientação espacial era ruim. Para que lado estava a área do bosque? É claro que ele não podia perguntar a ninguém. Tinha que arriscar. Ande, acabe logo com isso. Perna direita, perna esquerda. Deve haver outro jeito. Mas ele não conseguia pensar em nada. Havia certas condições, certos critérios. Essa era a única maneira de obedecê-los. Håkan fizera isso duas vezes, e nas duas não fizera direito. Em Växjö foi menos grave, mas ruim o suficiente para que eles fossem obrigados a se mudar. Hoje ele faria tudo certinho, e seria muito elogiado. Carícias, talvez. Duas vezes. Ele já estava condenado. Que importância tinha uma terceira vez? Nenhuma. A punição da sociedade provavelmente seria a mesma. Prisão perpétua.
  • 16. E a punição moral? Quantas voltas com a cauda, rei Minos? O caminho do parque mudava de direção mais à frente, onde o bosque começava. Deve ser o bosque que ele tinha visto no mapa. O cilindro de alta pressão e a faca esbarravam um no outro. Tentou carregar a bolsa sem sacudi-la. Uma criança apareceu no caminho, à sua frente. Uma menina de uns oito anos voltando da escola, com a mochila batendo no quadril. Não! Nunca! Isso já era demais. Não com uma criança tão pequena. Melhor com ele mesmo, até cair duro no chão. A menina cantarolava alguma coisa. Ele apressou os passos para se aproximar dela, para poder ouvi-la. Du lilla solsken som tittar in igenom fönstret i stugan min…[3] As crianças ainda cantavam isso? Talvez a menina tivesse uma professora antiga. Que bacana que essa canção ainda existia. Ele queria ficar mais perto para ouvir melhor, tão perto a ponto de sentir o cheiro do cabelo da menina. Diminuiu o passo. Não devia aprontar nada. A menina saiu do caminho do parque e continuou por uma trilha no bosque. Provavelmente morava nos prédios do outro lado. Como é que os pais a deixavam andar assim, totalmente sozinha? Era muito pequena. Ele parou, deixou a menina ganhar distância e desaparecer no bosque. Continue andando, menina. Não pare para brincar no bosque. Ele esperou talvez por um minuto, ouviu um tentilhão cantando numa árvore ao lado. Depois foi atrás da menina. Oskar voltava da escola para casa, com a cabeça pesada. Sentia-se pior quando conseguia escapar do castigo deste jeito: imitando porco ou qualquer outra coisa. Pior do que se tivesse sido castigado. Ele sabia que era assim, entretanto não conseguia aceitar o castigo quando a hora chegava. Era melhor se rebaixar e fazer qualquer coisa. Zero de orgulho. Robin Hood e o Homem-Aranha tinham orgulho. Se Sir John ou Doutor Octopus lhes pusessem numa situação difícil, eles cuspiam na cara do perigo mesmo que não houvesse nenhuma chance de escapar. Mas o que o Homem-Aranha sabia, afinal de contas? Já que mesmo assim ele sempre conseguia escapar, apesar de ser impossível. Ele era um personagem de história em quadrinhos e precisava sobreviver para o próximo número. Tinha os poderes de aranha; Oskar, o grunhido de porco. Qualquer coisa servia para sobreviver. Oskar precisava de consolo. Teve um dia de cão e agora teria a compensação. Apesar do
  • 17. risco de encontrar Jonny e Micke, foi para o centro de Blackeberg, até o supermercado Sabis. Arrastou-se pela rampa em zigue-zague em vez de subir as escadas. Juntava forças. Precisava ficar calmo, não suar. Tinha sido pego uma vez por pequenos furtos no Konsum, um ano atrás. O segurança quis ligar para a mãe de Oskar, mas ela estava no trabalho e o menino não sabia o número de lá, não sabia, de jeito nenhum. Durante uma semana, Oskar ficara agoniado a cada toque do telefone, mas em vez disso veio uma carta, endereçada à sua mãe. Uma idiotice. Até dava para ler “Polícia da Província de Estocolmo” no envelope, e naturalmente Oskar abriu a carta, leu sobre seus crimes, falsificou a assinatura da mãe e enviou a correspondência de volta para confirmar que tinha lido. Talvez covarde, mas burro, não. Sobre ser covarde. Será que era uma covardia o que ele estava fazendo agora? Encher os bolsos do casaco de chocolates Dajm, Japp, Coco e Bounty. Para finalizar, um saco de balas entre a barriga e o cós das calças. Foi ao caixa e pagou por um pirulito Dumle. No caminho de casa, andou com a cabeça erguida e passos leves. Ele não era o porco em quem todo mundo queria bater, era o Grande Ladrão que desafiava os perigos e sobrevivia. Podia enganar todos eles. Depois de cruzar a entrada do pátio do prédio, Oskar estava seguro. Nenhum dos seus inimigos morava no pátio, um círculo irregular no interior do círculo maior da Ibsengatan. Uma fortaleza em dobro. Aqui ele se sentia em segurança. Aqui nesse pátio nada de ruim jamais lhe acontecera. No geral. Aqui ele crescera e aqui tivera amigos antes de entrar na escola. Foi só no quinto ano que Oskar começou a ser excluído de verdade. Quando o quinto ano estava acabando, foi nomeado o bobalhão da turma e isso contagiou até mesmo colegas que não eram da sua turma, que telefonavam cada vez menos chamando-o para brincar. Também foi nessa época que Oskar começou com o álbum de recortes. Aquele que estava em casa e com o qual ele iria se deliciar agora. Vruuum! Um zunido e alguma coisa bateu em seus pés. Um carrinho vermelho- -escuro movido a controle remoto deu ré para longe, virou-se e subiu a ladeira em direção à porta do prédio de Oskar em alta velocidade. Atrás das urzes à direita da entrada do pátio estava Tommy com uma antena comprida despontando da barriga; ele riu. — Peguei você de surpresa, não foi? — Ele anda bem rápido. — É. Quer comprar? — … quanto? — Trezentos. — Não dá. Não tenho. Tommy chamou Oskar com o indicador, deu meia-volta no carro na ladeira e fez o brinquedo
  • 18. descer numa velocidade de carro de corrida. O carrinho parou derrapando na frente dos seus pés, e Tommy apanhou o brinquedo, deu uma batidinha nele e disse em voz baixa: — Custa novecentos na loja. — É. Tommy olhou para o carro, em seguida olhou para Oskar de cima a baixo. — Duzentos, vai? Olhe aí, está novinho em folha. — É, ele é bem bonito, mas… — Mas? — Não. Tommy balançou a cabeça aceitando, pôs o carrinho no chão de novo e comandou o brinquedo para o meio dos arbustos de forma que as rodas grandes e cheias de protuberâncias sacudiram. Deixou o brinquedo dar a volta no lugar onde se limpavam tapetes, ir para a rua e depois subir a ladeira. — Posso provar? Tommy olhou para Oskar, pensando se ele merecia ou não, depois entregou o controle remoto e apontou para o lábio superior do menino. — Levou porrada? Você está com sangue. Aqui. Oskar passou o indicador no lábio, uns pontinhos marrons ficaram agarrados. — Não, eu só… Era melhor não contar. Não adiantava nada. Tommy era três anos mais velho. Durão. Só aconselharia que ele revidasse e Oskar diria “claro”, e o único resultado seria cair ainda mais no conceito de Tommy. Oskar comandou o carrinho durante um tempo e depois ficou olhando enquanto Tommy dirigia. Desejou ter duzentos contos para que pudessem fazer negócio. Fazer algo juntos. Enfiou as mãos nos bolsos do casaco e sentiu os doces. — Quer um Dajm? — Não, não gosto de Dajm. — E um Japp? Tommy tirou os olhos do controle remoto e sorriu. — Você tem os dois? — Tenho. — Surrupiou? — … é. — O.k. Tommy abriu a mão e Oskar pôs nela um Japp, que Tommy enfiou no bolso de trás do jeans. — Obrigado. Tchau. — Tchau.
  • 19. Chegando em casa, Oskar esparramou todos os doces na cama. Começaria com o chocolate Dajm para então comer os pedaços duplos e arremataria com um Bounty, o favorito dele. Depois as balas, que limpavam a boca. Oskar arrumou os doces fazendo no chão uma fileira que acompanhava a cama, na ordem em que seriam comidos. Na geladeira, achou uma cola-cola pela metade com um pedaço de papel- alumínio tapando o gargalo, obra da sua mãe. Perfeito. Ele gostava mais de coca-cola meio sem gás, especialmente com doces. Tirou o papel-alumínio e depositou a garrafa no chão ao lado dos doces, deitou-se de barriga para baixo na cama e examinou a estante de livros. Uma coleção quase completa da série A hora do arrepio, completada aqui e ali com Suspense da hora do arrepio. A maior parte da coleção era composta de duas sacolas de papel com livros que Oskar comprara por duzentas coroas através de um anúncio no Gula Tidningen. Pegara o metrô para Midsommarkransen e seguira a descrição do caminho até encontrar o apartamento. O homem que abriu a porta era gordo, de tez amarelada e silvava ao falar. Felizmente ele não convidou Oskar para entrar, apenas levou as sacolas com os livros para o corredor, recebeu as duzentas coroas com um aceno de cabeça, disse “Divirta-se” e fechou a porta. Então Oskar ficou preocupado. Fazia meses que ele procurava pelos números antigos dessa série nos sebos de quadrinhos da Götgatan. Ao telefone, o homem dissera que se tratava justamente dos números antigos. Tudo foi fácil demais. Assim que Oskar ficou fora da vista do homem, pôs as sacolas no chão e examinou o conteúdo. Não tinha sido enganado. Quarenta e cinco livros, do número 2 ao 46. Essas revistas não estavam mais à venda. Só duzentos contos! Não foi estranho ter ficado com um pouco de medo do homem. O que ele tinha acabado de fazer era nada mais nada menos que roubar o tesouro do duende. Mesmo assim, elas não ganhavam do seu álbum de recortes. Do esconderijo debaixo da pilha de revistas em quadrinhos, depois de ficar remexendo, ele tirou o álbum. O caderno em si era apenas um bloco grande de desenho que ele tinha surrupiado da loja Åhlens em Vällingby; saíra calmamente da loja com o bloco debaixo do braço, assim mesmo — quem disse que ele era covarde? —, mas o conteúdo… Oskar abriu o Dajm, deu uma grande mordida, saboreando o crocante que dava pontadas nos dentes, e abriu o álbum. O primeiro recorte era da revista Hemmets Journal: a história de uma assassina nos Estados Unidos dos anos 1940. Ela conseguira envenenar catorze velhinhos com arsênico antes de ser presa, condenada e executada na cadeira elétrica. Ela pediu para ser executada com veneno, bastante lógico, mas o estado onde ela atuara utilizava a cadeira, e foi a cadeira o que se usou. Este era um dos sonhos de Oskar: poder ver alguém sendo executado na cadeira elétrica. Ele havia lido que o sangue começava a ferver, que o corpo se retorcia em ângulos impossíveis.
  • 20. Imaginava também que os cabelos pegassem fogo, mas não tinha nenhuma confirmação disso por escrito. Mesmo assim, era o máximo. Ele continou folheando. O próximo recorte era do jornal Aftonbladet e dizia respeito a um assassino sueco que desmembrava os corpos. Uma foto de passaporte ruinzinha. Parecia uma pessoa comum. Mesmo assim, matara dois michês homossexuais na sauna dele, cortara os corpos com uma serra elétrica e enterrara tudo atrás da sauna. Oskar comeu o último pedaço do Dajm e olhou de perto o rosto do homem. Uma pessoa comum. Podia ser eu daqui a vinte anos. Håkan encontrara um bom lugar para ficar de guarda, de onde tinha uma clara visão da trilha no bosque em ambas as direções. Mais no interior do bosque, descobriu uma baixada escondida no terreno com uma árvore no meio e deixou a bolsa com o equipamento ali. O cilindro de alta pressão com halotano estava pendurado numa correia debaixo do seu sobretudo. Agora era só esperar. Jag ville också en gång bli stor och så förståndig som far och mor[4] Ele não ouvia ninguém cantar essa canção desde a época de escola. Será que era Alice Tegnér? Vejam só quantas canções bonitas desapareceram, canções que ninguém mais cantava. Tudo de belo que desaparecera. Não se respeitava o belo. Coisa característica da sociedade de hoje. As obras dos grandes mestres podiam no máximo ser usadas como referências irônicas ou para fazer parte de anúncios. Em A criação de Adão de Michelangelo, por exemplo, alguém pusera calças jeans no lugar da centelha da vida. O sentido da obra, da forma como ele via, eram esses dois corpos monumentais que terminavam em dois indicadores que quase, mas na realidade não se tocavam. Havia um espaço vazio de um milímetro entre eles. E nesse espaço vazio: a Vida. A enormidade escultural desse afresco e a riqueza de detalhes eram apenas uma moldura, uma obra secundária para acentuar ainda mais o vazio milimétrico no meio dela. O ponto vazio onde havia espaço para tudo. E, no lugar dele, alguém pusera calças jeans. Uma pessoa vinha pela trilha. Håkan se agachou, sentindo as batidas do coração nos ouvidos. Não. Um homem velho com um cachorro. Erro em dobro. Por um lado, um cachorro que ele tinha que aquietar; por outro, a qualidade ruim. Muito grito por pouca lã, disse ele que cortou o pelo do porco. Olhou o relógio. Dentro de duas horas seria noite. Se não viesse alguém que servisse dentro de uma hora, ele tinha que pegar o primeiro que aparecesse. Precisava estar em casa antes de
  • 21. escurecer. O homem disse alguma coisa. Será que vira Håkan? Não, ele falava com o cachorro. “Iiisso, como você estava apertaaada, minha filha. Quando a gente chegar em casa, vou te dar um pedaço de patê de fígado. Vai ganhar do papai uma bela fatia.” O cilindro com halotano se espremeu contra o peito de Håkan quando ele enterrou a cabeça nas mãos e suspirou. Pobres seres humanos. Pobres seres humanos solitários num mundo sem beleza. Håkan sentia frio. O vento esfriara de tarde: ia apanhar a capa de chuva da bolsa e vesti-la por cima da roupa para se proteger do vento. Não. Isso tiraria sua agilidade na hora em que precisava ser rápido. Além do mais, podia levantar suspeitas antecipadamente. Passaram duas moças de uns vinte anos. Não. Não aguentava duas. Conseguiu fisgar fragmentos da conversa. — … que ela não vai tirá-lo agora. — … é um palhaço. Ele precisa entender que… — … a culpa é dela, já que… não com anticoncepcional… — Mas é que ele precisa… — … você pode imaginar… ele como pai… Alguma colega que estava grávida. Um garoto que não assumia a responsabilidade. As coisas eram assim. O tempo todo. Todo mundo só pensava em si mesmo. Minha felicidade, meu sucesso, era só o que se ouvia. Amor é depositar nossa vida aos pés de outra pessoa, e isso os indivíduos de hoje são incapazes de fazer. O frio penetrava em suas articulações, ele se atrapalharia seja lá de que jeito fizesse. Enfiou a mão no interior do casaco e apertou o gatilho do cilindro. Um chiado. Funcionava. Largou o gatilho. Ficou mexendo com os braços para a frente e para trás a fim de se aquecer. Tomara que chegue alguém agora. Sozinho. Consultou o relógio. Mais meia hora. Tomara que chegue alguém agora. Em nome da vida e do amor. Mas eu quero no coração ser criança sempre Pois às crianças o reino de Deus pertence. Já começara a anoitecer quando Oskar acabou de folhear o álbum inteiro. Comera todos os doces. Como sempre, depois de tanto doce, ele se sentia empanturrado e com a consciência pesada. A mãe só chegava daqui a duas horas. Então iam jantar. Depois Oskar ia fazer o dever de inglês e de matemática. Em seguida ia ler um livro ou ver televisão com a mãe. Nada de especial na tv hoje à noite. Depois iam beber chocolate quente e comer pão doce, conversar um pouco. E
  • 22. aí ele ia se deitar e ter dificuldade de dormir de tão angustiado que ficava com o dia seguinte. Se ele tivesse alguém para quem ligar… Oskar podia, é claro, ligar para Johan, esperar que ele não estivesse fazendo nada. Johan era da sua classe e os dois se divertiam quando estavam juntos, mas, se houvesse uma alternativa, Oskar não era a escolha dele. Era Johan quem ligava para Oskar quando estava entediado, não o contrário. O apartamento estava em silêncio. Não acontecia nada. As paredes de cimento se fechavam ao seu redor. Ele estava sentado na cama com as mãos no colo, o estômago pesado de doces. Como se fosse acontecer alguma coisa. Agora. Oskar prendeu a respiração e aguçou os ouvidos. Um pavor pegajoso foi tomando conta dele de mansinho. Alguma coisa se aproximava. Um gás incolor vazava das paredes, ameaçava tomar a forma de algo, engoli-lo. Ele estava petrificado, com a respiração suspensa e os ouvidos aguçados. Esperando. O momento passou. Oskar voltou a respirar de novo. Foi para a cozinha, bebeu um copo d’água e apanhou a maior faca que havia na barra magnética. Testou o gume na unha do polegar, como o pai tinha ensinado. Cega. Passou a faca no amolador algumas vezes e testou de novo. Uma lasca microscópica saiu da sua unha. Agora sim. Oskar enrolou o jornal em volta da faca fazendo uma bainha provisória, passou fita adesiva nele e pôs o embrulho entre o cós das calças e o lado esquerdo do quadril. Apenas o cabo apontava para fora. Tentou andar. A lâmina estava na frente da sua perna; ele virou a faca para baixo e a dispôs ao comprido da virilha. Desconfortável, mas dava. No corredor, vestiu o casaco. Lembrou-se em seguida de todos os papéis de doces espalhados pelo chão do quarto. Juntou os papéis, amassou e enfiou tudo no bolso do casaco, no caso de a mãe chegar em casa antes dele. Podia deixar os papéis embaixo de alguma pedra no bosque. Verificou mais uma vez para ver se não havia deixado nenhum vestígio. A brincadeira começara. Ele era um serial killer temido. Cartorze pessoas já tinham sido mortas com sua faca afiada, isso sem deixar nem sequer uma pista. Nem mesmo um fio de cabelo, nenhum papel de doce. Ele era temido pela polícia. Agora ia para o bosque à procura da próxima vítima. Estranhamente, ele já sabia seu nome, que cara ela tinha. Jonny Forsberg, com o cabelo longo e os olhos grandes e maus. Ele precisaria implorar para ficar vivo, gritar como um porco, mas seria em vão. A faca dará a última palavra e o chão sorverá o sangue dele. Oskar leu essas palavras num livro e gostou delas. “O chão sorverá o sangue dele.” Enquanto trancava a porta de casa e saía do prédio com a mão esquerda no cabo da faca, repetia a frase como se fosse um mantra. O chão sorverá o sangue dele. O chão sorverá o sangue dele.
  • 23. A entrada que Oskar usara para chegar ao pátio estava na ponta direita do seu bloco, mas ele pegou a esquerda, passou por dois prédios e pela abertura onde os carros podiam entrar. Saiu da parte interna da fortaleza. Cruzou a Ibsengatan e continuou descendo uma ladeira. Saiu da parte externa da fortaleza. Continuou em direção ao bosque. O chão sorverá o sangue dele. Era a segunda vez neste dia que Oskar se sentia quase feliz. Faltavam apenas dez minutos para o prazo final estabelecido por Håkan, quando um garoto apareceu sozinho na trilha. De uns treze, catorze anos, segundo o que ele podia ver. Perfeito. Pensou em correr agachado para a outra ponta da trilha e ir ao encontro do escolhido. Mas agora as pernas não queriam mesmo sair do lugar. O menino andava descontraído pela trilha e não havia muito tempo. A cada segundo que passava, diminuía a chance de que o desempenho fosse perfeito. Ainda assim, as pernas se negavam a se mexer. Ele ficou olhando paralisado enquanto o escolhido, o perfeito, seguia em frente, em breve na altura dele, bem à sua frente. Em breve tarde demais. Preciso. Preciso. Preciso. Se não fizesse, teria que se matar. Não podia chegar em casa sem nada. Era assim. Ou ele ou o garoto. Era só escolher. Ele se pôs em movimento tarde demais. Agora vinha afoito tropeçando pelo caminho, bem na direção do garoto, em vez de se aproximar calmamente do rapaz na trilha. Idiota. Só dá mancada. Agora o garoto ficaria desconfiado, vigilante. — Olá! — exclamou para o menino. — Com licença! O garoto parou. Pelo menos não fugiu, ainda bem. Tinha que dizer alguma coisa, perguntar algo. Ele se aproximou do menino, que esperava receoso na trilha. — Perdão, mas… que horas são? O garoto olhou furtivamente para o relógio de pulso de Håkan. — É que o meu parou. O corpo do garoto estava tenso quando ele consultou o relógio. Mais nada a fazer. Håkan enfiou a mão dentro do sobretudo e pousou o indicador no gatilho do cilindro enquanto esperava pela resposta do menino. Oskar desceu a ladeira perto da gráfica e entrou na trilha do bosque. O nó no estômago desapareceu, foi substituído por uma excitação inebriante. No caminho para o bosque, a fantasia tomou conta de tudo ao redor e agora era realidade. Ele via o mundo através dos olhos de um assassino, pelo menos através dos olhos de um assassino que a fantasia de um menino de treze anos era capaz de criar. Um mundo bonito. Um mundo onde Oskar tinha controle das coisas, que estremecia perante sua vontade.
  • 24. Ele caminhava pela trilha do bosque procurando por Jonny Forsberg. O chão sorverá o sangue dele. Começou a escurecer e as árvores o envolviam como se fossem uma multidão calada, vigiando os mínimos movimentos do assassino, temendo que uma delas fosse a eleita. Mas o assassino atravessou a multidão e deixou-a para trás; já avistara sua vítima. Jonny Forsberg estava numa elevação talvez a uns cinquenta metros da trilha. Tinha as mãos nos quadris, o sorriso debochado estampado na cara. Achava que seria como de costume. Que ia jogar Oskar no chão, tapar o nariz dele e enfiar agulhas de pinheiros e musgo em sua boca, ou algo do tipo. Mas ele se enganou. Não era Oskar quem vinha, era o Assassino, e a mão do Assassino apertava agora o cabo da faca, preparando-se. O Assassino se aproximou lenta e altivamente de Jonny Forsberg, olhou-o nos olhos e disse: — Olá, Jonny. — Olá, porquinho. Você tem permissão para ficar na rua a essa hora? O Assassino tirou a faca. E deu o primeiro golpe. — Quinze para as cinco, mais ou menos. — Certo. Obrigado. O garoto não foi embora. Ficou olhando para Håkan, que tentou dar um passo. O garoto não se mexia, acompanhava Håkan com os olhos. Isso aqui não deu certo. Naturalmente o menino estava desconfiado. Uma pessoa chegara fazendo um estardalhaço danado no bosque para saber as horas e agora parecia um Napoleão com a mão enfiada no sobretudo. — O que você tem aí? O garoto apontou com a cabeça na direção do coração de Håkan. Sua cabeça estava vazia, ele não sabia o que fazer. Tirou o cilindro de alta pressão do casaco e mostrou-o para o garoto. — E o que é isso? — Halotano. — E por que você anda com isso por aí? — Porque… — Ele passou os dedos na máscara bucal revestida de espuma e tentou pensar em algo para dizer. Não sabia mentir. Era sua desgraça. — Bem, porque… faz parte do meu trabalho. — Que tipo de trabalho? O garoto tinha relaxado um pouquinho. Uma bolsa de esporte parecida com a que Håkan deixara na baixada estava na mão do garoto. Com a mão que segurava o cilindro, ele apontou na direção da bolsa. — Você vai para o treino? Quando o garoto virou os olhos para a bolsa, Håkan aproveitou a chance.
  • 25. Seus braços voaram, a mão que estava livre segurou a cabeça do garoto, a máscara do cilindro foi pressionada em sua boca e o gatilho foi apertado até o nível máximo. Ouviu-se um chiado como o de uma cobra grande e o garoto tentou soltar a cabeça, mas ela estava presa nas mãos de Håkan como se estivesse num torno. O garoto se jogou para trás e Håkan foi junto. O som sibilante da cobra abafou todos os outros ruídos quando os dois caíram na serragem da trilha. Desesperadamente, Håkan manteve a cabeça do garoto apertada entre suas mãos para a máscara não sair do lugar enquanto eles rolavam pela trilha. Depois de respirar fundo algumas vezes, o corpo do garoto começou a relaxar. Håkan segurava a máscara no lugar e olhava ao redor. Nenhuma testemunha. O chiado do cilindro encheu seu cérebro como se fosse uma enxaqueca fortíssima. Travou o gatilho e soltou com cuidado a mão livre, pegou a tira elástica e passou-a em volta da cabeça do garoto. A máscara estava firme no lugar. Levantou-se com os braços doloridos e olhou para a presa. O garoto estava deitado com os braços afastados do corpo, a máscara cobria-lhe o nariz e a boca, o recipiente com halotano estava em cima do seu peito. Håkan olhou ao redor mais uma vez, apanhou a bolsa do garoto e depositou-a em cima da barriga dele. Depois levantou a carga toda nos braços e carregou tudo para a baixada. O garoto era mais pesado do que imaginava. Muitos músculos. Peso inconsciente. Respirava com dificuldade depois do esforço de carregar o garoto para a baixada enquanto o chiado do cilindro penetrava em seus ouvidos como as serras de uma faca. Resfolegou mais alto de propósito para não ter de ouvir o barulho. Com os braços dormentes e o suor escorrendo-lhe pelas costas, chegou por fim à baixada. Ali depositou o garoto no ponto mais fundo do terreno. Em seguida se deitou ao lado dele. Fechou o gás halotano e tirou a máscara da vítima. Tudo ficou em silêncio. O peito do garoto subia e descia. Dentro de oito minutos, no máximo, o garoto acordaria. Mas isso não aconteceu. Håkan estava deitado ao lado do rapaz, estudou seu rosto, acariciou-o com o indicador. Depois foi para mais perto do menino, abraçou o corpo molenga e puxou-o para bem junto de si. Beijou-o carinhosamente no rosto, sussurrou “perdão” no ouvido dele e se levantou. As lágrimas queriam transbordar quando ele viu o corpo indefeso no chão. Håkan ainda podia parar. Universos paralelos. Um consolo para a mente. Havia um universo paralelo onde Håkan não fazia isso que estava prestes a fazer. Um universo onde ele ia embora e deixava o menino acordar, imaginando o que tinha acontecido. Mas não neste universo. Neste universo ele ia agora até a bolsa e a abria. Não podia demorar. Rapidamente, vestiu a capa de chuva por cima da roupa e apanhou os utensílios. A faca, uma
  • 26. corda, um funil grande e um garrafão de plástico de cinco litros. Depositou tudo no chão ao lado do garoto e contemplou o corpo jovem uma última vez. Depois apanhou a corda e começou a trabalhar. Oskar golpeou, golpeou e golpeou. Depois do primeiro golpe, Jonny entendeu que essa não seria uma ocasião igual às outras. Com o sangue jorrando de um corte profundo na bochecha, ele tentou escapar, mas o Assassino foi mais rápido. Com algumas incisões ligeiras, rompeu os tendões da parte de trás dos joelhos da vítima e Jonny caiu no chão, ficou se contorcendo no musgo e suplicando por clemência. Mas o Assassino não se deixou persuadir. Jonny gritou que nem… um porco quando o Assassino se jogou em cima dele e o chão sorveu seu sangue. Uma facada por aquilo no banheiro hoje. Uma pela vez que você me enganou no pôquer de nós dos dedos. Seus lábios, eu corto fora por causa de tudo de ruim que você me falou. Jonny vazava por todos os buracos e não podia mais dizer ou fazer nada de mal. Já estava morto havia muito tempo. Oskar finalizou furando-lhe o globo ocular arregalado, tchuqui, tchuqui, levantou-se e contemplou a obra. Pedaços grandes da árvore tombada e carcomida, que tinham sido o Jonny caído, haviam se soltado e o tronco estava perfurado pelos golpes. Farpas espalhadas ao pé da árvore saudável que tinha sido o Jonny quando ele estava em pé. A mão direita, a mão da faca, doía. Um corte pequeno quase em cima do pulso; a lâmina deve ter escorregado na hora em que ele desferia os golpes. Não era uma faca boa para essa finalidade. Lambeu a mão e limpou a ferida com a língua. Era o sangue de Jonny que ele bebia. Limpou o resto do sangue na bainha de jornal, enfiou a faca ali e pôs-se a caminho de casa. O bosque, que alguns anos atrás parecia ameaçador, uma toca de inimigos, era agora o lar e o refúgio de Oskar. As árvores se afastaram em sinal de respeito quando ele passou por elas. Não sentia um pingo de medo, embora já começasse a escurecer de verdade. Nenhuma angústia em relação ao dia seguinte, ele podia trazer o que fosse. Dormiria bem hoje à noite. Já de volta ao pátio do prédio, sentou-se por um instante no canto de uma caixa de areia para se acalmar antes de ir para casa. Amanhã arranjaria uma faca melhor, uma faca com punho ou, como era mesmo o nome daquilo… punho em cesto, assim não se cortaria de novo. Porque ele faria isso mais vezes. Era uma brincadeira boa. Quinta-feira, 22 de outubro A mãe tinha lágrimas nos olhos quando pegou a mão de Oskar na mesa da cozinha e apertou-a com força. — Você está terminantemente proibido de se meter no bosque, está me ouvindo?
  • 27. Um garoto da idade de Oskar tinha sido morto em Vällingby na noite anterior. Os jornais da tarde haviam noticiado e a mãe estava totalmente fora de si quando chegou em casa. — Podia ter sido… nem quero pensar nisso. — Mas foi em Vällingby. — E você acha que alguém que ataca crianças não ia pegar o metrô e andar mais duas estações? Ou vir a pé? Vir para Blackeberg e fazer a mesma coisa mais uma vez? Você costuma ficar no bosque? — Não. — Você não vai sair daqui do pátio a partir de hoje, enquanto esse… Até a polícia pegar esse homem. — Então eu não vou à escola? — Vai sim, você vai à escola. Mas depois da escola você vem direto para casa e não vai sair do prédio até eu chegar em casa. — E depois? A tristeza nos olhos da mãe misturou-se com a raiva. — Você quer ser assassinado, quer? Quer se meter no bosque e ser morto, e eu aqui aflita esperando enquanto você está caído lá no bosque e é… esquartejado bestialmente por alguém… As lágrimas transbordaram dos seus olhos. Oskar pôs a mão em cima da dela. — Eu não vou para o bosque. Prometo. A mãe acariciou o rosto dele. — Coração, você é tudo o que tenho. Nada pode lhe acontecer. Caso contrário, eu também morro. — Ahã. Como é que foi? — O quê? — Isso aí. O assassinato. — Sei lá. Ele foi assassinado por algum maluco com uma faca. Está morto. A vida dos pais está destruída. — Não está no jornal? — Não aguentei ler. Oskar apanhou o jornal Expressen e o folheou. Quatro páginas dedicadas ao assassinato. — Você não vai ler isso. — Não, só estou dando uma olhada. Posso ficar com o jornal? — Você não deve ler sobre isso. Não faz bem, junto com todas essas histórias de terror que você vive lendo. — Eu só vou olhar a programação da tv. Oskar se levantou para ir para o quarto, com o jornal nas mãos. A mãe deu um abraço desajeitado no filho e apertou seu rosto molhado no dele.
  • 28. — Meu filho, você entende minha preocupação, não entende? Se alguma coisa acontecer com você… — Eu sei, mãe. Eu sei. Eu tomo cuidado. Oskar retribuiu um pouco o abraço e depois se soltou com cuidado dos braços da mãe; foi para o quarto enquanto limpava do rosto as lágrimas dela. Isso aqui era o máximo. Se ele entendeu bem, o garoto tinha sido morto quase ao mesmo tempo que ele estava brincando no bosque. Infelizmente não fora Jonny Forsberg o assassinado, mas um garoto desconhecido de Vällingby. Havia um clima de enterro em Vällingby na parte da tarde. Ele tinha lido as manchetes dos jornais antes de ir para lá, e talvez fosse apenas fruto da sua imaginação, mas achou que as pessoas na praça falavam mais baixo, andavam mais devagar do que de costume. Na loja de ferragens, Oskar surrupiara uma faca de caça extremamente bonita no valor de trezentos contos. Tinha uma explicação caso fosse pego com a mão na massa. — Desculpe, tio. Mas é que eu estou com muito medo do assassino. Ele podia com certeza também forçar umas lágrimas, caso a coisa dependesse disso. Eles iam deixá-lo ir. Sem sombra de dúvida. Mas Oskar não foi pego e a faca estava agora no esconderijo perto do álbum de recortes. Ele precisava pensar. Será que sua brincadeira tinha de algum modo provocado o assassinato? Oskar achava que não, mas a hipótese não podia ser eliminada. Os livros que lia estavam cheios dessas coisas. Um pensamento num lugar causava um acontecimento em outro. Telecinesia, vodu. Mas exatamente onde, quando e principalmente como aconteceu o assassinato? Caso fossem muitos golpes desferidos num corpo caído, então Oskar precisava de fato considerar a hipótese de que simplesmente tinha um poder terrível nas mãos. Um poder que ele tinha que aceitar e aprender a controlar. Ou será que é… a árvore que é… o intermediário? A árvore carcomida que ele tinha esfaqueado. Podia haver alguma coisa especial justamente com essa árvore, aquilo que fosse feito nela depois… se espalhava. Detalhes. Oskar leu todas as reportagens sobre o assassinato. O policial que foi em sua escola falar sobre drogas aparecia na foto. Ele não podia fazer nenhum comentário. Peritos do Laboratório Nacional de Ciência Forense foram chamados para coletar os vestígios. Era necessário aguardar. O retrato do garoto morto foi tirado do anuário da escola. Oskar nunca tinha visto o menino antes. Ele parecia um Jonny ou um Micke. Vai ver que havia um Oskar na escola de Vällingby que agora estava livre.
  • 29. O garoto estava a caminho do treino de handebol na quadra de Vällingby e nunca chegou lá. O treino começava às cinco e meia. O menino provavelmente saiu de casa perto das cinco horas. Mais ou menos nesse intervalo. Oskar sentiu de repente uma tontura. Batia certinho. E o garoto tinha sido assassinado no bosque. Será que é isso? Sou eu quem… Uma garota de dezesseis anos tinha encontrado o corpo por volta das oito da noite e chamado a polícia de Vällingby. Ela estava agora “muito chocada” e sob cuidados médicos. Nada sobre o estado do corpo. Mas o fato de a garota estar “muito chocada” significava que o corpo havia sido mutilado de alguma maneira. Do contrário, só escreveriam “chocada”. O que a garota estava fazendo no bosque, se já estava escuro? Provavelmente algo sem importância. Tinha ido pegar pinha, qualquer coisa. Mas por que não havia nada no jornal sobre como o menino foi morto? A única coisa que havia era uma foto do local do crime. A faixa de isolamento com listras brancas e vermelhas em volta de uma baixada sem graça no bosque, com uma árvore grande no meio. No dia seguinte ou no próximo haveria uma foto do mesmo lugar, mas nesse caso com um monte de velas acesas e cartazes com “por quê?” e “saudades”. Oskar já conhecia esse ritual; havia mais de um caso como este em seu álbum. Provavelmente tudo não passou de uma coincidência. Mas e se. Oskar colou o ouvido na porta. A mãe estava lavando louça. Ele se deitou de barriga para baixo na cama e vasculhou até achar a faca de caça. O cabo estava talhado de forma a moldar-se à mão e a faca pesava com certeza três vezes mais que a faca de cozinha que ele tinha usado no dia anterior. Oskar se levantou e foi para o meio do quarto com a faca na mão. Era bonita, dava poder à mão que a segurava. Tilintar de louça na cozinha. Ele desferiu alguns golpes no ar. O Assassino. Quando tivesse aprendido a controlar sua força, Jonny, Micke e Tomas não iriam nunca mais atormentá-lo. Estava prestes a dar mais uma investida, mas se deteve. Alguém podia vê-lo do pátio. Estava escuro lá fora e a luz do quarto, acesa. Olhou de relance para o pátio, mas viu apenas o próprio reflexo na vidraça da janela. O Assassino. Oskar guardou a faca de volta no esconderijo. Isso aqui era só uma brincadeira. Essas coisas não aconteciam no mundo real. Mas ele precisava saber de detalhes. Precisa saber disso agora. Tommy estava sentado na poltrona folheando uma revista sobre motos, balançando a cabeça e resmungando. De vez em quando levantava a revista para Lasse e Robban sentados no sofá e mostrava uma foto especialmente interessante, com um comentário sobre o volume do cilindro e a velocidade máxima. A lâmpada no teto refletia no papel lustroso, jogando reflexos pálidos nas paredes de cimento revestidas de madeira.
  • 30. Ele deixou os outros dois na expectativa. A mãe de Tommy namorava com Staffan, que trabalhava na polícia de Vällingby. Tommy não gostava de Staffan. Um tipo que vivia com o dedo em riste, um puxa-saco. E religioso, ainda por cima. Mas, através da mãe, Tommy ficou sabendo de umas coisas que Staffan não devia ter contado para a mãe e que ela não devia ter contado para Tommy, mas… Ele ficou sabendo, por exemplo, a quantas andava a investigação do roubo na loja de aparelhos de som perto da praça Island. Roubo que ele, Robban e Lasse tinham praticado. Nenhuma pista dos criminosos. A mãe dissera exatamente assim: “Nenhuma pista dos criminosos”. Palavras de Staffan. Eles nem sequer tinham a descrição do carro. Tommy e Robban tinham dezesseis anos e estavam no primeiro ano do ensino médio. Lasse tinha dezenove e algum problema na cabeça; trabalhava organizando chapas metálicas na lm Ericsson em Ulvsunda. Mas tinha carteira de motorista. E um Saab 74 branco cujo número da placa eles tinham mudado com uma caneta hidrográfica antes de arrombar a loja. Perda de tempo, já que ninguém tinha visto o carro. Armazenaram os objetos roubados no abrigo antiaéreo fora de uso em frente ao depósito no porão que era o local do clube deles. Romperam a corrente da porta com uma chave micha e puseram um cadeado novo. Eles não sabiam direito como venderiam aquilo tudo, o arrombamento em si é que tinha sido a sensação. Lasse vendeu um aparelho de fita cassete para um colega de trabalho por duzentos contos, mas isso era tudo. Era mais seguro ficar na deles com as mercadorias por um tempo. Especialmente não deixar que Lasse fosse cuidar da venda, já que ele tinha… o miolo um pouco mole, como dizia a mãe. Mas o roubo acontecera havia duas semanas e, no momento, a polícia estava ocupada com outros casos. Tommy folheou a revista e sorriu para si mesmo. É isso. Um monte de outros casos para cuidar. Robban tamborilou com os dedos, produzindo estalos na coxa. — Ande logo. Desembuche. Tommy segurou a revista no alto para ele. — Kawasaki. Trezentos centímetros cúbicos. Injeção direta e… — Pare com isso. Desembuche. — O quê… sobre o assassinato? — É! Tommy mordiscou o lábio; fingia estar pensando. — Como é que foi mesmo… Lasse inclinou o corpo comprido para a frente no sofá e se dobrou parecendo uma navalha. — Ah! Fale logo! Tommy deixou o jornal de lado e olhou bem na cara de Lasse. — Tem certeza de que você quer ouvir? É bem sinistro.
  • 31. — Ah! Lasse estufou o peito, mas Tommy viu a aflição em seus olhos. Era só fazer cara feia, falar com voz esquisita ou se negar a acabar de contar para que ele ficasse com medo de verdade. Uma vez, Tommy e Robban tinham se pintado de zumbis com a maquiagem da mãe de Tommy, desatarraxado a lâmpada do teto e esperado por Lasse. Tudo acabou com Lasse se borrando nas calças e Robban com o olho roxo na mesma região onde se pintara com uma sombra azul-escura. Depois daquele dia eles agiam com mais cautela quando assustavam Lasse. Agora Lasse se remexia no sofá e cruzou os braços no peito para mostrar que estava preparado para o que desse e viesse. — Bem… isso aqui não foi um assassinato comum, se a gente usar esse termo. Eles acharam o cara… pendurado numa árvore. — Como assim? Pendurado? — perguntou Robban. — É, pendurado. Mas não pelo pescoço. Pelos pés. Ou seja, ele estava pendurado de cabeça para baixo. Na árvore. — Mas como? É que não se morre disso. Tommy ficou olhando por um bom tempo para Robban, como se ele tivesse feito uma observação interessante, e prosseguiu: — É. É verdade. Mas é que a garganta do cara estava cortada. E disso a gente morre. A garganta toda. Cortada. Como um… melão. — Ele passou o indicador no pescoço para mostrar como a faca fizera. A mão de Lasse voou de repente para a garganta, como para protegê-la. Sacudiu devagar a cabeça de um lado para o outro. — Mas por que ele estava pendurado desse jeito? — Bem, o que você acha? — Sei lá. Tommy beliscou o lábio inferior e fez uma cara de quem pensava. — Agora vocês vão saber da parte esquisita da história. Alguém corta a garganta de uma pessoa para que ela morra. Então escorre bastante sangue, não é mesmo? — Lasse e Robban balançaram a cabeça concordando. Tommy desfrutou por um instante da expectativa deles antes de soltar a bomba. — Mas lá no chão… embaixo de onde o cara estava pendurado. Não havia quase sangue nenhum. Apenas umas gotas. E devem ter saído vários litros de sangue enquanto ele estava pendurado ali. O porão ficou em silêncio. Lasse e Robban olhavam fixamente para a frente com os olhos vazios, até que Robban se endireitou no sofá e disse: — Eu sei. Ele foi morto em outro lugar. E depois pendurado ali. — Ahã. Mas nesse caso por que o assassino pendurou o garoto? Quando se mata alguém, a gente quer se livrar do corpo.
  • 32. — Ele pode ser… doente da cabeça. — Pode ser. Mas eu acho outra coisa. Vocês já viram nos matadouros? Como fazem com os porcos? Antes de esquartejar o bicho, tiram todo o seu sangue. E sabem como eles fazem isso? Penduram o porco de cabeça para baixo. Num gancho. E cortam o pescoço dele. — Então você quer dizer… assim, que o cara… que o assassino ia abater o garoto? — Hããã? — Lasse olhou hesitante para Tommy e depois para Robban e para Tommy de novo para ver se eles não estavam gozando com sua cara. Não viu nada que indicasse isso e disse: — Eles fazem assim? Com os porcos? — É, o que você achava? — Que era uma espécie de… máquina. — E você acha que por acaso seria melhor? — Não, mas… eles ainda estão vivos? Quando… penduram os bichos? — Sim. Estão vivos. E esperneiam. E gritam. Tommy imitou um porco gritando e Lasse se afundou no sofá, olhando para o colo. Robban se levantou, deu alguns passos para a frente e para trás e sentou-se no sofá de novo. — Mas alguma coisa não bate. Se o assassino quisesse abater o garoto, então devia haver sangue. — Foi você quem disse que ele queria abater o garoto. Eu não acho que foi isso. — O.k. E o que você acha? — Acho que ele estava era atrás do sangue. Que foi por isso que matou o garoto. Para pegar sangue. Que carregou o sangue com ele. Robban balançou a cabeça lentamente e cutucou com o dedo a casca de ferida deixada por uma espinha grande no canto da boca. — Mas para quê? Para beber o sangue, ou o quê? — É. Por exemplo. Tommy e Robban ficaram absortos imaginando o assassinato e o que acontecera depois dele. Passado um tempo, Lasse levantou a cabeça e lançou um olhar interrogativo para eles. Tinha lágrimas nos olhos. — Eles morrem rápido, os porcos? Tommy olhou bem sério nos olhos dele. — Não. — Eu vou dar uma saída. — Não… — Só vou ficar no pátio. — Você não vai para lugar nenhum fora do pátio? — Claro que não. — Eu chamo você quando…
  • 33. — Não. Eu venho. Estou com o relógio. Não me chame. Oskar vestiu o casaco e o gorro. Deteve-se com um dos pés quase dentro da bota. Foi em silêncio para o quarto, apanhou a faca e a enfiou dentro do casaco. Amarrou os sapatos. A voz da mãe veio de novo da sala de estar. — Está frio lá fora. — Eu estou com o gorro. — Na cabeça? — Não. No pé. — Não brinque com isso. Você sabe como são… — Até logo. — … seus ouvidos. Ele saiu e consultou o relógio. Sete e quinze. Faltavam quarenta e cinco minutos para começar o programa na tv. Provavelmente Tommy estava lá embaixo no porão, mas Oskar não tinha coragem de ir até lá. Tommy era legal, mas os outros… Especialmente se tinham cheirado cola, podiam ter umas ideias esquisitas. Então desceu para o parquinho no meio do pátio. Duas árvores de tronco grosso que às vezes eram usadas como trave de gol, um trepa-trepa com escorregador, uma caixa de areia e um balanço com três pneus de carro pendurados em correntes. Sentou-se num dos pneus e balançou devagar. Oskar gostava daqui à noite. Ao seu redor, o quadrado grande de centenas de janelas com as luzes acesas e ele sentado ali no escuro. Em segurança e sozinho ao mesmo tempo. Tirou a faca da bainha. A lâmina era tão reluzente que ele podia ver as janelas refletidas nela. A lua. Uma lua ensanguentada… Oskar se levantou do balanço, aproximou-se de fininho de uma árvore e falou com ela. — O que é que você está olhando, idiota? Quer morrer, hein? A árvore não respondeu e Oskar enfiou a faca nela, com cuidado. Não queria estragar o gume reluzente. — É isso que dá. Ficar me encarando. Ele girou a faca, fazendo uma lasquinha se soltar da árvore. Um pedaço de carne. Sussurrou: — Agora grite que nem um porco. Ele se deteve. Achou que ouvira alguma coisa. Com a faca junto do quadril, olhou ao redor. Levantou a faca na altura dos olhos e a examinou. A ponta estava tão reluzente quanto antes. Fez da lâmina um espelho e a virou na direção do trepa-trepa. Alguém estava ali. Alguém que não estava ali agora há pouco. Um contorno difuso no metal limpo. Oskar abaixou a faca e olhou diretamente para o trepa-trepa. Isso mesmo. Mas não era o assassino de Vällingby. Era uma criança. A luz foi suficiente para mostrar que era uma menina que ele nunca vira antes ali no pátio.
  • 34. Oskar deu um passo na direção do trepa-trepa. A menina não se mexeu. Apenas continuou lá em cima olhando para o garoto. Ele deu mais um passo e de repente ficou com medo. De quê? De si mesmo. Com a faca na mão, aproximou-se da menina para enfiar-lhe a faca. É claro que não era isso. Mas parecia que era, por um instante. Como é que ela não ficou com medo? Ele parou, empurrou a faca de volta na bainha e a enfiou dentro do casaco. — Oi. A menina não respondeu. Oskar estava tão perto agora que podia ver que o cabelo dela era escuro, o rosto pequeno, os olhos grandes. Olhos bem abertos que olhavam calmamente para ele. As mãos estavam pousadas no parapeito do trepa-trepa. — Eu disse oi. — Eu ouvi. — Então por que você não responde? A menina deu de ombros. Sua voz era tão clara quanto Oskar achou que seria. Parecia a voz de alguém da idade dele. Ela tinha uma cara estranha. O cabelo de tamanho médio, preto. O rosto redondo, nariz pequeno. Como uma dessas bonecas de papel da seção infantil da revista Hemmets Journal. Muito… bonita. Mas havia alguma coisa de estranho. Ela não estava com gorro nem casaco. Apenas uma blusa rosa de pano leve, embora fizesse muito frio. A menina apontou com a cabeça na direção da árvore que Oskar golpeara. — O que você está fazendo? Oskar ficou vermelho, mas não dava para ver no escuro, não é mesmo? — Treinando. — Para quê? — Se o assassino vier. — Que assassino? — O de Vällingby. O que matou aquele garoto a facadas. A menina soltou um suspiro e levantou os olhos para o céu. Depois se inclinou para a frente. — Você está com medo? — Não, mas um assassino, é que… é que é bom a gente poder… se proteger. Você mora aqui? — Moro. — Onde? — Ali. — A menina apontou para a portaria do prédio ao lado do de Oskar. — Do seu lado… — Como você sabe onde eu moro? — Já vi você na janela. Um calor subiu às bochechas de Oskar. Enquanto tentava pensar em alguma coisa para dizer, a menina pulou do trepa-trepa e aterrissou na frente dele. Um salto de mais de dois metros. Ela deve fazer ginástica olímpica ou algo desse tipo.
  • 35. Ela era quase do mesmo tamanho dele, porém muito mais magra. A blusa rosa se apertava em volta do corpo delgado, que não apresentava o menor vestígio de peitos. Seus olhos eram negros, muito grandes no rostinho pálido. Ela levantou uma das mãos no ar à frente dele, como se quisesse deter alguma coisa que se aproximava. Seus dedos eram longos, finos como ramos de árvore. — Eu não posso ser sua amiga. Só para você saber. Oskar cruzou os braços no peito. Sentiu debaixo de uma das mãos o contorno do cabo da faca no casaco. — Como assim? Um dos cantos da boca da menina se levantou, como numa espécie de sorriso. — É preciso ter motivo? Só estou dizendo como as coisas são. Para você saber de uma vez. — O.k., tudo bem. A menina se virou e se afastou de Oskar, na direção do prédio. Quando ela já tinha dado alguns passos, Oskar perguntou: — E você acha que eu queria ser seu amigo? Você é besta, é isso que você é. A menina parou. Ficou imóvel por um instante. Em seguida deu meia-volta e foi até Oskar. Parou na frente dele. Entrelaçou os dedos e deixou os braços ficarem caídos. — O que foi que disse? Oskar cruzou ainda mais os braços no peito, apertou na mão o cabo da faca e olhou para o chão. — Você é besta… porque fica dizendo essas coisas. — Verdade? — É. — Então desculpe. Mas é assim que tem que ser. Eles estavam imóveis, a meio metro um do outro. Oskar continuou olhando para o chão. Um cheiro estranho exalava do corpo dela. Fazia um ano que o cachorro dele, Bobby, tivera uma infecção nas patas e eles tiveram que sacrificá-lo. No último dia, Oskar não fora à escola para ficar em casa várias horas deitado ao lado do cachorro doente, despedindo-se dele. Bobby tinha naquela ocasião o mesmo cheiro da menina. Oskar franziu o nariz. — É você que está com esse cheiro estranho? — Acho que sim. Oskar levantou os olhos do chão. Arrependeu-se do que dissera. Ela parecia tão… frágil naquela blusa de pano fino. Ele destrançou os braços cruzados e fez um gesto na direção dela. — Você não está com frio? — Não. — Por quê?
  • 36. A menina franziu as sobrancelhas, contraiu o rosto e por um instante pareceu muitíssimo mais velha do que era. Como uma velhinha a ponto de chorar. — Acho que eu esqueci como se faz. A menina se virou rapidamente e foi para a portaria do prédio. Oskar continuou onde estava, seguindo-a com os olhos. Quando ela chegou na frente da porta pesada, Oskar achou que precisaria das duas mãos para abri-la. Mas, pelo contrário, a menina pegou a maçaneta com uma das mãos e escancarou a porta de modo que ela bateu na trave de metal do chão, quicou de volta e se fechou atrás da garota. Ele enfiou as mãos nos bolsos do casaco e ficou triste. Pensou em Bobby. Na cara do cachorro deitado no caixão que o pai confeccionara. Na cruz que ele tinha feito na aula de marcenaria e que se quebrou quando eles a enfiaram no chão congelado. Ele devia fazer outra. Sexta-feira, 23 de outubro Håkan estava no metrô de novo, a caminho do centro da cidade. Dez notas de mil coroas enroladas e presas com um elástico estavam no bolso da calça. Com esse dinheiro, iria fazer uma coisa bonita. Salvaria uma vida. Dez mil coroas era muito dinheiro e, se a gente considerasse as campanhas da Save the Children sobre como “Mil coroas podem alimentar uma família inteira durante um ano” etc., então dez mil devia ser o bastante para salvar uma vida aqui na Suécia, não é? Mas a vida de quem? Onde? Não se podia dar o dinheiro na mão do primeiro viciado que aparecesse e esperar que… não. E devia ser alguém jovem. Ele sabia que era uma bobagem, mas o ideal é que fosse uma dessas crianças chorando como naqueles quadros. Uma criança que recebia o dinheiro com lágrimas nos olhos e… e o quê? Saltou na estação Odenplan sem saber por que e desceu para a Biblioteca Municipal. Na época em que morava em Karlstad e era professor de sueco do sétimo ao nono ano, e ainda tinha uma casa para morar, a Biblioteca Municipal de Estocolmo era conhecida como um… lugar bom. Foi só quando viu a rotunda grande da biblioteca, famosa em fotos de livros e jornais, que soube o motivo de ter saltado ali. Porque era um bom lugar. Alguém de suas relações, provavelmente Gert, contara como se fazia para comprar serviços sexuais ali. Håkan nunca fizera isso. Comprar sexo. Uma vez Gert, Torgny e Ove conseguiram um menino cuja mãe havia sido trazida do Vietnã por um conhecido de Ove. O menino devia ter uns doze anos e sabia o que se esperava dele, recebera um bom dinheiro para isso. Mesmo assim, Håkan não conseguiu. Bebericou do Bacardi com coca-cola e se deliciou muito com o corpo nu do garoto enquanto ele se retorcia na sala
  • 37. onde eles tinham se reunido… Mas não foi além disso. Os outros tinham sido chupados na devida ordem pelo menino, mas, quando chegou a vez de Håkan, ele sentiu um aperto no estômago. A situação toda era asquerosa demais. A sala cheirava a excitação, bebida alcoólica e germes. Uma gota do esperma de Ove reluzia na face do menino. Håkan afastou a cabeça do garoto quando ele se inclinou sobre sua região pélvica. Os outros proferiram insultos, xingaram-no, fizeram ameaças. Ele tinha sido testemunha, era conivente. Zombaram dele por causa dos seus escrúpulos, mas esse não foi o problema. É que tudo aquilo era muito feio. O único cômodo do apartamento de Åke, as quatro poltronas descombinadas dispostas especialmente ali para a ocasião, a música de conjuntos bregas tocando no aparelho de som. Håkan pagou sua parte na diversão e nunca mais viu os outros. Tinha suas revistas, suas fotos, seus filmes. Já era o bastante. Provavelmente, ele tinha escrúpulos, que apenas nessa ocasião se manifestaram numa aversão intensa à situação. Então por que estou indo para a Biblioteca Municipal? Pegaria um livro emprestado. O incêndio de três anos atrás tinha devorado toda a sua vida, entre outras coisas seus livros. Isso. A joia da rainha de Almqvist, podia pegá-lo emprestado antes de fazer a boa ação. A biblioteca estava calma na parte da manhã. Homens idosos e estudantes, na maioria. Ele encontrou rapidamente o livro que procurava. Leu as primeiras palavras: Tintomara! Duas coisas são brancas Inocência — Arsênico e depositou o compêndio de volta na prateleira. Uma sensação ruim. Lembrava sua vida antiga. Ele tinha adorado esse livro, até o utilizara na sala de aula. Ler suas palavras introdutórias lhe despertou a saudade de uma poltrona de leitura. E poltronas de leitura estariam numa casa que era sua, uma casa cheia de livros, e ele teria um trabalho de novo, teria e queria. Mas Håkan encontrara o amor e esse amor agora ditava as regras. Nada de poltrona. Ele esfregou as mãos uma na outra como para apagar o livro que elas tinham segurado e entrou num salão lateral. Havia uma mesa comprida com pessoas lendo. Palavras, palavras e mais palavras. No fundo do salão estava sentado um garoto de casaco de couro se balançando na cadeira enquanto folheava desinteressado um livro de ilustrações. Håkan se dirigiu para lá e fingiu estudar a prateleira com livros de geografia, de vez em quando olhava furtivamente para o menino. Por fim, o garoto levantou os olhos e encontrou os dele. Arqueou as sobrancelhas como se perguntasse: Quer?
  • 38. Não, é claro que ele não queria. O menino tinha uns quinze anos, um rosto achatado de europeu do Leste, espinhas, olhos fundos e puxados. Håkan deu de ombros e saiu do salão. Lá fora, na entrada principal, o menino conseguiu alcançá-lo. Fez um gesto com o polegar e perguntou: — Fire?— Håkan sacudiu a cabeça. — Don’t smoke. — Okey. O menino apanhou um isqueiro de plástico, acendeu um cigarro, olhou para ele através da fumaça com os olhos apertados. — What you like? — No, I… — Young? You like young? Ele se afastou do menino e da entrada principal, onde qualquer pessoa podia aparecer. Precisava pensar. Não acreditava que seria tão fácil assim. É que tinha sido só uma espécie de brincadeira, ver se era verdade o que Gert dissera. O menino foi atrás, ficou ao seu lado perto do muro de pedra. — How? Eight, nine? Is difficult, but… — No! Será que ele tinha cara de ser tão depravado assim? Besteira. Nem Ove nem Torgny não pareciam nem um pouco… diferentes. Homens comuns com trabalhos comuns. Só Gert, que vivia de uma herança deixada pelo pai e podia se permitir qualquer coisa, começara, depois das muitas viagens para o exterior, a ter um aspecto bem nojento mesmo. Uma frouxidão ao redor da boca, uma película na frente dos olhos. O menino se calou quando Håkan levantou a voz e o examinou com os olhinhos que eram dois rasgos. Deu mais uma pitada no cigarro, jogou-o no chão e pisou nele, abriu os braços. — What? — No, I just… O menino deu a metade de um passo, aproximando-se de Håkan. — What? — I… maybe… twelve? — Twelve? You like twelve? — I… yes. — Boy. — Yes. — Okey. You wait. Number two. — Excuse me? — Number two. Toilet. — Oh. Yes.
  • 39. — Ten minutes. O menino abriu o zíper do casaco de couro e desapareceu escada abaixo. Doze anos. Banheiro, número dois. Dez minutos. Isso era uma burrice muito, muito grande. E se viesse um policial? Eles deviam saber o que se passava aqui, depois de tantos anos. Então ele estava frito. Eles ligariam com o trabalho que executara dois dias atrás e seria o fim. Não podia fazer isso. Vou ao banheiro dar uma olhada, só isso. Os banheiros estavam vazios. Um mictório e três sanitários. O número dois era provavelmente o do meio. Ele enfiou uma moeda de uma coroa na fechadura, abriu a porta e entrou. Fechou o banheiro e sentou-se na privada. As portas do sanitário estavam cheias de pichações. Não era o que se esperava de uma biblioteca municipal. Uma e outra citação literária: harry me, marry me, bury me, bite me mas a maioria se compunha de desenhos obscenos e piadas: melhor uma bola no canal do que bolotas frias na parte anal. tudo é fantástico com o baixo-ventre RASPADO. Também havia uma quantidade extraordinária de números de telefone para os quais era possível ligar caso tivessem desejos especiais. Alguns deles tinham assinatura e eram provavelmente autênticos. Não apenas alguém gozando da cara de alguém. Pronto. Agora ele já olhara. Agora devia se mandar dali. Nunca se sabe o que o garoto do casaco de couro podia inventar. Levantou-se, urinou no sanitário e sentou-se de novo. Por que mijara? Não estava propriamente apertado. Ele sabia por que mijara. Em caso de. A porta se abriu. Håkan prendeu a respiração. Alguma coisa nele esperava que fosse um policial. Um policial grande e másculo que daria um chute na porta e o espancaria com cassetete antes de prendê-lo. Vozes cochichando, passos suaves, uma batida leve na porta. — Sim? A batida de novo. Ele engoliu um bolo espinhento de saliva e abriu. Do lado de fora havia um menino de onze, doze anos. Louro, rosto com formato de cebola. Lábios finos, olhos grandes e azuis e uma expressão vazia na cara. Um casaco acolchoado vermelho um pouco grande demais. Bem atrás dele estava o garoto mais velho com casaco de couro, que levantou os cinco dedos no ar.
  • 40. — Five hundred. — Pronunciou “chundred ” em vez de “hundred ”. Håkan assentiu, o menino mais velho conduziu o mais novo com cuidado para dentro do banheiro e fechou a porta. E quinhentos não era bem caro? Não que fizesse alguma diferença, mas… Ele olhou para o menino que comprara. Alugara. Será que o garoto tomava algum tipo de droga? Provavelmente. Seu olhar estava ausente, sem foco. O menino estava encostado na porta a meio metro dele. Era tão baixo que Håkan não precisava levantar a cabeça para olhá-lo nos olhos. — Hello. O menino não respondeu, apenas balançou a cabeça, apontou para o baixo-ventre de Håkan e fez um gesto com o dedo: Abra a braguilha. Ele obedeceu. O menino fez um muxoxo, fez outro gesto com o dedo: Tire o pênis daí. Seu rosto ficou afogueado quando obedeceu ao menino. Era desse jeito. Ele obedecia ao menino. Não tinha vontade própria. Não era ele quem fazia isso. O pênis curto de Håkan não estava nem um pouco ereto, mal alcançava a tampa do vaso. Sentiu cócegas quando sua glande encostou a superfície fria. Håkan apertou os olhos e tentou transformar a fisionomia do menino de modo que ficasse mais parecida com a do seu amado. Não funcionou muito. Seu amado era bonito. Não era o caso desse menino que agora se ajoelhava e ia com a cabeça na direção do seu baixo-ventre. A boca. Alguma coisa estava errada com a boca do menino. Håkan pôs a mão na testa do garoto antes que ele atingisse seu objetivo. — Your mouth? O menino sacudiu a cabeça de um lado para o outro e pressionou a testa na mão de Håkan para continuar o trabalho. Mas agora não dava. Ele já ouvira falar nesse tipo de coisa. Abaixou o polegar na direção do lábio superior do menino e puxou-o para cima. O menino era desdentado. Alguém o esmurrara ou tirara seus dentes para que ele fizesse melhor o trabalho. O menino se levantou; um farfalhar do casaco acolchoado quando ele cruzou os braços no peito. Håkan recolheu o pênis, fechou a braguilha e ficou olhando para o chão. Assim não. Assim nunca. Alguma coisa apareceu em seu campo de visão. A mão bem aberta. Cinco dedos. Quinhentos. Ele apanhou um maço de cédulas do bolso e entregou o dinheiro ao menino. O garoto tirou o elástico do maço, passou o indicador na ponta das dez notas, pôs o elástico de volta e segurou o maço no alto. — Why? — Because… your mouth. Maybe you can… get new teeth. O garoto sorriu de fato. Não um sorriso radiante, mas o canto da sua boca se levantou um
  • 41. pouco. Talvez apenas estivesse rindo da burrice de Håkan. O garoto refletiu, em seguida tirou uma nota de mil do maço e a enfiou no bolso do lado de fora do casaco. O maço de notas do lado de dentro. Håkan balançou a cabeça. O menino abriu a porta, hesitou. Depois se virou na direção de Håkan e fez uma carícia em seu rosto. — Sank you. Håkan pôs a mão em cima da mão do menino, apertou-a no rosto e cerrou os olhos. Se pelo menos alguém pudesse. — Forgive me. — Yes. O menino retirou a mão. Seu calor ainda estava no rosto de Håkan quando a porta se fechou atrás do garoto. Ele continuou sentado no vaso, olhando para alguma coisa que alguém escrevera no batente da porta. “não importa quem tu és. eu te amo.” Logo abaixo uma outra pessoa rabiscara: “quer pau?” Fazia muito tempo que o calor se apagara do rosto dele quando Håkan foi para o metrô e comprou um jornal vespertino com as últimas coroas que tinha. Quatro páginas dedicadas ao assassinato. Entre outras coisas, havia no jornal uma foto da baixada no bosque onde ele fizera a coisa. O lugar estava cheio de velas acesas, flores. Olhou para a foto e não sentiu muita coisa. Se vocês soubessem. Perdoem-me, mas se vocês soubessem. A caminho de casa, Oskar parou embaixo das duas janelas do apartamento da garota. A janela mais próxima estava apenas a dois metros da janela do quarto dele. As persianas estavam fechadas e as janelas eram retângulos cinza-claros com o fundo de cimento cinza-escuro. Parecia suspeito. Provavelmente eles eram uma… família estranha. Viciados. Oskar olhou ao redor, entrou depois no prédio e conferiu o quadro com o nome dos moradores. Cinco sobrenomes soletrados com capricho, escritos em letras de plástico. Um lugar estava vazio. O nome que ocupara antes o lugar, hellberg, esteve ali por tanto tempo que era possível lê-lo pelo contorno escuro no fundo de veludo do quadro desbotado do sol. Mas nada de letras de plástico. Nem sequer um pedaço de papel. Ele subiu correndo os dois lances de escada até a porta da garota. O mesmo ali. Nada. A plaqueta com o nome da caixa de correios na porta não tinha letras. Como costumava ser quando um apartamento não era habitado. Será que ela tinha mentido? Talvez não morasse ali. Mas entrara na portaria. Certo. Mas ela podia de qualquer jeito ter entrado ali. Se ela…
  • 42. A porta do prédio lá embaixo foi aberta. Ele se afastou do apartamento e desceu rapidamente as escadas. Tomara que não seja ela. Então a garota poderia achar que ele de algum modo… Mas não era ela. A meio caminho do segundo lance de escada, Oskar encontrou um homem que nunca vira antes. Um homem baixo, de ombros bastante largos, um pouco careca, que estava com um sorriso tão grande que não era normal. O homem avistou Oskar, levantou a cabeça e acenou, a boca ainda esticada naquele sorriso de circo. Lá embaixo, na entrada do prédio, Oskar parou e aguçou os ouvidos. Ouviu um barulho de chaves e uma porta sendo aberta. A porta da garota. O homem era provavelmente seu pai. É verdade que Oskar nunca vira um viciado tão velho, mas ele tinha um aspecto muito esquisito. Não era de estranhar que ela fosse doida. Oskar desceu para o parquinho, sentou-se na borda da caixa de areia e ficou de olho na janela da menina para ver se as persianas seriam levantadas. Até mesmo a janela do banheiro parecia estar coberta do lado de dentro; a vidraça fosca era mais escura que todas as janelas dos banheiros dos outros apartamentos. Do bolso do casaco, Oskar apanhou o cubo de Rubik.[5] O brinquedo estalava e rangia quando ele o girava. Uma cópia. O original era muito mais macio, porém cinco vezes mais caro e só era encontrado na loja de brinquedos bem vigiada de Vällingby. Duas faces estavam resolvidas, de uma cor, e na terceira faltava apenas um pedacinho de nada. Mas não era possível empurrá-lo para lá sem destruir as duas faces já prontas. Oskar guardara uma página do jornal Expressen que descrevia sistemas diferentes de deslocamento das partes do cubo — foi assim que conseguiu resolver as duas faces, mas depois ficou muito mais difícil. Ele olhou para o cubo, tentou achar na cabeça a solução em vez de sair virando. Não funcionou. Seu cérebro não acompanhava. Apertou o cubo na testa, tentou penetrar em seu âmago. Nenhuma resposta. Pôs o cubo no canto da caixa de areia a meio metro de distância e ficou olhando para ele. Gire. Gire. Gire. Telecinesia era o nome disso. Foram feitos experimentos nos Estados Unidos. Havia pessoas que podiam fazer essas coisas. pes. Percepção extrassensorial. Oskar teria dado qualquer coisa para ter uma habilidade dessas. E talvez… talvez ele tivesse. O dia na escola não havia sido muito ruim. Tomas Ahlstedt tentara arrancar a cadeira do lugar quando ele se sentou no refeitório, mas Oskar percebeu a tempo. E isso foi tudo. Ele iria para o bosque com a faca para encontrar aquela árvore. Fazer um experimento mais sério. Não ficar tão alterado como no dia anterior.
  • 43. De um modo calmo e metódico, golpear a árvore com a faca, esfaqueá-la e ter o tempo todo o rosto de Tomas Ahlstedt à sua frente. Mas… tinha aquilo com o assassino. O assassino de verdade que estava em algum lugar. Não. Ele tinha que esperar para fazer isso quando o assassino fosse pego. Por outro lado, se fosse um assassino comum, o experimento era então inútil. Oskar olhou para o cubo e imaginou um raio conectando seus olhos com o objeto. Gire. Gire. Gire. Não aconteceu nada. Oskar enfiou o cubo no bolso e se levantou, limpando um pouco de areia das calças. Olhou para a janela da menina. As persianas ainda estavam fechadas. Ele foi para casa trabalhar no álbum de recortes, cortar e colar os artigos sobre o assassinato em Vällingby. Provavelmente acabariam sendo muitos, com o tempo. Especialmente se acontecesse mais uma vez. Oskar esperava um pouco que isso acontecesse. De preferência em Blackeberg. De modo que a polícia fosse para a escola, de modo que os professores ficassem sérios e preocupados, de modo que ficasse aquele clima na escola. Ele gostava disso. — Nunca mais. Não importa o que você diga. — Håkan… — Não. Não e ponto final. — Eu vou morrer. — Então morra. — Você quer isso? — Não. Não quero. Mas você mesmo… pode. — Eu estou fraco demais, ainda. — Você não está fraco. — Fraco demais para isso. — Bem, então eu não sei. Mas eu não vou fazer de novo. É tão… repugnante, tão… — Eu sei. — Não, você não sabe. Para você é diferente, é… — O que você sabe sobre como é para mim? — Nada. Mas você é pelo menos… — Você acha que eu… gosto disso? — Não sei. Você gosta? — Não. — É, não. Bem, de qualquer forma… eu não vou fazer isso de novo. Talvez você tenha tido outras pessoas que o ajudaram, que foram… melhores que eu. — …
  • 44. — Você teve? — Tive. — Sei… — Håkan? Håkan… — Eu amo você. — O.k. — Você me ama? Mesmo que seja um pouco? — Você faria mais uma vez se eu dissesse que sim? — Não. — Então ainda assim devo amar você, é isso? — Você me ama só se eu ajudá-lo a ficar vivo. — É. Não é isso que é o amor? — Se eu achasse que você me amava mesmo que eu não fizesse isso… — Então? — … então talvez eu fizesse. — Eu amo você. — Não acredito em você. — Håkan. Eu aguento mais alguns dias, mas depois… — Então trate de me amar. Sexta-feira à noite no restaurante chinês. São quinze para as oito e a turma toda está reunida. Exceto Karlsson, que está em casa assistindo ao Quebra-notas, e é melhor assim. Esse homem não serve para nada. Chega tarde quando tudo já acabou e fica se gabando das perguntas que sabia responder. À mesa para seis perto da porta estão sentados agora Lacke, Morgan, Larry e Jocke. Lacke e Jocke estão discutindo sobre que espécies de peixe vivem tanto em água doce quanto em água salgada. Larry lê um jornal vespertino e as pernas de Morgan sobem e descem na cadeira, ele bate os pés ao ritmo de outra música que não é aquela de elevador chinesa que sai discretamente dos alto-falantes escondidos. Na mesa diante deles há copos de cerveja mais ou menos cheios. Na parede acima do balcão do bar estão pendurados seus retratos. O dono do restaurante se viu obrigado a fugir da China na época da Revolução Cultural, por causa das caricaturas satíricas que fazia dos poderosos. Agora ele usava esse talento com os frequentadores assíduos do local. Na parede estão penduradas doze caricaturas afetuosas feitas com canetas hidrográficas. Um monte de homens. E Virginia. Os desenhos dos homens eram close-ups, em que as imperfeições de suas fisionomias foram destacadas.
  • 45. O rosto enrugado, quase descarnado de Larry e as duas orelhas enormes apontando da cabeça fazem com que ele pareça um elefante bonzinho, mas faminto. As sobrancelhas grossas de Jocke, quase se juntando, foram acentuadas e transformadas em roseiras onde um passarinho — talvez um rouxinol — está pousado, cantando. Devido ao seu estilo, Morgan tomou emprestado no retrato características do Elvis mais velho. Costeletas e uma expressão nos olhos de “Hunka-hunka-lóóóve, baby”. A cabeça num corpo pequeno que segura uma guitarra e faz uma pose de Elvis. Morgan gosta mais dessa caricatura do que admite abertamente. Lacke parece preocupado. Nesse desenho, os olhos foram aumentados e deu-se a eles uma expressão exagerada de sofrimento. Um cigarro na boca e a fumaça se junta, formando uma nuvem de chuva acima da cabeça dele. Virginia é a única que está retratada de corpo inteiro. Com vestido longo, radiante como uma estrela com lantejoulas cintilantes, ela está com os braços abertos, rodeada por um bando de porcos que olha para ela sem entender. A pedido de Virginia, o dono do local fez mais uma caricatura, exatamente a mesma, que Virginia pôde levar para casa. Depois há outros. Alguns que não são da turma. Alguns que pararam de vir. Alguns que morreram. Certa noite, Charlie desmoronou na escada da entrada do seu prédio ao ir do restaurante para casa. Fraturou o crânio no cimento salpicado. Gurkan teve cirrose hepática e morreu de um sangramento na garganta. Semanas antes de morrer, uma noite ele levantou a blusa e mostrou uma teia vermelha de veias que lhe saíam do umbigo. “Essa tatuagem foi os olhos da cara”, disse ele; não demorou muito, morreu. Eles tinham homenageado sua memória deixando o retrato dele em cima da mesa, onde ficavam bebendo com o falecido a noite inteira. Karlsson não está retratado. Essa noite de sexta-feira será a última em que eles estarão juntos. Amanhã um deles desaparecerá para sempre. Virará mais uma caricatura pendurada na parede apenas como lembrança. E nada será como antes. Larry abaixou o jornal, pôs os óculos de leitura em cima da mesa e tomou um gole da cerveja. — Caramba… Como é que deve ser dentro da cabeça de uma pessoa dessas? Ele mostrou o jornal, no qual estava escrito “as crianças estão chocadas” acima de um retrato da escola Vällingby e de uma foto menor de um homem de meia-idade. Morgan olhou de relance para o jornal e apontou. — É o assassino? — Não. O diretor da escola. — Tem cara de assassino, é o que eu acho. Cara típica de assassino. Jocke estendeu a mão na direção do jornal.
  • 46. — Deixe-me ver… Larry passou-lhe o jornal e Jocke segurou-o a um metro da vista. Olhou para a foto. — Acho que ele parece mais um político do partido moderado. Morgan balançou a cabeça, concordando. — Mas é isso que estou dizendo. Jocke segurou o jornal para Lacke, para que ele pudesse olhar o retrato. — O que você acha? Lacke olhou um pouco relutante para ele. — Bem, sei lá. Isso tudo me faz tão mal… Larry bafejou os óculos e limpou-os na camisa. — Ele vai ser pego. Não se escapa depois de uma coisa dessas. Morgan tamborilava na mesa com os indicadores; esticou-se para pegar o jornal. — Como o Arsenal se saiu? Larry e Morgan passaram a conversar sobre a má fase pela qual o futebol inglês estava passando. Jocke e Lacke ficaram calados por um tempo, bebericando suas cervejas e acendendo cigarros. Depois Jocke tocou naquele assunto do bacalhau, como o peixe desapareceria do mar Báltico. Assim prosseguiu a noite. Karlsson não apareceu, mas lá pelas dez entrou um homem no restaurante que nenhum deles tinha visto antes. A conversa a essa altura começara a ficar mais intensa e só notaram a cara nova quando o sujeito se sentou sozinho a uma mesa do lado oposto do restaurante. Jocke se inclinou para a frente, na direção de Larry. — Quem é esse aí? Larry olhou discretamente e sacudiu a cabeça. — Não sei. A cara nova recebeu uma dose grande de uísque e a entornou rapidamente. Pediu mais uma. Morgan assoprou entre os lábios, produzindo um assobio. — Ali não se perde tempo. O homem parecia não estar ciente de que era observado. Estava apenas imóvel à mesa olhando para as próprias mãos, tinha a cara de quem carregava todas as misérias do mundo numa mochila pendurada nos ombros. Bebeu rapidamente o segundo copo de uísque e pediu mais um. O garçom se debruçou sobre ele e disse alguma coisa. O homem enfiou a mão no bolso e mostrou algumas cédulas. O garçom fez um gesto com as mãos como se dissesse que a intenção dele não tinha sido essa, mas é claro que tinha sido justamente essa a intenção dele, e foi apanhar o pedido. Não era de admirar que a aparência do homem fosse questionada. Suas roupas estavam amarrotadas e manchadas como se ele tivesse dormido em algum lugar onde se dormia mal. A coroa de cabelos ao redor da careca não estava aparada e pendia por cima das orelhas, quase as
  • 47. cobrindo. O rosto era dominado por um nariz bastante grande, bem vermelho e um queixo saliente. Entre eles, dois lábios pequenos e carnudos que se mexiam de vez em quando, como se o homem falasse sozinho. Seu rosto ficou impassível na hora que o uísque foi depositado na mesa, à sua frente. A turma voltou à conversa de antes: se Ulf Adelsohn seria bem pior do que Gösta Bohman tinha sido. Apenas Lacke olhava às vezes furtivamente para o homem sozinho. Depois de um tempo, na hora que o homem já pedira mais um uísque, ele disse: — Será que a gente não devia… convidá-lo para se sentar aqui? Morgan olhou rapidamente sobre os ombros do homem que agora se afundara ainda mais na cadeira. — E por quê? A mulher deixou o cara, o gato morreu e a vida é uma droga. Disso eu já sei. — Pode ser que ele pague. — Então a coisa é diferente. Então ele também pode ter câncer. — Morgan encolheu os ombros. — A mim, não incomoda. Lacke olhou para Larry e Jocke. Eles fizeram gestos mínimos para dizer que estava tudo bem. Lacke se levantou e foi até o homem. — Olá. O homem ergueu os olhos para Lacke. Seu olhar estava bem embotado. O copo em cima da mesa, quase vazio. Lacke se apoiou na cadeira do outro lado da mesa e se debruçou sobre o homem. — A gente só queria perguntar se você quer… se sentar com a gente. O homem sacudiu devagar a cabeça e fez um movimento sonolento, de recusa com a mão. — Não. Obrigado. Mas sente-se. Lacke puxou uma cadeira e sentou-se. O homem bebeu o restante do copo e acenou para o garçom. — Quer alguma coisa? Eu convido. — Nesse caso, o mesmo que você. Lacke não queria dizer a palavra “uísque”, já que soava arrogante pedir a alguém para pagar coisas tão caras, mas o homem apenas balançou a cabeça e, quando o garçom se aproximou, fez um sinal de V com os dedos e apontou para Lacke. Lacke se recostou na cadeira. Quando foi a última vez que ele bebeu uísque no local? Três anos. No mínimo. O homem não deu nenhum sinal de querer iniciar uma conversa, então Lacke limpou a garganta e disse: — Está um frio danado. — É. — A neve deve chegar logo. — Ahã. O uísque chegou à mesa e fez a conversa ficar supérflua por um instante. Aliás, Lacke recebeu uma dose dupla e sentiu o olhar da turma queimando em sua nuca. Depois de uns golinhos,
  • 48. levantou o copo. — Saúde. E obrigado. — Saúde. — Você mora por aqui? O homem olhava para o nada, parecia refletir sobre a pergunta como se fosse algo em que ele próprio nunca pensara antes. Lacke não conseguiu saber se o movimento da cabeça dele foi uma resposta à pergunta ou parte de algum diálogo interior. Lacke tomou mais um gole e resolveu que, se o homem não respondesse à próxima pergunta, significava que ele queria ficar em paz, não queria bater papo com ninguém. Então Lacke pegaria o copo e iria se sentar com os outros de novo. Fizera o que a educação mandava ao ser convidado por alguém. Esperava que o homem não respondesse. — Sei. E o que você faz para matar o tempo? — Eu… O homem franziu as sobrancelhas; o canto da sua boca se arqueou de um modo espasmódico e se retorceu numa careta, voltando para a posição inicial. — … ajudo um pouco. — Certo. Com o quê? Uma espécie de insight passou por detrás da membrana ocular transparente e os olhos do homem encontraram os de Lacke. Lacke sentiu uma pontada no final das costas como se uma formiga negra o tivesse mordido acima do cóccix. O homem massageou os olhos e pescou umas notas de cem do bolso das calças, depositou o dinheiro em cima da mesa e se levantou. — Com licença, eu preciso… — O.k. Obrigado pelo uísque. Lacke levantou o copo para o homem, mas ele já se aproximava dos cabides; conseguiu desajeitadamente tirar o casaco de um gancho e saiu. Lacke continuou sentado de costas para a turma, olhando para o montinho de cédulas. Cinco notas de cem. Uma dose dupla de uísque custava sessenta, e foram cinco doses, talvez seis. Lacke olhou de soslaio. O garçom estava ocupado recolhendo o pagamento de um casal de idosos, os únicos que pediram comida. Enquanto Lacke se levantava, amassou rapidamente uma nota de cem que virou uma bolinha em sua mão, enfiou-a no bolso e voltou para a mesa de sempre. No meio do caminho ele se lembrou de uma coisa: voltou para a mesa, derramou o que restava do copo do homem no dele e levou-o embora. Uma noite de êxito. — Mas é Quebra-notas hoje de noite!