O documento discute a importância de se ter uma visão realista sobre gestão de pessoas, focando nas atividades essenciais como processos e sistemas, em vez de visões ideais. Também destaca que cuidar bem do capital humano requer disciplina em processos básicos, e que a tecnologia pode ajudar a liberar tempo para atividades estratégicas. Finalmente, exemplos mostram como empresas na América Latina usaram processos e sistemas para melhorar a gestão de pessoas.
2. Hipermetropia na Gestão de Pessoas
Marcos Guariso
Quando deixei meu mestrado em Recursos Humanos em uma conhecida instituição em
São Paulo, no Brasil, tinha 23 anos e um grande desejo de fazer a diferença nas
organizações. Com um tanto de visionário e outro tanto de ingênuo, chegara à conclusão
de que, uma vez que pessoas eram as que moviam as engrenagens, trabalhar com elas
seria a melhor alavanca para causar o impacto que desejava.
Naquele momento, começava a se firmar o conceito de Recursos Humanos como
parceiro estratégico. Isso reforçou em mim a resistência a qualquer atividade rotineira
ou transacional e, por consequência, a tudo o que representava o velho RH. Os
estereótipos dos profissionais de Recursos Humanos me incomodavam: expressões
como “a mocinha do RH” ou “o chefe do DP”, as figuras do analista de cargos e salários
com sua calculadora e planilhas (e óculos quadrados) e a da psicóloga responsável por
recrutamento e seleção, cuja maior ambição era crescer e migrar para o cargo de analista
de treinamento...
Quase vinte anos depois e atuando como executivo e consultor em organizações em
vários países, muita coisa mudou em minhas concepções. Principalmente porque nem
tudo é o que parece. As maiores organizações padecem dos problemas mais básicos na
gestão de pessoas que acabam por diminuir seus resultados. As empresas menos
glamorosas apresentam soluções simples e eficazes e que acabam por trazer o clima e o
desempenho necessários. Isso fez com que minhas atuais noções sobre o que é
realmente estratégico estejam bastante distantes do “estratégico” de anos atrás.
Partamos então dos conceitos. O que é uma atividade estratégica? É aquela que
acrescenta vantagem competitiva à organização. Em gestão de pessoas,
consequentemente, estratégicas seriam aquela atividades que potencializam as
competências individuais e da organização. Este entendimento, no entanto, não é
completo. A gestão de pessoas é um dos processos mais críticos de uma organização. Se
fôssemos nos permitir uma liberdade técnica, diríamos que Six Sigma é muito pouco: ao
lidar com pessoas, nem um pequeno erro é aceito, uma vez que o mais ínfimo tem pele
para sentir e voz para reclamar. Assim é que, em gestão de RH, estratégicas são as
atividades que, por sua presença, potencializam, ou por sua ausência, reduzem o
resultado da aplicação das competências individuais e organizacionais.
Não apenas é estratégica a participação do primeiro executivo de Recursos Humanos nas
reuniões de negócios e nas do processo de Planejamento; a montagem de um Plano de
Talentos e Sucessão; o due diligence em processos de aquisição ou de fusão... Também
pode ser para uma organização um processo básico tal como avaliação de desempenho,
ou mesmo a gestão da folha de pagamento que, por sua ausência, estão desperdiçando
talento ou distraindo a atenção das pessoas. Assim é que, hoje em dia, estratégico, para
mim, tem muito mais a ver com as necessidades das organizações do que com a
pretensa nobreza das atividades.
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3. Outro conceito que se modificou para mim com o passar dos anos – desculpem-me se a
afirmação é politicamente incorreta - é o de que gerenciar pessoas em um país é
totalmente diferente de fazê-lo em outro. Se forcarmos nossa discussão na América
Latina, por exemplo, pude conhecer a mais dura realidade: quando a questão é cuidar de
pessoas, temos praticamente as mesmas virtudes... e os mesmos defeitos. Por exemplo,
um dos principais problemas é que os profissionais de RH, em vários países, ainda não
fizemos totalmente a transição da visão mágica para a realista em capital humano. Diria
até que, parafraseando um autor bastante conhecido, sofremos de uma hipermetropia
em gestão de pessoas.
Hipermetropia é aquela deficiência visual que prejudica a visão próxima, ainda que não
prejudique a percepção de objetos distantes. E é exatamente isso que acontece conosco
em Recursos Humanos. Por alguma coincidência antropológica desconhecida, parece
que na América Latina, ao sonharmos com um papel mais nobre nas organizações, nos
deixamos iludir com expressões tais como parceiros estratégicos ou business partners, e
nos esquecemos de nos dedicar às tarefas fundamentais: desenhar processos,
estabelecer e mensurar indicadores, implementar sistemas de suporte. Enquanto não
tivermos criado a disciplina, a credibilidade e o fluxo de informações fundamentais para
a tomada de decisões, poderemos abdicar de atuarmos como aliados estratégicos ou
qualquer outra expressão na qual venhamos a nos refugiar.
Um tipo de limitação equivalente sofrem alguns CEOs. Sua hipermetropia implica em
esperarem muito de suas áreas de Recursos Humanos - pois leram todas as teorias sobre
o valor do capital humano e da transformação das organizações. No entanto, pouco
entendem a respeito das ações que transformam os desejos em realidade. Isso gera uma
espécie de espiral negativa: falsas expectativas levam a subavaliação dos profissionais de
RH que, por sua vez, se desmotivam e não atuam sobre os processos básicos, o que
diminui ainda mais a contribuição .
O que fazer então: os profissionais de RH devem desistir de buscar maior impacto nas
organizações? A resposta é não e a solução, em tese, é bastante simples: a VERDADEIRA
gestão estratégica de capital humano. Em outras palavras, é olhar os objetivos da
empresa e depois colocar em perspectiva as ações necessárias para gerenciar bem o
capital humano, sejam elas organizar a folha de pagamento ou facilitar a aquisição de
uma nova empresa. Mostrar claramente esta relação aos CEOs e medir, ao mesmo
tempo, a sua concretização.
Latino americanos, profissionais de RH de todo o mundo, enfim, temos à disposição
duas ferramentas que, ao mesmo tempo que são muito faladas, são, novamente, por
traços culturais coincidentes, muito mal usadas: processo (disciplina) e tecnologia. Nossa
comum herança ibérica nos leva, em muitos casos, a ser menos práticos que outros
povos e a dar mais valor à discussão de problemas que à sua solução. E os processos
acompanhados de tecnologia aplicados à gestão de pessoas são exatamente isso: uma
solução, uma espécie de “lente corretiva”, que nos ajuda a focar o trabalho de Recursos
Humanos no que realmente interessa. Primeiro, porque auxiliam na consolidação de
valores, princípios e práticas ainda não estruturados. Segundo, porque liberam RH para
atuar como parceiro estratégico, consultor interno e em outras atividades de maior
impacto. Curiosamente, para cuidarmos bem do capital humano, temos que nos ligar a
processos, sistemas e máquinas!
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4. [Para não ficarmos somente nos aspectos negativos, minha experiência nos países latino
americanos me leva a concluir que as mesmas características que nos atrapalham em um
momento, podem nos ajudar em outro: nosso foco em problemas, quando bem
direcionado, nos permite debater mais, incluir mais ideias de mais pessoas e, por
fim, sermos menos tecnicistas e mais eficazes. ]
Exemplos do uso inteligente de processos e tecnologias em gestão de pessoas na
América Latina é que não faltam. Um banco brasileiro, por exemplo, terceiro com 30 mil
empregados, decidiu colocar ordem na casa. Reestruturou todos os processos básicos de
gestão de recursos humanos, como avaliações de desempenho e
competências, treinamento, talentos e planejamento da sucessão. Para assegurar
disciplina, implantou um sistema informatizado de Gestão de Capital Humano de uma
empresa local. Até aqui nenhuma novidade. A questão foi a abordagem utilizada: ao
invés de optar pelas soluções integradas mais óbvias, escolheu um sistema de uma
empresa local especializada em gestão de capital humano (HCM, na sigla em
inglês), onde poderia encontrar flexibilidade de ajuste às suas demandas e rapidez na
implantação. Trocou o ótimo pelo bom - na teoria - mas conseguiu exatamente o que
precisava em termos de negócio: resultados.
Outras empresas vão até mais longe e optam por encontrar apoio em seus processos de
gestão buscando parceiros de serviços. Num outro caso, uma das maiores empresas de
energia do Brasil, com 10 mil empregados terceirizou toda a administração e
processamento de avaliações 360 graus com um prestador de serviço, que entregou com
precisão e a tempo o resultado de 50 mil avaliações, além de atender a dúvidas de
empregados em um help desk. Com certeza, essas duas empresas tomaram a decisão
correta: organizaram o fundamental, liberaram o tempo de seu pessoal de RH, que
passou a atuar com mais tranquilidade no atendimento da liderança e do negócio.
Não será por falta de ferramentas que os profissionais latino americanos de Recursos
Humanos enfrentarão dificuldades para se firmar como jogadores de importância nas
organizações. O que precisamos é de visão clara e a iniciativa para cuidar das
“pequenas” e das “grandes coisas”. As pequenas coisas se tornam grandes quando
faltam. E faltam porque falta a RH (e também aos CEOs) a paciência de cuidar de
aspectos pouco atraentes e de menor brilho como processos e sistemas.
Que as organizações se deem conta: ao menos as mesmas disciplina e investimento em
processos e sistemas para cuidar de assets mais tangíveis (como capital de giro, estoques
e até mesmo participação de mercado) devem ser usados para cuidar do Capital
Humano. Pelo menos, assim seriam mais coerentes com as declarações de que as
pessoas são o seu maior patrimônio.
Marcos Guariso é Partner da cowork.hr.
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