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PODER DE POLÍCIA E DIREITO À INFORMAÇÃO SOBRE
AGROTÓXICOS NOS ALIMENTOS EM SANTA CATARINA
NELSON ALEX LORENZ
FLORIANÓPOLIS - SANTA CATARINA
2013
1
NELSON ALEX LORENZ
PODER DE POLÍCIA E DIREITO À INFORMAÇÃO SOBRE
AGROTÓXICOS NOS ALIMENTOS EM SANTA CATARINA
Monografia apresentada ao Curso de Pós-
Graduação Lato Sensu Televirtual como
requisito parcial à obtenção do grau de
especialista em Direito Administrativo.
Universidade Anhanguera-Uniderp
Rede de Ensino Luiz Flávio Gomes
Orientador: Prof. José Carlos Trinca Zanetti
FLORIANÓPOLIS - SANTA CATARINA
2013
2
À minha esposa Natel e à nossa filha Victoria.
3
Agradecimento à minha mãe Ignez Leduc Lorenz, por
todo seu amor e por jamais esmorecer nem perder a
alegria.
Aos amigos Marcelo de Tarso Zanellato, pela inestimável
confiança e oportunidade de me permitir trabalhar com
tema tão relevante para a vida em todos os sentidos;
Roberto Mattos Abrahão, Alessandra Martinez dos Santos,
Samuel Perucchi, André Bernart, Elson do Amaral Lima
Júnior, Cleiton Gean de Almeida, Camila da Silva Vieira e
Priscila da Silva Calixto, pelo divertido e sempre nobre
convívio jurídico; e à Anamaria Ávila Caminha e Ana
Maria Ioppi, pelo apoio e preciosas informações técnicas.
4
É irônico pensar que os seres humanos possam determinar
seu futuro por meio de algo aparentemente tão trivial
quanto a escolha de um inseticida.
Rachel Carson (1962)
5
RESUMO
O Brasil utiliza agrotóxicos na produção agrícola em larga escala, a ponto de alcançar, entre
todos os países, a liderança como maior mercado consumidor de produtos químicos de
elevados graus de toxicidade, que são despejados no plantio e no armazenamento de cereais e
hortifrutícolas. Como consequência direta, programas públicos nacionais e catarinense de
monitoramento vêm constatando continuamente a contaminação de alimentos com resíduos
agrotóxicos em percentuais acima dos tolerados pela lei ou, então, não autorizados para o
vegetal no qual foram aplicados. O controle e a fiscalização dos agrotóxicos são atividades
indelegáveis da Administração Pública. Em proteção aos direitos à saúde, à segurança e ao
meio ambiente ecologicamente equilibrado, cumpre verificar em que medida o poder de
polícia administrativa e o direito à informação são empregados em respeito aos consumidores
e em obediência aos princípios constitucionais regentes do País.
Palavras-chave: agrotóxicos, poder de polícia, direito à informação, saúde e meio ambiente.
6
ABSTRACT
Brazil uses pesticides in agricultural production on a large scale as to achieve among all
countries, the largest consumer market leadership as chemicals of high degrees of toxicity,
which are dumped in planting and storage of cereals and horticultural crops. As a direct
consequence, public programs and national catarinenses monitoring are continually finding
contamination of foods with pesticide residues on percentages above those permitted by law
or then not allowed to plant in which they were applied. The control and monitoring of
pesticide activities are delegable Public Administration. In protection of the right to health of
the population and ecologically balanced environment, it must be ascertained to what extent
the administrative police power and the right to information are employed by the State in
respect to consumers and in obedience to the constitutional principles of the legal rulers of the
country.
Keywords: pesticides, police power, the right to information, health and environment
7
LISTA DE TABELAS
Tabela 1 – Agrotóxicos quanto à finalidade da aplicação vegetal e ao grupo químico.............58
Tabela 2 – Agrotóxicos quanto aos efeitos toxicológicos à saúde humana...............................61
Tabela 3 – Agrotóxicos quanto à equivalência da dose letal para seres humanos.....................62
Tabela 4 – Agrotóxicos quanto aos sinais e sintomas de contaminação em seres humanos.....63
Tabela 5 – Comparativo sobre taxas e prazos de registro de agrotóxicos Brasil e EUA...........65
Tabela 6 – Dinâmica/destino de agrotóxicos no meio ambiente................................................68
Tabela 7 – Agrotóxicos de uso proibido ou restrito em outros países .......................................72
Tabela 8 – Vendas mundiais de agrotóxicos (US$ milhões)......................................................73
Tabela 9 – Amostras analisadas por cultura e resultados insatisfatórios (PARA, 2010)...........79
8
SUMÁRIO
LISTA DE TABELAS
1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................10
2 PROBLEMA DE PESQUISA ..........................................................................................11
3 OBJETIVO ........................................................................................................................12
4 METODOLOGIA .............................................................................................................13
5 AGROTÓXICOS, PODER DE POLÍCIA E DIREITO À INFORMAÇÃO ..............14
5.1 PRECEITOS DA CONSTITUÇÃO DA REPÚBLICA DE 1988 ...................................18
5.1.1 Direitos à saúde, à alimentação e ao trabalho...........................................................19
5.1.2 Soberania nacional, função social da propriedade, defesas do consumidor
e do meio ambiente ...............................................................................................................22
5.1.3 Existência digna e risco para a vida ..........................................................................25
5.1.4 Princípio constitucional da hipervulnerabilidade ...................................................26
5.1.5 Princípios constitucionais da prevenção e da precaução ........................................27
5.1.6 Princípio constitucional do poluidor-pagador .........................................................28
5.1.7 Sociedade de risco e irresponsabilidade organizada ................................................29
5.1.8 Repartição constitucional de competências ............................................................. 31
5.2 LEIS FEDERAIS E DE SANTA CATARINA SOBRE AGROTÓXICOS ...................33
5.2.1 Lei Federal n. 7.802/1989 – Lei Federal dos Agrotóxicos .......................................33
5.2.2 Lei Federal n. 8.078/1990 – Código de Defesa do Consumidor ..............................37
5.2.3 Lei Federal n. 8.080/1990 – Lei do SUS ....................................................................42
5.2.4 Lei Federal n. 8.137/1990 – Lei dos Crimes Contra a Ordem
Tributária, Econômica e Contra as Relações de Consumo ..............................................42
5.2.5 Lei Federal n. 9.294/1996 – Propaganda comercial de agrotóxicos .......................43
5.2.6. Lei Federal n. 9.605/1998 – Lei dos Crimes Ambientais ........................................43
5.2.7 Lei Federal n. 10.603/2002 – Informação Confidencial ..........................................43
5.2.8 Decreto Federal n. 5.360/2005 – Convenção de Roterdã .........................................44
5.2.9 Decreto Federal n. 5.472/2005 – Convenção de Estocolmo .....................................45
5.2.10 Lei Federal n. 11.105/2005 – Lei da Biossegurança ...............................................47
5.2.11 Lei Federal n. 11.346/2006 – Lei da Segurança Alimentar....................................48
5.2.12 Lei Estadual n. 11.069/1998, de SC – Lei Estadual dos Agrotóxicos ...................49
5.2.13 Regulamentos Federal e Estadual sobre Agrotóxicos ............................................50
9
5.2.14 Decreto Federal n. 4.074/2002 – Regulamento da Lei Federal dos
Agrotóxicos ...........................................................................................................................51
5.2.15 Decreto Estadual n. 3.657/2005 – Regulamenta a Lei dos Agrotóxicos de SC ....52
5.3 AGROTÓXICOS NA AGRICULTURA, NO MEIO AMBIENTE E NA SAÚDE .......56
5.3.1 Origens dos agrotóxicos .............................................................................................56
5.3.2 Classificação dos agrotóxicos .....................................................................................58
5.3.3 Registro dos agrotóxicos na esfera federal ...............................................................63
5.3.4 Contaminações aguda, subaguda e crônica por agrotóxicos ...................................65
5.3.5 Suscetibilidade das crianças à contaminação química.............................................65
5.3.6 Contaminação do meio ambiente ..............................................................................67
5.3.7 Mercado agrícola e consumo de agrotóxicos ............................................................69
5.3.8 Emergências quarentenária, fitossanitária, sanitária e ambiental ........................76
5.3.9 Alimentos orgânicos e tecnologias de controle biológico ........................................77
5.3.10 Programa nacional de monitoramento de agrotóxicos .........................................79
5.3.11 Programa de monitoramento de agrotóxicos em Santa Catarina ........................82
5.4 PODER DE POLÍCIA E DIREITO À INFORMAÇÃO..................................................83
5.4.1 Conceito legal de poder de polícia e sua interação com eficácia e efetividade.......84
5.4.2 Polícia administrativa e polícia judiciária.................................................................86
5.4.3 Omissão do poder de polícia administrativa ............................................................87
5.4.4 Competência da Companhia Integrada de Desenvolvimento
Agrícola (CIDASC)........................................................................................................................88
5.4.5 Competência da Fundação de Meio Ambiente (FATMA).......................................90
5.4.6 Competência da Empresa de Pesquisa Agropecuária e
Extensão Rural (EPAGRI).......................................................................................................92
5.4.7 Competência da Diretoria de Vigilância Sanitária (DIVS) .....................................93
5.4.8 Monitoramento, rotulagem e rastreamento de produtos agrícolas ........................93
CONSIDERAÇÕES FINAIS...............................................................................................96
REFERÊNCIAS....................................................................................................................97
10
1 INTRODUÇÃO
A população, como destinatária primordial da atuação do Estado, não pode ficar
vulnerável à potencial contaminação latente da sua saúde por resíduos agrotóxicos em
alimentos. Cabe ao aparelho estatal o pleno e efetivo exercício do poder de polícia
administrativa para o fiel cumprimento da legislação, desde a produção no campo até a venda
do produto final ao consumidor. É direito de todos ter alimentos seguros para consumir.
Também é direito ter acesso a informações completas, estampadas no rótulo,
sobre a origem da produção, ingredientes químicos ativos aplicados durante o cultivo e no
armazenamento, identificação do produtor, prazo de validade, registro nos órgãos oficiais,
selos de inspeção, composição e tabela nutricional do produto.
Ao Estado e aos seus agentes não é facultado omitir-se. Os agrotóxicos espalham-
se com gravidade à saúde pública, ao meio ambiente e, reflexamente, à economia. Seus
efeitos nocivos podem gerar danos às atuais e futuras gerações, além de agravar contínua e
indeterminadamente a biodiversidade.
Inicialmente, o presente estudo aborda os aspectos constitucionais que cercam o
tema, identificando na Carta de 1988 e nas referências doutrinárias o sentido dado aos direitos
da população frente aos riscos à saúde e ao meio ambiente. Destacam-se, nesse capítulo
inaugural, as leis infraconstitucionais e os regulamentos que legitimam a atuação do Estado e,
sobretudo, as pesquisas científicas sobre a moderna sociedade de risco.
Na sequência, verificam-se dados e informações sobre a realidade dos
agrotóxicos, sua origem, classificação, mercado e impacto na agricultura, no meio ambiente e
na vida dos seres humanos. Finalmente, discorre-se sobre o exercício do poder de polícia
administrativa e o direito à informação relacionados ao uso de agrotóxicos, notadamente em
relação aos indicativos oficiais da contaminação de alimentos por produtos químicos que
chegam à mesa dos brasileiros e estrangeiros todos os dias, lastreados nos resultados de
programas de monitoramento.
11
2 PROBLEMA DE PESQUISA
O monitoramento dos níveis de resíduos químicos em alimentos, in natura ou
industrializados, constitui obrigatoriedade do Estado, exercida por intermédio dos órgãos com
poder de polícia administrativa. É, também, dever dos fornecedores (produtores e
comerciantes) de alimentos para o consumo humano, face à disciplina legal que lhes permite,
por exemplo, a aplicação de agrotóxicos contra doenças e insetos nocivos à lavoura.
A presente pesquisa examina informações sobre o tema agrotóxicos na legislação,
na literatura especializada, na jurisprudência e nos conteúdos publicados em sites de órgãos e
entidades públicos. O propósito é contribuir para a compreensão da conjunto de normas e
regulamentos vigentes sobre esses produtos químicos de elevado risco à saúde e ao meio
ambiente, bem como sobre o papel desempenhado pelos órgãos de Santa Catarina aos quais
foram atribuídas competências para controlar e fiscalizar o uso de agrotóxicos.
Afinal, se o Estado cumpre de fato suas obrigações, o que explicaria o elevado
percentual de contaminação de alimentos hortifrutícolas (de 27,9% a 33,33%, dependo do
monitoramento), por resíduos agrotóxicos, verificado em Santa Catarina e no País, que foi
apurado por intermédio de análises laboratoriais patrocinadas pelo próprio aparelho estatal?
Em que medida a população pode confiar na qualidade e na segurança dos alimentos que lhes
são ofertados no comércio como se fossem integralmente saudáveis?
12
3 OBJETIVO
Examinar a Constituição da República e as normas federais e estaduais que
dispõem sobre o uso de agrotóxicos, componentes e afins em Santa Catarina, as atribuições e
as responsabilidades de pessoas físicas e jurídicas de direito público e privado, os
fundamentos legais da tutela dos interesses dos consumidores, da saúde e do meio ambiente
relacionados a esses produtos químicos de uso agrícola e as estatísticas de programas de
monitoramento nacional e estadual, verificando, especialmente, o exercício do poder de
polícia administrativa dos órgãos que têm o objetivo primário comum de proteção à saúde da
população e ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e as disposições relacionadas ao
direito à informação.
13
4 METODOLOGIA
O presente trabalho constitui-se em pesquisa focada no ordenamento jurídico e na
bibliografia sobre agrotóxicos, tomando como premissa a proteção constitucional à saúde, ao
consumidor e ao meio ambiente. Apoia-se na doutrina de renomados juristas, nos estudos
técnicos, nas jurisprudências dos tribunais superiores, em documentos e informes postados na
internet, notadamente pelos órgãos e entidades públicos com atribuições específicas na área
de defesa vegetal federal e de Santa Catarina. Sustenta-se, finalmente, nos relatórios de
programas nacional e estadual de monitoramento dos agrotóxicos nos alimentos.
14
5 AGROTÓXICOS, PODER DE POLÍCIA E DIREITO À INFORMAÇÃO
O contingente populacional do planeta, estimado em 7 bilhões de habitantes,
segundo dados da Organização das Nações Unidas (ONU, 2012), fez da produção agrícola um
objetivo estratégico universal, afeto a todos os países, indistintamente, além de objeto de
intensas disputas comerciais e alvo do capital internacional aplicado ao agronegócio. Trata-se,
sob certo ângulo, de levar à mesa os alimentos em quantidades suficientes para nutrir o ser
humano, cujo sucesso depende, em larga medida, de fatores como aumento da produtividade
no campo, fomento à produção, redução das perdas na safra e das áreas degradadas, melhoria
da logística de transporte, diminuição do desperdício e acessibilidade ao produto final
vendido diretamente ao consumidor, que enfrenta, entre outros obstáculos, o aumento
internacional de preço das chamadas commodities agrícolas (FAO, 2012).
Perto de 870 milhões de pessoas sofrem todos os dias com a escassez de alimentos
em diferentes continentes, por motivos diversos, sobretudo na África e em partes da Ásia,
América Latina e Caribe, de acordo com informe da Organização das Nações Unidas para a
Agricultura e Alimentação (FAO, 2012). As causas predominantes são, em regra, a baixa
renda de parte da população subnutrida e o preço elevado dos produtos, sendo aquela
decorrente das enormes diferenças econômicas continentais e de fatores ambientais e
climáticos, enquanto que a elevação dos preços agrícolas recebe forte influência da crescente
demanda dos países ricos, para regularizar estoques e atender o consumo cada vez mais
intenso. De um lado, tem-se a desnutrição. De outro, a obesidade.
“A maioria dos que sofrem de fome, 852 milhões, vive em países em
desenvolvimento – cerca de 15% da sua população –, enquanto 16 milhões de pessoas
subnutridas se encontram nos países desenvolvidos”, escreve a FAO no relatório “O Estado
de Insegurança Alimentar no Mundo 2012”. Nesse contexto, o Brasil insere-se no grupo de
países em desenvolvimento e ocupa posição relevante no cenário internacional.
Ao mesmo tempo é “líder na produção e exportação de extensa lista de produtos
agrícolas” (FAO, 2012) – suco de laranja, açúcar, café, soja, farelo de soja, óleo de soja e
carnes de frango e suína, para citar os mais expressivos da balança comercial –, e possuidor
de aproximadamente 13 milhões de pessoas com restrição alimentar grave (privação de
alimentos = fome), número que vem decrescendo nas últimas duas décadas, mas ainda
representava quase 7% da população brasileira de aproximadamente 190 milhões de
habitantes em 2010 (IBGE, 2013).
As políticas públicas nacionais dirigidas ao enfrentamento do problema da fome
15
focam, em geral, a elevação do poder de compra do salário mínimo, a adoção da transferência
de renda com base na distribuição direta de recursos públicos – vide bolsas governamentais –,
o incentivo a programas de alimentação nas escolas e dos trabalhadores e de fortalecimento
do agronegócio e da agricultura familiar, além de outras iniciativas igualmente relevantes que
evidenciam uma tendência de orientação mais social do que econômica.
Sob o aspecto do desempenho econômico no campo, o País vem alcançando
sucessivos resultados positivos como efeito direto do avanço da fronteira agrícola estimulada
pelos programas de crédito rural, da abertura de novos mercados e, também, como
consequência da chamada Revolução Verde – “amplo programa idealizado para aumentar a
produção agrícola no mundo por meio de melhorias genéticas em sementes, uso intensivo de
insumos industriais, mecanização e redução do custo de manejo” (VASCONCELOS, 2007).
O avanço da produção agrícola nacional e, por consequência, do enfrentamento da
fome, produziu reflexos em atividades adjacentes, sendo uma delas a que compreende a
indústria química multinacional instalada ou não no País. Em 2008, o Brasil alcançou o título
de maior mercado consumidor de agrotóxicos do planeta, posição que vem se repetindo a
cada safra desde então (ANVISA, 2012, grifo nosso), superando a posição que era dos
Estados Unidos e deixando toda a União Europeia para trás.
A liderança adquirida tem relação direta com a busca de produtividade na
agricultura brasileira a partir dos anos 60 e 70, cujos resultados econômicos levaram à
intensificação desordenada do combate às doenças e insetos que atacam a lavoura e
evidenciaram a falta de orientação e fiscalização adequadas das práticas agrícolas, como
também a frágil articulação dos órgãos públicos competentes com poder de polícia, a ausência
de controle rigoroso na entrada e na circulação desses produtos no País e a pouca motivação
política e governamental para posicionar o combate ao uso indiscriminado de agrotóxicos
entre as prioridades nacionais, tanto do poder público quanto da iniciativa privada.
A pressão que eventualmente se observa ante a ausência de rigoroso controle de
qualidade dos alimentos vegetais brasileiros surge, com mais intensidade, do mercado
consumidor externo, tanto por parte dos compradores norte-americanos quanto dos europeus,
os quais exigem produtos certificados e submetidos, em alguns casos, ao monitoramento
ainda nos portos, com risco de devolução da carga à origem se apuradas irregularidades
fitossanitárias. A Comissão da União Europeia para Saúde Animal e Proteção ao Consumidor
tem por prática dar ultimatos ao Brasil para adoção de medidas concretas de controle
fitossanitário de produtos alimentares, principalmente da carne (OESP, 2006), do contrário
ameaça aplicar restrições às importações do País.
16
Nessa direção, a Federação da Agricultura do Estado de São Paulo (FAESP) e o
Governo do Estado de São Paulo, em parceria com órgãos e entidades públicos e privados,
difundiram a cartilha “Procedimentos para Certificação Sanitária de Exportações”, elaborada
com base no “Manual do Exportador de Produtos Agropecuários”, editado pelo Ministério da
Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA). A cartilha paulista alerta aos empresários a
imposição cada vez mais frequente das chamadas barreiras comerciais não-tarifárias:
[...] é importante ressaltar que o atendimento às exigências do consumidor já
não está mais relacionado somente à eficiência econômica e à redução de
custos. A concorrência pelos mercados externos de produtos e serviços está
cada vez mais relacionada a fatores extra-preço, como qualidade e
inocuidade do produto, incluindo embalagem, classificação e o atendimento
às especificações sanitárias/fitossanitárias (FAESP, 2001, p.7).
Os governos de países da Comunidade Europeia editaram normativas como, por
exemplo, o Regulamento (CE) n. 396, de 23 de fevereiro de 2005, relativo aos limites
máximos de resíduos de pesticidas no interior e na superfície dos gêneros alimentícios e dos
alimentos para animais, de origem vegetal ou animal, com o fito de proteger a saúde dos
consumidores e dos animais daquele continente. Assim, para garantir as vendas externas de
alimentos não-contaminados para a Europa, os exportadores brasileiros obrigam-se a cumprir
integralmente essas regras, enquanto no mercado interno a contaminação é elevada.
Da mesma Comunidade Europeia e dos Estados Unidos, as grandes corporações
multinacionais da indústria química conduzem as vendas dos agrotóxicos em todos os
continentes a partir de fábricas instaladas em países nos quais a legislação é menos severa ou
há insuficiência do controle e da fiscalização fitossanitária.
A exportação dos riscos é a migração das indústrias altamente poluentes dos
países centrais para os periféricos, ou seja, países com maior reivindicação
social geram maior nível de pressão legal sobre a indústria, fazendo com que
o capital internacional migre para países com legislação menos restrita e,
portanto, com controle menos custoso (ALBUQUERQUE, 2008, p. 106).
Vislumbra-se, assim, a potencialização do descontrole da contaminação química
com efeitos nocivos à saúde, à segurança alimentar, à segurança ocupacional e ao meio
ambiente em diferentes partes do planeta, decorrente em grande parte do uso de agrotóxicos
sem o devido monitoramento e rastreamento dos alimentos, controle das importações,
combate ao contrabando, fiscalização da emissão de receituários agronômicos e da
comercialização desses produtos químicos em desobediência às normas fixadas para os
estabelecimentos agropecuários, descontrole sobre os métodos de aplicação de agrotóxicos no
campo e, finalmente, ausência de proteção contra a contaminação do solo e dos recursos
hídricos durante todo o ciclo produtivo. Não se trata simplesmente de um problema pós-
17
colheita de alimentos contaminados identificados nas gôndolas do comércio e nas feiras.
O dano potencial incide desde as fases de preparo do solo, no plantio, durante o
cultivo e depois no armazenamento. Todavia, os programas de monitoramento de
hortifrutícolas com abrangência nacional ou estadual, como ocorre em Santa Catarina,
somente verificam a presença de ingredientes ativos de agrotóxicos em alimentos quando
estes já foram vendidos e consumidos pela população, caracterizando, assim, a ocorrência do
dano e não a possibilidade de sua prevenção.
A venda de produtos contaminados ao consumidor não é desconhecida das
autoridades públicas brasileiras. Relatório das Atividades do Programa de Análise de
Resíduos de Agrotóxicos (PARA), em 2010, comprova a presença de agrotóxicos acima do
LMR ou de produtos não autorizados em 28% das 2.488 amostras analisadas. Inegavelmente
impróprios para o consumo. Outros 35% das amostras apresentaram resíduos abaixo do LMR
(ANVISA, 2010, p. 12). As amostras são coletadas pelas Vigilâncias Sanitárias Estaduais nos
supermercados das capitais dos 26 Estados que aderiram ao monitoramento do PARA, exceto
São Paulo. Do total de alimentos analisados, apenas 37% estavam livres de agrotóxicos.
Em audiência pública na Comissão de Agricultura e Reforma Agrária (CRA) do
Senado Federal, em julho de 2012, chegou-se à conclusão genérica de que “falhas na
coordenação do trabalho de órgãos da agricultura, saúde e meio ambiente responsáveis pelo
monitoramento do uso de agrotóxicos no país limitam muito a capacidade do governo de
evitar que alimentos contaminados cheguem à mesa dos brasileiros” (SENADO, 2012).
Essa coordenação, supramencionada, é tripartite no plano federal, com atribuições
específicas divididas entre o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), o
Ministério da Saúde (MS), por meio da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA)
e o Ministério do Meio Ambiente, por intermédio do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e
dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA). No plano estadual catarinense, a tripartição é
seguida no âmbito das atribuições dos órgãos e entidades do Governo do Estado. Um dos
principais temores revelados durante a audiência na Comissão de Agricultura e Reforma
Agrária (CRA) partiu de Cleber Folgado, representante da Campanha Permanente Contra os
Agrotóxicos, para quem o “Brasil está se tornando a maior lixeira tóxica do mundo”
(SENADO, 2012). Advertência fundada em fortes indícios, como se verá adiante.
5.1 PRECEITOS DA CONSTITUÇÃO DA REPÚBLICA DE 1988
O vocábulo agrotóxico é mencionado uma única vez na Constituição da
18
República Federativa do Brasil, promulgada em 5 de outubro de 1988, e somente para limitar,
conforme disciplina do §4º do art. 220, a propaganda comercial desse produto químico, assim
como a do tabaco, bebidas alcoólicas, medicamentos e terapias. Essa propaganda sujeita-se a
restrições legais por meio de advertências sobre os malefícios decorrentes do uso desses
produtos relacionados, de modo a facultar, também, os meios legais que garantam à pessoa e à
família a possibilidade de se defenderem de programas ou programações de rádio e televisão
que contrariem o disposto no art. 221 do Diploma Maior.
Trata-se do respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família expostos
na produção e na programação das emissoras de rádio e televisão (inciso IV), bem como na
propaganda de produtos, práticas e serviços que possam ser nocivos à saúde e ao meio
ambiente. Denota-se que o constituinte de 1988 revelou preocupação em não expor a
sociedade ao bombardeio de mensagens publicitárias sobre as pretendidas vantagens dos
agrotóxicos e de outros produtos potencialmente maléficos à saúde e ao meio ambiente.
Paulo Affonso Leme Machado (2009, p. 598) não percebe descuido do
constituinte face à inexistência de outras menções específicas ao termo agrotóxicos na
Constituição de 1988. Segundo o renomado autor, o art. 24 “tornou inequívoca a competência
dos Estados para legislar plenamente, quando a União não o fizer, ou suplementar as normas
gerais federais existentes”, obrigando o Poder Público a fiscalizar e controlar os agrotóxicos.
A teor do art. 225, §1o
., V. da CF, “a Constituição Federal não se omitiu no prever a
obrigatoriedade para o Poder Público no controle dos agrotóxicos, tendo sido mais abrangente
ao não mencionar expressamente o termo “agrotóxico”, mas “substâncias que comportem
risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente” (MACHADO, 2009, p. 598).
De acordo com Aloísio Barbosa Araújo (1979 apud VAZ, 2006, p. 37), já nos
anos de 1970 a realidade da produção de alimentos indicava, na sua obra “O meio ambiente
no Brasil – aspectos econômicos” (Rio de Janeiro: IPEA/INPES, 1979, p. 103-104), a
necessidade de providências urgentes e de âmbito nacional:
[…] o Brasil vem utilizando maciçamente produtos químicos na agricultura.
Esta tendência à substituição dos recursos 'naturais' por outros
industrializados vem sendo combatida em diversas instâncias. De um lado,
décadas de pesticidas, fungicidas e inseticidas têm feito elevar-se a presença
de substâncias tóxicas nos organismos animais e níveis geralmente
considerados perigosos, muitas vezes superiores aos estabelecidos como
aceitáveis pela Organização Mundial de Saúde. Esta utilização, assim, pode
ser responsável pelo surgimento de diversas doenças ambientais. De outro
lado, alguns especialistas são céticos quanto à eficácia destes produtos, face
às demais consequências do seu uso: redução do componente orgânico dos
solos, excessiva salinidade, extinção da microflora e da microfauna natural
etc. Em outras palavras, chega-se a temer pela própria produtividade dos
19
solos, depois de décadas de uso destes produtos químicos (ARAÚJO, 1979,
apud VAZ, 2006, p. 37).
À luz da lição de Paulo Affonso Leme Machado, a compreensão do
posicionamento da Constituição da República frente aos potenciais riscos decorrente de
agrotóxicos e de outros produtos químicos depende, em larga medida, da conjugação de
princípios e preceitos gravados em diferentes dispositivos a Lei Maior desde o Preâmbulo:
Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional
Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o
exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o
bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores
supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada
na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a
solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a
seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL
(grifos nossos).
A Carta de 1988 segue a linha de ampla proteção à vida ao insculpir, no Título I –
Dos Princípios Fundamentais, o Estado Democrático de Direito como base da República
Federativa do Brasil e fixar, como fundamentos, entre outros, a soberania, a cidadania, a
dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, os quais
devem se cristalizar como objetivos de toda a Nação.
5.1.1 Direitos à saúde, à alimentação e ao trabalho
No campo dos Direitos e Garantias Fundamentais (Título II), os direitos à
educação, à saúde, à alimentação, ao trabalho, à moradia, ao lazer, à segurança, à
previdência social, à proteção à maternidade e à infância e à assistência aos desamparados,
expressos no art. 6o
., compõem, ao lado do art. 7o
. (direitos dos trabalhadores urbanos e
rurais), “o mais amplo catálogo de direitos sociais da história do nosso constitucionalismo”
(MENDES; BRANCO, 2012, p. 691).
Podemos dizer que os ‘direitos sociais’, como dimensão dos direitos
fundamentais do homem, são prestações positivas proporcionadas pelo
Estado direta ou indiretamente, enunciadas em normas constitucionais, que
possibilitam melhores condições de vida aos mais fracos; direitos que
tendem a realizar a igualização de situações sociais desiguais. São, portanto,
direitos que se ligam com o direito de igualdade. Valem como pressupostos
do gozo dos direitos individuais, na medida em que criam condições
materiais mais propícias ao auferimento da igualdade real – o que, por sua
vez, proporciona condição mais compatível com o exercício efetivo da
liberdade (AFONSO DA SILVA, 2010, p. 186-187).
Sem adentrar no direito à educação, não obstante sua relação com o tema ora
20
exposto no presente trabalho, temos que a saúde é tanto um direito individual quanto coletivo
(MENDES; BRANCO, 2012, p. 696), que tem por fundamento, além do art. 6º. já
mencionado, o conjunto de dispositivos protetivos enunciado nos arts. 196 e 197 da Carta:
Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante
políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de
outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para
sua promoção, proteção e recuperação.
Art. 197. São de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo
ao Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação,
fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou
através de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito
privado. (grifos nossos)
Causa espanto ao jurista José Afonso da Silva (2010, p. 188) “como um bem
extraordinariamente relevante à vida humana só na Constituição de 1988 tenha sido elevado à
condição de direito fundamental do homem”, pois, reforçando o sentido geral da escolha por
viver em comunidade,
o direito à vida de todos os seres humanos significa também que, nos casos
de doença, cada um tem o direito a um tratamento condigno de acordo com o
estado atual da Ciência Médica, independentemente de sua situação
econômica, sob pena de não ter muito valor sua consignação em normas
constitucionais (AFONSO DA SILVA, 2010, p. 188).
Essa dimensão dos direitos sociais constitui, segundo Dinaura Godinho Pimentel
Gomes (2005, p. 1), “o núcleo normativo do Estado Democrático de Direito, no sentido de se
garantir a todos idênticas condições e oportunidades, ou seja, a igual dignidade para todas as
pessoas”. Dignidade que é “o último arcabouço da guarida dos direitos individuais e o
primeiro fundamento de todo o sistema constitucional” (NUNES, 2010, p. 62).
Nos dizeres de Vicente Paulo e Marcelo Alexandrino (2012, p. 244), “os direitos
sociais constituem as liberdades positivas, de observância obrigatória em um Estado Social de
Direito, tendo por objetivo a melhoria das condições de vida dos hipossuficientes, visando à
concretização da igualdade social”. Percebe-se, assim, que os direitos sociais integram o cerne
da Constituição da República de 1988.
Todavia, Pedro Lenza (2011, p. 975) assinala, de forma sucinta, aspecto de grande
relevância para a compreensão da aplicação do direito à saúde:
[...] a doutrina aponta a dupla vertente dos direitos sociais, especialmente
no tocante à saúde, que ganha destaque, enquanto direito social, no texto de
1988: a) natureza negativa: o Estado ou terceiros devem abster-se de
praticar atos de prejudiquem terceiros; b) natureza positiva: fomenta-se um
Estado prestacionista para implementar o direito social (LENZA, 2011, p.
975, grifos do autor).
Nesse contexto, os direitos à saúde e à alimentação prendem-se intrinsecamente
21
ao ápice do sentido que se dá, no Estado Democrático de Direito, ao princípio da dignidade
humana, “um dos principais candidatos ao papel de maior de todos os princípios, aquele que
está na essência de todas as coisas” (BARROSO, 2012, p. 111), sobre o qual o Estado não
pode se omitir, embora a prática não corresponda, atualmente, aos ideais constitucionais.
[…] a dignidade da pessoa humana não é uma criação constitucional, pois
ela é um desses conceitos a priori, um dado preexistente a toda experiência
especulativa, tal como a própria pessoa humana. A Constituição,
reconhecendo sua existência e sua eminência, transformou-a num valor
supremo da ordem jurídica, quando a declara como um dos fundamentos da
República Federativa do Brasil constituída em Estado Democrático de
Direito. Se é fundamento é porque se constitui num valor supremo, num
valor fundante da República, da Federação, do País, da Democracia e do
Direito. Portanto, não é apenas um princípio da ordem jurídica, mas o é
também da ordem política, social, econômica e cultural. Daí sua natureza de
valor supremo, porque está na base de toda a vida nacional (AFONSO DA
SILVA, 2010, p 40).
Ao lado da saúde, o reconhecimento constitucional da alimentação como direito
fundamental social é recente. Se aquele foi incluído na promulgação da Constituição da
República, em 1988, este veio a ser expresso no art. 6º. somente a partir de 4 de fevereiro de
2010, por intermédio da promulgação da Emenda Constitucional n. 64, a qual teve como fator
catalizador o entendimento exposto por meio da Lei Federal n. 11.346, de 15 de setembro de
2006. Essa lei instituiu o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (SISAN).
Em larga medida, advém do disposto no art. 3º. da Lei de Segurança Alimentar a influência da
inclusão da alimentação entre os direitos sociais constitucionais:
a segurança alimentar e nutricional consiste na realização do direito de todos
ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade
suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais,
tendo como base práticas alimentares promotoras de saúde que respeitem
a diversidade cultural e que sejam ambiental, cultural, econômica e
socialmente sustentáveis (art. 3º. da Lei Federal n. 11.346/2006, grifos
nossos).
“Daí se tira o conceito de direito humano à alimentação adequada”, diz José
Afonso da Silva, 2010, p. 189), conforme preconiza o art. 2o
. da Lei Federal n. 11.346/2006:
“direito fundamental do ser humano, inerente à dignidade da pessoa humana e indispensável à
realização dos direitos consagrados na Constituição Federal, devendo o poder público adotar
as políticas e ações que se façam necessárias para promover e garantir a segurança alimentar e
nutricional da população”.
Por seu turno, o direito social ao trabalho, também insculpido no art. 6o
. da
Constituição da República, é “importante instrumento para implementar e assegurar a todos
uma existência digna, conforme estabelece o art. 170, caput” (LENZA, 2011, p. 976, grifos
22
do autor). Esse direito social guarda correspondência parcial com o direito do trabalho. José
Afonso da Silva elucida a respeito da diferença do trabalho como direito social:
Aqui se tem o trabalho como um direito, a significar que o trabalho é um
direito social – o que, em outras palavras, quer dizer: direito ao trabalho,
direito de ter um trabalho, possibilidade de trabalhar. Conjuga-se – mas não
se confunde – com a liberdade de trabalho, oficio e profissão, consignada no
art. 5o., XIII, porque o direito ao trabalho envolve também a liberdade de
escolher o trabalho que melhor se afine com a tendência de cada um
(AFONSO DA SILVA, 2010, p. 189).
No que concerne ao art. 170, antes mencionado, a Constituição da República
estatui que a ordem econômica é fundada na valorização do trabalho humano e na livre
iniciativa, disposições relevadoras do “caráter compromissário da nossa Carta Política”
(PAULO; ALEXANDRINO, 2012, p. 1.014), porque
Em vez de assumir como um dado inelutável a consagrada cisão entre “capital
e trabalho”, o histórico antagonismo entre “empresário e trabalhador”, o texto
constitucional procura transmitir uma ideia de integração, de harmonia, de
sorte que assegura a livre-iniciativa (portanto, a apropriação privada dos meios
de produção, a liberdade de empresa), mas determina que o resultado dos
empreendimentos privados deve ser a concretização da justiça social, o que
exige, entre outras coisas, a valorização do trabalho humano. De todos os
fatores de produção, portanto, o trabalho humano dever ser aquele colocado
em primeiro lugar. O empreendedorismo é um valor consagrado, desde que
valorize o trabalho humano e contribua para assegurar a todos uma existência
digna (PAULO; ALEXANDRINO, 2012, p. 1.014).
Finalmente, o art. 200 da Constituição de 1988 firma a competência do Sistema
Único de Saúde (SUS) para executar as ações de vigilância sanitária e epidemiológica, bem
como as de saúde do trabalhador (inciso II); fiscalizar e inspecionar alimentos, compreendido
o controle de seu teor nutricional, bem como bebidas e águas para consumo humano (VI); e
participar do controle e fiscalização da produção, transporte, guarda e utilização de
substâncias e produtos psicoativos, tóxicos e radioativos (VII).
5.1.2 Soberania, função social da propriedade, defesa do consumidor e do meio ambiente
O art. 170 da Constituição da República de 1988 define como princípios básicos
da ordem econômica, entre outros, a soberania nacional (inciso I), a função social da
propriedade (III), a defesa do consumidor (V) e a defesa do meio ambiente (VI). A se
observar, no que diz respeito à soberania nacional adstrita à ordem econômica, “a noção de
não subordinação, de independência perante os Estados estrangeiros economicamente mais
fortes”, conforme sintetizam Vicente Paulo e Marcelo Alexandrino (2012, p. 1.015),
23
complementando: “A política econômica é assunto brasileiro, voltada para os interesses
brasileiros, e deve ser elaborada sem interferência de pressões e interesses econômicos
alienígenas” (grifo nosso). Nesse ponto, fundamental a lição de Afonso da Silva:
[...] o constituinte de 1988 não rompeu com o sistema capitalista, mas quis
que se formasse um Capitalismo nacional autônomo, isto é, não dependente.
Com isso, a Constituição criou as condições jurídicas fundamentais para a
adoção do desenvolvimento autocentrado, nacional e popular, que, não
sendo sinônimo de isolamento ou autarquização econômica, possibilita
marchar para um sistema econômico desenvolvido, em que a burguesia local
e seu Estado tenham o domínio da reprodução da força de trabalho, da
centralização do excedente da produção, do mercado, e a capacidade de
competir no mercado mundial, dos recursos naturais e, enfim, da tecnologia
(AFONSO DA SILVA, 2010, p. 725).
A soberania brasileira não tem “aversão ao capital estrangeiro”, porque prevê
“expressamente a atuação do capital externo em nossa economia, deixando à lei a tarefa de
estabelecer o respectivo regramento” (PAULO; ALEXANDRINO, 2012, p. 1.016).
Da perspectiva puramente constitucional, a teor do art. 186, a função social é
cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de
exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos: I – aproveitamento racional e
adequado; II – utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio
ambiente; III – observância das disposições que regulam as relações de trabalho; e IV –
exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores. Diante disso,
assinala Luís Roberto Gomes,
pode-se afirmar que função social da propriedade foi inserida no alicerce
estrutural, no núcleo, no conceito mesmo, do instituto da propriedade,
qualificando-o e modificando sua natureza, de forma que não possa mais ser
compreendido no sentido puramente individual, dissociado dos bens
jurídicos de ordem pública (GOMES, 2000, p. 3).
Celso Antônio Bandeira de Mello interpreta os atributos do instituto da função
social da propriedade, mencionados anteriormente, vinculando-os a
objetivos de Justiça Social; vale dizer, comprometido com o projeto de uma
sociedade mais igualitária ou menos desequilibrada – como é o caso do
Brasil – no qual o acesso à propriedade e o uso dela sejam orientados no
sentido de proporcionar ampliação de oportunidades a todos os cidadãos
independentemente da utilização produtiva que porventura já esteja tendo
(MELLO, 2011b, p. 4).
Tão relevante quanto à saúde da população é a proteção do meio ambiente no
qual vive o produtor, e dele extrai o sustento para si e para a sua família. Prescreve o art. 225,
da Constituição, que todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de
uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à
24
coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. Direito
que deve ter sua efetividade assegurada pelos órgãos e entidades do Estado, conforme dispõe
o § 1º, inciso V, do art. 225, por meio do controle da produção, da comercialização e do
emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade
de vida e o meio ambiente.
Não bastassem os dispositivos constitucionais supramencionados, a Carta de 1988
enfaticamente impõe ao Estado a promoção da defesa do consumidor (art. 5º, inciso XXXII)
e a eleva esse direito à condição de princípio da ordem econômica (art. 170, inciso IV),
fundado na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, que têm por fim assegurar a
todos existência digna, conforme os ditames da justiça social.
Na lição de Luiz Guilherme Marinoni (2004, p. 13), “diante de um direito
fundamental – no caso o direito fundamental do consumidor –, o Estado não pode se esquivar
do seu dever de proteção”. Sancionada a Lei n. 8.078, de 11 de setembro de 1990,
denominada de Código de Defesa do Consumidor (CDC), teve início de uma nova era nas
relações de consumo no Brasil, assim projetada:
A ideia central do texto constitucional, concretizada pelo Código, é que, nas
relações de consumo, é presumida a existência de uma disparidade
econômica entre as partes, de sorte que ao consumidor, que representa o lado
mais fraco, hipossuficiente, deve ser assegurado um arcabouço jurídico que
compense essa desigualdade fática. Assim, instituem-se medidas de proteção
jurídica, como atribuição de responsabilidade objetiva ao fornecedor por
danos ocasionados por seus produtos ao consumidor, inversão do ônus da
prova em determinadas ações contra o fornecedor em que o consumidor seja
parte etc. (PAULO; ALEXANDRINO, 2012, p. 157).
Nesse sentido, de grande relevância para compreensão do CDC como principal
marco nas relações de consumo no Brasil é a manifestação de Ada Pellegrini Grinover e
Antônio Herman de Vasconcellos e Benjamin (GRINOVER et al., 2011, p. 5) quando
abordam o modelo intervencionista estatal na defesa do consumidor:
A “purificação” do mercado pode ser feita de dois modos básico.
O primeiro é meramente “privado”, com os próprios consumidores e
fornecedores autocompondo-se e encarregando-se de extirpar as práticas
perniciosas. Seria o modelo de auto-regulamentação, das convenções
coletivas de consumo e do boicote. Como já alertamos, tal regime não se tem
mostrado capaz de suprir a vulnerabilidade do consumidor.
O segundo modo é aquele que, não descartando o primeiro, funda-se em
normas (aí se incluindo, no sistema de commom law, as decisões dos
tribunais) imperativas de controle do relacionamento consumidor-
fornecedor. É o modelo do intervencionismo estatal, que se manifesta
particularmente em sociedades de capitalismo avançado, como os Estados
Unidos e países europeus.
Nenhum país do mundo protege seus consumidores apenas com o modelo
privado (GRINOVER et al., 2011, p. 5).
25
Assim, o CDC converge seu foco primordial para a proteção da vida, à saúde e à
segurança, pois, segundo José Geraldo Brito Filomeno (2011 apud GRINOVER et al., 2011,
p. 153), “têm os consumidores e terceiros não envolvidos em dada relação de consumo
incontestável direito de não serem expostos a perigos que atinjam sua incolumidade física,
perigos tais representados por práticas condenáveis no fornecimento de produtos e serviços”.
A proteção da incolumidade física tem por requisito básico a “devida informação sobre os
riscos que produtos e serviços possam apresentar, de maneira clara e evidente, ou
simplesmente não colocá-los no mercado, se tais riscos forem além do que normalmente se
espera deles” (FILOMENO, 2011, apud GRINOVER et al., 2011, p. 153).
5.1.3 Existência digna e risco para a vida
“A vida humana – como valor central do ordenamento jurídico e pressuposto
existencial dos demais direitos fundamentais, além de base material do próprio conceito de
dignidade humana – impõe medidas radicais para a sua proteção” (MENDES; BRANCO,
2012, p. 297). Portanto, o fim maior da ordem econômica não pode comportar qualquer risco
à vida, tanto quanto deve assegurar uma existência digna sob os ditames da justiça social.
A vida preservada e encarecida pelo constituinte há de ser toda a vida
humana. [...] O direito à vida cola-se ao ser humano, desde que este surge e
até o momento da sua morte. Trata-se de um direito que resulta da
compreensão generalizada, que inspira os ordenamentos jurídicos atuais, de
que todo ser humano deve ser tratado com igual respeito à sua dignidade,
que se expressa, em primeiro lugar, pelo respeito à sua existência mesma ”
(MENDES; BRANCO, 2012, p. 291).
José Afonso da Silva (2010, p. 724) pondera, a respeito do art. 170 da
Constitucional, que “assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social
não será tarefa fácil em um sistema de base capitalista – e, pois, essencialmente
individualista”. O mestre constitucionalista leciona:
É que a justiça social só se realiza mediante equitativa distribuição da riqueza.
Um regime de acumulação ou de concentração de renda nacional, que resulta
da apropriação privada dos meios de produção, não propicia efetiva justiça
social, porque nele sempre se manifesta grande diversidade da classe social,
com amplas camadas da população carente ao lado da minoria afortunada. A
História mostra que a injustiça é inerente ao modo de produção capitalista,
mormente no Capitalismo periférico. Algumas providências constitucionais
formam, agora, um conjunto de direitos sociais com mecanismos de concreção
que, devidamente utilizados, podem tornar menos abstrata a promessa de
justiça social. [...] A Constituição de 1988 é ainda mais incisiva no conceber a
ordem econômica sujeita aos ditames da justiça social, para o fim de assegurar
26
a todos existência digna. Dá à justiça social um conteúdo preciso. Preordena
alguns princípios da ordem econômica – a defesa do consumidor, a defesa do
meio ambiente, a redução das desigualdades regionais e pessoais e busca do
pleno emprego – que possibilitam a compreensão de que o Capitalismo
concebido há de humanizar-se (se é que isso é possível) com a efetivação da
justiça social (AFONSO DA SILVA, 2010, p. 724).
Paulo Affonso Leme Machado (2009, p. 141) observa que o “risco para a vida, a
qualidade de vida, a fauna e a flora – enfim, o risco para o meio ambiente – foi objeto de um
posicionamento de vanguarda dos constituintes de 1988. O Poder Público precisa prevenir na
origem os problemas de poluição e de degradação da Natureza”. Em se tratando de produtos
químicos de alta toxicidade, como os agrotóxicos, pode-se dizer que a contaminação dos
alimentos passou de uma possibilidade eventual, temida pelos constituintes e legisladores que
se seguiram, para um fato concreto, comprovado e perene.
5.1.4 Princípio constitucional da hipervulnerabilidade
O reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo,
prevista no art. 4o
., I, da Lei Federal n. 8.078, de 11 de setembro de 1990 (Código de Defesa
do Consumidor), é um dos princípios da Política Nacional das Relações de Consumo, porque
a Constituição da República de 1988 “procurou proteger algumas pessoas por sua natural
vulnerabilidade”, como os consumidores e os trabalhadores rurais e urbanos. “No entanto,
certas pessoas podem ser consideradas hipervulneráveis, necessitando de proteção maior do
que os consumidores standard. São elas as pessoas portadoras de deficiência, os idosos, as
crianças e os adolescentes” (NISHIYAMA, 2010, p. 229, grifo do autor).
A hipervulnerabilidade das crianças e adolescentes vem expressa no art. 227,
caput, da Constituição, fortalecida pela Lei Federal n. 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto
da Criança e do Adolescente), como segue:
Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança,
ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à
saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à
dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária,
além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação,
exploração, violência, crueldade e opressão (grifos nossos).
A família, a sociedade e o Estado devem cuidar prioritariamente das crianças e
adolescentes, mas, no que diz respeito aos agrotóxicos nos alimentos, como os dois primeiros
grupos podem agir se todo controle, fiscalização e, por consequência, informações atinentes
aos produtos químicos estão nas mãos do Estado? É conhecida no meio científico a gravidade
27
dos agrotóxicos para a saúde dos seres em formação, sejam humanos ou animais.
Rachel Carson, falecida em 1964, alertava na obra Primavera Silenciosa (1962),
considerada precursora do alerta mundial sobre os agrotóxicos:
A situação relativa às crianças é ainda mais profundamente inquietante. Um
quarto de século atrás, o câncer infantil era considerado uma raridade
médica. Hoje em dia, mais crianças em idade escolar morrem de câncer do
que de qualquer outra doença nos Estados Unidos. A situação se tornou tão
grave que a cidade de Boston fundou o primeiro hospital nos Estados Unidos
dedicado exclusivamente ao tratamento de crianças com câncer. Doze por
cento de todas as mortes de crianças entre as idades de um e catorze anos são
causadas pelo câncer (CARSON, 2011, p. 189).
Na mesma direção, Grisolia (2005, p. 53) explica que, “por causa da maior
facilidade de absorção, os agrotóxicos, como qualquer outra substância tóxica, atingem mais
rapidamente os diferentes comportamentos corpóreos das crianças”. A contaminação pode
estar ocorrendo mesmo antes do parto.
“A presença de diferentes tipos de agrotóxicos no leite materno,
especialmente os derivados de compostos clorados, pode atuar
negativamente num período crítico do desenvolvimento do sistema
neurológico da criança sob amamentação, causando prejuízos irreversíveis.
O Conselho Nacional de Pesquisa dos EUA acredita que somente o controle
rigoroso de resíduos de agrotóxicos nos alimentos infantis não seja suficiente
para a devida proteção das crianças, as quais já começaram a se contaminar
no útero materno” (GRISOLIA, 2005, p. 54).
Rachel Carson (2011, p. 29) advertiu com fundada convicção: “Pela primeira vez
na história do mundo, agora todo ser humano está sujeito ao contato com substâncias
químicas perigosas, desde o instante em que é concebido até sua morte”.
5.1.5 Princípios constitucionais da prevenção e da precaução
É inequívoca a hegemonia dos princípios constitucionais de Direito Público e de
Direito Administrativo sobre tudo que se relaciona aos agrotóxicos. “Tais princípios são de
observância obrigatória pelos agentes públicos, independentemente de texto de lei que os
acolha expressamente” (MUKAI, 2012, p. 51). Entre os princípios de Direito Público
predominam o da primazia do interesse público, da legalidade administrativa, da igualdade
dos cidadãos, da liberdade do cidadão e da proporcionalidade dos meios aos fins. No que
concerne aos princípios de Direito Administrativo, prevalecem o da indisponibilidade do
interesse público, da especialidade administrativa, do poder-dever do administrador público,
da finalidade administrativa, da impessoalidade, da moralidade pública e da publicidade
(MUKAI, 2012, p. 52-53). Essas relações não exaurem as matérias.
28
José Rubens Morato Leite e Patryck de Araújo Ayala (2012, p. 52) consideram
“estruturantes do Estado de Direito Ambiental”, inegavelmente de natureza pública, os
princípios da prevenção e da precaução, que alguns doutrinadores tratam como sinônimos e os
unem num só preceito enquanto outros os separam. A diferenciação seguida por parte da
doutrina está expressa no seguinte entendimento: “Comparando-se o princípio da precaução
com o da atuação preventiva, observa-se que o segundo exige que os perigos comprovados
sejam eliminados. Já o princípio da precaução determina que a ação para eliminar possíveis
impactos danosos ao ambiente seja tomada antes de um nexo causal ter sido estabelecido com
evidência científica absoluta” (LEITE; AYALA, 2012, p. 52).
O art. 15 da Declaração do Rio de 1992 (Conferência das Nações Unidas sobre
Meio Ambiente e Desenvolvimento) é referenciado como fundamento do princípio da
precaução. Igualmente o art. 225, § 1o
., IV, da Constituição de 1988, serve de alicerce para o
princípio da precaução na medida em que exige estudo prévio de impacto ambiental para
instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio
ambiente. Segundo Morato Leite e Ayala (2012, p. 54), o princípio da prevenção está
estampado no art. 225, § 1o
., V, da Constituição, que trata de controlar a produção, a
comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a
vida, a qualidade de vida e o meio ambiente, e também fundamenta-se no art. 54, § 3o
., da Lei
9.605/1998 (Lei dos Crimes Ambientais), “que penaliza criminalmente quem deixar de adotar
medidas precaucionais exigidas pelo Poder Público”.
5.1.6 Princípio constitucional do poluidor-pagador
O princípio do poluidor-pagador guarda correlação com os princípios do usuário-
pagador e do predador-pagador. No que tange ao primeiro, Cristiane Derani (1997 apud
MACHADO, 2009, p. 68) explica: “O custo a ser imputado ao poluidor não está
exclusivamente vinculado à imediata reparação do dano. O verdadeiro custo está numa
atuação preventiva”. Paulo Affonso Leme Machado (2009, p. 68) complementa:
O pagamento efetuado pelo poluidor ou pelo predador não lhes confere
qualquer direito a poluir. O investimento efetuado para prevenir o dano ou o
pagamento do tributo, da tarifa ou do preço público não isentam o poluidor
ou predador de ter examinada e aferida sua responsabilidade residual para
reparar o dano.
Segundo lição da jurista Maria Alexandra de Souza Aragão (1997 apud
MACHADO, 2009, p. 68), “o poluidor-que-deve-pagar é aquele que tem o poder de controle
29
(inclusive poder tecnológico e econômico) sobre as condições que levam à ocorrência da
poluição, podendo, portanto, preveni-las ou tomar precauções para evitar que ocorram”.
5.1.7 Sociedade de risco e irresponsabilidade organizada
“Aquilo que um dia foi motivo de esperança é hoje sinônimo de inquietação”. Em
arriscada síntese, o comentário anterior de José Rubens Morato Leite e Germana Parente
Neiva Belchior (in LEITE, 2012), extraído de obra redigida conjuntamente por estudiosos do
direito ambiental, conduz ao cerne da Teoria da Sociedade de Risco, desenvolvida pelo
sociólogo alemão Ulrich Beck no final da segunda metade do século passado. A abordagem a
seguir, limitada e superficial, tem o sentido de conectar, mesmo que parcialmente, alguns
aspectos dos recentes debates doutrinários relacionados ao intrincado enredo tecnológico da
contaminação da população mundial e do meio ambiente por meio de produtos químicos de
elevada toxicidade, hoje espalhados irremediavelmente por todos os continentes.
Édis Milaré (2009, p. 140, apud LEITE, 2012, p. 15) aborda com propriedade:
Os avanços proporcionados pela ciência e pela técnica não significam
necessariamente uma elevação do progresso e do bem-estar, como se pensou
a partir da Idade Moderna, na linha de uma espécie de “otimismo técnico”.
[...] a racionalidade técnica deixa de ser encarada como um instrumento
neutro para a promoção de objetivos da humanidade, sendo indiscutível a
sua potencialidade para se converter em mecanismo de opressão do homem
sobre a natureza.
Segundo Leite e Belchior (in LEITE, 2012, p. 16), “Beck aponta a existência de
duas modalidades de risco: o concreto ou potencial, que é visível e previsível pelo
conhecimento humano; e o abstrato, que tem como característica a invisibilidade e a
imprevisibilidade pela racionalidade humana”. Aplicadas aos agrotóxicos, essas modalidades
são facilmente percebidas. De um lado, o conhecimento científico emprega sua força para
demonstrar o papel relevante e útil dos agrotóxicos na prosperidade da lavoura e na
eliminação das ditas pragas, estipulando limites, fundados em pesquisas, sobre o quanto o ser
humano, os animais e o meio ambiente podem absorver e suportar de produto químico sem
perecer. De outro lado, sob o viés da invisibilidade, os ingredientes químicos alojam-se nas
plantas, nos seus frutos, no ar, na terra, na água, nos animais e no próprio homem,
indistintamente, em muitos casos por meio do consumo de alimentos tidos como sadios.
No âmbito do Direito Ambiental, tem-se que o risco concreto ou potencial é
controlado pelo princípio da prevenção, enquanto o abstrato encontra-se
amparado no princípio da precaução, ao investigar a probabilidade de o risco
existir por meio da verossimilhança e de evidências, mesmo não detendo o ser
30
humano a capacidade perfeita de compreender este fenômeno (LEITE;
BELCHIOR, in LEITE, 2012, p. 16).
Como desfecho dessa cena assustadora, Leite e Belchior complementam:
Para agravar ainda mais o clima de incertezas a que se está imerso, o
desenvolvimento econômico abafa as consequências negativas do seu
progresso, isto é, há uma invisibilidade dos riscos ecológicos, decorrente do
fato de que o Estado e os setores privados interessados usam meios e
instrumentos para ocultar as origens e os efeitos do risco ecológico, com o
objetivo de diminuir suas consequências, ou melhor, com o fim de transmitir
para a sociedade uma falsa ideia de que o risco ecológico está controlado. É
o que Beck (1995) apontou como irresponsabilidade organizada. Para o
sociólogo alemão, apesar da consciência da existência de riscos, estes são
ocultados pelo Poder Público e pelo setor privado. Assim, a
irresponsabilidade organizada acaba transformando o Estado em faz de
conta, em Estado-fantoche, que só dá publicidade aos fatos científicos de
acordo com seus interesses (LEITE; BELCHIOR, in LEITE, 2012, p. 16).
Heline Sivini Ferreira (2010, p. 21) traça com igual precisão um dos elementos da
sociedade de risco teorizada por Ulrich Beck quando refere-se à falência dos padrões de
segurança: “A fragilidade dos sistemas de segurança e a inconsistência dos mecanismos de
controle tradicionalmente adotados pela sociedade industrial convertem-se em características
fundamentais da sociedade de risco que, posteriormente, vão desdobrar-se no conceito de
irresponsabilidade organizada”. Um dos exemplos nacionais que melhor caracteriza a noção
de irresponsabilidade organizada, citada por Heline Sivini Ferreira, refere-se à flexibilização
de normas de segurança e dos mecanismos de fiscalização vigentes:
Neste sentido, cumpre mencionar que, no ano em que o Congresso Nacional
iniciou as discussões sobre a necessidade de se estabelecer um novo marco
regulamentar para a biossegurança dos OGMs [sigla para Organismos
Geneticamente Modificados, matéria que se encontrava regulada pela Lei n.
8.974/1995], um debate iniciado pelo Poder Executivo, os tribunais
examinavam a inconstitucionalidade de se autorizar a comercialização da soja
geneticamente modificada Roundup-Ready (RR) sem a realização do estudo
prévio de impacto ambiental (EPIA). Assinala-se que a realização do EPIA é
obrigatória para todas as atividades potencialmente causadoras de significativa
degradação do meio ambiente, conforme determina a Constituição da
República Federativa do Brasil (CRFB). Antes mesmo que a Lei n.
11.105/2005 entrasse em vigor prescindindo formalmente de um instrumento
indispensável à gestão dos riscos ambientais na modernidade avançada, o
presidente Luiz Inácio Lula da Silva autorizou, por meio da Medida Provisória
n. 113, de 26 de março de 2003, a comercialização de toda a safra de soja
produzida naquele ano, o que incluía organismos transgênicos introduzidos
ilegalmente no País. Ao assim estabelecer, acrescenta-se, o Governo Federal
contrariou decisão judicial válida e eficaz que condicionava a liberação
comercial da soja RR à prévia realização do estudo de impacto ambiental
(FERREIRA, 2010, p. 44).
5.1.8 Repartição constitucional de competências
31
Os artigos 23 e 24 da Constituição de 1988 fixam as modalidades de repartição
das competências comuns e concorrentes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos
Municípios. Toshio Mukai (2012, p. 18) acrescenta, ainda, a competência privativa desses
entes federativos, fundada juridicamente no poder de polícia do Estado. Trata-se do “[...]
poder de impor restrições e limitações às propriedades, empreendimentos, atividades e
liberdades dos administrados, em benefício da coletividade”, em suma, constitui-se como
principal sustentáculo da “atuação legislativa e administrativa do Estado na proteção e
preservação do meio ambiente” (MUKAI, 2012, p. 18).
O art. 23 da Constituição da República fixa as competências comuns da União,
dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. Guardam conexão mais direta com os
agrotóxicos os incisos II (cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das
pessoas portadoras de deficiência); IV (proteger o meio ambiente e combater a poluição em
qualquer de suas formas); VII (preservar as florestas, a fauna e a flora); e VIII (fomentar a
produção agropecuária e organizar o abastecimento alimentar).
Com amparo na competência concorrente (art. 24), a União, dos Estados, do
Distrito Federal e dos Municípios podem legislar sobre produção e consumo (inciso V);
florestas, caça, pesca, fauna, conservação da natureza, defesa do solo e dos recursos naturais,
proteção do meio ambiente e controle da poluição (VI); responsabilidade por dano ao meio
ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e
paisagístico (VIII); e, previdência social, proteção e defesa da saúde (XII). Isto é, mediante a
obediência dos critérios enunciados nos §§ 1o
. a 4o
. do art. 24.
Segundo Alexandre de Moraes (2010, p. 301), “pelo princípio da predominância
do interesse, à União caberá aquelas matérias e questões de predominância do interesse geral,
ao passo que aos Estados referem-se as matérias de predominante interesse regional e aos
municípios concernem os assuntos de interesse local”. Todavia, essa competência do ente
federal restringe-se à edição de normas gerais, cabendo àqueles outros entes federativos
suplementá-las.
A respeito dessa repartição, Paulo de Bessa Antunes (2001, p. 347) leciona:
A competência legislativa em matéria de agrotóxicos, seus componentes e
afins é aquela definida na Constituição da República Federativa do Brasil e
na própria Lei n. 7.802/89. Paralelamente à competência administrativa
existe, como se sabe, a competência legislativa da qual cada um dos
integrantes da Federação possui uma parcela definida. Em sede legal, o art.
9º da Lei n. 7.802/89 determinou que a União, no exercício de sua
competência adotasse as seguintes medidas:
32
a) legislar sobre produção, registro, comércio interestadual, exportação,
importação, transporte, classificação e controle tecnológico e toxicológico;
b) controlar e fiscalizar os estabelecimentos de produção, importação e
exportação;
c) analisar os produtos agrotóxicos, seus componentes e afins, nacionais e
importados; e
d) controlar e fiscalizar a produção, a exportação e importação.
Em conformidade com os artigos 23 e 24 da Constituição da República
Federativa do Brasil, compete aos Estado e ao Distrito Federal legislar sobre o
uso, a produção, o consumo, o comércio e o armazenamento dos agrotóxicos,
seus componentes e afins, bem como fiscalizar o uso, o consumo, o comércio,
o armazenamento e o transporte interno. Aos Municípios cabe,
supletivamente, legislar sobre o uso e o armazenamento dos agrotóxicos, seus
componentes e afins (ANTUNES, 2001, p. 347).
Julgados do Supremo Tribunal Federal (STF) apontam entendimento de que os
entes estaduais, no âmbito de suas competências constitucionais, são aptos para legislar e
zelar pela integridade da saúde e do meio ambiente, podendo exigir o registro de agrotóxicos
em órgãos estaduais. Rodrigo Cunha Amorim et al. (2010, p. 12) cita, como referência, o
seguinte julgado do STF relatado pela Ministra Ellen Gracie:
RECURSO EXTRAORDINÁRIO. COMPETÊNCIA ESTADUAL E DA
UNIÃO. PROTEÇÃO À SAÚDE E AO MEIO AMBIENTE. LEI
ESTADUAL DE CADASTRO DE AGROTÓXICOS, BIOCIDAS E
PRODUTOS SANEANTES DOMISSANITÁRIOS. LEI Nº 7.747/2-RS. RP
1135. 1. A matéria do presente recurso já foi objeto de análise por esta Corte
no julgamento da RP 1.135, quando, sob a égide da Carta pretérita, se
examinou se a Lei 7.747/82-RS invadiu competência da União. Neste
julgamento, o Plenário definiu o conceito de normas gerais a cargo da União
e aparou as normas desta lei que superavam os limites da alçada estadual. 2.
As conclusões ali assentadas permanecem válidas em face da Carta atual,
porque as regras remanescentes não usurparam a competência federal. A
Constituição em vigor, longe de revogar a lei ora impugnada, reforçou a
participação dos estados na fiscalização do uso de produtos lesivos à saúde.
3. A lei em comento foi editada no exercício da competência supletiva
conferida no parágrafo único do artigo 8º da CF/69 para os Estados
legislarem sobre a proteção à saúde. Atribuição que permanece dividida
entre Estados, Distrito Federal e a União (art. 24, XII da CF/88). 4. Os
produtos em tela, além de potencialmente prejudiciais à saúde humana,
podem causar lesão ao meio ambiente. O Estado do Rio Grande do Sul,
portanto, ao fiscalizar a sua comercialização, também desempenha
competência outorgada nos artigos 23, VI e 24, VI da Constituição atual. 5.
Recurso extraordinário conhecido e improvido. (STF, RE 286789/RS Rel.
Min. Ellen Gracie, j. 08/03/05, Segunda Turma).
De acordo com a repartição das competências legislativa e administrativa
estabelecidas na Constituição de 1988, em matéria de agrotóxicos, seus componentes e afins,
caberá à União legislar sobre a produção, o registro, o comércio interestadual, a exportação, a
importação, o transporte, a classificação, e o controle tecnológico e toxicológico; aos Estados
e ao Distrito Federal caberá elaborar a legislação sobre o uso, a produção, o consumo, o
33
comércio e o armazenamento; e, por fim, aos Municípios caberá legislar sobre o uso e
armazenamento em caráter supletivo (AMORIM et al., 2010, p. 9). A competência
administrativa é dividida em competência administrativa exclusiva (englobando poderes
enumerados e poderes reservados) e competência administrativa comum (art. 23 da
Constituição da República). Nesta última, compete à União, ao Estado, ao Distrito Federal e
aos Municípios proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas.
5.2 LEIS FEDERAIS E DE SANTA CATARINA SOBRE AGROTÓXICOS
5.2.1 Lei Federal n. 7.802/1989 – Lei Federal dos Agrotóxicos
A Lei Federal n. 7.802/1989 estipula no art. 2o
., incisos I e II, o conceito legal de
agrotóxicos, seus componentes e afins, não dando margem, em princípio, à interpretação ou à
utilização de nomenclaturas diversas sempre que se tratar de menção do Poder Público a
respeito do tema. Assim, quer se queira ou não, tanto para o Poder Público como para a
iniciativa privada, agrotóxicos são, a teor do inciso I, alínea ‘a’ do citado artigo:
os produtos e os agentes de processos físicos, químicos ou biológicos,
destinados ao uso nos setores de produção, no armazenamento e
beneficiamento de produtos agrícolas, nas pastagens, na proteção de
florestas, nativas ou implantadas, e de outros ecossistemas e também de
ambientes urbanos, hídricos e industriais, cuja finalidade seja alterar a
composição da flora ou da fauna, a fim de preservá-las da ação danosa de
seres vivos considerados nocivos (art. 2o
., I, a, da Lei Federal n. 7.802/1989);
Por afins entendem-se as substâncias e produtos, empregados como desfolhantes,
dessecantes, estimuladores e inibidores de crescimento, conforme dispõe o art. 2o
., I, b, da
mencionada lei. O fato de serem classificados como “afins” não os tornam menos tóxicos, ao
contrário, possuem o mesmo impacto ambiental ou até superior, caso, por exemplo, dos
desfolhantes usados matar florestas e aplicado sem qualquer escrúpulo contra populações de
países adversários em guerras.
O alarme se tornou mais crucial ainda quando a toxicologia reconheceu no
‘Agente Laranja’, usado no Vietnã como desfolhante de guerra, as
propriedades cancerígenas de uma dioxina, contaminante obrigatória do
2,4,5 Triclorofenoxiacetato, um dos componentes do ‘Agente Laranja’, o
qual foi o responsável por um dos maiores impactos químicos de que se tem
notícia já ocorridos no Brasil, ocasionando a mortandade de mais de um
milhão e duzentos mil peixes no Rio Miranda (MS). A mistura do 2,4D, que
é um herbicida utilizado no combate às ervas de folha larga, em associação
com o 2,4,5-T, que é um arbusticida, era conhecido como ‘Agente Laranja’
pelo fato de que este herbicida era fornecido em tambores de cor laranja
(SANTOS, 2001, p. 43).
34
São considerados componentes (art. 2o
., II, da Lei Federal n. 7.802/1989) os
princípios ativos, os produtos técnicos, suas matérias-primas, os ingredientes inertes e aditivos
usados na fabricação de agrotóxicos e afins. “Existem, no País, ao redor de mil princípios
ativos de agrotóxicos comercializados em mais de 8 mil formulações” (LUCCHESE, 2005, p.
5). O que isso significa na prática?
As formulações de agrotóxicos são constituídas de princípios ativos, que é o
termo usado para descrever os compostos responsáveis pela atividade
biológica desejada. O mesmo princípio ativo pode ser vendido sob diferentes
formulações e diversos nomes comerciais, e também podemos encontrar
produtos com mais de um princípio ativo. Dos cerca de 115 elementos
químicos conhecidos atualmente, 11 podem estar presentes nas formulações
dos agrotóxicos, dentre eles: bromo (Br), carbono (C), cloro (Cl), enxofre
(S), fósforo (P), hidrogênio (H), nitrogênio (N) e oxigênio (O), e são os mais
frequentemente encontrados, conferindo características específicas aos
agrotóxicos (BRAIBANTE; ZAPPE, 2012, p. 13).
Dependendo do debate, a pronúncia do vocábulo agrotóxico costuma evidenciar
divergências, até mesmo de fundo ideológico, entre aqueles que a tratam por meio de palavras
diferenciadas como se fossem sinônimas: uma delas é defensivo, aceita pelo Novo Dicionário
Aurélio (FERREIRA, 2004) como significado de agrotóxico. Defensivo acompanhado do
adjetivo agrícola compõe expressão comumente usada nos documentos do Ministério da
Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) e, via de regra, são as mais difundidas pela
Associação Nacional de Defesa Vegetal (ANDEF), organização privada que congrega as 15
maiores indústrias químicas em atividade no País, as quais controlam as vendas nacionais e
respondem por “83% do mercado mundial do setor” (ANVISA, 2012).
Já o vocábulo pesticida, segundo o Novo Dicionário Aurélio, significa substância
que combate a praga e tem origem do inglês pesticide. A Organização das Nações Unidas
(ONU) e suas entidades vinculadas, como a FAO (Organização da ONU para a Alimentação e
a Agricultura), adotam pesticide em toda as suas normas e documentos correlatos. Essa
expressão, pelo significado de “substância utilizada para a destruição de insetos ou outros
organismos nocivos para as plantas cultivadas ou para animais” (substance used for
destroying insects or other organisms harmful to cultivated plants or to animals, conforme
Oxford American Writer's Thesaurus, tradução livre), é convergente com a visão da indústria
química. Além disso, outros preferem o termo agroquímico ou produto químico de uso
agrícola. Por força do ordenamento jurídico e convicção na escolha do legislador, no presente
estudo adota-se quase sempre a palavra agrotóxico, reforçada pela compreensão do elevado
risco de contaminação e letalidade a que estão expostos o homem e o meio ambiente.
35
A Lei Federal n. 7.802/1989 dispõe sobre a pesquisa, a experimentação, a
produção, a embalagem e rotulagem, o transporte, o armazenamento, a comercialização, a
propaganda comercial, a utilização, a importação, a exportação, o destino final dos resíduos e
embalagens, o registro, a classificação, o controle, a inspeção e a fiscalização de agrotóxicos,
seus componentes e afins. Para cada um desses temas são definidas regras especificas
contidas neste e noutros diplomas legais, como também nos regulamentos correlatos.
Sob a disciplina dessa norma, regulamentada pelo Decreto Federal n. 4.074, de 4
de janeiro de 2002, ao Estado cabe investir os órgãos públicos das atribuições legais para o
exercício do poder de polícia administrativa em cada etapa dos tópicos mencionados na
norma geral. Em resumo, não se produz agrotóxico sem pesquisa e experimentação, e essas
devem seguir as normas próprias que lhes cabem. Do mesmo modo, o destino final das
embalagens é consequência do comércio, resultando numa cadeia de responsabilidades.
Para o presente estudo, importa verificar que a Constituição da República
determina ao Poder Público, conforme art. 225, § 1º, inciso V, controlar a produção, a
comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a
vida, a qualidade de vida e o meio ambiente. Controlar é a etapa inaugural. Segundo Niklas
Luhmann (1985 apud FRANÇA, 2010, p. 28), “por controle deve-se entender o exame crítico
de processos decisórios, objetivando uma intervenção transformadora no caso do processo
decisório em seu desenrolar (seu resultado ou suas consequências) não corresponder às
considerações do controle”.
Na lição do famoso administrativista Hely Lopes Meirelles,
Controle administrativo é todo aquele que o Executivo e os órgãos de
administração dos demais Poderes exercem sobre suas próprias atividades,
visando a mantê-las dentro da lei, segundo as necessidades do serviço e as
exigências técnicas e econômicas de sua realização, pelo quê é um controle
de legalidade e de mérito. Sob ambos esses aspectos pode e deve operar-se o
controle administrativo para que a atividade pública em geral se realize com
legitimidade e eficiência, atingindo sua finalidade plena, que é a satisfação
das necessidades coletivas e o atendimento dos direitos individuais dos
administrados (MEIRELLES, p. 664).
Inserido no contexto do controle, a Lei Federal dos Agrotóxicos proíbe o registro
de produtos químicos, a teor do §6º do art. 3º., nos seguintes termos:
a) para os quais o Brasil não disponha de métodos para desativação de seus
componentes, de modo a impedir que os seus resíduos remanescentes
provoquem riscos ao meio ambiente e à saúde pública;
b) para os quais não haja antídoto ou tratamento eficaz no Brasil;
c) que revelem características teratogênicas, carcinogênicas ou mutagênicas,
de acordo com os resultados atualizados de experiências da comunidade
científica;
36
d) que provoquem distúrbios hormonais, danos ao aparelho reprodutor, de
acordo com procedimentos e experiências atualizadas na comunidade
científica;
e) que se revelem mais perigosos para o homem do que os testes de
laboratório, com animais, tenham podido demonstrar, segundo critérios
técnico-científicos atualizados; e
f) cujas características causem danos ao meio ambiente.
Concernente à competência sobre agrotóxicos, é de se alinhar as disposições da
Lei Federal n. 7.802/1989 aos preceitos superiores da Lei Maior quanto à divisão das
competências administrativas e legislativas entre os entes federados. Por força do art. 9o
. da
lei infraconstitucional, a União adotará como providências legislar sobre a produção, registro,
comércio interestadual, exportação, importação, transporte, classificação e controle
tecnológico e toxicológico; controlar e fiscalizar os estabelecimentos de produção, importação
e exportação; analisar os produtos agrotóxicos, seus componentes e afins, nacionais e
importados; e controlar e fiscalizar a produção, a exportação e a importação.
O art. 10 da Lei Federal n. 7.802/1989 determina aos Estados e ao Distrito
Federal, nos termos dos arts. 23 e 24 da Constituição Federal, legislar sobre o uso, a
produção, o consumo, o comércio e o armazenamento dos agrotóxicos, seus componentes e
afins, bem como fiscalizar o uso, o consumo, o comércio, o armazenamento e o transporte
interno. Ao Município cabe legislar supletivamente (art. 11) sobre o uso e o armazenamento
dos agrotóxicos, seus componentes e afins.
De se destacar, ainda, a importância do art. 13 referente à obrigação legal do
receituário agronômico – “metodologia utilizada para diagnóstico do problema fitossanitário”
(VAZ, 2006, p. 82) –, que deve ser emitido por profissional habilitado como requisito para
comercialização e aplicação do produto no campo. O tema é controverso sob diversos
aspectos. “A inobservância dos preceitos técnicos concebidos na Lei n. 7.802/89 e no Decreto
n. 4074/02 revela-se flagrante: é prática comum a emissão do receituário sem a visita prévia à
propriedade rural, a receita assinada em branco, a emissão de um número excessivo de
receitas por um único profissional”, aponta Paulo Afonso Brum Vaz (2006, p. 82), acertando
com exatidão uma das causas da contaminação:
É do conhecimento geral que uma pessoa pode adquirir uma receita e comprar
qualquer tipo de agrotóxico, mesmo os mais letais, sem a mínima dificuldade,
em face do despreparo dos profissionais e da inoperância, tanto dos CREAs,
como das autoridades sanitárias e ambientais. Assim, o receituário, concebido
para reduzir os problemas nas áreas de saúde pública e de meio ambiente, em
decorrência do uso indiscriminado de agrotóxicos, não logrou atingir estes
objetivos (VAZ, 2006, p. 82).
O descumprimento das exigências estabelecidas na legislação é tratado dos arts.
37
15 ao 17 da Lei Federal n. 7.802/1989, primeiro para alertar sobre eventual sujeição à pena de
reclusão, de dois a quatro anos, além de multa (art. 15), depois para exigir do empregador, do
profissional responsável ou do prestador de serviço a promoção de medidas necessárias de
proteção à saúde e ao meio ambiente (art. 16), sujeitando o infrator a distintas penalidades e
multas, conforme o caso. Prossegue, enfim, para definir as sanções administrativas, sem
prejuízo das responsabilidades civil e penal cabíveis, iniciando-se com sanção de advertência;
multa de até 1000 (mil) vezes o Maior Valor de Referência – MVR; condenação de produto;
inutilização de produto; suspensão de autorização, registro ou licença; cancelamento de
autorização, registro ou licença; interdição temporária ou definitiva de estabelecimento;
destruição de vegetais, partes de vegetais e alimentos, com resíduos acima do permitido; e
destruição de vegetais, partes de vegetais e alimentos, nos quais tenha havido aplicação de
agrotóxicos de uso não autorizado, a critério do órgão competente (art. 17).
Do ponto de vista do cenário ideal desenhado no plano político-legislativo, a Lei
Federal n. 7.802/1989 “orienta a utilização correta do agrotóxico pelo seu usuário final de
modo a respeitar o consumidor e meio ambiente (externo e ocupacional), sendo o referido
texto legal bastante explicativo e que, de fato, deve ser observado pelas empresas produtoras
de agrotóxicos para que se alcance o seu caráter preventivo” (AMORIM et al, 2010, p. 9).
Tem-se, ainda, o art. 19, que prescreve ser obrigação do Poder Executivo
desenvolver ações de instrução, divulgação e esclarecimento que estimulem o uso seguro e
eficaz dos agrotóxicos, seus componentes e afins, com o objetivo de reduzir os efeitos
prejudiciais para os seres humanos e o meio ambiente e de prevenir acidentes de sua
utilização imprópria.
5.2.2 Lei Federal n. 8.078/1990 – Código de Defesa do Consumidor
Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou
serviço como destinatário final, conceito ao qual equipara-se a coletividade de pessoas, ainda
que indetermináveis, que haja intervindo nas relações de consumo, disciplina o art. 2o
. da Lei
Federal n. 8.078, de 11 de setembro de 1990 – o Código de Defesa do Consumidor (CDC). Na
outra ponta da relação, a teor do art. 3o
., fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública
ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem
atividade de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação,
exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços.
Com seu texto didático, o art. 4o
. do CDC estabelece que a Política Nacional das
38
Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o
respeito à sua dignidade, saúde e segurança, proteção de seus interesses econômicos e
melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de
consumo, atendidos os seguintes princípios:
I – reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado de
consumo;
II – ação governamental no sentido de proteger efetivamente o consumidor:
a) por iniciativa direta;
b) por incentivos à criação e desenvolvimento de associações
representativas;
c) pela presença do Estado no mercado de consumo;
d) pela garantia dos produtos e serviços com padrões adequados de
qualidade, segurança, durabilidade e desempenho.
III – harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo
e compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de
desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os
princípios nos quais se funda a ordem econômica (art. 170, da Constituição
Federal), sempre com base na boa-fé e equilíbrio nas relações entre
consumidores e fornecedores;
IV – educação e informação de fornecedores e consumidores, quanto aos
seus direitos e deveres, com vistas à melhoria do mercado de consumo;
V – incentivo à criação pelos fornecedores de meios eficientes de controle de
qualidade e segurança de produtos e serviços, assim como de mecanismos
alternativos de solução de conflitos de consumo;
VI – coibição e repressão eficientes de todos os abusos praticados no
mercado de consumo, inclusive a concorrência desleal e utilização indevida
de inventos e criações industriais das marcas e nomes comerciais e signos
distintivos, que possam causar prejuízos aos consumidores [...] (art. 4o
.,
incisos I a VI, da Lei Federal n. 8.078/1990).
A compreensão do modelo intervencionista estatal nas relações consumeristas
fundamenta-se particularmente no art. 6o
. do CDC ao definir os direitos básicos consumidor:
I – a proteção da vida, saúde e segurança contra os riscos provocados por
práticas no fornecimento de produtos e serviços considerados perigosos ou
nocivos;
II – a educação e divulgação sobre o consumo adequado dos produtos e
serviços, asseguradas a liberdade de escolha e a igualdade nas contratações;
III – a informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços,
com especificação correta de quantidade, características, composição,
qualidade e preço, bem como sobre os riscos que apresentem [...]
VI – a efetiva prevenção e reparação de danos patrimoniais e morais,
individuais, coletivos e difusos [...] (art. 6o
., incisos I a III e VI, da Lei
Federal n. 8.078/1990)
A disciplina legal impõe uma barreira jurídica contra a violação dos direitos e
diretrizes anteriormente expostos. Do art. 8o
. ao 10 do CDC estão firmados os principais
compromissos que devem ser seguidos tenazmente pelos fornecedores:
Art. 8° Os produtos e serviços colocados no mercado de consumo não
acarretarão riscos à saúde ou segurança dos consumidores, exceto os
39
considerados normais e previsíveis em decorrência de sua natureza e fruição,
obrigando-se os fornecedores, em qualquer hipótese, a dar as informações
necessárias e adequadas a seu respeito.
Parágrafo único. Em se tratando de produto industrial, ao fabricante cabe
prestar as informações a que se refere este artigo, através de impressos
apropriados que devam acompanhar o produto.
Art. 9° O fornecedor de produtos e serviços potencialmente nocivos ou
perigosos à saúde ou segurança deverá informar, de maneira ostensiva e
adequada, a respeito da sua nocividade ou periculosidade, sem prejuízo da
adoção de outras medidas cabíveis em cada caso concreto.
Art. 10. O fornecedor não poderá colocar no mercado de consumo produto
ou serviço que sabe ou deveria saber apresentar alto grau de nocividade ou
periculosidade à saúde ou segurança.
§ 1° O fornecedor de produtos e serviços que, posteriormente à sua
introdução no mercado de consumo, tiver conhecimento da periculosidade
que apresentem, deverá comunicar o fato imediatamente às autoridades
competentes e aos consumidores, mediante anúncios publicitários.
§ 2° Os anúncios publicitários a que se refere o parágrafo anterior serão
veiculados na imprensa, rádio e televisão, às expensas do fornecedor do
produto ou serviço.
§ 3° Sempre que tiverem conhecimento de periculosidade de produtos ou
serviços à saúde ou segurança dos consumidores, a União, os Estados, o
Distrito Federal e os Municípios deverão informá-los a respeito (arts. 8o
ao
10, da Lei n. 8.078/1990).
Segundo Luiz Guilherme Marinoni (2004, p. 1),
É possível dizer, em um primeiro passo, que as regras de proteção ao
consumidor têm como preocupação a segurança do consumidor, impondo
proibições ou condutas positivas, como por exemplo a proibição da venda de
produtos com alto grau de nocividade ou periculosidade (art. 10 do CDC) ou
o dever de informar de forma ostensiva (art. 9o
. do CDC). Essas regras,
destinadas a proteger o consumidor contra os produtos e os serviços nocivos
e perigosos, têm natureza preventiva, pois proíbem ou impõem condutas
para evitar danos (MARINONI, 2004, p. 1).
Não é preciso muito esforço para entender a preocupação do CDC em
salvaguardar, prioritariamente, a saúde do consumidor e o seu direito a ter conhecimento
prévio dos riscos a que pode estar sujeito por meio de informações completas indicadas nos
produtos ou serviços que lhes são oferecidos. Com fundamento no art. 12, o fabricante, o
produtor, o construtor, nacional ou estrangeiro, e o importador respondem,
independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos
consumidores por defeitos decorrentes de projeto, fabricação, construção, montagem,
fórmulas, manipulação, apresentação ou acondicionamento de seus produtos, bem como por
informações insuficientes ou inadequadas sobre sua utilização e riscos.
O CDC determina que a responsabilidade do fornecedor é solidária (art. 18), pelos
vícios de qualidade ou quantidade dos produtos de consumo duráveis ou não duráveis que os
tornem impróprios ou inadequados ao consumo a que se destinam ou lhes diminuam o valor,
40
assim como por aqueles decorrentes da disparidade, com a indicações constantes do
recipiente, da embalagem, rotulagem ou mensagem publicitária, respeitadas as variações
decorrentes de sua natureza, podendo o consumidor exigir a substituição das partes viciadas.
De plano, o CDC considera impróprios ao uso e consumo (art. 18, § 6°.):
I – os produtos cujos prazos de validade estejam vencidos;
II – os produtos deteriorados, alterados, adulterados, avariados, falsificados,
corrompidos, fraudados, nocivos à vida ou à saúde, perigosos ou, ainda,
aqueles em desacordo com as normas regulamentares de fabricação,
distribuição ou apresentação (grifo nosso);
III – os produtos que, por qualquer motivo, se revelem inadequados ao fim a
que se destinam.
Assinala Luiz Guilherme Marinoni (2004, p. 6),
No caso em que, após a colocação do produto ou serviço no mercado,
evidenciar-se, em razão de desenvolvimento da tecnologia, que o bem não
poderia ter sido introduzido no consumo, o fornecedor deverá, quando o
risco for intolerável, chamar os consumidores para a eliminação do defeito
ou ainda, se for o caso – ou seja, se a eliminação do defeito for impossível
ou não aconselhável diante da possibilidade de não atendimento integral de
parte dos consumidores –, ser obrigado a retirar o produto do mercado,
indenizando os consumidores. A previsão de simples informação dos
consumidores deve ser admitida apenas nos casos em que o avanço
tecnológico descobriu riscos que devem ser considerados normais e
previsíveis, ou mesmo que o produto ou o serviço é potencialmente nocivo
ou perigoso, e assim não pode prescindir de informação adequada e
ostensiva (grifo nosso).
Ainda de acordo com a lição de MARINONI (2004, p. 12)
Na verdade, se a Administração Pública reconhecer a alta periculosidade ou
a alta nocividade de um produto, e ainda assim permitir a sua venda, sem
que esse perigo ou nocividade seja legitimado por estar tutelando outro bem
digno de proteção, o ato da Administração Pública carece de fundamentação,
e assim não precisa ser acatado pelo juiz, que então fica com a possibilidade
de proibir a venda do produto. Isso por uma razão simples: o dever de
proteção é incumbência do Estado, e, portanto, também do juiz, que não
pode ficar em uma posição de assistente dos desvios e das omissões da
Administração. Quando essa reconhecer a alta nocividade do produto, é
completamente irracional a autorização do seu consumo sem que a proteção
de outro bem possa justificá-la, certamente de acordo com os valores que
importam à sociedade.
Conceito instituído pelo CDC (art. 29) equipara ao consumidor todas as pessoas
determináveis ou não, expostas às práticas nele previstas. Essa regra quase não vigorou no
CDC face ao lobby empresarial contrário à matéria, recorda José Geraldo Brito Filomeno
(2011, apud GRINOVER et al., 2011, p. 271), para quem, com o citado dispositivo, “o
consumidor é, então, não apenas aquele que ‘adquire ou utiliza produto ou serviço’ (art. 2o
.),
mas igualmente as pessoas “expostas às práticas” previstas no Código (art. 29)”. Filomeno
41
toca, ainda, em ponto fundamental para que a proteção à saúde por parte do Poder Público de
fato se proceda prévia e adequadamente:
[...] no conceito do art. 29, basta a mera exposição da pessoa às práticas
comerciais ou contratuais para que se esteja diante de um consumidor a
merecer a cobertura do Código. Tal conceito é importante, notadamente para
fins de controle preventivo e abstrato dessas práticas. O implementador – aí
se incluindo o juiz e o Ministério Público – não deve esperar o exaurimento
da relação de consumo para, só então, atuar. Exatamente porque estamos
diante de atividades que trazem enorme potencial danoso, de caráter coletivo
e difuso, é mais econômico e justo evitar que o gravame venha a se
materializar (FILOMENO, 2011, apud GRINOVER et al., 2011, p. 272).
Finalmente, de grande relevância para as relações consumeristas é a aplicação do
regramento contido no art. 31 do CDC, posto que o direito à informação tem previsão
constitucional fundada no respeito à dignidade da pessoa humana e na igualdade:
Art. 31. A oferta e apresentação de produtos ou serviços devem assegurar
informações corretas, claras, precisas, ostensivas e em língua portuguesa
sobre suas características, qualidades, quantidade, composição, preço,
garantia, prazos de validade e origem, entre outros dados, bem como sobre
os riscos que apresentam à saúde e segurança dos consumidores (Lei
Federal n. 8.078/1990, grifos nossos).
Novamente a lição de Filomeno, um dos autores do CDC, torna clara a visão do
legislador infraconstitucional.
Para a proteção efetiva do consumidor não é suficiente o mero controle da
enganosidade e abusividade da informação. Faz-se necessário que o
fornecedor cumpra seu dever de informação positiva. Toda a reforma do
sistema jurídico nessa matéria, em especial no que se refere à publicidade,
relaciona-se com o reconhecimento de que o consumidor tem o direito a uma
informação completa e exata sobre os produtos e serviços que deseja
adquirir. O dispositivo tem, na sua origem, o princípio da transparência,
previsto expressamente pelo CDC (art. 4o
., caput). Por outro lado, é
decorrência também do princípio da boa-fé objetiva, que parece em
ambiente onde falte a informação plena do consumidor (FILOMENO, 2011,
apud GRINOVER et al., 2011, p. 289).
5.2.3 Lei Federal n. 8.080/1990 – Lei do SUS
A Lei Federal n. 8.080, de 19 de setembro de 1990 – Lei do SUS, dispõe sobre as
condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento
dos serviços correspondentes. Importa destacar, a teor do art. 3o
., que a saúde, como direito
fundamental do ser humano, tem como fatores determinantes e condicionantes, entre outros, a
alimentação, a moradia, o saneamento básico, o meio ambiente, o trabalho, a renda, a
educação, o transporte, o lazer e o acesso aos bens e serviços essenciais (grifos nossos).
Poder de Polícia e Direito à Informação sobre Agrotóxicos em Santa Catarina
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  • 1. PODER DE POLÍCIA E DIREITO À INFORMAÇÃO SOBRE AGROTÓXICOS NOS ALIMENTOS EM SANTA CATARINA NELSON ALEX LORENZ FLORIANÓPOLIS - SANTA CATARINA 2013
  • 2. 1 NELSON ALEX LORENZ PODER DE POLÍCIA E DIREITO À INFORMAÇÃO SOBRE AGROTÓXICOS NOS ALIMENTOS EM SANTA CATARINA Monografia apresentada ao Curso de Pós- Graduação Lato Sensu Televirtual como requisito parcial à obtenção do grau de especialista em Direito Administrativo. Universidade Anhanguera-Uniderp Rede de Ensino Luiz Flávio Gomes Orientador: Prof. José Carlos Trinca Zanetti FLORIANÓPOLIS - SANTA CATARINA 2013
  • 3. 2 À minha esposa Natel e à nossa filha Victoria.
  • 4. 3 Agradecimento à minha mãe Ignez Leduc Lorenz, por todo seu amor e por jamais esmorecer nem perder a alegria. Aos amigos Marcelo de Tarso Zanellato, pela inestimável confiança e oportunidade de me permitir trabalhar com tema tão relevante para a vida em todos os sentidos; Roberto Mattos Abrahão, Alessandra Martinez dos Santos, Samuel Perucchi, André Bernart, Elson do Amaral Lima Júnior, Cleiton Gean de Almeida, Camila da Silva Vieira e Priscila da Silva Calixto, pelo divertido e sempre nobre convívio jurídico; e à Anamaria Ávila Caminha e Ana Maria Ioppi, pelo apoio e preciosas informações técnicas.
  • 5. 4 É irônico pensar que os seres humanos possam determinar seu futuro por meio de algo aparentemente tão trivial quanto a escolha de um inseticida. Rachel Carson (1962)
  • 6. 5 RESUMO O Brasil utiliza agrotóxicos na produção agrícola em larga escala, a ponto de alcançar, entre todos os países, a liderança como maior mercado consumidor de produtos químicos de elevados graus de toxicidade, que são despejados no plantio e no armazenamento de cereais e hortifrutícolas. Como consequência direta, programas públicos nacionais e catarinense de monitoramento vêm constatando continuamente a contaminação de alimentos com resíduos agrotóxicos em percentuais acima dos tolerados pela lei ou, então, não autorizados para o vegetal no qual foram aplicados. O controle e a fiscalização dos agrotóxicos são atividades indelegáveis da Administração Pública. Em proteção aos direitos à saúde, à segurança e ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, cumpre verificar em que medida o poder de polícia administrativa e o direito à informação são empregados em respeito aos consumidores e em obediência aos princípios constitucionais regentes do País. Palavras-chave: agrotóxicos, poder de polícia, direito à informação, saúde e meio ambiente.
  • 7. 6 ABSTRACT Brazil uses pesticides in agricultural production on a large scale as to achieve among all countries, the largest consumer market leadership as chemicals of high degrees of toxicity, which are dumped in planting and storage of cereals and horticultural crops. As a direct consequence, public programs and national catarinenses monitoring are continually finding contamination of foods with pesticide residues on percentages above those permitted by law or then not allowed to plant in which they were applied. The control and monitoring of pesticide activities are delegable Public Administration. In protection of the right to health of the population and ecologically balanced environment, it must be ascertained to what extent the administrative police power and the right to information are employed by the State in respect to consumers and in obedience to the constitutional principles of the legal rulers of the country. Keywords: pesticides, police power, the right to information, health and environment
  • 8. 7 LISTA DE TABELAS Tabela 1 – Agrotóxicos quanto à finalidade da aplicação vegetal e ao grupo químico.............58 Tabela 2 – Agrotóxicos quanto aos efeitos toxicológicos à saúde humana...............................61 Tabela 3 – Agrotóxicos quanto à equivalência da dose letal para seres humanos.....................62 Tabela 4 – Agrotóxicos quanto aos sinais e sintomas de contaminação em seres humanos.....63 Tabela 5 – Comparativo sobre taxas e prazos de registro de agrotóxicos Brasil e EUA...........65 Tabela 6 – Dinâmica/destino de agrotóxicos no meio ambiente................................................68 Tabela 7 – Agrotóxicos de uso proibido ou restrito em outros países .......................................72 Tabela 8 – Vendas mundiais de agrotóxicos (US$ milhões)......................................................73 Tabela 9 – Amostras analisadas por cultura e resultados insatisfatórios (PARA, 2010)...........79
  • 9. 8 SUMÁRIO LISTA DE TABELAS 1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................10 2 PROBLEMA DE PESQUISA ..........................................................................................11 3 OBJETIVO ........................................................................................................................12 4 METODOLOGIA .............................................................................................................13 5 AGROTÓXICOS, PODER DE POLÍCIA E DIREITO À INFORMAÇÃO ..............14 5.1 PRECEITOS DA CONSTITUÇÃO DA REPÚBLICA DE 1988 ...................................18 5.1.1 Direitos à saúde, à alimentação e ao trabalho...........................................................19 5.1.2 Soberania nacional, função social da propriedade, defesas do consumidor e do meio ambiente ...............................................................................................................22 5.1.3 Existência digna e risco para a vida ..........................................................................25 5.1.4 Princípio constitucional da hipervulnerabilidade ...................................................26 5.1.5 Princípios constitucionais da prevenção e da precaução ........................................27 5.1.6 Princípio constitucional do poluidor-pagador .........................................................28 5.1.7 Sociedade de risco e irresponsabilidade organizada ................................................29 5.1.8 Repartição constitucional de competências ............................................................. 31 5.2 LEIS FEDERAIS E DE SANTA CATARINA SOBRE AGROTÓXICOS ...................33 5.2.1 Lei Federal n. 7.802/1989 – Lei Federal dos Agrotóxicos .......................................33 5.2.2 Lei Federal n. 8.078/1990 – Código de Defesa do Consumidor ..............................37 5.2.3 Lei Federal n. 8.080/1990 – Lei do SUS ....................................................................42 5.2.4 Lei Federal n. 8.137/1990 – Lei dos Crimes Contra a Ordem Tributária, Econômica e Contra as Relações de Consumo ..............................................42 5.2.5 Lei Federal n. 9.294/1996 – Propaganda comercial de agrotóxicos .......................43 5.2.6. Lei Federal n. 9.605/1998 – Lei dos Crimes Ambientais ........................................43 5.2.7 Lei Federal n. 10.603/2002 – Informação Confidencial ..........................................43 5.2.8 Decreto Federal n. 5.360/2005 – Convenção de Roterdã .........................................44 5.2.9 Decreto Federal n. 5.472/2005 – Convenção de Estocolmo .....................................45 5.2.10 Lei Federal n. 11.105/2005 – Lei da Biossegurança ...............................................47 5.2.11 Lei Federal n. 11.346/2006 – Lei da Segurança Alimentar....................................48 5.2.12 Lei Estadual n. 11.069/1998, de SC – Lei Estadual dos Agrotóxicos ...................49 5.2.13 Regulamentos Federal e Estadual sobre Agrotóxicos ............................................50
  • 10. 9 5.2.14 Decreto Federal n. 4.074/2002 – Regulamento da Lei Federal dos Agrotóxicos ...........................................................................................................................51 5.2.15 Decreto Estadual n. 3.657/2005 – Regulamenta a Lei dos Agrotóxicos de SC ....52 5.3 AGROTÓXICOS NA AGRICULTURA, NO MEIO AMBIENTE E NA SAÚDE .......56 5.3.1 Origens dos agrotóxicos .............................................................................................56 5.3.2 Classificação dos agrotóxicos .....................................................................................58 5.3.3 Registro dos agrotóxicos na esfera federal ...............................................................63 5.3.4 Contaminações aguda, subaguda e crônica por agrotóxicos ...................................65 5.3.5 Suscetibilidade das crianças à contaminação química.............................................65 5.3.6 Contaminação do meio ambiente ..............................................................................67 5.3.7 Mercado agrícola e consumo de agrotóxicos ............................................................69 5.3.8 Emergências quarentenária, fitossanitária, sanitária e ambiental ........................76 5.3.9 Alimentos orgânicos e tecnologias de controle biológico ........................................77 5.3.10 Programa nacional de monitoramento de agrotóxicos .........................................79 5.3.11 Programa de monitoramento de agrotóxicos em Santa Catarina ........................82 5.4 PODER DE POLÍCIA E DIREITO À INFORMAÇÃO..................................................83 5.4.1 Conceito legal de poder de polícia e sua interação com eficácia e efetividade.......84 5.4.2 Polícia administrativa e polícia judiciária.................................................................86 5.4.3 Omissão do poder de polícia administrativa ............................................................87 5.4.4 Competência da Companhia Integrada de Desenvolvimento Agrícola (CIDASC)........................................................................................................................88 5.4.5 Competência da Fundação de Meio Ambiente (FATMA).......................................90 5.4.6 Competência da Empresa de Pesquisa Agropecuária e Extensão Rural (EPAGRI).......................................................................................................92 5.4.7 Competência da Diretoria de Vigilância Sanitária (DIVS) .....................................93 5.4.8 Monitoramento, rotulagem e rastreamento de produtos agrícolas ........................93 CONSIDERAÇÕES FINAIS...............................................................................................96 REFERÊNCIAS....................................................................................................................97
  • 11. 10 1 INTRODUÇÃO A população, como destinatária primordial da atuação do Estado, não pode ficar vulnerável à potencial contaminação latente da sua saúde por resíduos agrotóxicos em alimentos. Cabe ao aparelho estatal o pleno e efetivo exercício do poder de polícia administrativa para o fiel cumprimento da legislação, desde a produção no campo até a venda do produto final ao consumidor. É direito de todos ter alimentos seguros para consumir. Também é direito ter acesso a informações completas, estampadas no rótulo, sobre a origem da produção, ingredientes químicos ativos aplicados durante o cultivo e no armazenamento, identificação do produtor, prazo de validade, registro nos órgãos oficiais, selos de inspeção, composição e tabela nutricional do produto. Ao Estado e aos seus agentes não é facultado omitir-se. Os agrotóxicos espalham- se com gravidade à saúde pública, ao meio ambiente e, reflexamente, à economia. Seus efeitos nocivos podem gerar danos às atuais e futuras gerações, além de agravar contínua e indeterminadamente a biodiversidade. Inicialmente, o presente estudo aborda os aspectos constitucionais que cercam o tema, identificando na Carta de 1988 e nas referências doutrinárias o sentido dado aos direitos da população frente aos riscos à saúde e ao meio ambiente. Destacam-se, nesse capítulo inaugural, as leis infraconstitucionais e os regulamentos que legitimam a atuação do Estado e, sobretudo, as pesquisas científicas sobre a moderna sociedade de risco. Na sequência, verificam-se dados e informações sobre a realidade dos agrotóxicos, sua origem, classificação, mercado e impacto na agricultura, no meio ambiente e na vida dos seres humanos. Finalmente, discorre-se sobre o exercício do poder de polícia administrativa e o direito à informação relacionados ao uso de agrotóxicos, notadamente em relação aos indicativos oficiais da contaminação de alimentos por produtos químicos que chegam à mesa dos brasileiros e estrangeiros todos os dias, lastreados nos resultados de programas de monitoramento.
  • 12. 11 2 PROBLEMA DE PESQUISA O monitoramento dos níveis de resíduos químicos em alimentos, in natura ou industrializados, constitui obrigatoriedade do Estado, exercida por intermédio dos órgãos com poder de polícia administrativa. É, também, dever dos fornecedores (produtores e comerciantes) de alimentos para o consumo humano, face à disciplina legal que lhes permite, por exemplo, a aplicação de agrotóxicos contra doenças e insetos nocivos à lavoura. A presente pesquisa examina informações sobre o tema agrotóxicos na legislação, na literatura especializada, na jurisprudência e nos conteúdos publicados em sites de órgãos e entidades públicos. O propósito é contribuir para a compreensão da conjunto de normas e regulamentos vigentes sobre esses produtos químicos de elevado risco à saúde e ao meio ambiente, bem como sobre o papel desempenhado pelos órgãos de Santa Catarina aos quais foram atribuídas competências para controlar e fiscalizar o uso de agrotóxicos. Afinal, se o Estado cumpre de fato suas obrigações, o que explicaria o elevado percentual de contaminação de alimentos hortifrutícolas (de 27,9% a 33,33%, dependo do monitoramento), por resíduos agrotóxicos, verificado em Santa Catarina e no País, que foi apurado por intermédio de análises laboratoriais patrocinadas pelo próprio aparelho estatal? Em que medida a população pode confiar na qualidade e na segurança dos alimentos que lhes são ofertados no comércio como se fossem integralmente saudáveis?
  • 13. 12 3 OBJETIVO Examinar a Constituição da República e as normas federais e estaduais que dispõem sobre o uso de agrotóxicos, componentes e afins em Santa Catarina, as atribuições e as responsabilidades de pessoas físicas e jurídicas de direito público e privado, os fundamentos legais da tutela dos interesses dos consumidores, da saúde e do meio ambiente relacionados a esses produtos químicos de uso agrícola e as estatísticas de programas de monitoramento nacional e estadual, verificando, especialmente, o exercício do poder de polícia administrativa dos órgãos que têm o objetivo primário comum de proteção à saúde da população e ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e as disposições relacionadas ao direito à informação.
  • 14. 13 4 METODOLOGIA O presente trabalho constitui-se em pesquisa focada no ordenamento jurídico e na bibliografia sobre agrotóxicos, tomando como premissa a proteção constitucional à saúde, ao consumidor e ao meio ambiente. Apoia-se na doutrina de renomados juristas, nos estudos técnicos, nas jurisprudências dos tribunais superiores, em documentos e informes postados na internet, notadamente pelos órgãos e entidades públicos com atribuições específicas na área de defesa vegetal federal e de Santa Catarina. Sustenta-se, finalmente, nos relatórios de programas nacional e estadual de monitoramento dos agrotóxicos nos alimentos.
  • 15. 14 5 AGROTÓXICOS, PODER DE POLÍCIA E DIREITO À INFORMAÇÃO O contingente populacional do planeta, estimado em 7 bilhões de habitantes, segundo dados da Organização das Nações Unidas (ONU, 2012), fez da produção agrícola um objetivo estratégico universal, afeto a todos os países, indistintamente, além de objeto de intensas disputas comerciais e alvo do capital internacional aplicado ao agronegócio. Trata-se, sob certo ângulo, de levar à mesa os alimentos em quantidades suficientes para nutrir o ser humano, cujo sucesso depende, em larga medida, de fatores como aumento da produtividade no campo, fomento à produção, redução das perdas na safra e das áreas degradadas, melhoria da logística de transporte, diminuição do desperdício e acessibilidade ao produto final vendido diretamente ao consumidor, que enfrenta, entre outros obstáculos, o aumento internacional de preço das chamadas commodities agrícolas (FAO, 2012). Perto de 870 milhões de pessoas sofrem todos os dias com a escassez de alimentos em diferentes continentes, por motivos diversos, sobretudo na África e em partes da Ásia, América Latina e Caribe, de acordo com informe da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO, 2012). As causas predominantes são, em regra, a baixa renda de parte da população subnutrida e o preço elevado dos produtos, sendo aquela decorrente das enormes diferenças econômicas continentais e de fatores ambientais e climáticos, enquanto que a elevação dos preços agrícolas recebe forte influência da crescente demanda dos países ricos, para regularizar estoques e atender o consumo cada vez mais intenso. De um lado, tem-se a desnutrição. De outro, a obesidade. “A maioria dos que sofrem de fome, 852 milhões, vive em países em desenvolvimento – cerca de 15% da sua população –, enquanto 16 milhões de pessoas subnutridas se encontram nos países desenvolvidos”, escreve a FAO no relatório “O Estado de Insegurança Alimentar no Mundo 2012”. Nesse contexto, o Brasil insere-se no grupo de países em desenvolvimento e ocupa posição relevante no cenário internacional. Ao mesmo tempo é “líder na produção e exportação de extensa lista de produtos agrícolas” (FAO, 2012) – suco de laranja, açúcar, café, soja, farelo de soja, óleo de soja e carnes de frango e suína, para citar os mais expressivos da balança comercial –, e possuidor de aproximadamente 13 milhões de pessoas com restrição alimentar grave (privação de alimentos = fome), número que vem decrescendo nas últimas duas décadas, mas ainda representava quase 7% da população brasileira de aproximadamente 190 milhões de habitantes em 2010 (IBGE, 2013). As políticas públicas nacionais dirigidas ao enfrentamento do problema da fome
  • 16. 15 focam, em geral, a elevação do poder de compra do salário mínimo, a adoção da transferência de renda com base na distribuição direta de recursos públicos – vide bolsas governamentais –, o incentivo a programas de alimentação nas escolas e dos trabalhadores e de fortalecimento do agronegócio e da agricultura familiar, além de outras iniciativas igualmente relevantes que evidenciam uma tendência de orientação mais social do que econômica. Sob o aspecto do desempenho econômico no campo, o País vem alcançando sucessivos resultados positivos como efeito direto do avanço da fronteira agrícola estimulada pelos programas de crédito rural, da abertura de novos mercados e, também, como consequência da chamada Revolução Verde – “amplo programa idealizado para aumentar a produção agrícola no mundo por meio de melhorias genéticas em sementes, uso intensivo de insumos industriais, mecanização e redução do custo de manejo” (VASCONCELOS, 2007). O avanço da produção agrícola nacional e, por consequência, do enfrentamento da fome, produziu reflexos em atividades adjacentes, sendo uma delas a que compreende a indústria química multinacional instalada ou não no País. Em 2008, o Brasil alcançou o título de maior mercado consumidor de agrotóxicos do planeta, posição que vem se repetindo a cada safra desde então (ANVISA, 2012, grifo nosso), superando a posição que era dos Estados Unidos e deixando toda a União Europeia para trás. A liderança adquirida tem relação direta com a busca de produtividade na agricultura brasileira a partir dos anos 60 e 70, cujos resultados econômicos levaram à intensificação desordenada do combate às doenças e insetos que atacam a lavoura e evidenciaram a falta de orientação e fiscalização adequadas das práticas agrícolas, como também a frágil articulação dos órgãos públicos competentes com poder de polícia, a ausência de controle rigoroso na entrada e na circulação desses produtos no País e a pouca motivação política e governamental para posicionar o combate ao uso indiscriminado de agrotóxicos entre as prioridades nacionais, tanto do poder público quanto da iniciativa privada. A pressão que eventualmente se observa ante a ausência de rigoroso controle de qualidade dos alimentos vegetais brasileiros surge, com mais intensidade, do mercado consumidor externo, tanto por parte dos compradores norte-americanos quanto dos europeus, os quais exigem produtos certificados e submetidos, em alguns casos, ao monitoramento ainda nos portos, com risco de devolução da carga à origem se apuradas irregularidades fitossanitárias. A Comissão da União Europeia para Saúde Animal e Proteção ao Consumidor tem por prática dar ultimatos ao Brasil para adoção de medidas concretas de controle fitossanitário de produtos alimentares, principalmente da carne (OESP, 2006), do contrário ameaça aplicar restrições às importações do País.
  • 17. 16 Nessa direção, a Federação da Agricultura do Estado de São Paulo (FAESP) e o Governo do Estado de São Paulo, em parceria com órgãos e entidades públicos e privados, difundiram a cartilha “Procedimentos para Certificação Sanitária de Exportações”, elaborada com base no “Manual do Exportador de Produtos Agropecuários”, editado pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA). A cartilha paulista alerta aos empresários a imposição cada vez mais frequente das chamadas barreiras comerciais não-tarifárias: [...] é importante ressaltar que o atendimento às exigências do consumidor já não está mais relacionado somente à eficiência econômica e à redução de custos. A concorrência pelos mercados externos de produtos e serviços está cada vez mais relacionada a fatores extra-preço, como qualidade e inocuidade do produto, incluindo embalagem, classificação e o atendimento às especificações sanitárias/fitossanitárias (FAESP, 2001, p.7). Os governos de países da Comunidade Europeia editaram normativas como, por exemplo, o Regulamento (CE) n. 396, de 23 de fevereiro de 2005, relativo aos limites máximos de resíduos de pesticidas no interior e na superfície dos gêneros alimentícios e dos alimentos para animais, de origem vegetal ou animal, com o fito de proteger a saúde dos consumidores e dos animais daquele continente. Assim, para garantir as vendas externas de alimentos não-contaminados para a Europa, os exportadores brasileiros obrigam-se a cumprir integralmente essas regras, enquanto no mercado interno a contaminação é elevada. Da mesma Comunidade Europeia e dos Estados Unidos, as grandes corporações multinacionais da indústria química conduzem as vendas dos agrotóxicos em todos os continentes a partir de fábricas instaladas em países nos quais a legislação é menos severa ou há insuficiência do controle e da fiscalização fitossanitária. A exportação dos riscos é a migração das indústrias altamente poluentes dos países centrais para os periféricos, ou seja, países com maior reivindicação social geram maior nível de pressão legal sobre a indústria, fazendo com que o capital internacional migre para países com legislação menos restrita e, portanto, com controle menos custoso (ALBUQUERQUE, 2008, p. 106). Vislumbra-se, assim, a potencialização do descontrole da contaminação química com efeitos nocivos à saúde, à segurança alimentar, à segurança ocupacional e ao meio ambiente em diferentes partes do planeta, decorrente em grande parte do uso de agrotóxicos sem o devido monitoramento e rastreamento dos alimentos, controle das importações, combate ao contrabando, fiscalização da emissão de receituários agronômicos e da comercialização desses produtos químicos em desobediência às normas fixadas para os estabelecimentos agropecuários, descontrole sobre os métodos de aplicação de agrotóxicos no campo e, finalmente, ausência de proteção contra a contaminação do solo e dos recursos hídricos durante todo o ciclo produtivo. Não se trata simplesmente de um problema pós-
  • 18. 17 colheita de alimentos contaminados identificados nas gôndolas do comércio e nas feiras. O dano potencial incide desde as fases de preparo do solo, no plantio, durante o cultivo e depois no armazenamento. Todavia, os programas de monitoramento de hortifrutícolas com abrangência nacional ou estadual, como ocorre em Santa Catarina, somente verificam a presença de ingredientes ativos de agrotóxicos em alimentos quando estes já foram vendidos e consumidos pela população, caracterizando, assim, a ocorrência do dano e não a possibilidade de sua prevenção. A venda de produtos contaminados ao consumidor não é desconhecida das autoridades públicas brasileiras. Relatório das Atividades do Programa de Análise de Resíduos de Agrotóxicos (PARA), em 2010, comprova a presença de agrotóxicos acima do LMR ou de produtos não autorizados em 28% das 2.488 amostras analisadas. Inegavelmente impróprios para o consumo. Outros 35% das amostras apresentaram resíduos abaixo do LMR (ANVISA, 2010, p. 12). As amostras são coletadas pelas Vigilâncias Sanitárias Estaduais nos supermercados das capitais dos 26 Estados que aderiram ao monitoramento do PARA, exceto São Paulo. Do total de alimentos analisados, apenas 37% estavam livres de agrotóxicos. Em audiência pública na Comissão de Agricultura e Reforma Agrária (CRA) do Senado Federal, em julho de 2012, chegou-se à conclusão genérica de que “falhas na coordenação do trabalho de órgãos da agricultura, saúde e meio ambiente responsáveis pelo monitoramento do uso de agrotóxicos no país limitam muito a capacidade do governo de evitar que alimentos contaminados cheguem à mesa dos brasileiros” (SENADO, 2012). Essa coordenação, supramencionada, é tripartite no plano federal, com atribuições específicas divididas entre o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), o Ministério da Saúde (MS), por meio da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) e o Ministério do Meio Ambiente, por intermédio do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA). No plano estadual catarinense, a tripartição é seguida no âmbito das atribuições dos órgãos e entidades do Governo do Estado. Um dos principais temores revelados durante a audiência na Comissão de Agricultura e Reforma Agrária (CRA) partiu de Cleber Folgado, representante da Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos, para quem o “Brasil está se tornando a maior lixeira tóxica do mundo” (SENADO, 2012). Advertência fundada em fortes indícios, como se verá adiante. 5.1 PRECEITOS DA CONSTITUÇÃO DA REPÚBLICA DE 1988 O vocábulo agrotóxico é mencionado uma única vez na Constituição da
  • 19. 18 República Federativa do Brasil, promulgada em 5 de outubro de 1988, e somente para limitar, conforme disciplina do §4º do art. 220, a propaganda comercial desse produto químico, assim como a do tabaco, bebidas alcoólicas, medicamentos e terapias. Essa propaganda sujeita-se a restrições legais por meio de advertências sobre os malefícios decorrentes do uso desses produtos relacionados, de modo a facultar, também, os meios legais que garantam à pessoa e à família a possibilidade de se defenderem de programas ou programações de rádio e televisão que contrariem o disposto no art. 221 do Diploma Maior. Trata-se do respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família expostos na produção e na programação das emissoras de rádio e televisão (inciso IV), bem como na propaganda de produtos, práticas e serviços que possam ser nocivos à saúde e ao meio ambiente. Denota-se que o constituinte de 1988 revelou preocupação em não expor a sociedade ao bombardeio de mensagens publicitárias sobre as pretendidas vantagens dos agrotóxicos e de outros produtos potencialmente maléficos à saúde e ao meio ambiente. Paulo Affonso Leme Machado (2009, p. 598) não percebe descuido do constituinte face à inexistência de outras menções específicas ao termo agrotóxicos na Constituição de 1988. Segundo o renomado autor, o art. 24 “tornou inequívoca a competência dos Estados para legislar plenamente, quando a União não o fizer, ou suplementar as normas gerais federais existentes”, obrigando o Poder Público a fiscalizar e controlar os agrotóxicos. A teor do art. 225, §1o ., V. da CF, “a Constituição Federal não se omitiu no prever a obrigatoriedade para o Poder Público no controle dos agrotóxicos, tendo sido mais abrangente ao não mencionar expressamente o termo “agrotóxico”, mas “substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente” (MACHADO, 2009, p. 598). De acordo com Aloísio Barbosa Araújo (1979 apud VAZ, 2006, p. 37), já nos anos de 1970 a realidade da produção de alimentos indicava, na sua obra “O meio ambiente no Brasil – aspectos econômicos” (Rio de Janeiro: IPEA/INPES, 1979, p. 103-104), a necessidade de providências urgentes e de âmbito nacional: […] o Brasil vem utilizando maciçamente produtos químicos na agricultura. Esta tendência à substituição dos recursos 'naturais' por outros industrializados vem sendo combatida em diversas instâncias. De um lado, décadas de pesticidas, fungicidas e inseticidas têm feito elevar-se a presença de substâncias tóxicas nos organismos animais e níveis geralmente considerados perigosos, muitas vezes superiores aos estabelecidos como aceitáveis pela Organização Mundial de Saúde. Esta utilização, assim, pode ser responsável pelo surgimento de diversas doenças ambientais. De outro lado, alguns especialistas são céticos quanto à eficácia destes produtos, face às demais consequências do seu uso: redução do componente orgânico dos solos, excessiva salinidade, extinção da microflora e da microfauna natural etc. Em outras palavras, chega-se a temer pela própria produtividade dos
  • 20. 19 solos, depois de décadas de uso destes produtos químicos (ARAÚJO, 1979, apud VAZ, 2006, p. 37). À luz da lição de Paulo Affonso Leme Machado, a compreensão do posicionamento da Constituição da República frente aos potenciais riscos decorrente de agrotóxicos e de outros produtos químicos depende, em larga medida, da conjugação de princípios e preceitos gravados em diferentes dispositivos a Lei Maior desde o Preâmbulo: Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL (grifos nossos). A Carta de 1988 segue a linha de ampla proteção à vida ao insculpir, no Título I – Dos Princípios Fundamentais, o Estado Democrático de Direito como base da República Federativa do Brasil e fixar, como fundamentos, entre outros, a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, os quais devem se cristalizar como objetivos de toda a Nação. 5.1.1 Direitos à saúde, à alimentação e ao trabalho No campo dos Direitos e Garantias Fundamentais (Título II), os direitos à educação, à saúde, à alimentação, ao trabalho, à moradia, ao lazer, à segurança, à previdência social, à proteção à maternidade e à infância e à assistência aos desamparados, expressos no art. 6o ., compõem, ao lado do art. 7o . (direitos dos trabalhadores urbanos e rurais), “o mais amplo catálogo de direitos sociais da história do nosso constitucionalismo” (MENDES; BRANCO, 2012, p. 691). Podemos dizer que os ‘direitos sociais’, como dimensão dos direitos fundamentais do homem, são prestações positivas proporcionadas pelo Estado direta ou indiretamente, enunciadas em normas constitucionais, que possibilitam melhores condições de vida aos mais fracos; direitos que tendem a realizar a igualização de situações sociais desiguais. São, portanto, direitos que se ligam com o direito de igualdade. Valem como pressupostos do gozo dos direitos individuais, na medida em que criam condições materiais mais propícias ao auferimento da igualdade real – o que, por sua vez, proporciona condição mais compatível com o exercício efetivo da liberdade (AFONSO DA SILVA, 2010, p. 186-187). Sem adentrar no direito à educação, não obstante sua relação com o tema ora
  • 21. 20 exposto no presente trabalho, temos que a saúde é tanto um direito individual quanto coletivo (MENDES; BRANCO, 2012, p. 696), que tem por fundamento, além do art. 6º. já mencionado, o conjunto de dispositivos protetivos enunciado nos arts. 196 e 197 da Carta: Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação. Art. 197. São de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado. (grifos nossos) Causa espanto ao jurista José Afonso da Silva (2010, p. 188) “como um bem extraordinariamente relevante à vida humana só na Constituição de 1988 tenha sido elevado à condição de direito fundamental do homem”, pois, reforçando o sentido geral da escolha por viver em comunidade, o direito à vida de todos os seres humanos significa também que, nos casos de doença, cada um tem o direito a um tratamento condigno de acordo com o estado atual da Ciência Médica, independentemente de sua situação econômica, sob pena de não ter muito valor sua consignação em normas constitucionais (AFONSO DA SILVA, 2010, p. 188). Essa dimensão dos direitos sociais constitui, segundo Dinaura Godinho Pimentel Gomes (2005, p. 1), “o núcleo normativo do Estado Democrático de Direito, no sentido de se garantir a todos idênticas condições e oportunidades, ou seja, a igual dignidade para todas as pessoas”. Dignidade que é “o último arcabouço da guarida dos direitos individuais e o primeiro fundamento de todo o sistema constitucional” (NUNES, 2010, p. 62). Nos dizeres de Vicente Paulo e Marcelo Alexandrino (2012, p. 244), “os direitos sociais constituem as liberdades positivas, de observância obrigatória em um Estado Social de Direito, tendo por objetivo a melhoria das condições de vida dos hipossuficientes, visando à concretização da igualdade social”. Percebe-se, assim, que os direitos sociais integram o cerne da Constituição da República de 1988. Todavia, Pedro Lenza (2011, p. 975) assinala, de forma sucinta, aspecto de grande relevância para a compreensão da aplicação do direito à saúde: [...] a doutrina aponta a dupla vertente dos direitos sociais, especialmente no tocante à saúde, que ganha destaque, enquanto direito social, no texto de 1988: a) natureza negativa: o Estado ou terceiros devem abster-se de praticar atos de prejudiquem terceiros; b) natureza positiva: fomenta-se um Estado prestacionista para implementar o direito social (LENZA, 2011, p. 975, grifos do autor). Nesse contexto, os direitos à saúde e à alimentação prendem-se intrinsecamente
  • 22. 21 ao ápice do sentido que se dá, no Estado Democrático de Direito, ao princípio da dignidade humana, “um dos principais candidatos ao papel de maior de todos os princípios, aquele que está na essência de todas as coisas” (BARROSO, 2012, p. 111), sobre o qual o Estado não pode se omitir, embora a prática não corresponda, atualmente, aos ideais constitucionais. […] a dignidade da pessoa humana não é uma criação constitucional, pois ela é um desses conceitos a priori, um dado preexistente a toda experiência especulativa, tal como a própria pessoa humana. A Constituição, reconhecendo sua existência e sua eminência, transformou-a num valor supremo da ordem jurídica, quando a declara como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil constituída em Estado Democrático de Direito. Se é fundamento é porque se constitui num valor supremo, num valor fundante da República, da Federação, do País, da Democracia e do Direito. Portanto, não é apenas um princípio da ordem jurídica, mas o é também da ordem política, social, econômica e cultural. Daí sua natureza de valor supremo, porque está na base de toda a vida nacional (AFONSO DA SILVA, 2010, p 40). Ao lado da saúde, o reconhecimento constitucional da alimentação como direito fundamental social é recente. Se aquele foi incluído na promulgação da Constituição da República, em 1988, este veio a ser expresso no art. 6º. somente a partir de 4 de fevereiro de 2010, por intermédio da promulgação da Emenda Constitucional n. 64, a qual teve como fator catalizador o entendimento exposto por meio da Lei Federal n. 11.346, de 15 de setembro de 2006. Essa lei instituiu o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (SISAN). Em larga medida, advém do disposto no art. 3º. da Lei de Segurança Alimentar a influência da inclusão da alimentação entre os direitos sociais constitucionais: a segurança alimentar e nutricional consiste na realização do direito de todos ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais, tendo como base práticas alimentares promotoras de saúde que respeitem a diversidade cultural e que sejam ambiental, cultural, econômica e socialmente sustentáveis (art. 3º. da Lei Federal n. 11.346/2006, grifos nossos). “Daí se tira o conceito de direito humano à alimentação adequada”, diz José Afonso da Silva, 2010, p. 189), conforme preconiza o art. 2o . da Lei Federal n. 11.346/2006: “direito fundamental do ser humano, inerente à dignidade da pessoa humana e indispensável à realização dos direitos consagrados na Constituição Federal, devendo o poder público adotar as políticas e ações que se façam necessárias para promover e garantir a segurança alimentar e nutricional da população”. Por seu turno, o direito social ao trabalho, também insculpido no art. 6o . da Constituição da República, é “importante instrumento para implementar e assegurar a todos uma existência digna, conforme estabelece o art. 170, caput” (LENZA, 2011, p. 976, grifos
  • 23. 22 do autor). Esse direito social guarda correspondência parcial com o direito do trabalho. José Afonso da Silva elucida a respeito da diferença do trabalho como direito social: Aqui se tem o trabalho como um direito, a significar que o trabalho é um direito social – o que, em outras palavras, quer dizer: direito ao trabalho, direito de ter um trabalho, possibilidade de trabalhar. Conjuga-se – mas não se confunde – com a liberdade de trabalho, oficio e profissão, consignada no art. 5o., XIII, porque o direito ao trabalho envolve também a liberdade de escolher o trabalho que melhor se afine com a tendência de cada um (AFONSO DA SILVA, 2010, p. 189). No que concerne ao art. 170, antes mencionado, a Constituição da República estatui que a ordem econômica é fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, disposições relevadoras do “caráter compromissário da nossa Carta Política” (PAULO; ALEXANDRINO, 2012, p. 1.014), porque Em vez de assumir como um dado inelutável a consagrada cisão entre “capital e trabalho”, o histórico antagonismo entre “empresário e trabalhador”, o texto constitucional procura transmitir uma ideia de integração, de harmonia, de sorte que assegura a livre-iniciativa (portanto, a apropriação privada dos meios de produção, a liberdade de empresa), mas determina que o resultado dos empreendimentos privados deve ser a concretização da justiça social, o que exige, entre outras coisas, a valorização do trabalho humano. De todos os fatores de produção, portanto, o trabalho humano dever ser aquele colocado em primeiro lugar. O empreendedorismo é um valor consagrado, desde que valorize o trabalho humano e contribua para assegurar a todos uma existência digna (PAULO; ALEXANDRINO, 2012, p. 1.014). Finalmente, o art. 200 da Constituição de 1988 firma a competência do Sistema Único de Saúde (SUS) para executar as ações de vigilância sanitária e epidemiológica, bem como as de saúde do trabalhador (inciso II); fiscalizar e inspecionar alimentos, compreendido o controle de seu teor nutricional, bem como bebidas e águas para consumo humano (VI); e participar do controle e fiscalização da produção, transporte, guarda e utilização de substâncias e produtos psicoativos, tóxicos e radioativos (VII). 5.1.2 Soberania, função social da propriedade, defesa do consumidor e do meio ambiente O art. 170 da Constituição da República de 1988 define como princípios básicos da ordem econômica, entre outros, a soberania nacional (inciso I), a função social da propriedade (III), a defesa do consumidor (V) e a defesa do meio ambiente (VI). A se observar, no que diz respeito à soberania nacional adstrita à ordem econômica, “a noção de não subordinação, de independência perante os Estados estrangeiros economicamente mais fortes”, conforme sintetizam Vicente Paulo e Marcelo Alexandrino (2012, p. 1.015),
  • 24. 23 complementando: “A política econômica é assunto brasileiro, voltada para os interesses brasileiros, e deve ser elaborada sem interferência de pressões e interesses econômicos alienígenas” (grifo nosso). Nesse ponto, fundamental a lição de Afonso da Silva: [...] o constituinte de 1988 não rompeu com o sistema capitalista, mas quis que se formasse um Capitalismo nacional autônomo, isto é, não dependente. Com isso, a Constituição criou as condições jurídicas fundamentais para a adoção do desenvolvimento autocentrado, nacional e popular, que, não sendo sinônimo de isolamento ou autarquização econômica, possibilita marchar para um sistema econômico desenvolvido, em que a burguesia local e seu Estado tenham o domínio da reprodução da força de trabalho, da centralização do excedente da produção, do mercado, e a capacidade de competir no mercado mundial, dos recursos naturais e, enfim, da tecnologia (AFONSO DA SILVA, 2010, p. 725). A soberania brasileira não tem “aversão ao capital estrangeiro”, porque prevê “expressamente a atuação do capital externo em nossa economia, deixando à lei a tarefa de estabelecer o respectivo regramento” (PAULO; ALEXANDRINO, 2012, p. 1.016). Da perspectiva puramente constitucional, a teor do art. 186, a função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos: I – aproveitamento racional e adequado; II – utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; III – observância das disposições que regulam as relações de trabalho; e IV – exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores. Diante disso, assinala Luís Roberto Gomes, pode-se afirmar que função social da propriedade foi inserida no alicerce estrutural, no núcleo, no conceito mesmo, do instituto da propriedade, qualificando-o e modificando sua natureza, de forma que não possa mais ser compreendido no sentido puramente individual, dissociado dos bens jurídicos de ordem pública (GOMES, 2000, p. 3). Celso Antônio Bandeira de Mello interpreta os atributos do instituto da função social da propriedade, mencionados anteriormente, vinculando-os a objetivos de Justiça Social; vale dizer, comprometido com o projeto de uma sociedade mais igualitária ou menos desequilibrada – como é o caso do Brasil – no qual o acesso à propriedade e o uso dela sejam orientados no sentido de proporcionar ampliação de oportunidades a todos os cidadãos independentemente da utilização produtiva que porventura já esteja tendo (MELLO, 2011b, p. 4). Tão relevante quanto à saúde da população é a proteção do meio ambiente no qual vive o produtor, e dele extrai o sustento para si e para a sua família. Prescreve o art. 225, da Constituição, que todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à
  • 25. 24 coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. Direito que deve ter sua efetividade assegurada pelos órgãos e entidades do Estado, conforme dispõe o § 1º, inciso V, do art. 225, por meio do controle da produção, da comercialização e do emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente. Não bastassem os dispositivos constitucionais supramencionados, a Carta de 1988 enfaticamente impõe ao Estado a promoção da defesa do consumidor (art. 5º, inciso XXXII) e a eleva esse direito à condição de princípio da ordem econômica (art. 170, inciso IV), fundado na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, que têm por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social. Na lição de Luiz Guilherme Marinoni (2004, p. 13), “diante de um direito fundamental – no caso o direito fundamental do consumidor –, o Estado não pode se esquivar do seu dever de proteção”. Sancionada a Lei n. 8.078, de 11 de setembro de 1990, denominada de Código de Defesa do Consumidor (CDC), teve início de uma nova era nas relações de consumo no Brasil, assim projetada: A ideia central do texto constitucional, concretizada pelo Código, é que, nas relações de consumo, é presumida a existência de uma disparidade econômica entre as partes, de sorte que ao consumidor, que representa o lado mais fraco, hipossuficiente, deve ser assegurado um arcabouço jurídico que compense essa desigualdade fática. Assim, instituem-se medidas de proteção jurídica, como atribuição de responsabilidade objetiva ao fornecedor por danos ocasionados por seus produtos ao consumidor, inversão do ônus da prova em determinadas ações contra o fornecedor em que o consumidor seja parte etc. (PAULO; ALEXANDRINO, 2012, p. 157). Nesse sentido, de grande relevância para compreensão do CDC como principal marco nas relações de consumo no Brasil é a manifestação de Ada Pellegrini Grinover e Antônio Herman de Vasconcellos e Benjamin (GRINOVER et al., 2011, p. 5) quando abordam o modelo intervencionista estatal na defesa do consumidor: A “purificação” do mercado pode ser feita de dois modos básico. O primeiro é meramente “privado”, com os próprios consumidores e fornecedores autocompondo-se e encarregando-se de extirpar as práticas perniciosas. Seria o modelo de auto-regulamentação, das convenções coletivas de consumo e do boicote. Como já alertamos, tal regime não se tem mostrado capaz de suprir a vulnerabilidade do consumidor. O segundo modo é aquele que, não descartando o primeiro, funda-se em normas (aí se incluindo, no sistema de commom law, as decisões dos tribunais) imperativas de controle do relacionamento consumidor- fornecedor. É o modelo do intervencionismo estatal, que se manifesta particularmente em sociedades de capitalismo avançado, como os Estados Unidos e países europeus. Nenhum país do mundo protege seus consumidores apenas com o modelo privado (GRINOVER et al., 2011, p. 5).
  • 26. 25 Assim, o CDC converge seu foco primordial para a proteção da vida, à saúde e à segurança, pois, segundo José Geraldo Brito Filomeno (2011 apud GRINOVER et al., 2011, p. 153), “têm os consumidores e terceiros não envolvidos em dada relação de consumo incontestável direito de não serem expostos a perigos que atinjam sua incolumidade física, perigos tais representados por práticas condenáveis no fornecimento de produtos e serviços”. A proteção da incolumidade física tem por requisito básico a “devida informação sobre os riscos que produtos e serviços possam apresentar, de maneira clara e evidente, ou simplesmente não colocá-los no mercado, se tais riscos forem além do que normalmente se espera deles” (FILOMENO, 2011, apud GRINOVER et al., 2011, p. 153). 5.1.3 Existência digna e risco para a vida “A vida humana – como valor central do ordenamento jurídico e pressuposto existencial dos demais direitos fundamentais, além de base material do próprio conceito de dignidade humana – impõe medidas radicais para a sua proteção” (MENDES; BRANCO, 2012, p. 297). Portanto, o fim maior da ordem econômica não pode comportar qualquer risco à vida, tanto quanto deve assegurar uma existência digna sob os ditames da justiça social. A vida preservada e encarecida pelo constituinte há de ser toda a vida humana. [...] O direito à vida cola-se ao ser humano, desde que este surge e até o momento da sua morte. Trata-se de um direito que resulta da compreensão generalizada, que inspira os ordenamentos jurídicos atuais, de que todo ser humano deve ser tratado com igual respeito à sua dignidade, que se expressa, em primeiro lugar, pelo respeito à sua existência mesma ” (MENDES; BRANCO, 2012, p. 291). José Afonso da Silva (2010, p. 724) pondera, a respeito do art. 170 da Constitucional, que “assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social não será tarefa fácil em um sistema de base capitalista – e, pois, essencialmente individualista”. O mestre constitucionalista leciona: É que a justiça social só se realiza mediante equitativa distribuição da riqueza. Um regime de acumulação ou de concentração de renda nacional, que resulta da apropriação privada dos meios de produção, não propicia efetiva justiça social, porque nele sempre se manifesta grande diversidade da classe social, com amplas camadas da população carente ao lado da minoria afortunada. A História mostra que a injustiça é inerente ao modo de produção capitalista, mormente no Capitalismo periférico. Algumas providências constitucionais formam, agora, um conjunto de direitos sociais com mecanismos de concreção que, devidamente utilizados, podem tornar menos abstrata a promessa de justiça social. [...] A Constituição de 1988 é ainda mais incisiva no conceber a ordem econômica sujeita aos ditames da justiça social, para o fim de assegurar
  • 27. 26 a todos existência digna. Dá à justiça social um conteúdo preciso. Preordena alguns princípios da ordem econômica – a defesa do consumidor, a defesa do meio ambiente, a redução das desigualdades regionais e pessoais e busca do pleno emprego – que possibilitam a compreensão de que o Capitalismo concebido há de humanizar-se (se é que isso é possível) com a efetivação da justiça social (AFONSO DA SILVA, 2010, p. 724). Paulo Affonso Leme Machado (2009, p. 141) observa que o “risco para a vida, a qualidade de vida, a fauna e a flora – enfim, o risco para o meio ambiente – foi objeto de um posicionamento de vanguarda dos constituintes de 1988. O Poder Público precisa prevenir na origem os problemas de poluição e de degradação da Natureza”. Em se tratando de produtos químicos de alta toxicidade, como os agrotóxicos, pode-se dizer que a contaminação dos alimentos passou de uma possibilidade eventual, temida pelos constituintes e legisladores que se seguiram, para um fato concreto, comprovado e perene. 5.1.4 Princípio constitucional da hipervulnerabilidade O reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo, prevista no art. 4o ., I, da Lei Federal n. 8.078, de 11 de setembro de 1990 (Código de Defesa do Consumidor), é um dos princípios da Política Nacional das Relações de Consumo, porque a Constituição da República de 1988 “procurou proteger algumas pessoas por sua natural vulnerabilidade”, como os consumidores e os trabalhadores rurais e urbanos. “No entanto, certas pessoas podem ser consideradas hipervulneráveis, necessitando de proteção maior do que os consumidores standard. São elas as pessoas portadoras de deficiência, os idosos, as crianças e os adolescentes” (NISHIYAMA, 2010, p. 229, grifo do autor). A hipervulnerabilidade das crianças e adolescentes vem expressa no art. 227, caput, da Constituição, fortalecida pela Lei Federal n. 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente), como segue: Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão (grifos nossos). A família, a sociedade e o Estado devem cuidar prioritariamente das crianças e adolescentes, mas, no que diz respeito aos agrotóxicos nos alimentos, como os dois primeiros grupos podem agir se todo controle, fiscalização e, por consequência, informações atinentes aos produtos químicos estão nas mãos do Estado? É conhecida no meio científico a gravidade
  • 28. 27 dos agrotóxicos para a saúde dos seres em formação, sejam humanos ou animais. Rachel Carson, falecida em 1964, alertava na obra Primavera Silenciosa (1962), considerada precursora do alerta mundial sobre os agrotóxicos: A situação relativa às crianças é ainda mais profundamente inquietante. Um quarto de século atrás, o câncer infantil era considerado uma raridade médica. Hoje em dia, mais crianças em idade escolar morrem de câncer do que de qualquer outra doença nos Estados Unidos. A situação se tornou tão grave que a cidade de Boston fundou o primeiro hospital nos Estados Unidos dedicado exclusivamente ao tratamento de crianças com câncer. Doze por cento de todas as mortes de crianças entre as idades de um e catorze anos são causadas pelo câncer (CARSON, 2011, p. 189). Na mesma direção, Grisolia (2005, p. 53) explica que, “por causa da maior facilidade de absorção, os agrotóxicos, como qualquer outra substância tóxica, atingem mais rapidamente os diferentes comportamentos corpóreos das crianças”. A contaminação pode estar ocorrendo mesmo antes do parto. “A presença de diferentes tipos de agrotóxicos no leite materno, especialmente os derivados de compostos clorados, pode atuar negativamente num período crítico do desenvolvimento do sistema neurológico da criança sob amamentação, causando prejuízos irreversíveis. O Conselho Nacional de Pesquisa dos EUA acredita que somente o controle rigoroso de resíduos de agrotóxicos nos alimentos infantis não seja suficiente para a devida proteção das crianças, as quais já começaram a se contaminar no útero materno” (GRISOLIA, 2005, p. 54). Rachel Carson (2011, p. 29) advertiu com fundada convicção: “Pela primeira vez na história do mundo, agora todo ser humano está sujeito ao contato com substâncias químicas perigosas, desde o instante em que é concebido até sua morte”. 5.1.5 Princípios constitucionais da prevenção e da precaução É inequívoca a hegemonia dos princípios constitucionais de Direito Público e de Direito Administrativo sobre tudo que se relaciona aos agrotóxicos. “Tais princípios são de observância obrigatória pelos agentes públicos, independentemente de texto de lei que os acolha expressamente” (MUKAI, 2012, p. 51). Entre os princípios de Direito Público predominam o da primazia do interesse público, da legalidade administrativa, da igualdade dos cidadãos, da liberdade do cidadão e da proporcionalidade dos meios aos fins. No que concerne aos princípios de Direito Administrativo, prevalecem o da indisponibilidade do interesse público, da especialidade administrativa, do poder-dever do administrador público, da finalidade administrativa, da impessoalidade, da moralidade pública e da publicidade (MUKAI, 2012, p. 52-53). Essas relações não exaurem as matérias.
  • 29. 28 José Rubens Morato Leite e Patryck de Araújo Ayala (2012, p. 52) consideram “estruturantes do Estado de Direito Ambiental”, inegavelmente de natureza pública, os princípios da prevenção e da precaução, que alguns doutrinadores tratam como sinônimos e os unem num só preceito enquanto outros os separam. A diferenciação seguida por parte da doutrina está expressa no seguinte entendimento: “Comparando-se o princípio da precaução com o da atuação preventiva, observa-se que o segundo exige que os perigos comprovados sejam eliminados. Já o princípio da precaução determina que a ação para eliminar possíveis impactos danosos ao ambiente seja tomada antes de um nexo causal ter sido estabelecido com evidência científica absoluta” (LEITE; AYALA, 2012, p. 52). O art. 15 da Declaração do Rio de 1992 (Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento) é referenciado como fundamento do princípio da precaução. Igualmente o art. 225, § 1o ., IV, da Constituição de 1988, serve de alicerce para o princípio da precaução na medida em que exige estudo prévio de impacto ambiental para instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente. Segundo Morato Leite e Ayala (2012, p. 54), o princípio da prevenção está estampado no art. 225, § 1o ., V, da Constituição, que trata de controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente, e também fundamenta-se no art. 54, § 3o ., da Lei 9.605/1998 (Lei dos Crimes Ambientais), “que penaliza criminalmente quem deixar de adotar medidas precaucionais exigidas pelo Poder Público”. 5.1.6 Princípio constitucional do poluidor-pagador O princípio do poluidor-pagador guarda correlação com os princípios do usuário- pagador e do predador-pagador. No que tange ao primeiro, Cristiane Derani (1997 apud MACHADO, 2009, p. 68) explica: “O custo a ser imputado ao poluidor não está exclusivamente vinculado à imediata reparação do dano. O verdadeiro custo está numa atuação preventiva”. Paulo Affonso Leme Machado (2009, p. 68) complementa: O pagamento efetuado pelo poluidor ou pelo predador não lhes confere qualquer direito a poluir. O investimento efetuado para prevenir o dano ou o pagamento do tributo, da tarifa ou do preço público não isentam o poluidor ou predador de ter examinada e aferida sua responsabilidade residual para reparar o dano. Segundo lição da jurista Maria Alexandra de Souza Aragão (1997 apud MACHADO, 2009, p. 68), “o poluidor-que-deve-pagar é aquele que tem o poder de controle
  • 30. 29 (inclusive poder tecnológico e econômico) sobre as condições que levam à ocorrência da poluição, podendo, portanto, preveni-las ou tomar precauções para evitar que ocorram”. 5.1.7 Sociedade de risco e irresponsabilidade organizada “Aquilo que um dia foi motivo de esperança é hoje sinônimo de inquietação”. Em arriscada síntese, o comentário anterior de José Rubens Morato Leite e Germana Parente Neiva Belchior (in LEITE, 2012), extraído de obra redigida conjuntamente por estudiosos do direito ambiental, conduz ao cerne da Teoria da Sociedade de Risco, desenvolvida pelo sociólogo alemão Ulrich Beck no final da segunda metade do século passado. A abordagem a seguir, limitada e superficial, tem o sentido de conectar, mesmo que parcialmente, alguns aspectos dos recentes debates doutrinários relacionados ao intrincado enredo tecnológico da contaminação da população mundial e do meio ambiente por meio de produtos químicos de elevada toxicidade, hoje espalhados irremediavelmente por todos os continentes. Édis Milaré (2009, p. 140, apud LEITE, 2012, p. 15) aborda com propriedade: Os avanços proporcionados pela ciência e pela técnica não significam necessariamente uma elevação do progresso e do bem-estar, como se pensou a partir da Idade Moderna, na linha de uma espécie de “otimismo técnico”. [...] a racionalidade técnica deixa de ser encarada como um instrumento neutro para a promoção de objetivos da humanidade, sendo indiscutível a sua potencialidade para se converter em mecanismo de opressão do homem sobre a natureza. Segundo Leite e Belchior (in LEITE, 2012, p. 16), “Beck aponta a existência de duas modalidades de risco: o concreto ou potencial, que é visível e previsível pelo conhecimento humano; e o abstrato, que tem como característica a invisibilidade e a imprevisibilidade pela racionalidade humana”. Aplicadas aos agrotóxicos, essas modalidades são facilmente percebidas. De um lado, o conhecimento científico emprega sua força para demonstrar o papel relevante e útil dos agrotóxicos na prosperidade da lavoura e na eliminação das ditas pragas, estipulando limites, fundados em pesquisas, sobre o quanto o ser humano, os animais e o meio ambiente podem absorver e suportar de produto químico sem perecer. De outro lado, sob o viés da invisibilidade, os ingredientes químicos alojam-se nas plantas, nos seus frutos, no ar, na terra, na água, nos animais e no próprio homem, indistintamente, em muitos casos por meio do consumo de alimentos tidos como sadios. No âmbito do Direito Ambiental, tem-se que o risco concreto ou potencial é controlado pelo princípio da prevenção, enquanto o abstrato encontra-se amparado no princípio da precaução, ao investigar a probabilidade de o risco existir por meio da verossimilhança e de evidências, mesmo não detendo o ser
  • 31. 30 humano a capacidade perfeita de compreender este fenômeno (LEITE; BELCHIOR, in LEITE, 2012, p. 16). Como desfecho dessa cena assustadora, Leite e Belchior complementam: Para agravar ainda mais o clima de incertezas a que se está imerso, o desenvolvimento econômico abafa as consequências negativas do seu progresso, isto é, há uma invisibilidade dos riscos ecológicos, decorrente do fato de que o Estado e os setores privados interessados usam meios e instrumentos para ocultar as origens e os efeitos do risco ecológico, com o objetivo de diminuir suas consequências, ou melhor, com o fim de transmitir para a sociedade uma falsa ideia de que o risco ecológico está controlado. É o que Beck (1995) apontou como irresponsabilidade organizada. Para o sociólogo alemão, apesar da consciência da existência de riscos, estes são ocultados pelo Poder Público e pelo setor privado. Assim, a irresponsabilidade organizada acaba transformando o Estado em faz de conta, em Estado-fantoche, que só dá publicidade aos fatos científicos de acordo com seus interesses (LEITE; BELCHIOR, in LEITE, 2012, p. 16). Heline Sivini Ferreira (2010, p. 21) traça com igual precisão um dos elementos da sociedade de risco teorizada por Ulrich Beck quando refere-se à falência dos padrões de segurança: “A fragilidade dos sistemas de segurança e a inconsistência dos mecanismos de controle tradicionalmente adotados pela sociedade industrial convertem-se em características fundamentais da sociedade de risco que, posteriormente, vão desdobrar-se no conceito de irresponsabilidade organizada”. Um dos exemplos nacionais que melhor caracteriza a noção de irresponsabilidade organizada, citada por Heline Sivini Ferreira, refere-se à flexibilização de normas de segurança e dos mecanismos de fiscalização vigentes: Neste sentido, cumpre mencionar que, no ano em que o Congresso Nacional iniciou as discussões sobre a necessidade de se estabelecer um novo marco regulamentar para a biossegurança dos OGMs [sigla para Organismos Geneticamente Modificados, matéria que se encontrava regulada pela Lei n. 8.974/1995], um debate iniciado pelo Poder Executivo, os tribunais examinavam a inconstitucionalidade de se autorizar a comercialização da soja geneticamente modificada Roundup-Ready (RR) sem a realização do estudo prévio de impacto ambiental (EPIA). Assinala-se que a realização do EPIA é obrigatória para todas as atividades potencialmente causadoras de significativa degradação do meio ambiente, conforme determina a Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB). Antes mesmo que a Lei n. 11.105/2005 entrasse em vigor prescindindo formalmente de um instrumento indispensável à gestão dos riscos ambientais na modernidade avançada, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva autorizou, por meio da Medida Provisória n. 113, de 26 de março de 2003, a comercialização de toda a safra de soja produzida naquele ano, o que incluía organismos transgênicos introduzidos ilegalmente no País. Ao assim estabelecer, acrescenta-se, o Governo Federal contrariou decisão judicial válida e eficaz que condicionava a liberação comercial da soja RR à prévia realização do estudo de impacto ambiental (FERREIRA, 2010, p. 44). 5.1.8 Repartição constitucional de competências
  • 32. 31 Os artigos 23 e 24 da Constituição de 1988 fixam as modalidades de repartição das competências comuns e concorrentes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. Toshio Mukai (2012, p. 18) acrescenta, ainda, a competência privativa desses entes federativos, fundada juridicamente no poder de polícia do Estado. Trata-se do “[...] poder de impor restrições e limitações às propriedades, empreendimentos, atividades e liberdades dos administrados, em benefício da coletividade”, em suma, constitui-se como principal sustentáculo da “atuação legislativa e administrativa do Estado na proteção e preservação do meio ambiente” (MUKAI, 2012, p. 18). O art. 23 da Constituição da República fixa as competências comuns da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. Guardam conexão mais direta com os agrotóxicos os incisos II (cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência); IV (proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas); VII (preservar as florestas, a fauna e a flora); e VIII (fomentar a produção agropecuária e organizar o abastecimento alimentar). Com amparo na competência concorrente (art. 24), a União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios podem legislar sobre produção e consumo (inciso V); florestas, caça, pesca, fauna, conservação da natureza, defesa do solo e dos recursos naturais, proteção do meio ambiente e controle da poluição (VI); responsabilidade por dano ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico (VIII); e, previdência social, proteção e defesa da saúde (XII). Isto é, mediante a obediência dos critérios enunciados nos §§ 1o . a 4o . do art. 24. Segundo Alexandre de Moraes (2010, p. 301), “pelo princípio da predominância do interesse, à União caberá aquelas matérias e questões de predominância do interesse geral, ao passo que aos Estados referem-se as matérias de predominante interesse regional e aos municípios concernem os assuntos de interesse local”. Todavia, essa competência do ente federal restringe-se à edição de normas gerais, cabendo àqueles outros entes federativos suplementá-las. A respeito dessa repartição, Paulo de Bessa Antunes (2001, p. 347) leciona: A competência legislativa em matéria de agrotóxicos, seus componentes e afins é aquela definida na Constituição da República Federativa do Brasil e na própria Lei n. 7.802/89. Paralelamente à competência administrativa existe, como se sabe, a competência legislativa da qual cada um dos integrantes da Federação possui uma parcela definida. Em sede legal, o art. 9º da Lei n. 7.802/89 determinou que a União, no exercício de sua competência adotasse as seguintes medidas:
  • 33. 32 a) legislar sobre produção, registro, comércio interestadual, exportação, importação, transporte, classificação e controle tecnológico e toxicológico; b) controlar e fiscalizar os estabelecimentos de produção, importação e exportação; c) analisar os produtos agrotóxicos, seus componentes e afins, nacionais e importados; e d) controlar e fiscalizar a produção, a exportação e importação. Em conformidade com os artigos 23 e 24 da Constituição da República Federativa do Brasil, compete aos Estado e ao Distrito Federal legislar sobre o uso, a produção, o consumo, o comércio e o armazenamento dos agrotóxicos, seus componentes e afins, bem como fiscalizar o uso, o consumo, o comércio, o armazenamento e o transporte interno. Aos Municípios cabe, supletivamente, legislar sobre o uso e o armazenamento dos agrotóxicos, seus componentes e afins (ANTUNES, 2001, p. 347). Julgados do Supremo Tribunal Federal (STF) apontam entendimento de que os entes estaduais, no âmbito de suas competências constitucionais, são aptos para legislar e zelar pela integridade da saúde e do meio ambiente, podendo exigir o registro de agrotóxicos em órgãos estaduais. Rodrigo Cunha Amorim et al. (2010, p. 12) cita, como referência, o seguinte julgado do STF relatado pela Ministra Ellen Gracie: RECURSO EXTRAORDINÁRIO. COMPETÊNCIA ESTADUAL E DA UNIÃO. PROTEÇÃO À SAÚDE E AO MEIO AMBIENTE. LEI ESTADUAL DE CADASTRO DE AGROTÓXICOS, BIOCIDAS E PRODUTOS SANEANTES DOMISSANITÁRIOS. LEI Nº 7.747/2-RS. RP 1135. 1. A matéria do presente recurso já foi objeto de análise por esta Corte no julgamento da RP 1.135, quando, sob a égide da Carta pretérita, se examinou se a Lei 7.747/82-RS invadiu competência da União. Neste julgamento, o Plenário definiu o conceito de normas gerais a cargo da União e aparou as normas desta lei que superavam os limites da alçada estadual. 2. As conclusões ali assentadas permanecem válidas em face da Carta atual, porque as regras remanescentes não usurparam a competência federal. A Constituição em vigor, longe de revogar a lei ora impugnada, reforçou a participação dos estados na fiscalização do uso de produtos lesivos à saúde. 3. A lei em comento foi editada no exercício da competência supletiva conferida no parágrafo único do artigo 8º da CF/69 para os Estados legislarem sobre a proteção à saúde. Atribuição que permanece dividida entre Estados, Distrito Federal e a União (art. 24, XII da CF/88). 4. Os produtos em tela, além de potencialmente prejudiciais à saúde humana, podem causar lesão ao meio ambiente. O Estado do Rio Grande do Sul, portanto, ao fiscalizar a sua comercialização, também desempenha competência outorgada nos artigos 23, VI e 24, VI da Constituição atual. 5. Recurso extraordinário conhecido e improvido. (STF, RE 286789/RS Rel. Min. Ellen Gracie, j. 08/03/05, Segunda Turma). De acordo com a repartição das competências legislativa e administrativa estabelecidas na Constituição de 1988, em matéria de agrotóxicos, seus componentes e afins, caberá à União legislar sobre a produção, o registro, o comércio interestadual, a exportação, a importação, o transporte, a classificação, e o controle tecnológico e toxicológico; aos Estados e ao Distrito Federal caberá elaborar a legislação sobre o uso, a produção, o consumo, o
  • 34. 33 comércio e o armazenamento; e, por fim, aos Municípios caberá legislar sobre o uso e armazenamento em caráter supletivo (AMORIM et al., 2010, p. 9). A competência administrativa é dividida em competência administrativa exclusiva (englobando poderes enumerados e poderes reservados) e competência administrativa comum (art. 23 da Constituição da República). Nesta última, compete à União, ao Estado, ao Distrito Federal e aos Municípios proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas. 5.2 LEIS FEDERAIS E DE SANTA CATARINA SOBRE AGROTÓXICOS 5.2.1 Lei Federal n. 7.802/1989 – Lei Federal dos Agrotóxicos A Lei Federal n. 7.802/1989 estipula no art. 2o ., incisos I e II, o conceito legal de agrotóxicos, seus componentes e afins, não dando margem, em princípio, à interpretação ou à utilização de nomenclaturas diversas sempre que se tratar de menção do Poder Público a respeito do tema. Assim, quer se queira ou não, tanto para o Poder Público como para a iniciativa privada, agrotóxicos são, a teor do inciso I, alínea ‘a’ do citado artigo: os produtos e os agentes de processos físicos, químicos ou biológicos, destinados ao uso nos setores de produção, no armazenamento e beneficiamento de produtos agrícolas, nas pastagens, na proteção de florestas, nativas ou implantadas, e de outros ecossistemas e também de ambientes urbanos, hídricos e industriais, cuja finalidade seja alterar a composição da flora ou da fauna, a fim de preservá-las da ação danosa de seres vivos considerados nocivos (art. 2o ., I, a, da Lei Federal n. 7.802/1989); Por afins entendem-se as substâncias e produtos, empregados como desfolhantes, dessecantes, estimuladores e inibidores de crescimento, conforme dispõe o art. 2o ., I, b, da mencionada lei. O fato de serem classificados como “afins” não os tornam menos tóxicos, ao contrário, possuem o mesmo impacto ambiental ou até superior, caso, por exemplo, dos desfolhantes usados matar florestas e aplicado sem qualquer escrúpulo contra populações de países adversários em guerras. O alarme se tornou mais crucial ainda quando a toxicologia reconheceu no ‘Agente Laranja’, usado no Vietnã como desfolhante de guerra, as propriedades cancerígenas de uma dioxina, contaminante obrigatória do 2,4,5 Triclorofenoxiacetato, um dos componentes do ‘Agente Laranja’, o qual foi o responsável por um dos maiores impactos químicos de que se tem notícia já ocorridos no Brasil, ocasionando a mortandade de mais de um milhão e duzentos mil peixes no Rio Miranda (MS). A mistura do 2,4D, que é um herbicida utilizado no combate às ervas de folha larga, em associação com o 2,4,5-T, que é um arbusticida, era conhecido como ‘Agente Laranja’ pelo fato de que este herbicida era fornecido em tambores de cor laranja (SANTOS, 2001, p. 43).
  • 35. 34 São considerados componentes (art. 2o ., II, da Lei Federal n. 7.802/1989) os princípios ativos, os produtos técnicos, suas matérias-primas, os ingredientes inertes e aditivos usados na fabricação de agrotóxicos e afins. “Existem, no País, ao redor de mil princípios ativos de agrotóxicos comercializados em mais de 8 mil formulações” (LUCCHESE, 2005, p. 5). O que isso significa na prática? As formulações de agrotóxicos são constituídas de princípios ativos, que é o termo usado para descrever os compostos responsáveis pela atividade biológica desejada. O mesmo princípio ativo pode ser vendido sob diferentes formulações e diversos nomes comerciais, e também podemos encontrar produtos com mais de um princípio ativo. Dos cerca de 115 elementos químicos conhecidos atualmente, 11 podem estar presentes nas formulações dos agrotóxicos, dentre eles: bromo (Br), carbono (C), cloro (Cl), enxofre (S), fósforo (P), hidrogênio (H), nitrogênio (N) e oxigênio (O), e são os mais frequentemente encontrados, conferindo características específicas aos agrotóxicos (BRAIBANTE; ZAPPE, 2012, p. 13). Dependendo do debate, a pronúncia do vocábulo agrotóxico costuma evidenciar divergências, até mesmo de fundo ideológico, entre aqueles que a tratam por meio de palavras diferenciadas como se fossem sinônimas: uma delas é defensivo, aceita pelo Novo Dicionário Aurélio (FERREIRA, 2004) como significado de agrotóxico. Defensivo acompanhado do adjetivo agrícola compõe expressão comumente usada nos documentos do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) e, via de regra, são as mais difundidas pela Associação Nacional de Defesa Vegetal (ANDEF), organização privada que congrega as 15 maiores indústrias químicas em atividade no País, as quais controlam as vendas nacionais e respondem por “83% do mercado mundial do setor” (ANVISA, 2012). Já o vocábulo pesticida, segundo o Novo Dicionário Aurélio, significa substância que combate a praga e tem origem do inglês pesticide. A Organização das Nações Unidas (ONU) e suas entidades vinculadas, como a FAO (Organização da ONU para a Alimentação e a Agricultura), adotam pesticide em toda as suas normas e documentos correlatos. Essa expressão, pelo significado de “substância utilizada para a destruição de insetos ou outros organismos nocivos para as plantas cultivadas ou para animais” (substance used for destroying insects or other organisms harmful to cultivated plants or to animals, conforme Oxford American Writer's Thesaurus, tradução livre), é convergente com a visão da indústria química. Além disso, outros preferem o termo agroquímico ou produto químico de uso agrícola. Por força do ordenamento jurídico e convicção na escolha do legislador, no presente estudo adota-se quase sempre a palavra agrotóxico, reforçada pela compreensão do elevado risco de contaminação e letalidade a que estão expostos o homem e o meio ambiente.
  • 36. 35 A Lei Federal n. 7.802/1989 dispõe sobre a pesquisa, a experimentação, a produção, a embalagem e rotulagem, o transporte, o armazenamento, a comercialização, a propaganda comercial, a utilização, a importação, a exportação, o destino final dos resíduos e embalagens, o registro, a classificação, o controle, a inspeção e a fiscalização de agrotóxicos, seus componentes e afins. Para cada um desses temas são definidas regras especificas contidas neste e noutros diplomas legais, como também nos regulamentos correlatos. Sob a disciplina dessa norma, regulamentada pelo Decreto Federal n. 4.074, de 4 de janeiro de 2002, ao Estado cabe investir os órgãos públicos das atribuições legais para o exercício do poder de polícia administrativa em cada etapa dos tópicos mencionados na norma geral. Em resumo, não se produz agrotóxico sem pesquisa e experimentação, e essas devem seguir as normas próprias que lhes cabem. Do mesmo modo, o destino final das embalagens é consequência do comércio, resultando numa cadeia de responsabilidades. Para o presente estudo, importa verificar que a Constituição da República determina ao Poder Público, conforme art. 225, § 1º, inciso V, controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente. Controlar é a etapa inaugural. Segundo Niklas Luhmann (1985 apud FRANÇA, 2010, p. 28), “por controle deve-se entender o exame crítico de processos decisórios, objetivando uma intervenção transformadora no caso do processo decisório em seu desenrolar (seu resultado ou suas consequências) não corresponder às considerações do controle”. Na lição do famoso administrativista Hely Lopes Meirelles, Controle administrativo é todo aquele que o Executivo e os órgãos de administração dos demais Poderes exercem sobre suas próprias atividades, visando a mantê-las dentro da lei, segundo as necessidades do serviço e as exigências técnicas e econômicas de sua realização, pelo quê é um controle de legalidade e de mérito. Sob ambos esses aspectos pode e deve operar-se o controle administrativo para que a atividade pública em geral se realize com legitimidade e eficiência, atingindo sua finalidade plena, que é a satisfação das necessidades coletivas e o atendimento dos direitos individuais dos administrados (MEIRELLES, p. 664). Inserido no contexto do controle, a Lei Federal dos Agrotóxicos proíbe o registro de produtos químicos, a teor do §6º do art. 3º., nos seguintes termos: a) para os quais o Brasil não disponha de métodos para desativação de seus componentes, de modo a impedir que os seus resíduos remanescentes provoquem riscos ao meio ambiente e à saúde pública; b) para os quais não haja antídoto ou tratamento eficaz no Brasil; c) que revelem características teratogênicas, carcinogênicas ou mutagênicas, de acordo com os resultados atualizados de experiências da comunidade científica;
  • 37. 36 d) que provoquem distúrbios hormonais, danos ao aparelho reprodutor, de acordo com procedimentos e experiências atualizadas na comunidade científica; e) que se revelem mais perigosos para o homem do que os testes de laboratório, com animais, tenham podido demonstrar, segundo critérios técnico-científicos atualizados; e f) cujas características causem danos ao meio ambiente. Concernente à competência sobre agrotóxicos, é de se alinhar as disposições da Lei Federal n. 7.802/1989 aos preceitos superiores da Lei Maior quanto à divisão das competências administrativas e legislativas entre os entes federados. Por força do art. 9o . da lei infraconstitucional, a União adotará como providências legislar sobre a produção, registro, comércio interestadual, exportação, importação, transporte, classificação e controle tecnológico e toxicológico; controlar e fiscalizar os estabelecimentos de produção, importação e exportação; analisar os produtos agrotóxicos, seus componentes e afins, nacionais e importados; e controlar e fiscalizar a produção, a exportação e a importação. O art. 10 da Lei Federal n. 7.802/1989 determina aos Estados e ao Distrito Federal, nos termos dos arts. 23 e 24 da Constituição Federal, legislar sobre o uso, a produção, o consumo, o comércio e o armazenamento dos agrotóxicos, seus componentes e afins, bem como fiscalizar o uso, o consumo, o comércio, o armazenamento e o transporte interno. Ao Município cabe legislar supletivamente (art. 11) sobre o uso e o armazenamento dos agrotóxicos, seus componentes e afins. De se destacar, ainda, a importância do art. 13 referente à obrigação legal do receituário agronômico – “metodologia utilizada para diagnóstico do problema fitossanitário” (VAZ, 2006, p. 82) –, que deve ser emitido por profissional habilitado como requisito para comercialização e aplicação do produto no campo. O tema é controverso sob diversos aspectos. “A inobservância dos preceitos técnicos concebidos na Lei n. 7.802/89 e no Decreto n. 4074/02 revela-se flagrante: é prática comum a emissão do receituário sem a visita prévia à propriedade rural, a receita assinada em branco, a emissão de um número excessivo de receitas por um único profissional”, aponta Paulo Afonso Brum Vaz (2006, p. 82), acertando com exatidão uma das causas da contaminação: É do conhecimento geral que uma pessoa pode adquirir uma receita e comprar qualquer tipo de agrotóxico, mesmo os mais letais, sem a mínima dificuldade, em face do despreparo dos profissionais e da inoperância, tanto dos CREAs, como das autoridades sanitárias e ambientais. Assim, o receituário, concebido para reduzir os problemas nas áreas de saúde pública e de meio ambiente, em decorrência do uso indiscriminado de agrotóxicos, não logrou atingir estes objetivos (VAZ, 2006, p. 82). O descumprimento das exigências estabelecidas na legislação é tratado dos arts.
  • 38. 37 15 ao 17 da Lei Federal n. 7.802/1989, primeiro para alertar sobre eventual sujeição à pena de reclusão, de dois a quatro anos, além de multa (art. 15), depois para exigir do empregador, do profissional responsável ou do prestador de serviço a promoção de medidas necessárias de proteção à saúde e ao meio ambiente (art. 16), sujeitando o infrator a distintas penalidades e multas, conforme o caso. Prossegue, enfim, para definir as sanções administrativas, sem prejuízo das responsabilidades civil e penal cabíveis, iniciando-se com sanção de advertência; multa de até 1000 (mil) vezes o Maior Valor de Referência – MVR; condenação de produto; inutilização de produto; suspensão de autorização, registro ou licença; cancelamento de autorização, registro ou licença; interdição temporária ou definitiva de estabelecimento; destruição de vegetais, partes de vegetais e alimentos, com resíduos acima do permitido; e destruição de vegetais, partes de vegetais e alimentos, nos quais tenha havido aplicação de agrotóxicos de uso não autorizado, a critério do órgão competente (art. 17). Do ponto de vista do cenário ideal desenhado no plano político-legislativo, a Lei Federal n. 7.802/1989 “orienta a utilização correta do agrotóxico pelo seu usuário final de modo a respeitar o consumidor e meio ambiente (externo e ocupacional), sendo o referido texto legal bastante explicativo e que, de fato, deve ser observado pelas empresas produtoras de agrotóxicos para que se alcance o seu caráter preventivo” (AMORIM et al, 2010, p. 9). Tem-se, ainda, o art. 19, que prescreve ser obrigação do Poder Executivo desenvolver ações de instrução, divulgação e esclarecimento que estimulem o uso seguro e eficaz dos agrotóxicos, seus componentes e afins, com o objetivo de reduzir os efeitos prejudiciais para os seres humanos e o meio ambiente e de prevenir acidentes de sua utilização imprópria. 5.2.2 Lei Federal n. 8.078/1990 – Código de Defesa do Consumidor Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final, conceito ao qual equipara-se a coletividade de pessoas, ainda que indetermináveis, que haja intervindo nas relações de consumo, disciplina o art. 2o . da Lei Federal n. 8.078, de 11 de setembro de 1990 – o Código de Defesa do Consumidor (CDC). Na outra ponta da relação, a teor do art. 3o ., fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividade de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços. Com seu texto didático, o art. 4o . do CDC estabelece que a Política Nacional das
  • 39. 38 Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, proteção de seus interesses econômicos e melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios: I – reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo; II – ação governamental no sentido de proteger efetivamente o consumidor: a) por iniciativa direta; b) por incentivos à criação e desenvolvimento de associações representativas; c) pela presença do Estado no mercado de consumo; d) pela garantia dos produtos e serviços com padrões adequados de qualidade, segurança, durabilidade e desempenho. III – harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo e compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica (art. 170, da Constituição Federal), sempre com base na boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores; IV – educação e informação de fornecedores e consumidores, quanto aos seus direitos e deveres, com vistas à melhoria do mercado de consumo; V – incentivo à criação pelos fornecedores de meios eficientes de controle de qualidade e segurança de produtos e serviços, assim como de mecanismos alternativos de solução de conflitos de consumo; VI – coibição e repressão eficientes de todos os abusos praticados no mercado de consumo, inclusive a concorrência desleal e utilização indevida de inventos e criações industriais das marcas e nomes comerciais e signos distintivos, que possam causar prejuízos aos consumidores [...] (art. 4o ., incisos I a VI, da Lei Federal n. 8.078/1990). A compreensão do modelo intervencionista estatal nas relações consumeristas fundamenta-se particularmente no art. 6o . do CDC ao definir os direitos básicos consumidor: I – a proteção da vida, saúde e segurança contra os riscos provocados por práticas no fornecimento de produtos e serviços considerados perigosos ou nocivos; II – a educação e divulgação sobre o consumo adequado dos produtos e serviços, asseguradas a liberdade de escolha e a igualdade nas contratações; III – a informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços, com especificação correta de quantidade, características, composição, qualidade e preço, bem como sobre os riscos que apresentem [...] VI – a efetiva prevenção e reparação de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos e difusos [...] (art. 6o ., incisos I a III e VI, da Lei Federal n. 8.078/1990) A disciplina legal impõe uma barreira jurídica contra a violação dos direitos e diretrizes anteriormente expostos. Do art. 8o . ao 10 do CDC estão firmados os principais compromissos que devem ser seguidos tenazmente pelos fornecedores: Art. 8° Os produtos e serviços colocados no mercado de consumo não acarretarão riscos à saúde ou segurança dos consumidores, exceto os
  • 40. 39 considerados normais e previsíveis em decorrência de sua natureza e fruição, obrigando-se os fornecedores, em qualquer hipótese, a dar as informações necessárias e adequadas a seu respeito. Parágrafo único. Em se tratando de produto industrial, ao fabricante cabe prestar as informações a que se refere este artigo, através de impressos apropriados que devam acompanhar o produto. Art. 9° O fornecedor de produtos e serviços potencialmente nocivos ou perigosos à saúde ou segurança deverá informar, de maneira ostensiva e adequada, a respeito da sua nocividade ou periculosidade, sem prejuízo da adoção de outras medidas cabíveis em cada caso concreto. Art. 10. O fornecedor não poderá colocar no mercado de consumo produto ou serviço que sabe ou deveria saber apresentar alto grau de nocividade ou periculosidade à saúde ou segurança. § 1° O fornecedor de produtos e serviços que, posteriormente à sua introdução no mercado de consumo, tiver conhecimento da periculosidade que apresentem, deverá comunicar o fato imediatamente às autoridades competentes e aos consumidores, mediante anúncios publicitários. § 2° Os anúncios publicitários a que se refere o parágrafo anterior serão veiculados na imprensa, rádio e televisão, às expensas do fornecedor do produto ou serviço. § 3° Sempre que tiverem conhecimento de periculosidade de produtos ou serviços à saúde ou segurança dos consumidores, a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios deverão informá-los a respeito (arts. 8o ao 10, da Lei n. 8.078/1990). Segundo Luiz Guilherme Marinoni (2004, p. 1), É possível dizer, em um primeiro passo, que as regras de proteção ao consumidor têm como preocupação a segurança do consumidor, impondo proibições ou condutas positivas, como por exemplo a proibição da venda de produtos com alto grau de nocividade ou periculosidade (art. 10 do CDC) ou o dever de informar de forma ostensiva (art. 9o . do CDC). Essas regras, destinadas a proteger o consumidor contra os produtos e os serviços nocivos e perigosos, têm natureza preventiva, pois proíbem ou impõem condutas para evitar danos (MARINONI, 2004, p. 1). Não é preciso muito esforço para entender a preocupação do CDC em salvaguardar, prioritariamente, a saúde do consumidor e o seu direito a ter conhecimento prévio dos riscos a que pode estar sujeito por meio de informações completas indicadas nos produtos ou serviços que lhes são oferecidos. Com fundamento no art. 12, o fabricante, o produtor, o construtor, nacional ou estrangeiro, e o importador respondem, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos decorrentes de projeto, fabricação, construção, montagem, fórmulas, manipulação, apresentação ou acondicionamento de seus produtos, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua utilização e riscos. O CDC determina que a responsabilidade do fornecedor é solidária (art. 18), pelos vícios de qualidade ou quantidade dos produtos de consumo duráveis ou não duráveis que os tornem impróprios ou inadequados ao consumo a que se destinam ou lhes diminuam o valor,
  • 41. 40 assim como por aqueles decorrentes da disparidade, com a indicações constantes do recipiente, da embalagem, rotulagem ou mensagem publicitária, respeitadas as variações decorrentes de sua natureza, podendo o consumidor exigir a substituição das partes viciadas. De plano, o CDC considera impróprios ao uso e consumo (art. 18, § 6°.): I – os produtos cujos prazos de validade estejam vencidos; II – os produtos deteriorados, alterados, adulterados, avariados, falsificados, corrompidos, fraudados, nocivos à vida ou à saúde, perigosos ou, ainda, aqueles em desacordo com as normas regulamentares de fabricação, distribuição ou apresentação (grifo nosso); III – os produtos que, por qualquer motivo, se revelem inadequados ao fim a que se destinam. Assinala Luiz Guilherme Marinoni (2004, p. 6), No caso em que, após a colocação do produto ou serviço no mercado, evidenciar-se, em razão de desenvolvimento da tecnologia, que o bem não poderia ter sido introduzido no consumo, o fornecedor deverá, quando o risco for intolerável, chamar os consumidores para a eliminação do defeito ou ainda, se for o caso – ou seja, se a eliminação do defeito for impossível ou não aconselhável diante da possibilidade de não atendimento integral de parte dos consumidores –, ser obrigado a retirar o produto do mercado, indenizando os consumidores. A previsão de simples informação dos consumidores deve ser admitida apenas nos casos em que o avanço tecnológico descobriu riscos que devem ser considerados normais e previsíveis, ou mesmo que o produto ou o serviço é potencialmente nocivo ou perigoso, e assim não pode prescindir de informação adequada e ostensiva (grifo nosso). Ainda de acordo com a lição de MARINONI (2004, p. 12) Na verdade, se a Administração Pública reconhecer a alta periculosidade ou a alta nocividade de um produto, e ainda assim permitir a sua venda, sem que esse perigo ou nocividade seja legitimado por estar tutelando outro bem digno de proteção, o ato da Administração Pública carece de fundamentação, e assim não precisa ser acatado pelo juiz, que então fica com a possibilidade de proibir a venda do produto. Isso por uma razão simples: o dever de proteção é incumbência do Estado, e, portanto, também do juiz, que não pode ficar em uma posição de assistente dos desvios e das omissões da Administração. Quando essa reconhecer a alta nocividade do produto, é completamente irracional a autorização do seu consumo sem que a proteção de outro bem possa justificá-la, certamente de acordo com os valores que importam à sociedade. Conceito instituído pelo CDC (art. 29) equipara ao consumidor todas as pessoas determináveis ou não, expostas às práticas nele previstas. Essa regra quase não vigorou no CDC face ao lobby empresarial contrário à matéria, recorda José Geraldo Brito Filomeno (2011, apud GRINOVER et al., 2011, p. 271), para quem, com o citado dispositivo, “o consumidor é, então, não apenas aquele que ‘adquire ou utiliza produto ou serviço’ (art. 2o .), mas igualmente as pessoas “expostas às práticas” previstas no Código (art. 29)”. Filomeno
  • 42. 41 toca, ainda, em ponto fundamental para que a proteção à saúde por parte do Poder Público de fato se proceda prévia e adequadamente: [...] no conceito do art. 29, basta a mera exposição da pessoa às práticas comerciais ou contratuais para que se esteja diante de um consumidor a merecer a cobertura do Código. Tal conceito é importante, notadamente para fins de controle preventivo e abstrato dessas práticas. O implementador – aí se incluindo o juiz e o Ministério Público – não deve esperar o exaurimento da relação de consumo para, só então, atuar. Exatamente porque estamos diante de atividades que trazem enorme potencial danoso, de caráter coletivo e difuso, é mais econômico e justo evitar que o gravame venha a se materializar (FILOMENO, 2011, apud GRINOVER et al., 2011, p. 272). Finalmente, de grande relevância para as relações consumeristas é a aplicação do regramento contido no art. 31 do CDC, posto que o direito à informação tem previsão constitucional fundada no respeito à dignidade da pessoa humana e na igualdade: Art. 31. A oferta e apresentação de produtos ou serviços devem assegurar informações corretas, claras, precisas, ostensivas e em língua portuguesa sobre suas características, qualidades, quantidade, composição, preço, garantia, prazos de validade e origem, entre outros dados, bem como sobre os riscos que apresentam à saúde e segurança dos consumidores (Lei Federal n. 8.078/1990, grifos nossos). Novamente a lição de Filomeno, um dos autores do CDC, torna clara a visão do legislador infraconstitucional. Para a proteção efetiva do consumidor não é suficiente o mero controle da enganosidade e abusividade da informação. Faz-se necessário que o fornecedor cumpra seu dever de informação positiva. Toda a reforma do sistema jurídico nessa matéria, em especial no que se refere à publicidade, relaciona-se com o reconhecimento de que o consumidor tem o direito a uma informação completa e exata sobre os produtos e serviços que deseja adquirir. O dispositivo tem, na sua origem, o princípio da transparência, previsto expressamente pelo CDC (art. 4o ., caput). Por outro lado, é decorrência também do princípio da boa-fé objetiva, que parece em ambiente onde falte a informação plena do consumidor (FILOMENO, 2011, apud GRINOVER et al., 2011, p. 289). 5.2.3 Lei Federal n. 8.080/1990 – Lei do SUS A Lei Federal n. 8.080, de 19 de setembro de 1990 – Lei do SUS, dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes. Importa destacar, a teor do art. 3o ., que a saúde, como direito fundamental do ser humano, tem como fatores determinantes e condicionantes, entre outros, a alimentação, a moradia, o saneamento básico, o meio ambiente, o trabalho, a renda, a educação, o transporte, o lazer e o acesso aos bens e serviços essenciais (grifos nossos).