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1  sur  3
O PAPAGAIO
BEM ENSINADO
Era um papagaio muito bem ensinado. Tinha poiso à
porta de uma mercearia. De uma vez que o merceeiro
estava lá para dentro, um freguês, por pirraça, ensinou o
papagaio a dizer:
– Está tudo podre.
E o papagaio, de aí em diante, não disse outra coisa. O
anúncio, lançado aos quatro ventos, afastava a clientela.
Mal chegava alguém ao balcão da mercearia, o papagaio
avisava:
– Está tudo podre.
Ficava furioso o merceeiro:
– Este papagaio leva-me à ruína – dizia o merceeiro. –
Tenho de dá-lo.
E assim fez. Deu-o a um barbeiro.
1
Por sinal que o tal malandrote, que convencera o
papagaio a dizer "Está tudo podre", também frequentava a
barbearia. À sucapa, ensinou-o a dizer:
– Corta-lhe a orelha.
O papagaio passou a repetir. Por tudo e por nada, assim
que o cliente se sentava na cadeira, o papagaio pedia:
– Corta-lhe a orelha.
Isto enervava o barbeiro e enervada o barbeado.
– Tenho de ver-me livre deste animal – disse o barbeiro.
E atirou-o pela janela. Mas o papagaio, que não
estava habituado à liberdade, voltou a poisar no parapeito.
Isto uma, duas, três vezes, até que o barbeiro, já exaspera-
do com a teima do passaroco, foi buscar uma caçadeira e
deu uns tiros para o ar, só para afugentá-lo, enquanto
gritava:
– Rua! Rua!
O papagaio esvoaçou, a princípio atarantado, mas
depressa ganhou altura e voou feliz. Passado muito tempo,
foi ter a um armazém em ruínas. Cansado da viagem,
acolheu-se a um recanto protegido e adormeceu.
Ora o armazém era frequentado, à noite, por duas
quadrilhas de contrabandistas e ladrões, que aí faziam as
suas trocas e baldrocas.
Estavam os membros das duas quadrilhas a descarregar
e a carregar fardos, quando o papagaio, acordado com o
barulho, soltou o aviso, ainda trazido do sonho e das suas
recordações:
– Está tudo podre.
– Quem é que disse que está tudo podre? – perguntou o
chefe de um dos bandos.
2
Nisto, ouviu-se uma voz a gritar:
– Corta-lhe a orelha.
Pior ainda. Armou-se uma zaragata entre os dois grupos,
em que ninguém ficou de fora.
Então, o papagaio assustado lembrou-se dos tiros da
caçadeira com que o último dono o afugentara. Deu-lhe
para reproduzi-los, enquanto imitava também a voz do
barbeiro:
– Rua! Rua!
Os bandidos, assim que ouviram os disparos, saltaram de
medo, supondo que era a polícia. Fugiram todos, rua fora,
largando tudo.
O papagaio bem ensinado acertara, ao menos uma vez,
no que dizia.
FIM
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03.02 o papagaio bem ensinado

  • 1. O PAPAGAIO BEM ENSINADO Era um papagaio muito bem ensinado. Tinha poiso à porta de uma mercearia. De uma vez que o merceeiro estava lá para dentro, um freguês, por pirraça, ensinou o papagaio a dizer: – Está tudo podre. E o papagaio, de aí em diante, não disse outra coisa. O anúncio, lançado aos quatro ventos, afastava a clientela. Mal chegava alguém ao balcão da mercearia, o papagaio avisava: – Está tudo podre. Ficava furioso o merceeiro: – Este papagaio leva-me à ruína – dizia o merceeiro. – Tenho de dá-lo. E assim fez. Deu-o a um barbeiro. 1
  • 2. Por sinal que o tal malandrote, que convencera o papagaio a dizer "Está tudo podre", também frequentava a barbearia. À sucapa, ensinou-o a dizer: – Corta-lhe a orelha. O papagaio passou a repetir. Por tudo e por nada, assim que o cliente se sentava na cadeira, o papagaio pedia: – Corta-lhe a orelha. Isto enervava o barbeiro e enervada o barbeado. – Tenho de ver-me livre deste animal – disse o barbeiro. E atirou-o pela janela. Mas o papagaio, que não estava habituado à liberdade, voltou a poisar no parapeito. Isto uma, duas, três vezes, até que o barbeiro, já exaspera- do com a teima do passaroco, foi buscar uma caçadeira e deu uns tiros para o ar, só para afugentá-lo, enquanto gritava: – Rua! Rua! O papagaio esvoaçou, a princípio atarantado, mas depressa ganhou altura e voou feliz. Passado muito tempo, foi ter a um armazém em ruínas. Cansado da viagem, acolheu-se a um recanto protegido e adormeceu. Ora o armazém era frequentado, à noite, por duas quadrilhas de contrabandistas e ladrões, que aí faziam as suas trocas e baldrocas. Estavam os membros das duas quadrilhas a descarregar e a carregar fardos, quando o papagaio, acordado com o barulho, soltou o aviso, ainda trazido do sonho e das suas recordações: – Está tudo podre. – Quem é que disse que está tudo podre? – perguntou o chefe de um dos bandos. 2
  • 3. Nisto, ouviu-se uma voz a gritar: – Corta-lhe a orelha. Pior ainda. Armou-se uma zaragata entre os dois grupos, em que ninguém ficou de fora. Então, o papagaio assustado lembrou-se dos tiros da caçadeira com que o último dono o afugentara. Deu-lhe para reproduzi-los, enquanto imitava também a voz do barbeiro: – Rua! Rua! Os bandidos, assim que ouviram os disparos, saltaram de medo, supondo que era a polícia. Fugiram todos, rua fora, largando tudo. O papagaio bem ensinado acertara, ao menos uma vez, no que dizia. FIM 3