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Anais do IX Encontro Nacional de História Oral - 22 a 25/04/2008 - UNISINOS


               JOVENS MULHERES QUILOMBOLAS: IDENTIDADES E
                                    TRAJETÓRIAS
                                                                Priscila da Cunha Bastos ∗


Resumo
A heterogeneidade das condições de vida e trabalho dos jovens que moram no campo
configura formas de viver diferenciadas, constituindo experiências e identidades
coletivas distintas. Esse trabalho busca compreender as dimensões da vida dos jovens
rurais hoje frente à intensificação dos intercâmbios materiais e simbólicos entre cidade e
campo e a especificidade desse processo nas trajetórias de vida de jovens mulheres
quilombolas. Para tanto, torna-se necessário evidenciar como as jovens estabelecem
relações entre a cultura de origem e o mundo globalizado, assim como identificar quais
alternativas elas encontram nesse diferentes espaços no processo de definição de suas
trajetórias pessoais.
Palavras-chave: juventude rural, jovens mulheres quilombolas, identidades

Abstract
The heterogeneity of life and work conditions the young people who live in the
countryside translates into different lifestyles, which constitute distinct experiences and
collective identities. This dissertation intends enravel the dimentions of the lives of
young people from rural areas before the instensification of material and symbolic
exchange between the city and the countryside nowadays, and the especificity of this
process in the lives of young quilombola women. It is then necessary to trace how these
women undertand the relations between their own culture and that of the globalized
world, and to identify which alternatives they can find in these different spaces in the
process used to trail their personal life paths.
Word keys: young people rural, young quilombola women, identities

       INTRODUÇÃO


       Os jovens que vivem no meio rural se constituem como sujeitos numa teia cada
vez mais complexa de relações sociais que ultrapassa o universo doméstico/familiar.
São jovens que moram no seu lugar de origem, mas trabalham, estudam, fazem compras
e se divertem na cidade, e aqueles que permanecem no campo, não necessariamente,
estão na atividade agrícola.
       Ao longo dos últimos anos vem se estabelecendo consenso social mínimo –
especialmente quando se trata das identidades juvenis urbanas – sobre a impossibilidade
de “falar” do jovem como um tipo único; estudos e pesquisas, políticas públicas e até
mesmo a propaganda evidenciam as diferentes maneiras de viver a juventude. Se por
um lado se percebe este tratamento que reconhece a multiplicidade de vida dos jovens
urbanos, por outro, ainda pode-se encontrar determinada fixação da noção da existência
Anais do IX Encontro Nacional de História Oral - 22 a 25/04/2008 - UNISINOS


de um “jovem rural”, principalmente quando se trata de políticas públicas voltadas para
os jovens que vivem no campo.
       A história da comunidade quilombola de São José da Serra i tem início por volta
de 1850 com a chegada de seus antepassados nas terras que hoje ocupam. Localizado no
município de Valença/ RJ, o quilombo São José da Serra é formado por cerca de 200
moradores. Os/As jovens, entre 15 e 29 anos, constituem cerca de 20% da população
residente no quilombo, destes, a maior parte concluiu o Ensino Médio.
       O quilombo São José vem se tornando referência no Estado pela divulgação de
sua manifestação cultural mais característica: o Jongo – também conhecido como
tambú, tambor e caxambu. Identificado recentemente como um patrimônio imaterial
pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) ii , o Jongo –
manifestação cultural das comunidades afro-brasileiras do Sudeste do país – tem levado
a comunidade para a cena social urbana – especialmente pelas apresentações em palcos
tradicionais do Rio de Janeiro e aparições na televisão – proporcionando o
reconhecimento e até o apoio de suas lutas históricas – como o direito à terra – por parte
do poder público.
       Jongo é uma expressão cultural que tem origem com a vinda dos negros da
nação Banto, trazidos da região africana do Congo-Angola para o trabalho escravo nas
fazendas do Vale do Paraíba, no sudeste do Brasil. Como manifestação cultural que
revela as relações entre os escravos nos espaços em que podiam se sociabilizar, a
maioria das vezes nas senzalas, o jongo é encontrado no Vale do Paraíba, na Zona da
Mata Mineira, no Norte Fluminense, no Litoral Sul Capixaba e no Litoral Norte
Paulista. É uma dança em que casais se revezam no centro da roda girando em sentido
anti-horário fazendo menção aos passos de umbigada (simulando um abraço) marcados
pelos ritmos dos tambores e pelos versos cantados iii .
       O leque de representações que caracteriza o Jongo inclui uma atitude religiosa
que, como forma de louvação aos antepassados, guarda traços bastante comuns com a
prática das religiões afro-brasileiras. Consolidando tradições e afirmando identidades, o
Jongo representa elemento fundamental para a comunidade em termos de integração e
preservação de sua memória. Nesse sentido, as comunidades jongueiras têm
desenvolvido alternativas para a preservação de seus saberes e expressões culturais,
como no caso da entrada de jovens e crianças na roda. Se antes só os mais velhos
podiam participar da celebração, hoje a entrada de jovens evidencia a busca por se



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garantir que o fio da memória não se perderá e estabelece o espaço de reprodução e
renovação da cultura jongueira.




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JUVENTUDE RURAL


          As pesquisas sobre jovens evidenciam que existem diferentes maneiras de viver
a juventude. O “ser jovem” varia de acordo com a classe, o gênero, a raça, o local de
moradia etc., pois esses recortes sociais interferem nas possibilidades de inserção social
dos sujeitos. A juventude, enquanto um conceito construído historicamente, muda no
tempo, no espaço e de sociedade para sociedade, não podendo, dessa forma, serem
estabelecidos limites etários fixos para demarcar esse período, visto que “jovens da
mesma idade vão sempre viver juventudes diferentes” (NOVAES, 2003:122).
          O esforço de definição de juventude como categoria analítica, ora focando a
faixa etária, ora elementos físicos e comportamentais, passando pelas construções que
associam o jovem a problemas sociais (delinqüência) ou ao futuro como agente de
transformação social, privilegiou o estudo de jovens urbanos. A forma de olhar o rural
pelo urbano muito presente na produção teórica da década de 60 hoje já se apresenta
sobre novos vieses, mas ainda permanece quando nos aproximamos do rural a partir dos
jovens.
          Para CASTRO (2005), a categoria juventude pode ser tratada como uma
categoria social uma vez que a partir dela evidenciam-se relações de hierarquia na
sociedade, isto quer dizer que ser jovem coloca o sujeito numa posição de
subalternidade. Para a pesquisadora, tal relação de poder atravessa tanto o espaço rural
como o urbano, mas isso não significa que questões específicas não existam. Por
exemplo, quando nos referimos a juventude rural, a questão da terra ganha importância,
o que não se coloca para a juventude urbana. Assim como a questão da mobilidade
espacial. Para os jovens que vivem nos grandes centros, poder circular pela cidade é um
direito a ser conquistado, já para os jovens de áreas rurais, determina-se uma posição de
imobilidade.
          Em se tratando da “juventude rural” a imagem transmitida é de um jovem
desinteressado por sua cultura de origem e fascinado pelas facilidades da vida nas cidades.
Entra em cena mais uma vez a construção de um rural atrasado e de um urbano
modernizado que atrai principalmente a juventude. Os estudos nesta área, ainda que mais
recentes, tendem a relacionar os jovens aos problemas da reprodução do rural, em especial
do trabalho familiar, representados pela migração rural/urbano e pelas modificações nos
padrões de herança e sucessão da pequena propriedade familiar (WIESHEIMER, 2005).




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       Parte-se do pressuposto que a heterogeneidade das condições de vida e trabalho
dos jovens que moram no campo configura formas de viver diferenciadas, constituindo
experiências e identidades coletivas distintas. As diferenças nos processos de
socialização dos jovens rurais são marcadas, na maior parte, por condições de gênero e
pelos recursos materiais e simbólicos que lhes são disponíveis. No caso estudado, a
condição racial, o fato de ser uma comunidade negra remanescente de quilombo
também interfere neste processo. Os jovens e as jovens negociam com as expectativas
dos pais em relação ao seu futuro e com os recursos que herdam das gerações anteriores,
construindo nesse diálogo geracional suas trajetórias de vida. As incertezas quanto ao
próprio futuro se fazem presentes quando confrontam as diversas alternativas de vida
que se apresentam com a precariedade da sua inserção no mundo do trabalho.
       Segundo CARNEIRO (2005), o paradoxo que move a questão social no meio
rural hoje está na dificuldade dos pais de manterem seus filhos como agricultores e, ao
mesmo tempo, no desejo dos mesmos de verem seus filhos saírem do campo para
buscarem aquilo que chamam de “vida melhor”. Em sua tese CASTRO (2005) define
isto como dualidade entre ficar e sair. Quando se trata de uma comunidade de tradições
afro-descendentes, como no caso do Quilombo São José, outro elemento de tensão se
coloca: a preservação das tradições comunitárias e do jongo em especial.
       Questão que tem se tornado central nos estudos sobre juventude rural é relativa à
saída dos jovens do campo para as cidades. Por mais que fisicamente seja difícil de
demarcar as fronteiras entre esses dois espaços, há uma notável diferença quanto ao
acesso a bens e serviços, o que contribui para desvalorização do rural e por
conseqüência de seus habitantes. O ficar e o sair deve ser analisado considerando estas
dimensões que interferem não apenas nas possibilidades objetivas de se fazer sujeito,
mas profundamente nas condições subjetivas, nos desejos, na auto-estima daqueles que
vivem em áreas rurais. O interessante a ser observado é o fato de que a saídas dos
jovens não representa apenas uma decisão individual, há uma rede de relações e
simbolismos que está em jogo.
       A dualidade sair, que significa basicamente uma busca por uma vida melhor,
acesso a serviços, comércio, escola, lazer e trabalho, ou ficar, que seria dar continuidade
aos costumes e a relação com a terra, também está presente na comunidade estudada.
Entender esta dualidade significar dar espaço aos diferentes modos de ficar ou sair que
se configuram pelas trajetórias dos jovens. Para além de uma análise que se concentra
na mobilidade espacial como um problema (migração), os próprios jovens vêm


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construindo novas significações que se referem a esquemas de circulação entre o campo
e a cidade. O sair sabendo que pode voltar caracteriza um desses movimentos e gera
uma mobilidade espacial circular em que nada é visto como definitivo. Esse ir e vir
muitas vezes pautados pelos espaços de circulação permitidos, como a escola e o
trabalho, está muito presente na vida das jovens do quilombo.
       ALASTUEY (1994), ao tratar do espaço e a mobilidade espacial como
inseparáveis contribui para uma compreensão diferenciada dos deslocamentos humanos.
O espaço como lugar da experiência humana é relacional, isto é, constituído por formas
e possibilidades de interrelações. O autor considera que o ser humano se constitui
enquanto tal na íntima relação que mantém com o entorno, a mobilidade espacial, então,
seria uma condição ontológica.


                       La vida, por tanto, requiere movimientos y, así se muestra, desde um primer
                       momento, que la estabilidad asociada al espacio es tan sólo uma realidad
                       excepcional de este (...). El espacio como relación, primero, es inconcebible
                       estáticamente y, segundo, es inconcebible formalmente (p.08)


       Nesse sentido, utilizar o termo migração limita o campo de análise deste
trabalho, uma vez que a mobilidade de um grupo ou de algum de seus integrantes
reconfigura a sociabilidade de todo o grupo e não só de alguns. “El grupo es um
continuo fluir de presencias y ausências” (ALASTUEY, 1994:80).




JOVEM MULHER QUILOMBOLA
                                                                       Deixa a moreninha passear,
                                                                                o terreiro é grande
                                                                       Deixa a moreninha passear iv


       A complexidade do real tem gerado novos processos de identificação que
constituem identidades singulares, como a de jovem mulher quilombola. Os diferentes
pertencimentos dos sujeitos trazem a necessidade de entendermos a identidade como um
jogo relacional em que aparecem ao mesmo tempo a diversidade e as relações de poder
e a produção de desigualdades. Neste sentido, pesquisar as trajetórias de jovens
mulheres quilombolas permite o reconhecimento do tipo de espaço relacional que essa
identidade constitui e pelo qual é constituída.
       Vale ressaltar que nos processos históricos que formaram a sociedade brasileira,
observa-se um esforço em produzir um padrão ideal do “ser mulher” submissa e


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excluída, um processo social que prepara as jovens para uma posição de desvantagem
frente às expectativas educativas e profissionais, entre outras, tendo como referencial
importante o trabalho doméstico (WHITAKER, 2002). Neste sentido, ser jovem rural
mulher negra representa uma situação de subalternidade ainda maior.
          Hoje, os padrões ideais do que é ser mulher estão se transformando
especialmente pela ampliação do acesso à educação escolarizada, por pressões
especialmente dos movimentos sociais feministas e do mercado de trabalho. Interferem
também no processo de socialização das jovens quilombolas o aprofundamento das
relações campo-cidade que cria novos espaços socioculturais de intercâmbios materiais
e simbólicos.
          No quilombo São José, as jovens têm um elevado nível de escolarização em se
tratando de uma comunidade rural e negra e em relação aos meninos da mesma idade. A
maior parte já concluiu o Ensino Médio ou está em fase de conclusão. Esta é uma
realidade contrastante com o que as pesquisas mostram sobre escolarização no meio
rural. A maior parte dos jovens estuda até a 4º série do ensino fundamental, pois, como
acontece no Quilombo, é a escola que chega mais perto do campo. A partir daí, dar
continuidade aos estudos torna-se um grande desafio. As escolas distanciam-se do local
de moradia desses jovens e na maior parte não há transporte que possibilite este
deslocamento. O trajeto muitas vezes é feito a pé.
          A valorização dos estudos por parte dos pais está presente também nas
expectativas que alimentam quanto ao futuro de seus filhos e filhas. Ainda assim, as
jovens que vivem no campo continuam vivenciando um intenso controle social
principalmente quanto a possibilidade de circulação em diferentes espaços que não o
escolar.
          O desejo de dar continuidade aos estudos, de ter opções de lazer, de buscar uma
vida melhor através de um trabalho remunerado associa-se às questões relacionadas à
lógica de reprodução familiar, às relações de hierarquia, à herança e configuram um
conjunto de fatores que contribuem para a movimentação dos jovens do campo para a
cidade.
          As diferentes formas em que o território rural se constitui na sociedade brasileira
tem relação com a história da agricultura no país, marcada profundamente pela
escravidão e pela dominação política, social e econômica dos grandes proprietários.
Neste sentido, os jovens que vivem no campo levantam questões que desafiam a
estrutura da sociedade brasileira. Pensar nas idas e vindas desses jovens significa pensar


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na estrutura fundiária do país, na distribuição desigual dos serviços públicos, entre
outros.
          Muitas jovens do quilombo São José, por exemplo, saem de sua comunidade
para trabalhar, principalmente como doméstica nos centros urbanos mais próximos
como Volta Redonda e Rio de Janeiro. Contudo, esse deslocamento não significa
necessariamente ruptura com a comunidade de origem, mas ampliação do campo de
possibilidades de se fazer sujeito. Hoje, a saída das jovens mães tem provocado a
reorganização das relações familiares. Muitas jovens que casaram na comunidade foram
morar na casa dos pais do marido, seguindo toda uma lógica de controle e defesa da
honra do marido. Com a saída para trabalhar fora do quilombo, os filhos vão morara
com a avó materna, saem da casa do pai. Isto pode significar também uma estratégia
para ultrapassar uma possível autonomia regulada, uma vez que a renda da mãe com o
trabalho fora de casa perde o controle do marido já que os filhos estão na casa da avó,
local onde parte do salário da mãe passa a ser empregado.
          O fato das meninas irem trabalhar na cidade na maior parte das vezes como
domésticas pode ter muitos sentidos. O primeiro estaria vinculado à questão racial. A
inserção da mulher negra no mercado de trabalho urbano se dá pelas portas dos fundos.
A segunda hipótese vincula-se às redes de proteção e controle. As jovens que vão
trabalhar fora organizam suas saídas dentro do quilombo, geralmente em contato com
aquelas que já estão morando fora.
          No Quilombo São José, a questão da herança também ganha recortes de gênero.
Em se tratando da herança da terra, da herança da luta pela terra e da herança espiritual
ligada às manifestações religiosas e ao jongo, há uma diferença entre homens e
mulheres. Como a terra ainda encontra-se em processo de disputa, é o seu valor
simbólico e não produtivo que ganha força. A herança da luta pela titularização é de
todos, mas a sucessão da liderança política é masculina. Às jovens a herança espiritual.
Este processo segue uma lógica de produção dos herdeiros na qual “(...) o provável
herdeiro diferencia-se dos demais filhos, tanto em termos de prestígio na família, quanto
em relação às cobranças e expectativas dos pais (...)” (CASTRO, 2006: 262).
          Esse processo de preparação das herdeiras da tradição religiosa e cultural
desencadeia conflitos entre as expectativas individuais e coletivas, entre o que ser quer e
o que se deve fazer, mais do que no caso dos meninos. Ser herdeira da tradição acarreta
um peso maior, significa abrir mão de muitos espaços e tempos que não fazem parte do
terreiro.


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TRADIÇÃO E IDENTIDADE

       Em São José, a maior aproximação entre campo e cidade foi muito propiciada
pelos estudos, mas especialmente nas festas que os moradores organizam para os “de
fora” e pelas saídas do quilombo que o Jongo proporciona, pois nestes casos eles são
vistos como portadores de uma tradição que é valorizada pelo outro, e assim também
eles o são. Tais aspectos trazem novas perspectivas que influenciam e modificam a
relação dos jovens com a comunidade. Nesse percurso, algumas identidades são
evidenciadas de acordo com o contexto e a relação que nele se estabelece.


                        Dentro dessa ambigüidade está em curso a construção de uma nova
                        identidade. Cultuam laços que os prendem ainda à cultura de origem e, ao
                        mesmo tempo, vêem sua auto-imagem refletidas no espelho da cultura
                        “urbana”, “moderna”, que lhes surge como uma referência para a construção
                        de seus projetos para o futuro, geralmente orientados pelo desejo de inserção
                        no mundo moderno. Essa inserção, no entanto, não implica a negação da
                        cultura de origem, mas supõe uma convivência que resulta na ambigüidade
                        de quererem ser, ao mesmo tempo, diferentes e iguais aos da cidade e aos da
                        localidade de origem. (CARNEIRO, 2005) v .



       O contato com o diferente abre caminhos para aquisição de novos valores e
amplia o campo de escolhas dos jovens de São José. Nas festas, a comunidade recebe
pessoas de todas as localidades do Rio de Janeiro e também de São Paulo. Além de ser
fonte de renda para o quilombo a festa também representa um grande espaço de
sociabilidade e de divulgação da cultura jongueira. A expectativa de muitos visitantes
de terem contato com um quilombo e o Jongo cria um embate de expectativas
diferenciadas principalmente com os jovens da comunidade. Os visitantes vão em busca
da “autenticidade”, do “verdadeiro jongo” , mas os jovens do quilombo são como outros
da cidade, gostam de ouvir e dançar diversos tipos de música identificadas com as
culturas urbanas juvenis, como o funk.
       É preciso dizer que, ainda que os jovens não se sintam totalmente confortáveis
em representar o tradicional, eles e elas parecem participar deste jogo da autenticidade
cultural evitando inserir nessas festas de convidados músicas que possam
descaracterizar a imagem de território de cultura quilombola tradicional.




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       A produção pelo outro de uma identidade cristalizada da comunidade não leva
em consideração a dinâmica das relações sociais que interfere na cultura local. Afinal, o
que é o “autêntico” num mundo em movimento e onde o fazer-se sujeito cultural é
resultado de relações cada vez mais complexas?
       A valorização do campo produzida pelo próprio meio urbano, muito
impulsionada pelos projetos turísticos baseados na idéia pós-moderna de nostalgia, pode
contribuir para a ênfase dessa identidade cristalizada, mas concomitantemente
possibilita que o jovem vislumbre um futuro no meio rural não necessariamente
organizado em torno da agricultura.
       A negociação que os jovens estabelecem entre universos culturais distintos tem
caminhado para uma re-significação de ambos os lados. Para CARNEIRO (1998),


                        ao contrário da referência exclusiva a um único sistema cultural – atualizado
                        pela organização social camponesa – definidor de uma identidade
                        “tradicional”, esses jovens estariam vivenciando uma situação complexa,
                        resultante da combinação singular de sistemas simbólicos particulares e
                        universos culturais distintos, onde novas identidades estariam sendo
                        elaboradas com interferência na formulação de projetos e trajetórias
                        individuais.


        Algumas identidades são evidenciadas de acordo com o contexto e a relação
que nele se estabelece. No caso dos jovens moradores de São José, freqüentar uma
escola na cidade representou um grande desafio, não apenas pelos problemas de
deslocamento, mas, sobretudo, para a construção de suas identidades. O contato com o
diferente aproximava os jovens do quilombo quando a identidade coletiva era enfatizada
em momentos específicos, como no recreio em que sentavam todos juntos na mesma
mesa para conversarem e só levantavam quando o último terminava de lanchar. Ao
mesmo tempo, esse diálogo com outro universo cultural propiciou a apropriação de
esquemas simbólicos que permitiam o reconhecimento de si como sujeito jovem. A
forma de vestir, a linguagem, os bailes funks e outras características dos diferentes
modos de ser jovem passaram a fazer parte do cotidiano dos jovens do quilombo.
       Se, ir para a cidade significava a possibilidade de romper com os laços da
tradição familiar de forma a construir uma individualidade, hoje, o tornar-se sujeito
encontra lugar para se fazer no próprio meio de origem. A liberdade de escolha,
conquistada pelos jovens do meio rural é fundamental para esse processo de
individuação. Esta liberdade, na prática, pode significar poder escolher a profissão que
se quer seguir e a pessoa com quem se deseja casar, por exemplo. A construção da


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autonomia entre a tradição e as possibilidades apresentadas pelo processo de circulação
entre o campo e a cidade pode ser angustiante para esses jovens. Mas são eles mesmos
que podem produzir os mecanismos de superação desse estado inconstante avaliando as
possibilidades de forma a conjugar o que antes parecia antagônico. Dessa forma, papéis
sociais são redefinidos, como o da mulher que não tem apenas a casa e o ambiente
doméstico como alternativa de vida. Ainda que os projetos individuais também sejam
redefinidos sustentados por outra lógica que não a da oposição campo-cidade, os jovens
estão encontrando dificuldades em produzir a materialidade necessária para tanto.




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CONSIDERAÇÕES FINAIS


       Identidade como um sistema de relações e representações se constitui pela forma
que nos reconhecemos e pela forma com que somos reconhecidos pelos outros, num
jogo de forças que modifica a todo tempo suas fronteiras. Quando, por exemplo, somos
reconhecidos por rótulos, é sinal de que nossa diversidade foi fixada pelos outros, e
quando o estigma é internalizado, anula-se nossa capacidade autônoma de identificação.
Os moradores do quilombo São José jogam nesse campo de força de estereótipos
tentando equilibrar as partes para não se perderem enquanto sujeitos.
       O aumento da escolaridade (faixa cada vez mais larga entre a escolaridade dos
pais com relação a de seus filhos) não garantiu melhoras nas condições de vida da
população do meio rural. As jovens do quilombo São José também convivem com essa
dura realidade. Sem opções de trabalho e lazer no campo as opções ficam restritas e o
trabalho como doméstica tem sido a saída encontrada para se conjugar as expectativas
dos pais e das próprias filhas.
       A re-significação dos espaços do campo e da cidade pelas jovens tem sido uma
alternativa, mas se isto não for acompanhado de políticas públicas que garantam a
materialidade necessária para que, simultaneamente, o território subsista enquanto tal e
os jovens realizem seus projetos pessoais, a sociedade na qual as diferenças ainda são
vistas como uma negação do outro mais uma vez estará produzindo e reproduzindo as
históricas desigualdades brasileiras.




                                                                                      12
Anais do IX Encontro Nacional de História Oral - 22 a 25/04/2008 - UNISINOS


          REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


ALASTUEY, E. B. Sociologia de la movilidad espacial: el sedentarismo nómada. CIS,
Madrid: Siglo Veitiuno de Espana Editores, 1994.
CARNEIRO, M. J. Juventude rural: projetos e valores. In: ABRAMO, Helena Wendel;
BRANCO, Pedro Paulo Martoni. (Org.). Retratos da Juventude Brasileira: análise de
       uma pesquisa nacional. São Paulo, 2005, v. 1, p. 243-262.
______. Ruralidade: novas identidades em construção. Estudos Sociedade e
       Agricultura, Rio de Janeiro, v. 11, p. 53-75, 1998. Disponível em: <
       http://www.eco.unicamp.br/nea/rurbano/textos/downlo/rurbzeze.html>.                                Acesso
       em: 9 jul. 2005.
CASTRO, E. G. Entre Ficar e Sair: uma etnografia da construção social da categoria
       jovem rural. Tese de Doutorado em Antropologia Social. Rio de Janeiro: PPGAS/
       MN/UFRJ, julho, 2005.
________. As jovens rurais e a reprodução social das hierarquias. In: Woortmann, E. F.
       et alli. (orgs.), Margarida Alves. Coletânea sobre estudos rurais e gênero.
       Brasília: MDA/ IICA, 2006.
NOVAES, Regina. Juventude, exclusão e inclusão social: aspectos e controvérsias de
       um debate em curso. In: PAPA, Fernanda (Org.). Políticas Públicas: juventude em
       pauta. São Paulo: Cortez: Ação Educativa Assessoria, Pesquisa e informação:
       Fundação Friedrich Ebert, 2003, p. 121-151.
WEISHEIMER, Nilson. Juventudes rurais: mapa de estudos recentes. Brasília:
       Nead/Ministério do Desenvolvimento Agrário, 2005.
WHITAKER, Dulce C. A. Nas franjas do rural-urbano: meninas entre a tradição e a
       modernidade. Cadernos Cedes. [online] Ano XXII, nº 56, abril/2002. p.7-22.
       Disponível em: www.scielo.br.


∗
 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense e
professora do Colégio Pedro II.
i
   O Quilombo São José da Serra, como o próprio nome indica, é localizado numa região de montanhas no Vale do
Paraíba, região Sul Fluminense. A principal atividade produtiva dos quilombolas é o cultivo de subsistência de milho
e feijão, plantados nos pequenos espaços que lhes é permitido pelo então proprietário da Fazenda São José; criam
também animais de pequeno porte como galinhas.
ii
   O registro do Jongo foi aprovado como Patrimônio Cultural Brasileiro pelo Conselho Consultivo do Iphan no dia 10
de novembro de 2005. Ver www.iphan.gov.br
iii Cada região onde o Jongo aparece guarda especificidades no seu modo de ser praticado. A definição apresentada
refere-se às características comuns encontradas nos diferentes modos de dançar Jongo.
iv
   “Deixa a moreninha passear”, jongo de autoria de Mãe Zeferina da Comunidade Quilombola São José da Serra.




                                                                                                                13

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  • 1. Anais do IX Encontro Nacional de História Oral - 22 a 25/04/2008 - UNISINOS JOVENS MULHERES QUILOMBOLAS: IDENTIDADES E TRAJETÓRIAS Priscila da Cunha Bastos ∗ Resumo A heterogeneidade das condições de vida e trabalho dos jovens que moram no campo configura formas de viver diferenciadas, constituindo experiências e identidades coletivas distintas. Esse trabalho busca compreender as dimensões da vida dos jovens rurais hoje frente à intensificação dos intercâmbios materiais e simbólicos entre cidade e campo e a especificidade desse processo nas trajetórias de vida de jovens mulheres quilombolas. Para tanto, torna-se necessário evidenciar como as jovens estabelecem relações entre a cultura de origem e o mundo globalizado, assim como identificar quais alternativas elas encontram nesse diferentes espaços no processo de definição de suas trajetórias pessoais. Palavras-chave: juventude rural, jovens mulheres quilombolas, identidades Abstract The heterogeneity of life and work conditions the young people who live in the countryside translates into different lifestyles, which constitute distinct experiences and collective identities. This dissertation intends enravel the dimentions of the lives of young people from rural areas before the instensification of material and symbolic exchange between the city and the countryside nowadays, and the especificity of this process in the lives of young quilombola women. It is then necessary to trace how these women undertand the relations between their own culture and that of the globalized world, and to identify which alternatives they can find in these different spaces in the process used to trail their personal life paths. Word keys: young people rural, young quilombola women, identities INTRODUÇÃO Os jovens que vivem no meio rural se constituem como sujeitos numa teia cada vez mais complexa de relações sociais que ultrapassa o universo doméstico/familiar. São jovens que moram no seu lugar de origem, mas trabalham, estudam, fazem compras e se divertem na cidade, e aqueles que permanecem no campo, não necessariamente, estão na atividade agrícola. Ao longo dos últimos anos vem se estabelecendo consenso social mínimo – especialmente quando se trata das identidades juvenis urbanas – sobre a impossibilidade de “falar” do jovem como um tipo único; estudos e pesquisas, políticas públicas e até mesmo a propaganda evidenciam as diferentes maneiras de viver a juventude. Se por um lado se percebe este tratamento que reconhece a multiplicidade de vida dos jovens urbanos, por outro, ainda pode-se encontrar determinada fixação da noção da existência
  • 2. Anais do IX Encontro Nacional de História Oral - 22 a 25/04/2008 - UNISINOS de um “jovem rural”, principalmente quando se trata de políticas públicas voltadas para os jovens que vivem no campo. A história da comunidade quilombola de São José da Serra i tem início por volta de 1850 com a chegada de seus antepassados nas terras que hoje ocupam. Localizado no município de Valença/ RJ, o quilombo São José da Serra é formado por cerca de 200 moradores. Os/As jovens, entre 15 e 29 anos, constituem cerca de 20% da população residente no quilombo, destes, a maior parte concluiu o Ensino Médio. O quilombo São José vem se tornando referência no Estado pela divulgação de sua manifestação cultural mais característica: o Jongo – também conhecido como tambú, tambor e caxambu. Identificado recentemente como um patrimônio imaterial pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) ii , o Jongo – manifestação cultural das comunidades afro-brasileiras do Sudeste do país – tem levado a comunidade para a cena social urbana – especialmente pelas apresentações em palcos tradicionais do Rio de Janeiro e aparições na televisão – proporcionando o reconhecimento e até o apoio de suas lutas históricas – como o direito à terra – por parte do poder público. Jongo é uma expressão cultural que tem origem com a vinda dos negros da nação Banto, trazidos da região africana do Congo-Angola para o trabalho escravo nas fazendas do Vale do Paraíba, no sudeste do Brasil. Como manifestação cultural que revela as relações entre os escravos nos espaços em que podiam se sociabilizar, a maioria das vezes nas senzalas, o jongo é encontrado no Vale do Paraíba, na Zona da Mata Mineira, no Norte Fluminense, no Litoral Sul Capixaba e no Litoral Norte Paulista. É uma dança em que casais se revezam no centro da roda girando em sentido anti-horário fazendo menção aos passos de umbigada (simulando um abraço) marcados pelos ritmos dos tambores e pelos versos cantados iii . O leque de representações que caracteriza o Jongo inclui uma atitude religiosa que, como forma de louvação aos antepassados, guarda traços bastante comuns com a prática das religiões afro-brasileiras. Consolidando tradições e afirmando identidades, o Jongo representa elemento fundamental para a comunidade em termos de integração e preservação de sua memória. Nesse sentido, as comunidades jongueiras têm desenvolvido alternativas para a preservação de seus saberes e expressões culturais, como no caso da entrada de jovens e crianças na roda. Se antes só os mais velhos podiam participar da celebração, hoje a entrada de jovens evidencia a busca por se 2
  • 3. Anais do IX Encontro Nacional de História Oral - 22 a 25/04/2008 - UNISINOS garantir que o fio da memória não se perderá e estabelece o espaço de reprodução e renovação da cultura jongueira. 3
  • 4. Anais do IX Encontro Nacional de História Oral - 22 a 25/04/2008 - UNISINOS JUVENTUDE RURAL As pesquisas sobre jovens evidenciam que existem diferentes maneiras de viver a juventude. O “ser jovem” varia de acordo com a classe, o gênero, a raça, o local de moradia etc., pois esses recortes sociais interferem nas possibilidades de inserção social dos sujeitos. A juventude, enquanto um conceito construído historicamente, muda no tempo, no espaço e de sociedade para sociedade, não podendo, dessa forma, serem estabelecidos limites etários fixos para demarcar esse período, visto que “jovens da mesma idade vão sempre viver juventudes diferentes” (NOVAES, 2003:122). O esforço de definição de juventude como categoria analítica, ora focando a faixa etária, ora elementos físicos e comportamentais, passando pelas construções que associam o jovem a problemas sociais (delinqüência) ou ao futuro como agente de transformação social, privilegiou o estudo de jovens urbanos. A forma de olhar o rural pelo urbano muito presente na produção teórica da década de 60 hoje já se apresenta sobre novos vieses, mas ainda permanece quando nos aproximamos do rural a partir dos jovens. Para CASTRO (2005), a categoria juventude pode ser tratada como uma categoria social uma vez que a partir dela evidenciam-se relações de hierarquia na sociedade, isto quer dizer que ser jovem coloca o sujeito numa posição de subalternidade. Para a pesquisadora, tal relação de poder atravessa tanto o espaço rural como o urbano, mas isso não significa que questões específicas não existam. Por exemplo, quando nos referimos a juventude rural, a questão da terra ganha importância, o que não se coloca para a juventude urbana. Assim como a questão da mobilidade espacial. Para os jovens que vivem nos grandes centros, poder circular pela cidade é um direito a ser conquistado, já para os jovens de áreas rurais, determina-se uma posição de imobilidade. Em se tratando da “juventude rural” a imagem transmitida é de um jovem desinteressado por sua cultura de origem e fascinado pelas facilidades da vida nas cidades. Entra em cena mais uma vez a construção de um rural atrasado e de um urbano modernizado que atrai principalmente a juventude. Os estudos nesta área, ainda que mais recentes, tendem a relacionar os jovens aos problemas da reprodução do rural, em especial do trabalho familiar, representados pela migração rural/urbano e pelas modificações nos padrões de herança e sucessão da pequena propriedade familiar (WIESHEIMER, 2005). 4
  • 5. Anais do IX Encontro Nacional de História Oral - 22 a 25/04/2008 - UNISINOS Parte-se do pressuposto que a heterogeneidade das condições de vida e trabalho dos jovens que moram no campo configura formas de viver diferenciadas, constituindo experiências e identidades coletivas distintas. As diferenças nos processos de socialização dos jovens rurais são marcadas, na maior parte, por condições de gênero e pelos recursos materiais e simbólicos que lhes são disponíveis. No caso estudado, a condição racial, o fato de ser uma comunidade negra remanescente de quilombo também interfere neste processo. Os jovens e as jovens negociam com as expectativas dos pais em relação ao seu futuro e com os recursos que herdam das gerações anteriores, construindo nesse diálogo geracional suas trajetórias de vida. As incertezas quanto ao próprio futuro se fazem presentes quando confrontam as diversas alternativas de vida que se apresentam com a precariedade da sua inserção no mundo do trabalho. Segundo CARNEIRO (2005), o paradoxo que move a questão social no meio rural hoje está na dificuldade dos pais de manterem seus filhos como agricultores e, ao mesmo tempo, no desejo dos mesmos de verem seus filhos saírem do campo para buscarem aquilo que chamam de “vida melhor”. Em sua tese CASTRO (2005) define isto como dualidade entre ficar e sair. Quando se trata de uma comunidade de tradições afro-descendentes, como no caso do Quilombo São José, outro elemento de tensão se coloca: a preservação das tradições comunitárias e do jongo em especial. Questão que tem se tornado central nos estudos sobre juventude rural é relativa à saída dos jovens do campo para as cidades. Por mais que fisicamente seja difícil de demarcar as fronteiras entre esses dois espaços, há uma notável diferença quanto ao acesso a bens e serviços, o que contribui para desvalorização do rural e por conseqüência de seus habitantes. O ficar e o sair deve ser analisado considerando estas dimensões que interferem não apenas nas possibilidades objetivas de se fazer sujeito, mas profundamente nas condições subjetivas, nos desejos, na auto-estima daqueles que vivem em áreas rurais. O interessante a ser observado é o fato de que a saídas dos jovens não representa apenas uma decisão individual, há uma rede de relações e simbolismos que está em jogo. A dualidade sair, que significa basicamente uma busca por uma vida melhor, acesso a serviços, comércio, escola, lazer e trabalho, ou ficar, que seria dar continuidade aos costumes e a relação com a terra, também está presente na comunidade estudada. Entender esta dualidade significar dar espaço aos diferentes modos de ficar ou sair que se configuram pelas trajetórias dos jovens. Para além de uma análise que se concentra na mobilidade espacial como um problema (migração), os próprios jovens vêm 5
  • 6. Anais do IX Encontro Nacional de História Oral - 22 a 25/04/2008 - UNISINOS construindo novas significações que se referem a esquemas de circulação entre o campo e a cidade. O sair sabendo que pode voltar caracteriza um desses movimentos e gera uma mobilidade espacial circular em que nada é visto como definitivo. Esse ir e vir muitas vezes pautados pelos espaços de circulação permitidos, como a escola e o trabalho, está muito presente na vida das jovens do quilombo. ALASTUEY (1994), ao tratar do espaço e a mobilidade espacial como inseparáveis contribui para uma compreensão diferenciada dos deslocamentos humanos. O espaço como lugar da experiência humana é relacional, isto é, constituído por formas e possibilidades de interrelações. O autor considera que o ser humano se constitui enquanto tal na íntima relação que mantém com o entorno, a mobilidade espacial, então, seria uma condição ontológica. La vida, por tanto, requiere movimientos y, así se muestra, desde um primer momento, que la estabilidad asociada al espacio es tan sólo uma realidad excepcional de este (...). El espacio como relación, primero, es inconcebible estáticamente y, segundo, es inconcebible formalmente (p.08) Nesse sentido, utilizar o termo migração limita o campo de análise deste trabalho, uma vez que a mobilidade de um grupo ou de algum de seus integrantes reconfigura a sociabilidade de todo o grupo e não só de alguns. “El grupo es um continuo fluir de presencias y ausências” (ALASTUEY, 1994:80). JOVEM MULHER QUILOMBOLA Deixa a moreninha passear, o terreiro é grande Deixa a moreninha passear iv A complexidade do real tem gerado novos processos de identificação que constituem identidades singulares, como a de jovem mulher quilombola. Os diferentes pertencimentos dos sujeitos trazem a necessidade de entendermos a identidade como um jogo relacional em que aparecem ao mesmo tempo a diversidade e as relações de poder e a produção de desigualdades. Neste sentido, pesquisar as trajetórias de jovens mulheres quilombolas permite o reconhecimento do tipo de espaço relacional que essa identidade constitui e pelo qual é constituída. Vale ressaltar que nos processos históricos que formaram a sociedade brasileira, observa-se um esforço em produzir um padrão ideal do “ser mulher” submissa e 6
  • 7. Anais do IX Encontro Nacional de História Oral - 22 a 25/04/2008 - UNISINOS excluída, um processo social que prepara as jovens para uma posição de desvantagem frente às expectativas educativas e profissionais, entre outras, tendo como referencial importante o trabalho doméstico (WHITAKER, 2002). Neste sentido, ser jovem rural mulher negra representa uma situação de subalternidade ainda maior. Hoje, os padrões ideais do que é ser mulher estão se transformando especialmente pela ampliação do acesso à educação escolarizada, por pressões especialmente dos movimentos sociais feministas e do mercado de trabalho. Interferem também no processo de socialização das jovens quilombolas o aprofundamento das relações campo-cidade que cria novos espaços socioculturais de intercâmbios materiais e simbólicos. No quilombo São José, as jovens têm um elevado nível de escolarização em se tratando de uma comunidade rural e negra e em relação aos meninos da mesma idade. A maior parte já concluiu o Ensino Médio ou está em fase de conclusão. Esta é uma realidade contrastante com o que as pesquisas mostram sobre escolarização no meio rural. A maior parte dos jovens estuda até a 4º série do ensino fundamental, pois, como acontece no Quilombo, é a escola que chega mais perto do campo. A partir daí, dar continuidade aos estudos torna-se um grande desafio. As escolas distanciam-se do local de moradia desses jovens e na maior parte não há transporte que possibilite este deslocamento. O trajeto muitas vezes é feito a pé. A valorização dos estudos por parte dos pais está presente também nas expectativas que alimentam quanto ao futuro de seus filhos e filhas. Ainda assim, as jovens que vivem no campo continuam vivenciando um intenso controle social principalmente quanto a possibilidade de circulação em diferentes espaços que não o escolar. O desejo de dar continuidade aos estudos, de ter opções de lazer, de buscar uma vida melhor através de um trabalho remunerado associa-se às questões relacionadas à lógica de reprodução familiar, às relações de hierarquia, à herança e configuram um conjunto de fatores que contribuem para a movimentação dos jovens do campo para a cidade. As diferentes formas em que o território rural se constitui na sociedade brasileira tem relação com a história da agricultura no país, marcada profundamente pela escravidão e pela dominação política, social e econômica dos grandes proprietários. Neste sentido, os jovens que vivem no campo levantam questões que desafiam a estrutura da sociedade brasileira. Pensar nas idas e vindas desses jovens significa pensar 7
  • 8. Anais do IX Encontro Nacional de História Oral - 22 a 25/04/2008 - UNISINOS na estrutura fundiária do país, na distribuição desigual dos serviços públicos, entre outros. Muitas jovens do quilombo São José, por exemplo, saem de sua comunidade para trabalhar, principalmente como doméstica nos centros urbanos mais próximos como Volta Redonda e Rio de Janeiro. Contudo, esse deslocamento não significa necessariamente ruptura com a comunidade de origem, mas ampliação do campo de possibilidades de se fazer sujeito. Hoje, a saída das jovens mães tem provocado a reorganização das relações familiares. Muitas jovens que casaram na comunidade foram morar na casa dos pais do marido, seguindo toda uma lógica de controle e defesa da honra do marido. Com a saída para trabalhar fora do quilombo, os filhos vão morara com a avó materna, saem da casa do pai. Isto pode significar também uma estratégia para ultrapassar uma possível autonomia regulada, uma vez que a renda da mãe com o trabalho fora de casa perde o controle do marido já que os filhos estão na casa da avó, local onde parte do salário da mãe passa a ser empregado. O fato das meninas irem trabalhar na cidade na maior parte das vezes como domésticas pode ter muitos sentidos. O primeiro estaria vinculado à questão racial. A inserção da mulher negra no mercado de trabalho urbano se dá pelas portas dos fundos. A segunda hipótese vincula-se às redes de proteção e controle. As jovens que vão trabalhar fora organizam suas saídas dentro do quilombo, geralmente em contato com aquelas que já estão morando fora. No Quilombo São José, a questão da herança também ganha recortes de gênero. Em se tratando da herança da terra, da herança da luta pela terra e da herança espiritual ligada às manifestações religiosas e ao jongo, há uma diferença entre homens e mulheres. Como a terra ainda encontra-se em processo de disputa, é o seu valor simbólico e não produtivo que ganha força. A herança da luta pela titularização é de todos, mas a sucessão da liderança política é masculina. Às jovens a herança espiritual. Este processo segue uma lógica de produção dos herdeiros na qual “(...) o provável herdeiro diferencia-se dos demais filhos, tanto em termos de prestígio na família, quanto em relação às cobranças e expectativas dos pais (...)” (CASTRO, 2006: 262). Esse processo de preparação das herdeiras da tradição religiosa e cultural desencadeia conflitos entre as expectativas individuais e coletivas, entre o que ser quer e o que se deve fazer, mais do que no caso dos meninos. Ser herdeira da tradição acarreta um peso maior, significa abrir mão de muitos espaços e tempos que não fazem parte do terreiro. 8
  • 9. Anais do IX Encontro Nacional de História Oral - 22 a 25/04/2008 - UNISINOS TRADIÇÃO E IDENTIDADE Em São José, a maior aproximação entre campo e cidade foi muito propiciada pelos estudos, mas especialmente nas festas que os moradores organizam para os “de fora” e pelas saídas do quilombo que o Jongo proporciona, pois nestes casos eles são vistos como portadores de uma tradição que é valorizada pelo outro, e assim também eles o são. Tais aspectos trazem novas perspectivas que influenciam e modificam a relação dos jovens com a comunidade. Nesse percurso, algumas identidades são evidenciadas de acordo com o contexto e a relação que nele se estabelece. Dentro dessa ambigüidade está em curso a construção de uma nova identidade. Cultuam laços que os prendem ainda à cultura de origem e, ao mesmo tempo, vêem sua auto-imagem refletidas no espelho da cultura “urbana”, “moderna”, que lhes surge como uma referência para a construção de seus projetos para o futuro, geralmente orientados pelo desejo de inserção no mundo moderno. Essa inserção, no entanto, não implica a negação da cultura de origem, mas supõe uma convivência que resulta na ambigüidade de quererem ser, ao mesmo tempo, diferentes e iguais aos da cidade e aos da localidade de origem. (CARNEIRO, 2005) v . O contato com o diferente abre caminhos para aquisição de novos valores e amplia o campo de escolhas dos jovens de São José. Nas festas, a comunidade recebe pessoas de todas as localidades do Rio de Janeiro e também de São Paulo. Além de ser fonte de renda para o quilombo a festa também representa um grande espaço de sociabilidade e de divulgação da cultura jongueira. A expectativa de muitos visitantes de terem contato com um quilombo e o Jongo cria um embate de expectativas diferenciadas principalmente com os jovens da comunidade. Os visitantes vão em busca da “autenticidade”, do “verdadeiro jongo” , mas os jovens do quilombo são como outros da cidade, gostam de ouvir e dançar diversos tipos de música identificadas com as culturas urbanas juvenis, como o funk. É preciso dizer que, ainda que os jovens não se sintam totalmente confortáveis em representar o tradicional, eles e elas parecem participar deste jogo da autenticidade cultural evitando inserir nessas festas de convidados músicas que possam descaracterizar a imagem de território de cultura quilombola tradicional. 9
  • 10. Anais do IX Encontro Nacional de História Oral - 22 a 25/04/2008 - UNISINOS A produção pelo outro de uma identidade cristalizada da comunidade não leva em consideração a dinâmica das relações sociais que interfere na cultura local. Afinal, o que é o “autêntico” num mundo em movimento e onde o fazer-se sujeito cultural é resultado de relações cada vez mais complexas? A valorização do campo produzida pelo próprio meio urbano, muito impulsionada pelos projetos turísticos baseados na idéia pós-moderna de nostalgia, pode contribuir para a ênfase dessa identidade cristalizada, mas concomitantemente possibilita que o jovem vislumbre um futuro no meio rural não necessariamente organizado em torno da agricultura. A negociação que os jovens estabelecem entre universos culturais distintos tem caminhado para uma re-significação de ambos os lados. Para CARNEIRO (1998), ao contrário da referência exclusiva a um único sistema cultural – atualizado pela organização social camponesa – definidor de uma identidade “tradicional”, esses jovens estariam vivenciando uma situação complexa, resultante da combinação singular de sistemas simbólicos particulares e universos culturais distintos, onde novas identidades estariam sendo elaboradas com interferência na formulação de projetos e trajetórias individuais. Algumas identidades são evidenciadas de acordo com o contexto e a relação que nele se estabelece. No caso dos jovens moradores de São José, freqüentar uma escola na cidade representou um grande desafio, não apenas pelos problemas de deslocamento, mas, sobretudo, para a construção de suas identidades. O contato com o diferente aproximava os jovens do quilombo quando a identidade coletiva era enfatizada em momentos específicos, como no recreio em que sentavam todos juntos na mesma mesa para conversarem e só levantavam quando o último terminava de lanchar. Ao mesmo tempo, esse diálogo com outro universo cultural propiciou a apropriação de esquemas simbólicos que permitiam o reconhecimento de si como sujeito jovem. A forma de vestir, a linguagem, os bailes funks e outras características dos diferentes modos de ser jovem passaram a fazer parte do cotidiano dos jovens do quilombo. Se, ir para a cidade significava a possibilidade de romper com os laços da tradição familiar de forma a construir uma individualidade, hoje, o tornar-se sujeito encontra lugar para se fazer no próprio meio de origem. A liberdade de escolha, conquistada pelos jovens do meio rural é fundamental para esse processo de individuação. Esta liberdade, na prática, pode significar poder escolher a profissão que se quer seguir e a pessoa com quem se deseja casar, por exemplo. A construção da 10
  • 11. Anais do IX Encontro Nacional de História Oral - 22 a 25/04/2008 - UNISINOS autonomia entre a tradição e as possibilidades apresentadas pelo processo de circulação entre o campo e a cidade pode ser angustiante para esses jovens. Mas são eles mesmos que podem produzir os mecanismos de superação desse estado inconstante avaliando as possibilidades de forma a conjugar o que antes parecia antagônico. Dessa forma, papéis sociais são redefinidos, como o da mulher que não tem apenas a casa e o ambiente doméstico como alternativa de vida. Ainda que os projetos individuais também sejam redefinidos sustentados por outra lógica que não a da oposição campo-cidade, os jovens estão encontrando dificuldades em produzir a materialidade necessária para tanto. 11
  • 12. Anais do IX Encontro Nacional de História Oral - 22 a 25/04/2008 - UNISINOS CONSIDERAÇÕES FINAIS Identidade como um sistema de relações e representações se constitui pela forma que nos reconhecemos e pela forma com que somos reconhecidos pelos outros, num jogo de forças que modifica a todo tempo suas fronteiras. Quando, por exemplo, somos reconhecidos por rótulos, é sinal de que nossa diversidade foi fixada pelos outros, e quando o estigma é internalizado, anula-se nossa capacidade autônoma de identificação. Os moradores do quilombo São José jogam nesse campo de força de estereótipos tentando equilibrar as partes para não se perderem enquanto sujeitos. O aumento da escolaridade (faixa cada vez mais larga entre a escolaridade dos pais com relação a de seus filhos) não garantiu melhoras nas condições de vida da população do meio rural. As jovens do quilombo São José também convivem com essa dura realidade. Sem opções de trabalho e lazer no campo as opções ficam restritas e o trabalho como doméstica tem sido a saída encontrada para se conjugar as expectativas dos pais e das próprias filhas. A re-significação dos espaços do campo e da cidade pelas jovens tem sido uma alternativa, mas se isto não for acompanhado de políticas públicas que garantam a materialidade necessária para que, simultaneamente, o território subsista enquanto tal e os jovens realizem seus projetos pessoais, a sociedade na qual as diferenças ainda são vistas como uma negação do outro mais uma vez estará produzindo e reproduzindo as históricas desigualdades brasileiras. 12
  • 13. Anais do IX Encontro Nacional de História Oral - 22 a 25/04/2008 - UNISINOS REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALASTUEY, E. B. Sociologia de la movilidad espacial: el sedentarismo nómada. CIS, Madrid: Siglo Veitiuno de Espana Editores, 1994. CARNEIRO, M. J. Juventude rural: projetos e valores. In: ABRAMO, Helena Wendel; BRANCO, Pedro Paulo Martoni. (Org.). Retratos da Juventude Brasileira: análise de uma pesquisa nacional. São Paulo, 2005, v. 1, p. 243-262. ______. Ruralidade: novas identidades em construção. Estudos Sociedade e Agricultura, Rio de Janeiro, v. 11, p. 53-75, 1998. Disponível em: < http://www.eco.unicamp.br/nea/rurbano/textos/downlo/rurbzeze.html>. Acesso em: 9 jul. 2005. CASTRO, E. G. Entre Ficar e Sair: uma etnografia da construção social da categoria jovem rural. Tese de Doutorado em Antropologia Social. Rio de Janeiro: PPGAS/ MN/UFRJ, julho, 2005. ________. As jovens rurais e a reprodução social das hierarquias. In: Woortmann, E. F. et alli. (orgs.), Margarida Alves. Coletânea sobre estudos rurais e gênero. Brasília: MDA/ IICA, 2006. NOVAES, Regina. Juventude, exclusão e inclusão social: aspectos e controvérsias de um debate em curso. In: PAPA, Fernanda (Org.). Políticas Públicas: juventude em pauta. São Paulo: Cortez: Ação Educativa Assessoria, Pesquisa e informação: Fundação Friedrich Ebert, 2003, p. 121-151. WEISHEIMER, Nilson. Juventudes rurais: mapa de estudos recentes. Brasília: Nead/Ministério do Desenvolvimento Agrário, 2005. WHITAKER, Dulce C. A. Nas franjas do rural-urbano: meninas entre a tradição e a modernidade. Cadernos Cedes. [online] Ano XXII, nº 56, abril/2002. p.7-22. Disponível em: www.scielo.br. ∗ Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense e professora do Colégio Pedro II. i O Quilombo São José da Serra, como o próprio nome indica, é localizado numa região de montanhas no Vale do Paraíba, região Sul Fluminense. A principal atividade produtiva dos quilombolas é o cultivo de subsistência de milho e feijão, plantados nos pequenos espaços que lhes é permitido pelo então proprietário da Fazenda São José; criam também animais de pequeno porte como galinhas. ii O registro do Jongo foi aprovado como Patrimônio Cultural Brasileiro pelo Conselho Consultivo do Iphan no dia 10 de novembro de 2005. Ver www.iphan.gov.br iii Cada região onde o Jongo aparece guarda especificidades no seu modo de ser praticado. A definição apresentada refere-se às características comuns encontradas nos diferentes modos de dançar Jongo. iv “Deixa a moreninha passear”, jongo de autoria de Mãe Zeferina da Comunidade Quilombola São José da Serra. 13