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DOI: 10.11606/issn.2238-3999.v4i2p15-26
Especial
INFÂNCIAS, FOTOGRAFIAS, LIVROS PARA CRIANÇAS:
cadê o teatro que estava aqui?
CHILDHOOD, PHOTOGRAFIES, CHILDREN BOOKS:
where is the theater that was here?
NIÑEZ, FOTOGRAFÍAS, LIBROS PARA NIÑOS:
donde está el teatro que estava acá?
Taís Ferreira1
Resumo
Neste texto, narro uma trajetória cíclica: de como um interesse pelas crianças encontrou fotografias, de
como estas imagens específicas potencializaram desejo de teatro e de como acabaram, por fim, tornando-
se contos para crianças, em um ciclo que envolve visualidade, literatura, teatralidade e infância. Estas
reflexões são atravessadas por referenciais teóricos dos estudos sobre as infâncias vinculados à educação,
aos estudos culturais, à sociologia e à arte e por referenciais dos estudos de recepção cênica.
Palavras-chave: literatura para crianças, recepção, teatralidade, visualidade
Abstract
In this paper, I tell a cyclic way: how an interest about children met photographs, how these specific
images growing up a desire for theater and how, at the end, they became children’s literature, in a cycle
that involves visuality, literature and childhood. These thinking are crossed by theoretical referential
about childhood in the education, cultural studies, sociology, art and reception studies.
Keywords: children’s literature, reception, theatricality, visuality.
Resumen
En este artículo, narro una trayectoria cíclica: de como un interés por los niños ha encontrado fotografías,
de cómo estas imágenes específicas potencializaran el deseo del teatro y de cómo terminaran siendo
cuentos para niños, en un ciclo que implica visualidad, literatura, teatralidad y niñez. Estas reflexiones están
atravesadas por referenciales teóricos de los estudios sobre la niñez, vinculados a la educación, a los estudios
culturales, a la sociología y a el arte y por los referenciales de los estudios de recepción escénica.
Palabras-clave: literatura para niños, recepción, teatralidad, visualidad.
1 Taís Ferreira é professora do curso de Teatro – Licenciatura da Universidade Federal de Pelotas. Bacharel
em Artes Cênicas e Mestre em Educação (UFRGS). Doutoranda em co-tutela entre PPGAC da Universidade
Federal da Bahia e Dottorato Arti Visive, Performative e Mediali da Università di Bologna. Bolsista CNPq. Autora
de diversos livros, capítulos e artigos sobre pedagogias do teatro, recepção cênica, artefatos culturais para
crianças e formação de professores. Informações: https://ufpel.academia.edu/Ta%C3%ADsFerreira
aSPAs
ppgac - USP
16
Estes escritos partem do amadorismo e da recepção.
O amadorismo é entendido aqui não com o tom pejorativo que o substantivo
recebe comumente no Brasil, mas a partir da leitura francófona de Mervant-Roux
(2012), que toma o amadorismo como o amor (por determinada arte ou atividade)
aliado às relações de sociabilidade, de comunhão social, de vizinhança, de troca e
de convívio. Esse termo foi desenvolvido pelo argentino Dubatti, bastante em voga
nos estudos teatrais brasileiros nos últimos anos. Essas qualidades estão, segundo
Mervant-Roux (2012), na base do envolvimento dos sujeitos com o teatro amador, seu
objeto em alguns estudos.
Por conseguinte, estes escritos estão atravessados de subjetividade. Da minha
subjetividade, mais precisamente; da minha leitura a partir da visão de outros artistas
sobre crianças, retratando-as, construindo mundos e representações de infâncias.
Por isso, trata-se também de um escrito de recepção: um processo relacional (aqui
faço uso do adjetivo empregado por De Marinis (2005) para especificar o teatro como
relação), construído por mim, como espectadora de determinadas obras de arte, que
gera efeitos e usos específicos, em um espaço-tempo prolongado, que antecede e
excede o acontecimento mesmo de “espectar” (ou seja, o aqui-agora com as obras).
Entretanto, mais do que discorrer sobre essas obras e tais representações, pretendo
contar, ao modo de um relato de experiência criativa, como, ao longo de cinco anos,
deixei-me embeber pela potência destas visualidades sobre (ou a partir de) crianças,
culminando na criação de um produto cultural para as crianças (um livro categorizado
como literatura infanto-juvenil2
), todo este processo atravessado pela possibilidade do
teatro (este livro poderia ou “deveria ter sido” uma performance cênica).
Assim, as fotografias de dois artistas, a alemã Loretta Lux e o holandês Ruud
Van Empel3
, inspiraram a confecção de micronarrativas que eu julgava potentes para a
criação de ação cênica, de personagem-criança, de ficções sobre infâncias contemporâ-
neas que pudessem vir a ser cenas, acontecimentos cênicos, performances.A memória,
nesse caso, esteve presente através da evocação de situações, ações, cenários, perso-
nagens lembrados (imaginados) de minha infância, que permearam minha relação com
2 O livro referenciado é Minicontos da Tati,Tatá,Tís,Tisoca, pela Editora Mediação de Porto Alegre. Informações
em: https://www.editoramediacao.com.br/#livro/minicontos-da-tati,-tata,-tis,-tisoca.13/268
3As obras dos dois artistas, Ruud Van Empel e Loretta Lux, seus currículos e carreiras podem ser conhecidos
em seus respectivos sítios-portfólios na internet, nos endereços a seguir: http://web.ruudvanempel.nl/home.html
e http://www.lorettalux.de/
17
as fotografias4
e compuseram o escopo de breves cenas ou pequenos contos. Entre-
tanto, antes de dar continuidade às minhas impressões como receptora das obras de
Lux e Van Empel, gostaria de apresentar uma pergunta e uma possível resposta.
A pergunta
Por que uma pessoa, que estuda teatro, está escrevendo sobre ou a partir de
cultura visual e de imagens? Pergunta essa que eu mesma me fiz e que pode ser feita
pelos leitores. Explico: sempre gostei das visualidades. Eu tive uma tia, professora de
artes, que me estimulou a “bordar arte” (FERREIRA, 2014) quando criança. Eu estudei
pintura por alguns anos, na adolescência, mas não segui e nem me aprofundei nos
estudos das artes visuais.
Desde a minha infância sou uma amadora do cinema e da fotografia. Esse amor,
essa paixão, esse gostar desinteressado e vinculado a uma comunidade (a comuni-
dade das artes no Rio Grande do Sul, aos meus pares colegas e amigos, aos meus
professores) não foi acrescido de aprofundamento teórico sobre as artes visuais e
audiovisuais e sim de séries de experiências empíricas, bem ao gosto do autodida-
tismo daquele que aprende na relação com o mundo. Sem sistematização prévia do
conhecimento, num ciclo de (des)organização interna do fluxo destas experiências:
descobrir um artista ou um diretor, que leva a outros produtos, que levam a determi-
nada sala, que dá a ver uma exposição, que liga com uma escola estética, que remete
a uma série televisiva, que pode ser baseada em um livro, que tem um personagem
que virou filme, que foi interpretado por determinado ator, que fez outro filme de deter-
minado diretor, etc. Mais ou menos assim segue o ciclo do interesse não sistemati-
zado pelos conteúdos dos currículos e dos livros ditos especializados: espiralado, reti-
cular, helicoidal, sinuoso; jamais reto, duro e direto. Ou seja: eu sou uma espectadora
(leitora) amante (amadora) das artes visuais e audiovisuais, no sentido proposto por
Mervant-Roux (2012).
4 Cumpre notar que não incluo imagens das obras de Van Empel e de Lux neste trabalho. Justifico a ausência
destas referências visuais pela possibilidade de abertura que pretendo dar ao leitor. Caso escolha obras
específicas destes artistas a serem mostradas, guiarei e limitarei o olhar daquele que lê. Prefiro que os leitores
que se interessarem por este artigo, pela sua temática e pelos artistas aqui comentados, efetuem sua própria
pesquisa visual, empenho que facilmente pode ser realizado através da rede mundial de computadores. Indico
os dois sítios oficiais dos artistas na Nota 3, embora haja trabalhos deles disponíveis em sítios de museus e
galerias de arte, entre outros.
18
Retomando: eu estudava infâncias, eu gostava de visualidades, eu pesquisava
a relação das crianças com as artes e artefatos culturais feitos para elas por adultos.
Assim, contingencialmente, cheguei aos dois artistas citados, seus retratos de crianças
e suas infâncias inventadas.
A arte de Van Empel e de Lux não são feitas para crianças, não tem este modo de
endereçamento. Elas são feitas a partir do olhar de dois adultos para o mundo, tendo
as crianças como objetos ou personagens. E ao trabalhar com imagens de crianças,
esses dois adultos inventam mundos ficcionais que remetem a leituras específicas das
diferentes infâncias contemporâneas. E isso me intrigou: como essas crianças, está-
ticas em fotografias trabalhadas por programas de computador, “crianças-ciborgue”,
“crianças-boneca de louça”, “crianças-pintura renascentista”, como elas potenciali-
zavam tanta ação?
Marina Marcondes Machado (2010), ao referir-se às crianças, inspirada pela
psicologia, pela antropologia e pela fenomenologia, cunha o termo “criança performer”,
que é a possibilidade da criança de agir em relação ao mundo que a cerca, aos sujeitos
e objetos, de performar e criar sentidos e significados, criar relações sensíveis no aqui
e agora. A autora, inclusive, afirma categoricamente, em um exercício de ênfase retó-
rica: “a criança é performer” (MACHADO, 2010).
Assim, ao me perguntar sobre a ação que emana dessas fotografias (que quase
sempre retratam crianças estáticas, posando para as fotos e não em movimento), a
potência de ação que ali se apresenta a mim como espectadora, eu associo a afir-
mação de Marcondes Machado ao trabalho dos fotógrafos e depreendo que Lux e
Van Empel imprimem em suas fotografias a “capacidade performativa” da infância.Ali,
naquelas imagens, daquelas crianças em não-movimento, que olham muitas vezes
diretamente para a câmera, há uma relação com o espectador que incita a uma ação
performativa sobre aquele que observa, que vê, que mira a fotografia. Essas crianças
são performers e dão abertura ao espectador para que também ele seja um.
Entrelaçando meu amadorismo em relação às artes visuais e a potência da
criança-performer, posso afirmar que também o amador pode ser um performer em
seu aprendizado através da experiência prática, concreta, de um fazer através da
linguagem e de um fazer-espectador. Estão relacionados, pois, alguns vértices desta
reflexão: meu fazer-performer como espectadora, a criança-performer nas fotografias
e o meu performar-artista como escritora de pequenos contos.
19
O encontro com as visualidades de Loretta Lux e Ruud Van Empel
Gostaria de comentar, ainda que brevemente, acerca das fotografias dos dois
artistas aqui citados. Esses comentários partem da minha percepção e da relação que
eu construí a partir de suas obras, como espectadora ou leitora de imagens.
É pertinente que comece pelo suporte, nesse caso: conheci os mundos imagé-
ticos de Ruud Van Empel e de Loretta Lux através da internet. Talvez seja redundante
citar que a acessibilidade a diversas vertentes de cultura visual, das artes visuais
e audiovisuais modificou-se radicalmente nos últimos 15 anos. Nesse curto espaço
de tempo, minha geração passou a ter acesso a inúmeros artistas e obras que não
eram necessariamente aqueles estudados nas parcas aulas de artes que tínhamos
na educação básica e nem aqueles constantes do cânone ocidental das artes visuais.
No caso da fotografia, ainda poderíamos citar a verdadeira revolução criada pela
digitalização do suporte fotográfico, que além de criar resultados surpreendentes do ponto
de vista estético, possibilitaram uma proliferação desenfreada do hábito de fotografar entre
amadores de todo o planeta, que compartilham suas produções em velocidade e cons-
tância assustadoras nas redes sociais, em blogs de imagens e em sítios temáticos.
Neste verdadeiro mar de imagens no qual estamos imersos em todos os espaços
do cotidiano e com veemência maior nas redes de computador, os trabalhos de
Loretta Lux e Ruud Van Empel tem destaque e reconhecimento do campo das artes
visuais através de exposições em museus e da representação de comercialização por
marchands e galerias. São artistas profissionais legitimados pelo campo e, concomi-
tantemente, com ampla divulgação de sua produção visual nos espaços virtuais.
Há mais de uma década me interesso pelas crianças em suas relações com o
teatro e com a linguagem cênica, tenho um livro publicado sobre recepção teatral e
crianças (FERREIRA, 2010), outro sobre teatro e dança nos anos iniciais (FALKEM-
BACH e FERREIRA, 2012) e alguns artigos sobre o tema em periódicos5
. Meu inte-
resse por como as crianças são representadas na arte, desde então, esteve presente
e lanço mão, frequentemente, nas aulas que ministro nas licenciaturas em Teatro e
Dança da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), de imagens de pinturas, gravuras,
desenhos, esculturas e fotografias de crianças ao longo da história, a fim de debater
as diferentes infâncias presentes na contemporaneidade e a construção social da
infância. Nestas buscas por referenciais visuais para meu trabalho como professora
5 As publicações da autora podem ser conhecidas em: <https://ufpel.academia.edu/Ta%C3%ADsFerreira>
20
e pesquisadora, encontrei esses dois artistas e deixei-me encantar pela potência de
suas fotografias.
Ambos trabalham com técnicas de composição fotográfica digitalizada. São foto-
grafias de crianças recompostas posteriormente através de programas de computador,
em montagens que agregam às cenas retratadas elementos como objetos ou cenários.
As imagens das crianças também são trabalhadas, conferindo a elas aspectos que vão
do hiper-realista ao artificial, paródico. Estas crianças são bonecos? Outdoors? Pinturas
renascentistas ou modelos de “folhinhas de calendário”? As referências ao kitsch e à
alta cultura fazem desses retratos e dessas composições com personagens-criança,
por vezes adultos em miniatura como na representação das crianças da arte medieval e
bizantina, objetos de estranhamento. A beleza e a perfeição plástica das composições,
ao invés de confortar, desestabilizam. E, talvez, resida nesta desestabilização a potência
destas imagens; potência geradora de imagens-ação que induziriam a um pensamento
dotado de teatralidade, de ação dramática, de relação, de conflitos.
As propostas imagéticas das obras de Van Empel e Lux remetem ao estranha-
mento, ao desconforto, à sensação de que “algo não está certo” ou de que “algo está
fora de lugar” naquela aparente perfeição estética, naquela beleza quase sublime, ange-
lical e etérea apresentada em algumas fotografias. E esse estranhamento estético dire-
ciona, por sua vez, aos estranhamentos todos os envolvidos no embate entre adultos
e infâncias que se esboçam no horizonte dos campos da educação, psicologia, da
antropologia e sociologia contemporaneamente. As múltiplas infâncias e modos de ser
criança tornaram a tarefa dos adultos (pais, professores, psicólogos, médicos, filósofos,
pesquisadores) de compreender, conhecer e posteriormente moldar, educar e civilizar
as crianças, um tanto quanto mais nebulosa do que há algumas décadas. A criança-
-performer não se deixa capturar e modelar assim tão facilmente: ela mesma modela
a si e ao mundo, em um contínuo vai e vem, remodelando-se a cada nova descoberta.
Ainda sobre as visualidades: nas fotografias de Van Empel os cenários são,
muitas vezes, a natureza ficcional, mas exuberante, de florestas tropicais, lagos e rios
cobertos de vegetação aquática, gramados floridos, jardins coloridos, verdes abertos
e luminosos, verdes escuros e azulados. Nessas fotografias, as crianças posam ou
em uma nudez perfeita e casta, ou trajadas com roupas “dominicais”, limpas, bem
passadas, com pequenas luvas e joias, sapatos de verniz, cabelos bem penteados,
gravatas borboleta, meias ¾, tudo pronto para um retrato para a posteridade à moda
21
antiga, quando eram preparadas para a fotografia, um momento importante de suas
infâncias e de suas performatividades infantis6
.
A contraposição entre a exuberância natural dos cenários e os figurinos montados
e perfeitamente ajustados das crianças, o que, de certa forma, as “adultiza”, remete
diretamente ao discurso fatalista do desaparecimento da infância, promovido por Neil
Postman (1999). Esse autor promulga um suposto fim da infância moderna baseado
no fato da mídia contemporânea desfazer as barreiras existentes entre os conheci-
mentos dos adultos e aqueles apropriados para as crianças, separação que esteve
na base da construção social da infância a partir do século XVI, isso conforme Ariés
(1981) em seu já clássico livro sobre o tema. Natureza e sociedade estariam, assim,
convivendo em tensão na representação das infâncias de Van Empel.
Loretta Lux, por sua vez, trabalha de forma mais discreta com os cenários: fundos
neutros ou o céu azul estão presentes em muitas de suas fotografias. As crianças,
algumas vezes encaram o espectador com olhares desafiadores, por outras, voltam
seus olhares ao longe ou ao nada, em claro sinal de melancolia. Não há sorrisos, não
há a alegria ou as sonoridades associadas ao mundo infantil. Há a frieza dos tons
pastel, das peles alvas e, talvez, o ruído do vento. As crianças de Loretta Lux estão
descalças, na maior parte das fotos. No entanto, essa atitude talvez seja a única que
corporalmente, em suas performances, remeta para algo relacionado ao imaginário
comum sobre infâncias, ao despojamento das brincadeiras infantis.As cores das fotos,
os olhares dos retratados, os ambientes (vazios, no geral), a solidão: esse compêndio
de características nos provoca estranhamento e desconforto, nos provoca perguntas.
O que há, enfim, com essas crianças que não sorriem, não brincam e não cumprem
seus papéis no modelo esperado de infância pelo mundo contemporâneo ocidental?
Por que parecem tanto pequenos adultos? Por que demonstram tanta melancolia,
sendo que são crianças e deveriam ser contentes, alegres, festivas?
Processo de criação: entre fotografias, personagens e memórias
Estas imagens suscitaram a vontade de criar cenas a partir delas. Primeiramente
as de Loretta Lux, já que conheci e explorei suas obras antes das de Van Empel.
Naquele momento, eu também estava bastante inspirada por um pequeno livro, que
6 Mesmo na série de fotos de 2010, intitulada Generation, em que grupos de crianças multiétnicas posam para
uma fotografia panorâmica, remetendo às clássicas fotos de turma escolar, há uma organização meticulosa e
organizada, há olhares que performam, únicos, nos coletivos de crianças.
22
comprara em um balaio de promoções da Feira do Livro de Porto Alegre pela simbólica
quantia de um real: “Grimble”7
, de Clement Freud, jornalista e comunicador inglês, neto
de Sigmund Freud. Esse livro conta a história de Grimble, um menino que leva sua
vida cotidiana praticamente só, já que seus pais estão sempre viajando. Ele é orien-
tado por uma série de bilhetes dos pais, de parentes e de vizinhos, que o ensinam a
cozinhar diferentes pratos, dos quais dependerá a sua subsistência. O pequeno anti-
-herói (ele não é uma criança dotada daquelas virtudes consideradas heroicas na
literatura: não tem coragem, força ou astúcia acima da média) segue sua vida, vai à
escola, faz suas refeições, nada, realiza as tarefas escolares, frequenta a vizinhança
e aguarda o retorno dos pais. Os bilhetes são seu “objeto mágico”, pensando nas cate-
gorias propostas pelo russo Propp (1984) em sua teoria sobre os contos maravilhosos.
Os enfrentamentos cotidianos de Grimble mostram que uma criança pode receber
uma caracterização de independência e de aprendizagem autônoma sem ser ligada ao
abandono, ao heroísmo ou às altas habilidades cognitivas. Ele é uma criança que vive
a sua vida, que é semelhante a vida de quase todas as crianças pertencentes à classe
média ocidental. No entanto, Grimble não é frágil, não é inocente, não é dependente e
tampouco uma tabula rasa: é preguiçoso e curioso, é solitário, mas sabe fazer amigos.
Grimble apresenta uma infância que não era aquela dimensionada pelos discursos
vigentes sobre as crianças na década de 608
e tampouco o é nos dias atuais.
O personagem Grimble, que tem mais ou menos 10 anos, segundo suas pala-
vras, instigou-me, com as imagens de Lux, a escrever pequenos contos, minicontos, que
eu pretendia transformar em uma performance teatral. Ao escrevê-los, aos poucos, ao
longo de anos, eu usei muito do repertório das memórias da minha infância. Havia um
eixo: o personagem Grimble, que transformei em Grim e na minha concepção seria uma
menina.As fotografias suscitavam a escrita dos minicontos e minhas memórias também.
Alguns eram escritos quando eu evocava a memória e outros eu escrevia a partir das
fotos, muitos deles eram oriundos de ambos os esforços, numa espécie de cruzamento
entre potências das imagens e da memória. Assim, partindo das fotografias de Lux e
Van Empel, do personagem do livro de Freud, da minha subjetividade e da teatralidade
que eu percebia nesses elementos, escrevi esses minicontos9
ao longo de cinco anos.
7 Com nova edição brasileira, lançada em agosto de 2014, pela editora Pequena Zahar.
8 A primeira edição de “Grimble” data de 1968, na Inglaterra, pela editora Collins.
9 Estes contos formaram, desde o princípio, um blog chamado “Eu sou GRIM”. Este blog esteve no ar até janeiro de
2014 e sua primeira postagem data de 14 de dezembro de 2008 e a última de 03 de outubro de 2012. Minha ideia
23
O tempo passou e muitas outras demandas de meu trabalho como docente se
interpuseram à realização do intento de construir um espetáculo ou uma performance.
No entanto, ali existia um material que contava algumas histórias da minha infância,
que inventava outras. Esse foi apresentado a uma editora e transformou-se em um
livro para crianças. O ciclo não se fechou, mas uma relação cíclica estabeleceu-se,
entre o interesse pelas infâncias e seus estudos, pelas representações infantis e as
imagens pesquisadas, o livro infantil e seu personagem, a potência de ação dramática
ou performática que eu vislumbrava nas imagens e que intentava transpor através de
uma escrita breve, lacunar e tópica, até estes escritos tornarem-se um produto cultural
para crianças10
, intitulado “Minicontos da Tati, Tatá, Tís, Tisoca”.
Cadê o teatro que estava aqui?
Como a teatralidade se fez presente neste processo criativo pautado em imagens
e que culminou em literatura? Pretendo dar fechamento a estas reflexões com o desen-
volvimento deste tópico.
No campo das artes cênicas, a teatralidade é discutida a partir de diferentes
pontos de vista11
.Além daqueles estudos estritamente ligados às artes da cena, pode-
ríamos ainda elencar antropólogos e sociólogos que discutiram o conceito, suas contri-
buições também foram valiosas ao campo, mas não é este o objetivo deste escrito,
que se propõe, tão somente, a pensar em um percurso criativo que foi atravessado
pelo teatral como desejo de teatro, por um teatro em devir, que não veio a ser, mas que
germinou produtos outros.
Assim, quando trato da teatralidade das fotografias de crianças de Ruud Van
Empel e Loretta Lux, trato não de uma teatralidade indelével a elas, mas a uma leitura
teatral feita por mim, através das minhas lentes de pessoa de teatro, que perceberam
nelas potência de ação, de personagens-criança, de espetacularidade, de “dar a ver”
sempre foi a de montar um espetáculo ou uma performance cênica a partir desses escritos breves e lacunares,
partindo de uma personagem-criança e discutindo questões sobre as infâncias na contemporaneidade.
10 Houve um trabalho do editor para adequação dos formatos, o acréscimo de outros contos que não constavam
do blog e as ilustrações de um profissional que trabalha com literatura infantil. A editora responsável foi Jussara
Hoffmann e o ilustrador Dane D’Angeli.
11 Não há espaço neste artigo para aprofundamento sobre o conceito de teatralidade, intento que já foi realizado
por diversos pesquisadores brasileiros. Cito aqui somente alguns referenciais basilares à discussão: 1) os estudos
da performance, empreendidos por Richard Schechner (escola estadunidense), 2) os estudos da etnocenologia,
propostos por Jean-Marie Pradier (escola francesa) e ainda 3) o desenvolvimento dos conceitos de teatralidade
e performatividade empreendidos por Josette Féral (escola canadense).
24
(e dar a sentir e viver) em ação e em relação direta entre aquele que mostra/faz e
aquele que assiste. Assim, o conceito de teatralidade estaria mais próximo daquele
de performatividade, já que “a performance nunca é um objeto ou uma obra acabada,
mas sempre um processo, por estar ligada ao domínio do fazer e ao princípio da ação”
(FERNANDES, 2011, p.16). A mesma autora, ao tratar da performatividade, relata que
esta “seria ao mesmo tempo uma ferramenta teórica e um ponto de vista analítico, já
que toda construção da realidade social tem potencial performativo” (FERNANDES,
2011, p.16). Chegamos aqui ao ponto de interesse deste artigo.
O estranhamento em relação a tais imagens foi propulsor de um deslocamento
espaço-temporal de minha percepção que remete diretamente à teoria do lúdico de
Huizinga (2000). Para esse autor, o jogo seria sempre uma atividade não obrigatória e
não produtiva que cria uma fissura no tempo-espaço do cotidiano.Assim, a suposta inade-
quação ao real, porém com referente nele, era um traço de teatralidade presente nessas
fotografias.Teatralidade esta conferida pelo meu olhar performativo sobre as imagens.
Outra qualidade teatral das fotografias de crianças destes dois artistas é a arti-
ficialidade com que são retratadas as infâncias. Em tal caso, o conceito de teatrali-
dade estaria mais próximo daquele proposto pelos encenadores russos do início do
século, como Tairov, Vakhtangov e Meierhold (ROUBINE, 1998), para os quais o teatro
deveria retomar sua teatralidade, ou seja, as características daquilo que o diferencia
das outras linguagens, incluindo aí uma artificialidade assumida e explícita. Meierhold
“o entende e o pratica [o conceito de teatralidade] como estratégias de distanciamento
do familiar pelo emprego de recursos do próprio teatro, de modo a chamar a atenção
para seu caráter de jogo e artifício” (FERNANDES, 2011, p. 14).
Nas fotografias, nada é natural; ainda que os cenários (propositalmente colagens
ou montagens) remetam a florestas, céus azuis, gramados, rios, lagoas, jardins ou
selvas, contrastam com eles crianças em roupas formais e vintage (remetendo aos
anos 50, 60 e 70) ou absolutamente nuas (no caso de Van Empel, que possui uma
série de nus). Suas peles são como plástico e tem um brilho que só os polímeros
poderiam dar a uma superfície. Não são crianças reais, ainda que retratadas de modo
hiper-realista: elas são jogo e artifício. Destarte, por mais que as cenas e seus perso-
nagens tenham referência no real, o excedem e causam desconforto pela percepção
do estranho naquilo que nos é tão familiar, como o caso de retratos infantis.
25
As reações que me propiciam aquelas fotos podem ser relacionadas diretamente ao
tipo de literatura sobre infâncias que muitas áreas do conhecimento têm produzido (e eu,
por conseguinte, lido): crianças-ciborgue, crianças-adulto, crianças-monstro, crianças-
-sem infância, crianças-sabe tudo, crianças-trabalhadoras. Essas crianças das teorias
da infância aparecem de forma contundente e eloquente nas obras de Lux e Van Empel.
Bem como o menino Grimble, do livro de Freud, surpreende-nos em sua independência
do mundo dos adultos. Que crianças são essas que prescindem de nós? Que crianças
são essas que tem uma cultura própria e conhecimentos próprios? Que crianças são
essas que destoam radicalmente do cenário (mundo) projetado pelos adultos para que
elas se insiram de forma harmoniosa? Essas, enfim, eram as infâncias que eu almejava
pensar como pesquisadora e professora e performar como atriz.
Se “a teatralidade não é um dado empírico ou uma qualidade, mas uma operação
cognitiva ou ato performativo daquele que olha (o espectador) e/ou daquele que faz (o
ator)” (FERNANDES, 2011, p. 17), posso inferir que meu olhar sobre aquelas fotografias
as tornava teatrais. Nos meandros desta teatralidade, as ações narradas, que poderiam
vir a ser ações dramáticas que gerassem pequenas cenas teatrais, foram oriundas,
progressivamente, da minha própria infância. Relações de conflito, de embate por vezes
com a realidade, com o mundo dos adultos e um enorme desejo, paradoxalmente, de
ingressar neste mundo, produziram situações reais em minha infância, das quais tenho
uma memória reconstruída através daquilo que lembro e de narrativas parentais.
Essas memórias foram, paulatinamente, acrescidas às reações provocadas
pelas fotografias, pelas leituras de teoria e pelo personagem Grimble, que se tornaram
também a pequena Taís ou um de seus (meus) muitos apelidos de infância: Tatá, Tati,
Tís, Tisoca. E, ao invés de um espetáculo sobre algo que estivesse num entremeio
entre a performance e o teatro documentário, acabei por ter em mãos um conjunto de
minicontos, de pequenas auto ficções sobre uma menina, sua família, seus animais,
sua escola, seu mundo. Esse é o pequeno ciclo que intentei aqui contar e que ainda
poderá vir a ser a performance desejada, dando continuidade à espiral.
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26
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_____. Os dois teatros. Sala Preta, Brasil, v. 12, n. 1, p. 125-140, jun. 2012. ISSN 2238-3867.
Disponível em: <http://www.revistas.usp.br/salapreta/article/view/57552>. Acesso em: 1 Dez.
2014. doi: http://dx.doi.org/10.11606/issn.2238-3867.v12i1p125-140.
POSTMAN, Neil. O desaparecimento da infância. Rio de Janeiro: Graphia Editora, 1999.
PROPP, Vladimir. Morfologia do conto maravilhoso. Rio de janeiro: Forense Univesitária,
1984.
ROUBINE, Jean-Jacques. A Linguagem da Encenação Teatral. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.

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  • 1. DOI: 10.11606/issn.2238-3999.v4i2p15-26 Especial INFÂNCIAS, FOTOGRAFIAS, LIVROS PARA CRIANÇAS: cadê o teatro que estava aqui? CHILDHOOD, PHOTOGRAFIES, CHILDREN BOOKS: where is the theater that was here? NIÑEZ, FOTOGRAFÍAS, LIBROS PARA NIÑOS: donde está el teatro que estava acá? Taís Ferreira1 Resumo Neste texto, narro uma trajetória cíclica: de como um interesse pelas crianças encontrou fotografias, de como estas imagens específicas potencializaram desejo de teatro e de como acabaram, por fim, tornando- se contos para crianças, em um ciclo que envolve visualidade, literatura, teatralidade e infância. Estas reflexões são atravessadas por referenciais teóricos dos estudos sobre as infâncias vinculados à educação, aos estudos culturais, à sociologia e à arte e por referenciais dos estudos de recepção cênica. Palavras-chave: literatura para crianças, recepção, teatralidade, visualidade Abstract In this paper, I tell a cyclic way: how an interest about children met photographs, how these specific images growing up a desire for theater and how, at the end, they became children’s literature, in a cycle that involves visuality, literature and childhood. These thinking are crossed by theoretical referential about childhood in the education, cultural studies, sociology, art and reception studies. Keywords: children’s literature, reception, theatricality, visuality. Resumen En este artículo, narro una trayectoria cíclica: de como un interés por los niños ha encontrado fotografías, de cómo estas imágenes específicas potencializaran el deseo del teatro y de cómo terminaran siendo cuentos para niños, en un ciclo que implica visualidad, literatura, teatralidad y niñez. Estas reflexiones están atravesadas por referenciales teóricos de los estudios sobre la niñez, vinculados a la educación, a los estudios culturales, a la sociología y a el arte y por los referenciales de los estudios de recepción escénica. Palabras-clave: literatura para niños, recepción, teatralidad, visualidad. 1 Taís Ferreira é professora do curso de Teatro – Licenciatura da Universidade Federal de Pelotas. Bacharel em Artes Cênicas e Mestre em Educação (UFRGS). Doutoranda em co-tutela entre PPGAC da Universidade Federal da Bahia e Dottorato Arti Visive, Performative e Mediali da Università di Bologna. Bolsista CNPq. Autora de diversos livros, capítulos e artigos sobre pedagogias do teatro, recepção cênica, artefatos culturais para crianças e formação de professores. Informações: https://ufpel.academia.edu/Ta%C3%ADsFerreira aSPAs ppgac - USP
  • 2. 16 Estes escritos partem do amadorismo e da recepção. O amadorismo é entendido aqui não com o tom pejorativo que o substantivo recebe comumente no Brasil, mas a partir da leitura francófona de Mervant-Roux (2012), que toma o amadorismo como o amor (por determinada arte ou atividade) aliado às relações de sociabilidade, de comunhão social, de vizinhança, de troca e de convívio. Esse termo foi desenvolvido pelo argentino Dubatti, bastante em voga nos estudos teatrais brasileiros nos últimos anos. Essas qualidades estão, segundo Mervant-Roux (2012), na base do envolvimento dos sujeitos com o teatro amador, seu objeto em alguns estudos. Por conseguinte, estes escritos estão atravessados de subjetividade. Da minha subjetividade, mais precisamente; da minha leitura a partir da visão de outros artistas sobre crianças, retratando-as, construindo mundos e representações de infâncias. Por isso, trata-se também de um escrito de recepção: um processo relacional (aqui faço uso do adjetivo empregado por De Marinis (2005) para especificar o teatro como relação), construído por mim, como espectadora de determinadas obras de arte, que gera efeitos e usos específicos, em um espaço-tempo prolongado, que antecede e excede o acontecimento mesmo de “espectar” (ou seja, o aqui-agora com as obras). Entretanto, mais do que discorrer sobre essas obras e tais representações, pretendo contar, ao modo de um relato de experiência criativa, como, ao longo de cinco anos, deixei-me embeber pela potência destas visualidades sobre (ou a partir de) crianças, culminando na criação de um produto cultural para as crianças (um livro categorizado como literatura infanto-juvenil2 ), todo este processo atravessado pela possibilidade do teatro (este livro poderia ou “deveria ter sido” uma performance cênica). Assim, as fotografias de dois artistas, a alemã Loretta Lux e o holandês Ruud Van Empel3 , inspiraram a confecção de micronarrativas que eu julgava potentes para a criação de ação cênica, de personagem-criança, de ficções sobre infâncias contemporâ- neas que pudessem vir a ser cenas, acontecimentos cênicos, performances.A memória, nesse caso, esteve presente através da evocação de situações, ações, cenários, perso- nagens lembrados (imaginados) de minha infância, que permearam minha relação com 2 O livro referenciado é Minicontos da Tati,Tatá,Tís,Tisoca, pela Editora Mediação de Porto Alegre. Informações em: https://www.editoramediacao.com.br/#livro/minicontos-da-tati,-tata,-tis,-tisoca.13/268 3As obras dos dois artistas, Ruud Van Empel e Loretta Lux, seus currículos e carreiras podem ser conhecidos em seus respectivos sítios-portfólios na internet, nos endereços a seguir: http://web.ruudvanempel.nl/home.html e http://www.lorettalux.de/
  • 3. 17 as fotografias4 e compuseram o escopo de breves cenas ou pequenos contos. Entre- tanto, antes de dar continuidade às minhas impressões como receptora das obras de Lux e Van Empel, gostaria de apresentar uma pergunta e uma possível resposta. A pergunta Por que uma pessoa, que estuda teatro, está escrevendo sobre ou a partir de cultura visual e de imagens? Pergunta essa que eu mesma me fiz e que pode ser feita pelos leitores. Explico: sempre gostei das visualidades. Eu tive uma tia, professora de artes, que me estimulou a “bordar arte” (FERREIRA, 2014) quando criança. Eu estudei pintura por alguns anos, na adolescência, mas não segui e nem me aprofundei nos estudos das artes visuais. Desde a minha infância sou uma amadora do cinema e da fotografia. Esse amor, essa paixão, esse gostar desinteressado e vinculado a uma comunidade (a comuni- dade das artes no Rio Grande do Sul, aos meus pares colegas e amigos, aos meus professores) não foi acrescido de aprofundamento teórico sobre as artes visuais e audiovisuais e sim de séries de experiências empíricas, bem ao gosto do autodida- tismo daquele que aprende na relação com o mundo. Sem sistematização prévia do conhecimento, num ciclo de (des)organização interna do fluxo destas experiências: descobrir um artista ou um diretor, que leva a outros produtos, que levam a determi- nada sala, que dá a ver uma exposição, que liga com uma escola estética, que remete a uma série televisiva, que pode ser baseada em um livro, que tem um personagem que virou filme, que foi interpretado por determinado ator, que fez outro filme de deter- minado diretor, etc. Mais ou menos assim segue o ciclo do interesse não sistemati- zado pelos conteúdos dos currículos e dos livros ditos especializados: espiralado, reti- cular, helicoidal, sinuoso; jamais reto, duro e direto. Ou seja: eu sou uma espectadora (leitora) amante (amadora) das artes visuais e audiovisuais, no sentido proposto por Mervant-Roux (2012). 4 Cumpre notar que não incluo imagens das obras de Van Empel e de Lux neste trabalho. Justifico a ausência destas referências visuais pela possibilidade de abertura que pretendo dar ao leitor. Caso escolha obras específicas destes artistas a serem mostradas, guiarei e limitarei o olhar daquele que lê. Prefiro que os leitores que se interessarem por este artigo, pela sua temática e pelos artistas aqui comentados, efetuem sua própria pesquisa visual, empenho que facilmente pode ser realizado através da rede mundial de computadores. Indico os dois sítios oficiais dos artistas na Nota 3, embora haja trabalhos deles disponíveis em sítios de museus e galerias de arte, entre outros.
  • 4. 18 Retomando: eu estudava infâncias, eu gostava de visualidades, eu pesquisava a relação das crianças com as artes e artefatos culturais feitos para elas por adultos. Assim, contingencialmente, cheguei aos dois artistas citados, seus retratos de crianças e suas infâncias inventadas. A arte de Van Empel e de Lux não são feitas para crianças, não tem este modo de endereçamento. Elas são feitas a partir do olhar de dois adultos para o mundo, tendo as crianças como objetos ou personagens. E ao trabalhar com imagens de crianças, esses dois adultos inventam mundos ficcionais que remetem a leituras específicas das diferentes infâncias contemporâneas. E isso me intrigou: como essas crianças, está- ticas em fotografias trabalhadas por programas de computador, “crianças-ciborgue”, “crianças-boneca de louça”, “crianças-pintura renascentista”, como elas potenciali- zavam tanta ação? Marina Marcondes Machado (2010), ao referir-se às crianças, inspirada pela psicologia, pela antropologia e pela fenomenologia, cunha o termo “criança performer”, que é a possibilidade da criança de agir em relação ao mundo que a cerca, aos sujeitos e objetos, de performar e criar sentidos e significados, criar relações sensíveis no aqui e agora. A autora, inclusive, afirma categoricamente, em um exercício de ênfase retó- rica: “a criança é performer” (MACHADO, 2010). Assim, ao me perguntar sobre a ação que emana dessas fotografias (que quase sempre retratam crianças estáticas, posando para as fotos e não em movimento), a potência de ação que ali se apresenta a mim como espectadora, eu associo a afir- mação de Marcondes Machado ao trabalho dos fotógrafos e depreendo que Lux e Van Empel imprimem em suas fotografias a “capacidade performativa” da infância.Ali, naquelas imagens, daquelas crianças em não-movimento, que olham muitas vezes diretamente para a câmera, há uma relação com o espectador que incita a uma ação performativa sobre aquele que observa, que vê, que mira a fotografia. Essas crianças são performers e dão abertura ao espectador para que também ele seja um. Entrelaçando meu amadorismo em relação às artes visuais e a potência da criança-performer, posso afirmar que também o amador pode ser um performer em seu aprendizado através da experiência prática, concreta, de um fazer através da linguagem e de um fazer-espectador. Estão relacionados, pois, alguns vértices desta reflexão: meu fazer-performer como espectadora, a criança-performer nas fotografias e o meu performar-artista como escritora de pequenos contos.
  • 5. 19 O encontro com as visualidades de Loretta Lux e Ruud Van Empel Gostaria de comentar, ainda que brevemente, acerca das fotografias dos dois artistas aqui citados. Esses comentários partem da minha percepção e da relação que eu construí a partir de suas obras, como espectadora ou leitora de imagens. É pertinente que comece pelo suporte, nesse caso: conheci os mundos imagé- ticos de Ruud Van Empel e de Loretta Lux através da internet. Talvez seja redundante citar que a acessibilidade a diversas vertentes de cultura visual, das artes visuais e audiovisuais modificou-se radicalmente nos últimos 15 anos. Nesse curto espaço de tempo, minha geração passou a ter acesso a inúmeros artistas e obras que não eram necessariamente aqueles estudados nas parcas aulas de artes que tínhamos na educação básica e nem aqueles constantes do cânone ocidental das artes visuais. No caso da fotografia, ainda poderíamos citar a verdadeira revolução criada pela digitalização do suporte fotográfico, que além de criar resultados surpreendentes do ponto de vista estético, possibilitaram uma proliferação desenfreada do hábito de fotografar entre amadores de todo o planeta, que compartilham suas produções em velocidade e cons- tância assustadoras nas redes sociais, em blogs de imagens e em sítios temáticos. Neste verdadeiro mar de imagens no qual estamos imersos em todos os espaços do cotidiano e com veemência maior nas redes de computador, os trabalhos de Loretta Lux e Ruud Van Empel tem destaque e reconhecimento do campo das artes visuais através de exposições em museus e da representação de comercialização por marchands e galerias. São artistas profissionais legitimados pelo campo e, concomi- tantemente, com ampla divulgação de sua produção visual nos espaços virtuais. Há mais de uma década me interesso pelas crianças em suas relações com o teatro e com a linguagem cênica, tenho um livro publicado sobre recepção teatral e crianças (FERREIRA, 2010), outro sobre teatro e dança nos anos iniciais (FALKEM- BACH e FERREIRA, 2012) e alguns artigos sobre o tema em periódicos5 . Meu inte- resse por como as crianças são representadas na arte, desde então, esteve presente e lanço mão, frequentemente, nas aulas que ministro nas licenciaturas em Teatro e Dança da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), de imagens de pinturas, gravuras, desenhos, esculturas e fotografias de crianças ao longo da história, a fim de debater as diferentes infâncias presentes na contemporaneidade e a construção social da infância. Nestas buscas por referenciais visuais para meu trabalho como professora 5 As publicações da autora podem ser conhecidas em: <https://ufpel.academia.edu/Ta%C3%ADsFerreira>
  • 6. 20 e pesquisadora, encontrei esses dois artistas e deixei-me encantar pela potência de suas fotografias. Ambos trabalham com técnicas de composição fotográfica digitalizada. São foto- grafias de crianças recompostas posteriormente através de programas de computador, em montagens que agregam às cenas retratadas elementos como objetos ou cenários. As imagens das crianças também são trabalhadas, conferindo a elas aspectos que vão do hiper-realista ao artificial, paródico. Estas crianças são bonecos? Outdoors? Pinturas renascentistas ou modelos de “folhinhas de calendário”? As referências ao kitsch e à alta cultura fazem desses retratos e dessas composições com personagens-criança, por vezes adultos em miniatura como na representação das crianças da arte medieval e bizantina, objetos de estranhamento. A beleza e a perfeição plástica das composições, ao invés de confortar, desestabilizam. E, talvez, resida nesta desestabilização a potência destas imagens; potência geradora de imagens-ação que induziriam a um pensamento dotado de teatralidade, de ação dramática, de relação, de conflitos. As propostas imagéticas das obras de Van Empel e Lux remetem ao estranha- mento, ao desconforto, à sensação de que “algo não está certo” ou de que “algo está fora de lugar” naquela aparente perfeição estética, naquela beleza quase sublime, ange- lical e etérea apresentada em algumas fotografias. E esse estranhamento estético dire- ciona, por sua vez, aos estranhamentos todos os envolvidos no embate entre adultos e infâncias que se esboçam no horizonte dos campos da educação, psicologia, da antropologia e sociologia contemporaneamente. As múltiplas infâncias e modos de ser criança tornaram a tarefa dos adultos (pais, professores, psicólogos, médicos, filósofos, pesquisadores) de compreender, conhecer e posteriormente moldar, educar e civilizar as crianças, um tanto quanto mais nebulosa do que há algumas décadas. A criança- -performer não se deixa capturar e modelar assim tão facilmente: ela mesma modela a si e ao mundo, em um contínuo vai e vem, remodelando-se a cada nova descoberta. Ainda sobre as visualidades: nas fotografias de Van Empel os cenários são, muitas vezes, a natureza ficcional, mas exuberante, de florestas tropicais, lagos e rios cobertos de vegetação aquática, gramados floridos, jardins coloridos, verdes abertos e luminosos, verdes escuros e azulados. Nessas fotografias, as crianças posam ou em uma nudez perfeita e casta, ou trajadas com roupas “dominicais”, limpas, bem passadas, com pequenas luvas e joias, sapatos de verniz, cabelos bem penteados, gravatas borboleta, meias ¾, tudo pronto para um retrato para a posteridade à moda
  • 7. 21 antiga, quando eram preparadas para a fotografia, um momento importante de suas infâncias e de suas performatividades infantis6 . A contraposição entre a exuberância natural dos cenários e os figurinos montados e perfeitamente ajustados das crianças, o que, de certa forma, as “adultiza”, remete diretamente ao discurso fatalista do desaparecimento da infância, promovido por Neil Postman (1999). Esse autor promulga um suposto fim da infância moderna baseado no fato da mídia contemporânea desfazer as barreiras existentes entre os conheci- mentos dos adultos e aqueles apropriados para as crianças, separação que esteve na base da construção social da infância a partir do século XVI, isso conforme Ariés (1981) em seu já clássico livro sobre o tema. Natureza e sociedade estariam, assim, convivendo em tensão na representação das infâncias de Van Empel. Loretta Lux, por sua vez, trabalha de forma mais discreta com os cenários: fundos neutros ou o céu azul estão presentes em muitas de suas fotografias. As crianças, algumas vezes encaram o espectador com olhares desafiadores, por outras, voltam seus olhares ao longe ou ao nada, em claro sinal de melancolia. Não há sorrisos, não há a alegria ou as sonoridades associadas ao mundo infantil. Há a frieza dos tons pastel, das peles alvas e, talvez, o ruído do vento. As crianças de Loretta Lux estão descalças, na maior parte das fotos. No entanto, essa atitude talvez seja a única que corporalmente, em suas performances, remeta para algo relacionado ao imaginário comum sobre infâncias, ao despojamento das brincadeiras infantis.As cores das fotos, os olhares dos retratados, os ambientes (vazios, no geral), a solidão: esse compêndio de características nos provoca estranhamento e desconforto, nos provoca perguntas. O que há, enfim, com essas crianças que não sorriem, não brincam e não cumprem seus papéis no modelo esperado de infância pelo mundo contemporâneo ocidental? Por que parecem tanto pequenos adultos? Por que demonstram tanta melancolia, sendo que são crianças e deveriam ser contentes, alegres, festivas? Processo de criação: entre fotografias, personagens e memórias Estas imagens suscitaram a vontade de criar cenas a partir delas. Primeiramente as de Loretta Lux, já que conheci e explorei suas obras antes das de Van Empel. Naquele momento, eu também estava bastante inspirada por um pequeno livro, que 6 Mesmo na série de fotos de 2010, intitulada Generation, em que grupos de crianças multiétnicas posam para uma fotografia panorâmica, remetendo às clássicas fotos de turma escolar, há uma organização meticulosa e organizada, há olhares que performam, únicos, nos coletivos de crianças.
  • 8. 22 comprara em um balaio de promoções da Feira do Livro de Porto Alegre pela simbólica quantia de um real: “Grimble”7 , de Clement Freud, jornalista e comunicador inglês, neto de Sigmund Freud. Esse livro conta a história de Grimble, um menino que leva sua vida cotidiana praticamente só, já que seus pais estão sempre viajando. Ele é orien- tado por uma série de bilhetes dos pais, de parentes e de vizinhos, que o ensinam a cozinhar diferentes pratos, dos quais dependerá a sua subsistência. O pequeno anti- -herói (ele não é uma criança dotada daquelas virtudes consideradas heroicas na literatura: não tem coragem, força ou astúcia acima da média) segue sua vida, vai à escola, faz suas refeições, nada, realiza as tarefas escolares, frequenta a vizinhança e aguarda o retorno dos pais. Os bilhetes são seu “objeto mágico”, pensando nas cate- gorias propostas pelo russo Propp (1984) em sua teoria sobre os contos maravilhosos. Os enfrentamentos cotidianos de Grimble mostram que uma criança pode receber uma caracterização de independência e de aprendizagem autônoma sem ser ligada ao abandono, ao heroísmo ou às altas habilidades cognitivas. Ele é uma criança que vive a sua vida, que é semelhante a vida de quase todas as crianças pertencentes à classe média ocidental. No entanto, Grimble não é frágil, não é inocente, não é dependente e tampouco uma tabula rasa: é preguiçoso e curioso, é solitário, mas sabe fazer amigos. Grimble apresenta uma infância que não era aquela dimensionada pelos discursos vigentes sobre as crianças na década de 608 e tampouco o é nos dias atuais. O personagem Grimble, que tem mais ou menos 10 anos, segundo suas pala- vras, instigou-me, com as imagens de Lux, a escrever pequenos contos, minicontos, que eu pretendia transformar em uma performance teatral. Ao escrevê-los, aos poucos, ao longo de anos, eu usei muito do repertório das memórias da minha infância. Havia um eixo: o personagem Grimble, que transformei em Grim e na minha concepção seria uma menina.As fotografias suscitavam a escrita dos minicontos e minhas memórias também. Alguns eram escritos quando eu evocava a memória e outros eu escrevia a partir das fotos, muitos deles eram oriundos de ambos os esforços, numa espécie de cruzamento entre potências das imagens e da memória. Assim, partindo das fotografias de Lux e Van Empel, do personagem do livro de Freud, da minha subjetividade e da teatralidade que eu percebia nesses elementos, escrevi esses minicontos9 ao longo de cinco anos. 7 Com nova edição brasileira, lançada em agosto de 2014, pela editora Pequena Zahar. 8 A primeira edição de “Grimble” data de 1968, na Inglaterra, pela editora Collins. 9 Estes contos formaram, desde o princípio, um blog chamado “Eu sou GRIM”. Este blog esteve no ar até janeiro de 2014 e sua primeira postagem data de 14 de dezembro de 2008 e a última de 03 de outubro de 2012. Minha ideia
  • 9. 23 O tempo passou e muitas outras demandas de meu trabalho como docente se interpuseram à realização do intento de construir um espetáculo ou uma performance. No entanto, ali existia um material que contava algumas histórias da minha infância, que inventava outras. Esse foi apresentado a uma editora e transformou-se em um livro para crianças. O ciclo não se fechou, mas uma relação cíclica estabeleceu-se, entre o interesse pelas infâncias e seus estudos, pelas representações infantis e as imagens pesquisadas, o livro infantil e seu personagem, a potência de ação dramática ou performática que eu vislumbrava nas imagens e que intentava transpor através de uma escrita breve, lacunar e tópica, até estes escritos tornarem-se um produto cultural para crianças10 , intitulado “Minicontos da Tati, Tatá, Tís, Tisoca”. Cadê o teatro que estava aqui? Como a teatralidade se fez presente neste processo criativo pautado em imagens e que culminou em literatura? Pretendo dar fechamento a estas reflexões com o desen- volvimento deste tópico. No campo das artes cênicas, a teatralidade é discutida a partir de diferentes pontos de vista11 .Além daqueles estudos estritamente ligados às artes da cena, pode- ríamos ainda elencar antropólogos e sociólogos que discutiram o conceito, suas contri- buições também foram valiosas ao campo, mas não é este o objetivo deste escrito, que se propõe, tão somente, a pensar em um percurso criativo que foi atravessado pelo teatral como desejo de teatro, por um teatro em devir, que não veio a ser, mas que germinou produtos outros. Assim, quando trato da teatralidade das fotografias de crianças de Ruud Van Empel e Loretta Lux, trato não de uma teatralidade indelével a elas, mas a uma leitura teatral feita por mim, através das minhas lentes de pessoa de teatro, que perceberam nelas potência de ação, de personagens-criança, de espetacularidade, de “dar a ver” sempre foi a de montar um espetáculo ou uma performance cênica a partir desses escritos breves e lacunares, partindo de uma personagem-criança e discutindo questões sobre as infâncias na contemporaneidade. 10 Houve um trabalho do editor para adequação dos formatos, o acréscimo de outros contos que não constavam do blog e as ilustrações de um profissional que trabalha com literatura infantil. A editora responsável foi Jussara Hoffmann e o ilustrador Dane D’Angeli. 11 Não há espaço neste artigo para aprofundamento sobre o conceito de teatralidade, intento que já foi realizado por diversos pesquisadores brasileiros. Cito aqui somente alguns referenciais basilares à discussão: 1) os estudos da performance, empreendidos por Richard Schechner (escola estadunidense), 2) os estudos da etnocenologia, propostos por Jean-Marie Pradier (escola francesa) e ainda 3) o desenvolvimento dos conceitos de teatralidade e performatividade empreendidos por Josette Féral (escola canadense).
  • 10. 24 (e dar a sentir e viver) em ação e em relação direta entre aquele que mostra/faz e aquele que assiste. Assim, o conceito de teatralidade estaria mais próximo daquele de performatividade, já que “a performance nunca é um objeto ou uma obra acabada, mas sempre um processo, por estar ligada ao domínio do fazer e ao princípio da ação” (FERNANDES, 2011, p.16). A mesma autora, ao tratar da performatividade, relata que esta “seria ao mesmo tempo uma ferramenta teórica e um ponto de vista analítico, já que toda construção da realidade social tem potencial performativo” (FERNANDES, 2011, p.16). Chegamos aqui ao ponto de interesse deste artigo. O estranhamento em relação a tais imagens foi propulsor de um deslocamento espaço-temporal de minha percepção que remete diretamente à teoria do lúdico de Huizinga (2000). Para esse autor, o jogo seria sempre uma atividade não obrigatória e não produtiva que cria uma fissura no tempo-espaço do cotidiano.Assim, a suposta inade- quação ao real, porém com referente nele, era um traço de teatralidade presente nessas fotografias.Teatralidade esta conferida pelo meu olhar performativo sobre as imagens. Outra qualidade teatral das fotografias de crianças destes dois artistas é a arti- ficialidade com que são retratadas as infâncias. Em tal caso, o conceito de teatrali- dade estaria mais próximo daquele proposto pelos encenadores russos do início do século, como Tairov, Vakhtangov e Meierhold (ROUBINE, 1998), para os quais o teatro deveria retomar sua teatralidade, ou seja, as características daquilo que o diferencia das outras linguagens, incluindo aí uma artificialidade assumida e explícita. Meierhold “o entende e o pratica [o conceito de teatralidade] como estratégias de distanciamento do familiar pelo emprego de recursos do próprio teatro, de modo a chamar a atenção para seu caráter de jogo e artifício” (FERNANDES, 2011, p. 14). Nas fotografias, nada é natural; ainda que os cenários (propositalmente colagens ou montagens) remetam a florestas, céus azuis, gramados, rios, lagoas, jardins ou selvas, contrastam com eles crianças em roupas formais e vintage (remetendo aos anos 50, 60 e 70) ou absolutamente nuas (no caso de Van Empel, que possui uma série de nus). Suas peles são como plástico e tem um brilho que só os polímeros poderiam dar a uma superfície. Não são crianças reais, ainda que retratadas de modo hiper-realista: elas são jogo e artifício. Destarte, por mais que as cenas e seus perso- nagens tenham referência no real, o excedem e causam desconforto pela percepção do estranho naquilo que nos é tão familiar, como o caso de retratos infantis.
  • 11. 25 As reações que me propiciam aquelas fotos podem ser relacionadas diretamente ao tipo de literatura sobre infâncias que muitas áreas do conhecimento têm produzido (e eu, por conseguinte, lido): crianças-ciborgue, crianças-adulto, crianças-monstro, crianças- -sem infância, crianças-sabe tudo, crianças-trabalhadoras. Essas crianças das teorias da infância aparecem de forma contundente e eloquente nas obras de Lux e Van Empel. Bem como o menino Grimble, do livro de Freud, surpreende-nos em sua independência do mundo dos adultos. Que crianças são essas que prescindem de nós? Que crianças são essas que tem uma cultura própria e conhecimentos próprios? Que crianças são essas que destoam radicalmente do cenário (mundo) projetado pelos adultos para que elas se insiram de forma harmoniosa? Essas, enfim, eram as infâncias que eu almejava pensar como pesquisadora e professora e performar como atriz. Se “a teatralidade não é um dado empírico ou uma qualidade, mas uma operação cognitiva ou ato performativo daquele que olha (o espectador) e/ou daquele que faz (o ator)” (FERNANDES, 2011, p. 17), posso inferir que meu olhar sobre aquelas fotografias as tornava teatrais. Nos meandros desta teatralidade, as ações narradas, que poderiam vir a ser ações dramáticas que gerassem pequenas cenas teatrais, foram oriundas, progressivamente, da minha própria infância. Relações de conflito, de embate por vezes com a realidade, com o mundo dos adultos e um enorme desejo, paradoxalmente, de ingressar neste mundo, produziram situações reais em minha infância, das quais tenho uma memória reconstruída através daquilo que lembro e de narrativas parentais. Essas memórias foram, paulatinamente, acrescidas às reações provocadas pelas fotografias, pelas leituras de teoria e pelo personagem Grimble, que se tornaram também a pequena Taís ou um de seus (meus) muitos apelidos de infância: Tatá, Tati, Tís, Tisoca. E, ao invés de um espetáculo sobre algo que estivesse num entremeio entre a performance e o teatro documentário, acabei por ter em mãos um conjunto de minicontos, de pequenas auto ficções sobre uma menina, sua família, seus animais, sua escola, seu mundo. Esse é o pequeno ciclo que intentei aqui contar e que ainda poderá vir a ser a performance desejada, dando continuidade à espiral. Referências bibliográficas ARIÈS, P. História Social da Infância e da Família. Rio de Janeiro: LTC, 1981. DE MARINIS, Marco. En busca del ator y del espectador – Compreender el teatro II. Buenos Aires: Editorial Galerna, 2005. FALKEMBACH, Maria da Fonseca e FERREIRA, Taís. Teatro e dança nos anos iniciais. Porto Alegre: Mediação, 2012.
  • 12. 26 FERNANDES, Sílvia. Teatralidade e performatividade na cena contemporânea. Repertório Teatro & Dança. UFBa, Salvador, 2011, n 16, p. 11-23. FERREIRA, Taís. A escola no teatro e o teatro na escola. 2 ed. Porto Alegre: Mediação, 2010. ______. Minicontos da Tati, Tatá, Tís, Tisoca. Porto Alegre: Mediação, 2014. FREUD, Clement. Grimble e também Grimble no Natal. Rio de janeiro: Pequena Zahar, 2014. HUIZINGA, Johan. Homo Ludens – O jogo como elemento da cultura. São Paulo: Perspectiva, 2000. MACHADO, Marina Marcondes. A criança é performer. Educação & Realidade. UFRGS, Porto Alegre, mai/ago 2010, n 35, v 2, p. 115-137. MERVANT-ROUX, M.M. Le théâtre amateur e amateur. In.: CORVIN, M. Dictionnaire encyclopédique du theater à travers le monde. Paris: Editions Bordas, 2008. _____. Os dois teatros. Sala Preta, Brasil, v. 12, n. 1, p. 125-140, jun. 2012. ISSN 2238-3867. Disponível em: <http://www.revistas.usp.br/salapreta/article/view/57552>. Acesso em: 1 Dez. 2014. doi: http://dx.doi.org/10.11606/issn.2238-3867.v12i1p125-140. POSTMAN, Neil. O desaparecimento da infância. Rio de Janeiro: Graphia Editora, 1999. PROPP, Vladimir. Morfologia do conto maravilhoso. Rio de janeiro: Forense Univesitária, 1984. ROUBINE, Jean-Jacques. A Linguagem da Encenação Teatral. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.