Este trabalho analisa como clubes de futebol podem promover inclusão social e serem ferramentas de consumo. Estuda um clube brasileiro, o Corinthians, e duas campanhas de marketing: "Eu Nunca Vou te Abandonar" e "República Popular do Corinthians". A análise mostra como essas campanhas utilizaram símbolos do clube para promover sentimento de pertencimento entre torcedores e aumentar vendas de produtos licenciados.
Clubes de futebol como inserção socia e ferramenta de consumo
1. UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
ESCOLA DE COMUNICAÇÕES E ARTES
DEPARTAMENTO DE RELAÇÕES PÚBLICAS, PUBLICIDADE E TURISMO
Rafael Prieto Ferraz
CLUBES DE FUTEBOL COMO INSERÇÃO SOCIAL E
FERRAMENTA DE CONSUMO
São Paulo
2011
2. RAFAEL PRIETO FERRAZ
CLUBES DE FUTEBOL COMO INSERÇÃO SOCIAL E
FERRAMENTA DE CONSUMO
Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à Escola de Comunicações e
Artes como requisito parcial para a obtenção do título de bacharel em
Comunicação Social com habilitação em Publicidade e Propaganda.
Orientador: Prof. Dr. Leandro Leonardo Batista.
São Paulo
2011
3. BANCA EXAMINADORA
Espaço reservado às observações da Banca Examinadora responsável pela
avaliação deste trabalho, apresentado em_____ de __________ de 2011, na
Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo.
Examinador 1
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Examinador 2
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Examinador 3
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4. “Em futebol, o pior cego é o que só vê a bola”
Nelson Rodrigues
5. RESUMO
Resumo: Este trabalho contempla uma análise dos clubes de futebol
brasileiros, sob o ponto de vista sociológico, da comunicação publicitária e de
consumo. Os clubes futebolísticos, além de exercer papel identitário sobre o
indivíduo, podem apresentar forte poder aglutinador sobre o mesmo, o qual
pode manifestar o sentimento de pertencimento de diversas formas: o
consumo, o ato de torcer, entre outros. A comunicação publicitária, além de
financiar e hiperbolizar o espetáculo esportivo, pode ser ferramenta ratificadora
das identidades clubíticas como forma de potencializar o processo de
consumo.
Palavras-chave: Futebol, clubes, consumo, pertencimento, inserção,
comunicação, propaganda, Corinthians.
6. OBJETIVOS E METODOLOGIA
Objetivo geral: Observar em que medida o futebol enquanto negócio pode a
influenciar a percepção social sobre o meio futebolístico.
Objetivo específico: Avaliar as características e percepções sociais presentes
no universo futebolístico por meio dos clubes, tendo como objeto de estudo,
ora o indivíduo isoladamente (torcedor) ora coletivamente (torcida).
Metodologia: Revisão bibliográfica; Entrevista em profundidade com
especialista no tema: Juca Kfouri, realizada em 17 de maio de 2011; Coleta de
dados primários, através de questionário online (servidor SurveyMonkey) com
amostra de conveniência, total de 262 respostas, coletadas entre 20 de maio
de 2011 e 01 de junho de 2011.
7. LISTA DE GRÁFICOS
Gráfico 1: Participação das fontes de receita dos clubes brasileiros em 2009 e 2010 (BDO
RCS)
Gráfico 2: Envolvimento do brasileiro com a Copa do Mundo
Gráfico 3: Gasto médio com a Copa do Mundo 2010 (Firjan)
Gráfico 4: Interesse pela Copa vs Gasto médio (Firjan)
Gráfico 5: Envolvimento do brasileiro com seu clube
Gráfico 6: Receitas dos clubes brasileiros em 2010 (BDO RCS)
Gráfico 7: Motivos pelos quais a marca que patrocina o time influencia positivamente a
compra de produtos
LISTA DE IMAGENS
Imagem 1: Os onze participantes da reunião de 1863, que uniformizou as regras do futebol
Imagem 2: Charles Miller (sentado com a bola) e seus companheiros no São Paulo Atletic,
em 1904
Imagem 3: Anúncio (parcial) do canal esportivo “ESPN Brasil”, em busca de novos
anunciantes, no jornal publicitário “Meio & Mensagem”, focado na qualidade da programação.
Antes de ser agente de consumo, o jornalismo esportivo se consolida como objeto de
consumo (Agosto/2010)
Imagem 4: Torcedores acompanhando, pelo rádio e pelo placar do jornal “Última Hora”, a
final da Copa entre Brasil e Suécia (Acervo do jornal Última Hora/Arquivo público do Estado
de São Paulo)
8. Imagem 5: Reprodução de página do jornal “S. Paulo Sportivo”, em 1905, mostrando que
apesar de se orgulhar de ser amador, o futebol já era explorado economicamente.
Imagem 6: Reprodução de foto oficial da Seleção Brasileira de Futebol para a Copa de 90,
onde jogadores escondem o patrocínio da Pepsi por estarem descontentes com os valores
negociados. A associação do futebol com os negócios não se isenta de polêmica.
Imagem 7: Principais destinos dos jogadores brasileiros em 2010
Imagem 8: Anúncio da Coca-Cola, em 1987, patrocinando todos os clubes da Copa União
Imagem 9: Ícone do caixão, uma das manifestações de negação do rival (como forma de
afirmação)
Imagem 10: Diferentes manifestações de adoração ao escudo (através do beijo, tatuagem,
ou mesmo ajoelhando-se sobre ele), como demonstração de identificação com o clube/torcida
Imagem 11: Promoção da Olympikus usando a expressão do “manto sagrado” para se referir
à camisa
Imagem 12: A Gaviões da fiel, por meio do carnaval, foi pioneira em extrapolar a presença de
seu campo social a ambientes alheios ao futebol. Importante notar a presença dos signos
clubísticos.
Imagem 13: Propaganda (banner de internet) na qual fica evidenciado que o consumo do
produto (e seu uso, posteriormente) é ratificador do pertencimento do indivíduo à massa
Imagem 14: Comercial onde os jogadores tatuariam o escudo do time para substituir a
camisa, a qual representa uma marcação eterna do indivíduo
Imagem 15: Escada rolante de envolvimento
Imagem 16: Torcedores do Corinthians mostrando apoio ao time, antes do rebaixamento, de
diversas formas. Entre elas, a frase/grito “eu nunca vou te abandonar”
Imagem 17: Apresentadora Sabrina Sato, foto divulgação do lançamento oficial da campanha
nos meios de comunicação
Imagem 18: Sala de imprensa do Corinthians no dia do lançamento da campanha
Imagem 19: As camisetas da campanha
Imagem 20: As ferramentas e a mensagem da campanha, logo reabsorvida pelas
arquibancadas
9. Imagem 21: Modelo da camisa com a foto dos torcedores; e o capitão William (recebendo a
taça do Campeonato Brasileiro da segunda divisão) vestindo a camisa que representava a
inclusão e a participação dos torcedores naquela conquista
Imagem 22: Manifestações espontâneas da torcida dentro dos valores da campanha: além
da faixa (no centro) também há vários torcedores usando a camiseta
Imagem 23: Patrocínio majoritário na camisa: em 2007, com o clube na 1ª divisão, a
Samsung desembolsou R$ 9 milhões ; em 2008, a Medial Saúde pagou R$ 16 milhões pelo
espaço
Imagem 24: Capa e material de divulgação do filme “Fiel”
Imagem 25: Camisa do Centenário e elenco do Corinthians durante a apresentação da
mesma
Imagem 26: Anúncio da República Popular do Corinthians
Imagem 27: Alguns documentos da “república”, respectivamente: a Carta Magna, a Certidão
de Nascimento e a Carteira de Identidade, além da Embaixada itinerante.
Imagem 28: Bandeira gigante, hasteada no estádio do Pacaembu; e a posse simbólica de
Lula como o primeiro presidente da “República Popular do Corinthians”
Imagem 29: Representação heróica dos jogadores, usada não apenas nas peças publicitária,
mas também nos armários dos vestiários e em (algumas) páginas pessoais no Twitter
Imagem 30: Anúncio da campanha, projetando os jogadores como verdadeiros guerreiros
lutando pelos interesses da nação
Imagem 31: A campanha permanece no ar, tanto que a primeira grande contratação em
2011, do jogador conhecido como “Adriano, o Imperador” já foi representada e adequada aos
preceitos da campanha por meio da frase “Do Império à República”
Imagem 32: Diversos apresentadores de televisão repercutindo a campanha
espontaneamente
10. LISTA DE TABELAS
Tabela 1: Transferências internacionais de jogadores brasileiros entre 1985 e 2010
Tabela 2: Quantidade de jogadores que voltaram para o futebol brasileiro
Tabela 3: Valoração das mais valiosas marcas de clubes de futebol, em 2010
Tabela 4: Valoração das mais valiosas marcas de clubes de futebol no Brasil, em 2010
11. SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.................................................................................................... 13
1. ENTENDENDO AS REGRAS DO JOGO ...................................................... 15
1.1. Pontapé inicial.............................................................................................. 15
1.2. O esporte bretão........................................................................................... 16
1.3. Futebol em terras tupiniquins....................................................................... 21
1.4. Esporte e veículos de massa........................................................................ 29
2. O FUTEBOL COMO NEGÓCIO ..................................................................... 38
2.1. Um espetáculo lucrativo .............................................................................. 38
2.2. Produto de exportação................................................................................. 45
2.3. A importação do produto nacional................................................................ 49
2.4. Marcas valiosas e lucrativas......................................................................... 53
3. UMA FERRAMENTA SOCIAL ....................................................................... 63
3.1. Contexto brasileiro........................................................................................ 63
3.2. A identidade e união clubística..................................................................... 66
3.3. Motivações e implicações da aglutinação clubística.................................... 73
3.4. Torcer é participar, e participar é torcer........................................................ 77
4. ANÁLISE DE CASO ....................................................................................... 87
4.1. Metodologia.................................................................................................. 87
4.2. Eu nunca vou te abandonar: análise............................................................ 91
12. 4.3. Eu nunca vou te abandonar: resultados....................................................... 98
4.4. República Popular do Corinthians: análise................................................... 101
4.5. República Popular do Corinthians: resultados.............................................. 109
4.6. Análise comparativa entre campanhas......................................................... 112
5. CONCLUSÃO.................................................................................................. 115
5.1. Inserção social e ferramentas de consumo.................................................. 115
5.2. Hipótese futura: a gênese da identidade coletiva......................................... 118
ANEXOS ............................................................................................................. 120
Anexo 1: História popular e remota do futebol ................................................... 120
Anexo 2: Entrevista em profundidade com especialista: Juca Kfouri ................. 126
Anexo 3: Pesquisa quantitativa: questionário e resultados ................................ 139
BIBLIOGRAFIA .................................................................................................. 147
13. INTRODUÇÃO
Compartilhando de uma definição de Nelson Rodrigues, “Não se trata de uma
paixão, mas de uma senha para a cidadania” (apud FRANCO, 2007: 210), inicio o
Trabalho de Conclusão de Curso almejando a análise e observação da presença
dos clubes de futebol como motivador e influenciador social, cultural e psicológico no
contexto brasileiro. Ademais, o trabalho objetiva avaliar o papel da propaganda
nesse processo de produção simbólica e de consumo.
A observação da análise estará pautada sobre o público e as práticas
presentes no Brasil, apesar de algumas vezes usar preceitos e possíveis exemplos
de outros países, pois se trata de um tema mundial e, sob a ótica de consumo,
podemos considerá-lo mais maduro em países europeus.
Partimos do princípio que, possivelmente, os clubes de futebol exerçam
função de extrato social que apresenta autonomia em relação à sociedade externa,
inclusive apresentando identidade e comportamentos coletivos. Nesse contexto,
muitas vezes, o indivíduo torcedor pode se tornar estrutura e estruturante de uma
massa única (torcida), cabendo a ele a possibilidade de absorção dos valores e da
identidade coletiva. A partir dessas premissas será possível buscar evidências para
a presença de tais valores coletivos, assim como gênese e manutenção
contemporânea.
Além do mais, esse estudo baseia-se em uma segunda hipótese básica, a de
que o consumo de produtos (ou serviços) relacionados ao clube pode ser uma
manifestação do comportamento/consciente coletivo, além de elemento de inserção
e de demonstração de pertencimento ao grupo.
Assim como essa análise foi concebida, a divisão de capítulos estrutura-se de
modo a buscar a constatação das premissas mencionadas. Após inserção no tema,
e com o entendimento do contexto histórico e cultural do esporte, a análise
permeará constatações de que o futebol deixou de ser apenas um esporte e um
território exclusivamente dominado pela paixão, hoje ele movimenta muito dinheiro,
em diversas formas, desde diretamente no campo (como patrocínios e venda de
jogadores), até com a força de sua torcida (produtos licenciados) e outras formas
13
14. indiretas. A propaganda, além de colaborar para tornar o esporte em espetáculo,
também a financia por meio de patrocínios, propagandas em suas transmissões,
entre outras formas. Posteriormente, a análise se estruturará em preceitos teóricos
que nos apresentem com clareza o modo como os clubes podem ser associados a
micro-sociedades independentes, nas quais os indivíduos apresentam forte
sentimento de pertencimento e carência dessa evidenciação, o que pode se dar por
via do consumo de produtos.
Ademais, a análise de dois cases reais, de um mesmo clube de futebol, tem
como função ilustrar os conceitos apresentados de forma que possa tangibilizar (ou
até mesmo refutar) a hipótese central do trabalho: os clubes de futebol, enquanto
inserção social, podem se tornar ferramentas de consumo.
Por fim, compartilho um pensamento de VERÍSSIMO (2010), que demonstra o
maior desafio pessoal na construção desse trabalho: diferenciar observador e objeto,
torcedor e analítico, paixão e razão. De certa forma, consola acreditar que, talvez,
este seja o desafio da imensa maioria de estudiosos nesse rico campo de estudo.
Só o futebol permite que você sinta aos 60 anos exatamente o que sentia
aos 6. Todas as outras paixões infantis ou ficam sérias ou desaparecem,
mas não há uma maneira adulta de ser apaixonado por futebol. Adulto seria
largar a paixão e deixar para trás essas criancices: a devoção a um clube e
às suas cores como se fosse a nossa outra nação, o desconsolo (...)
quando o time perde, a exultação guerreira quando com a vitória. Você
pode racionalizar a paixão, e fazer teses sobre a bola e observações
sociológicas sobre a massa ou poesia sobre o passe, mas é sempre
fingimento. É só camuflagem. Dentro do mais teórico e distante analista e
do mais engravatado cartola aproveitador existe um guri pulando na
arquibancada. E essa nossa infantilidade compartilhada, de certa forma,
redime tudo. (VERÍSSIMO, 2010: 25)
14
15. 1. ENTENDENDO AS REGRAS DO JOGO
1.1. Pontapé inicial
Futebol. Acima de tudo, uma atividade lúdica, como qualquer outra. Segundo
o dicionário, quer dizer apenas o “jogo entre dois grupos (...) onde cada um procura
fazer entrar uma bola no gol adversário sem lhe tocarem com a mão” 1. No entanto,
seu significado literal pouco importa nesse momento - até porque, seria difícil
encontrar uma definição exata – o que interessa aqui é entender o que representa, o
que motiva, e quais as conseqüências sociais e econômicas desse que é o esporte
mais praticado do mundo.
Tomemos, portanto, o fato do futebol ser o esporte mais popular e mais
praticado no mundo como um axioma (VOSER et al, 2006: 126). Tal princípio nos
permite dimensionar melhor qual o poder de influência dessa manifestação popular
no mundo contemporâneo em que vivemos.
Para se ter uma ideia, segundo pesquisa realizada pela FIFA em 20062, cerca
de 270 milhões de pessoas no mundo estão ativamente envolvidas com o futebol,
sejam elas jogadores, árbitros ou diretores. De todas essas, 265 milhões são apenas
jogadores que praticam o esporte regularmente, sejam eles homens ou mulheres,
profissionais, semi-profissionais ou amadores; esse número representa 4% da
população mundial. Além do mais, devemos lembrar que esse dado desconsidera
completamente aqueles que apenas torcem e acompanham o esporte regularmente
(sem praticá-lo), o que tornaria o número total da abrangência do esporte ainda
muito maior. Somente como efeito comparativo, no mesmo ano de 2006, a partida
única da final da Copa do Mundo FIFA foi transmitida para mais de 760 milhões de
pessoas ao redor do mundo.3
Ninguém nega, portanto, o papel mobilizador do futebol e seu lugar de
destaque no mundo contemporâneo. Porém, mais do que isso, o futebol mobiliza
1
Dicionário Michaelis
2
In: Site FIFA, 31/05/2007
3
In: Site Abril, 11/07/2010
15
16. emocionalmente milhões de indivíduos, os quais levados por esse tipo de motivação
assumem comportamentos muito peculiares (como a violência, o consumo de
produtos, etc.) ou se organizam de forma que remonta os princípios básicos da
antropologia e sociologia (a figura do líder, a organização e adoração clânica, etc).
Contrariamente à idéia bastante difundida, o futebol não se situa à margem
dos grandes problemas da sociedade, não constitui um espaço reservado.
Pelo contrário em torno dele estão presentes interesses econômicos
consideráveis, em que se confrontam ideologias e em que se manifesta a
política nacional e internacional. O futebol é um espelho dos problemas do
nosso tempo.” (WITTER, 1995: 15)
Segundo FRANCO (2007), as tentativas de explicar uma única razão (ou
sentido) a esse fenômeno são, por essência, contraditórias. Segundo ele, cada
indivíduo atribui às práticas lúdicas - no geral - diferentes significados de diferentes
origens. E, por isso, uma atividade lúdica como o futebol é pode assumir diferentes
papéis na vida de um indivíduo e/ou grupo.
Na verdade, o futebol desperta dupla reação, muito curiosa. De um lado, há
quem veja nele atividade de espírito infantil praticada por homens adultos,
desviados dessa maneira de ações produtivas e de ações sociais mais
nobres. De outro lado, há parcela considerável da população mundial que
atribui a ele papel importante, se não central, na sua vida. A contradição
está no significado que – por razões ideológicas, sociais, culturais,
religiosas, psicológicas – cada pessoa confere às praticas lúdicas em geral.
(FRANCO, 2007: 14)
1.2. O esporte bretão
Muito se diz sobre a verdadeira origem do futebol, não é algo isento de
polêmica, diferentes culturas e/ou países reivindicam o posto de inventores do
desporto com os pés (história remota do futebol ver Anexo 1). Mas o futebol, como
16
17. um esporte e da maneira como conhecemos hoje, tem sua gênese atribuída à
Inglaterra.
Há quem diga que o cerne do futebol inglês surgiu graças à importação do
calcio italiano4. Outra corrente histórica, mais aceita, diz que os ingleses criaram
uma modalidade própria a partir do século XVI, influenciados - ou não - pelo
haspastum5 romano. Essa modalidade, que se chamava hurling over country, era
disputada por duas cidades diferentes e consistia em levar a bola até a praça central
da cidade adversária. (BORSARI, 1989: 12). Posteriormente essa prática se tornou o
hurling at gols, que equipes entre 40 e 60 pessoas deveriam fazer com que a bola
ultrapassasse a linha entre dois postes fixados no chão. Apesar dessa prática ainda
ser muito parecida com o rugby, foi a posterior popularização e diferentes variações
dela (uma delas usando somente os pés) que fez com que o football se separasse
definitivamente dos esportes praticados com as mãos através de suas regras
próprias, no século XVIII. O regramento do futebol britânico, portanto, pode ser
considerado o marco zero da história do futebol moderno.
A partir desse ponto, segundo FRANCO (2007), para entender o
desenvolvimento do esporte moderno a análise não pode ser restrita a história do
futebol em si, mas observada sob a ótica da história das civilizações. Além de seu
quadro geográfico (Inglaterra) devemos observar também o quadro histórico
(Revolução Industrial).
A revolução industrial e o futebol estão intimamente ligados, seja por ambos
floresceram durante o mesmo momento histórico, seja pelos diversos elementos de
intersecção que os unem, como a competição, produtividade, especialização de
funções e, principalmente, fixação de regras.
Também podemos pensar no estabelecimento das regras futebolísticas
como manifestação particular da Inglaterra do então desenvolvimento das
instituições, que nada mais são do que regras do jogo social. Ou seja,
restrições de comportamento que permitem a vida em sociedade, controlam
interesses individuais em nome do bem comum. (FRANCO, 2007:25)
4
Modalidade esportiva, de origem helenística, praticada na Itália entre os séculos XIV e XVI, que segundo
alguns autores influenciou a gênese do futebol inglês (ver Anexo 1)
5
Modalidade esportiva parecida com o futebol atual, antecessora do calcio, praticada no Império Romano e que,
segundo alguns autores, foi disseminada pelas terras conquistadas, inclusive na região da Bretanha (ver Anexo 1)
17
18. Naquele contexto, a Inglaterra da revolução industrial (e posteriormente do
neocolonialismo) estava em pleno processo de expansão industrial, comercial, mas
principalmente político e social. A sociedade britânica se preparava para criar
cidadãos fortes e capazes de influenciar e liderar outras partes do mundo.
Entre 1820 e 1900 o “cristianismo atlético” foi o caminho pedagógico
encontrado para desenvolver a fibra e a moral da elite britânica para “governar
regiões longínquas e inóspitas, plenas de súditos hostis e pouco civilizados”
(FRANCO, 2007: 26). Para os representantes dessa corrente os esportes eram
fundamentais para dar vigor físico, fibra ao espírito e rapidez de raciocínio. Tal
projeto foi incorporado ao recém lançado “A origem das espécies” de Charles
Darwin, visando adaptar a vida social ao conceito biológico de sobrevivência dos
mais fortes.
Dentro dessa expectativa foi incorporado às escolas elitistas inglesas, e a
algumas universidades, um jogo com bola que aparentava muito aquele jogado na
Inglaterra séculos atrás, o qual apesar de várias tentativas de interdições nunca
havia desaparecido nas classes sociais mais pobres. O desafio era apenas inseri-lo
nas escolas das classes dominantes.
O futebol, por todas as suas características físicas e coletivas, e por ter
preceitos muito semelhantes à sociedade da revolução industrial tinha claramente o
papel de formar elites aptas a governar.
“O futebol moderno nasceu como instrumento do darwinismo social”, o que
demonstra, desde os primórdios, o poder e potencial do futebol para ser mais que
apenas uma atividade física. Quiçá um mecanismo de manipulação.
Segundo LEAL (2000) o futebol começou a ganhar destaque com a burguesia
inglesa à medida que atividades físicas - como a esgrima, a equitação, o tiro -
começaram a perder sua importância, pois estavam ligadas ao treinamento militar.
Em 1848 diversas escolas reuniram-se para uniformizar as regras daquele
esporte (mas ela continuaria a se revisada e discutida até 1863), a iniciativa buscava
evitar que cada escola praticasse sua própria norma (educando os indivíduos de
maneira diferente), assim como também evitava a maneira como o jogo era jogado
18
19. até então: com violência, o que podia gerar a desordem social. A regulamentação do
futebol não buscava a consolidação e desenvolvimento do esporte (isso foi uma
conseqüência), mas sim o domínio do próprio corpo, submetendo-o ao poder
socialmente aceitável.
Finalmente, a 26 de outubro de 1863 representantes de varias escolas e
clubes encontraram-se na Freemanson‟s Tavern, no centro de Londres,
para criar a Football Association e um comitê que uniformizasse as regras.
(...) Eram catorze regras simples, que davam identidade própria ao football
(FRANCO, 2007: 28).
AQUINO (2002) cita, por exemplo, que a quantidade de jogadores (11 por
equipe) pode estar ligada ao fato das turmas de Cambridge ter 10 alunos e um bedel
(inspetor), assim como também há indícios que levam a crer que eram 11 times de
escolas que estabeleceram código de regras do esporte, em 1863.
Imagem 1: Os onze participantes da reunião de 1863, que uniformizou as regras do futebol
Dessa forma, à medida que o futebol regrado crescia, se expandia e se
tornava uma atividade sólida e consistente da elite britânica, nasciam com ela
figuras representativas e decisórias desse universo - como o capitão do time, o juiz,
19
20. a confederação, o conselho disciplinar, etc. “Constituía, microssociedades à imagem
e semelhança da macrossociedade que as criara e acolhera” (FRANCO, 2007: 28).
À medida que o futebol se consolidava nas classes dominantes, não demorou
muito para que ele ganhasse o interior da Inglaterra, as classes médias baixas e o
operariado. O esporte começou a ser praticado nas escolas públicas que, graças a
recente lei que tornara o ensino primário obrigatório, passou a ser freqüentada pelas
classes pobres. Surgiram novos clubes. Em 1883 o primeiro clube oriundo de
classes pobres ganhara a Copa da Inglaterra. O padrão estabelecido havia mudado,
o mais humilde poderia ganhar do mais rico.
O futebol passou a ser encarado como um mecanismo de destaque social,
jogadores operários mais talentosos começaram a trocar de equipes com a
promessa de melhores empregos. Comerciantes passaram a dividir parte de seus
recursos para financiar alguns clubes. O futebol começava a demonstrar sua
necessidade e potencial de sustentação financeira.
Para financiar despesas do profissionalismo, os clubes passaram a procurar
outras receitas além das bilheterias, caso de loterias e de mecenato. A
solução capitalista foi empregada pelo Arsenal, de Londres, que em 1891
abriu parte de seu capital a 860 acionistas, pessoas físicas ou jurídicas
(FRANCO, 2007: 35).
A expansão do futebol iniciou-se primeiramente nas Ilhas Britânicas, através
das partidas anuais entre Escócia e Inglaterra desde 1872, e posteriormente pelo
campeonato entre as quatro nações britânicas a partir de 1883.
A exportação do esporte seguiu conforme o processo histórico do
imperialismo inglês, o qual não exportava apenas uma infinidade de produtos e
serviços, mas também uma série de manifestações culturais e sociais que, só pelo
fato ser “produto inglês” já era agregava valores de modernidade. Com o futebol não
foi diferente.
O futebol foi implantado em outros países ora através de ingleses e/ou
empresas inglesas que ayuavam no exterior (caso de Argentina, Suíça, Alemanha,
20
21. França), ora por pessoas que iam estudar na Inglaterra e na volta implantavam o
esporte em seus países (caso do Brasil, Portugal, Holanda).
Segundo a concepção dos ingleses, o futebol era um produto inglês que
buscava formar líderes para o grande império e, como tal, deveria permanecer
exclusivo. Esse tipo de percepção explica porque os tais inventores do esporte
demoraram tanto admitir a presença do futebol em outros países, assim como
retardaram sua entrada (e reconhecimento) a recém criada Fedération Internationale
de Football Association (FIFA).
A FIFA, aliás, o primeiro e mais importante órgão internacional do esporte,
fora fundada em 1904 em Paris, contando com a adesão de muitos países, como:
França, Bélgica, Dinamarca, Espanha, Holanda, Suécia, Suíça, Alemanha,
Tchecoslováquia, Itália, Áustria, posteriormente a Inglaterra em 1906 e, por fim, o
primeiro país não europeu, a África do Sul em 1910.
O futebol havia se instalado no mundo todo.
No entanto, por incrível que pareça, o advento da Primeira Guerra Mundial
ajudou a difundir ainda mais o esporte e a democratizá-lo. Durante este período, o
futebol era uma atividade bem aceita pelos militares como forma de descontração,
manutenção da forma física e fomento da amizade entre colegas. Soldados ingleses
jogavam entre si e com seus aliados franceses e belgas durante as tréguas nas
frentes de batalha. Esse tipo de comportamento popularizou o esporte nas camadas
mais populares, os quais ao fim da guerra difundiram a moda do futebol para seus
núcleos sociais. Agora sim, definitivamente, o futebol estava semeado mundialmente
e em todas as classes sociais.
1.3. Futebol em terras tupiniquins
Oficialmente o futebol chegou ao Brasil em 1894, graças ao paulista Charles
William Miller – brasileiro descendente de escoceses pelo lado paterno e de ingleses
no lado materno - fora estudar na Banister Court School, uma escola pequena, de
não muito destaque no mundo acadêmico, mas com a especialidade em formar
21
22. caráter (bem ao estilo da Inglaterra vitoriana), foi lá que Miller descobriu o futebol e
pode desenvolver suas habilidades. Com apenas 20 anos o jovem regressou ao
Brasil trazendo consigo duas bolas de futebol e um livro de regras. Sua intenção era
praticar e disseminar em sua terra natal o esporte que aprendera na universidade,
principalmente entre ingleses dissidentes.
Miller, que era sócio do São Paulo Athletic Club e funcionário da companhia
britânica de trens São Paulo Railway Company, organizou em 14 de abril de 1895 o
primeiro jogo oficial de futebol entre as duas instituições (com times formados por
brasileiros e ingleses), vencido por 4 a 2 pelo Railway (time de Miller). O São Paulo
Athletic Club adotou o futebol oficialmente em 1896, tendo Miller como seu principal
destaque.
Imagem 2: Charles Miller (sentado com a bola) e seus companheiros no São Paulo Atletic, em 1904
Todavia, há indícios também de que o futebol fora praticado em terras
brasileiras muito antes de Charles Miller o trazer em suas malas. Segundo
GUTTERMAN (2010), 30 anos antes do regresso de Miller ao Brasil, há registros de
marinheiros estrangeiros, principalmente ingleses, jogando o esporte com bola pelas
áreas descampadas do litoral brasileiro. Há também o registro de jogos nas mesmas
condições entre 1874 e 1878, no Rio de Janeiro; um desses jogos, aliás, acredita-se
22
23. que tenha ocorrido como exibição para a princesa Isabel. No interior de São Paulo
também há indícios da prática do futebol “pré-Miller”: na cidade de Jundiaí fora
organizados jogos entre brasileiros e ingleses da São Paulo Railway; já em Itu, um
padre jesuíta de um colégio da elite cafeeira (que acreditava nos métodos
pedagógicos dos tradicionais colégios britânicos) estimulava seus alunos a
praticarem o esporte da terra da rainha.
Segundo FRANCO (2007) o estabelecimento de um “inventor” do futebol no
Brasil tem apenas função de marcação literária, uma vez que todo o processo de
apropriação e de absorção de novas culturas já explica parte da identidade tanto do
esporte quanto do Brasil.
Estabelecer paternidades quase heróicas e datas oficiais, não esclarece as
relações entre o futebol e sociedade brasileira. Pelo contrário, suas
significações mais profundas residem no processo de apropriação pelos
diversos setores sociais que o transformaram em fenômeno de massas
(FRANCO, 2007: 62).
No entanto, é importante ressaltar que sem a ação de Miller (que além de
trazer o esporte de forma regrada também organizou os primeiros campeonatos que,
consequentemente, culminou no conhecimento popular do esporte) dificilmente a
história esportiva do futebol no Brasil teria se desenrolado da mesma maneira.
Talvez, mesmo sem Miller, o Brasil tivesse absorvido o futebol a sua cultura, assim
como talvez não o tivesse.
Enquanto que para GUTTERMAN (2010), a atribuição da paternidade do
esporte no Brasil à Charles Miller é apenas uma marcação necessária para
representar o início da popularização do esporte. Assim como na Inglaterra, somente
a prática regrada permitiu que o esporte fosse replicado da mesma forma em vários
lugares diferentes e, portanto, com capacidade para se tornar popular, democrático
e abrangente.
O que Miller introduziria no Brasil seria o perfil competitivo do futebol, com
suas regras, limitações e artimanhas, provável razão pela qual ele é
considerado o pioneiro desse esporte no país (GUTTERMAN, 2010: 18).
23
24. Durante o fim do século XIX e início do XX, foi o período de gênese de novos
times, como a Associação Atlética Mackenzie College (1898), o primeiro clube do
Brasil formado somente para o futebol e integrado exclusivamente por brasileiros,
ainda que todos pertencentes à elite paulistana.
Assim como na Inglaterra, a história do futebol no Brasil não se resume
somente a história do esporte, mas deve ser interpretada como reflexo do contexto
histórico do país. No Brasil da Belle Époque, a prática do futebol vindo da Inglaterra
era um dos ingredientes mais importantes do processo de modernização e da
identidade de uma nação em transformação.
Para as elites, a prática do futebol tipicamente inglês era uma representação
imaginária do desenvolvimento do país (sobretudo culturalmente), era afirmação da
própria identidade através da absorção de outra. O futebol, antes de mais nada, é
um fenômeno cultural antropofágico, tipicamente brasileiro.
Vale lembrar também que o esporte mais popular entre os ingleses genuínos
que moravam no Brasil era o críquete, não o futebol. O esporte com os pés,
portanto, era uma grande oportunidade de afirmação para a elite daquela sociedade
ainda em transformação e com dificuldade para a criação de identidade e de auto-
reconhecimento. Adotar um esporte com o “pedigree” inglês, mas não o preferido
pelos ingleses que aqui moravam, era uma forma de transmitir tanto a sofisticação
como a diferenciação e unicidade da aristocracia brasileira.
Durante esse período, destacam-se a figuras do brasileiro Oscar Cox e do
alemão Hans Nobiling, que segundo GUTTERMAN (2010), foram mais importantes
para o futebol do que o próprio Miller pois, apesar de não serem considerados os
pioneiros, foram aqueles responsáveis pela disseminação do esporte de modo
organizado.
Oscar Alfredo Cox, que ajudou a introduzir o futebol no Rio de Janeiro,
conheceu o esporte quando estava estudando no colégio suíço La Chatelaine. Cox
tentou introduzir o futebol no clube que jogava críquete, o Paissandu, encomendou
inclusive uma bola vinda da Inglaterra; no entanto, os associados preferiram usá-la
para jogar rúgbi.
24
25. Pouco a pouco Cox foi arrebanhando adeptos ao esporte para enfrentar os
times paulistas em alguns amistosos. Em virtude do Rio de Janeiro ainda não ter
nenhum clube de futebol, a equipe era apenas um combinado de cariocas e contava
inclusive com atletas dos clubes náuticos (como o Flamengo, o Botafogo e o Vasco).
Como os amistosos ganharam certa a freqüência, finalmente em 1902, Cox
conseguia fundar o primeiro clube carioca voltado apenas para o futebol (formado
pelas famílias tradicionais da capital do país): o Fluminense.
Hans Nobiling teve trajetória parecida com Cox, porém em São Paulo.
Nobiling era ex-jogador de futebol em um time alemão, chegou em São Paulo em
1897 com disposição para disseminar o esporte no país que chegara. Inicialmente
teve dificuldade em encontrar um clube consolidado que aceitasse o esporte,
resolveu então formar o próprio time (com seu próprio nome), o Hans Nobiling Team,
que desafiou os dois times existentes na época: o Mackenzie e o São Paulo Athletic.
Naquela época os dois times jogavam o esporte somente como recreação e, a partir
da iniciativa de Nobiling, fora lançado o embrião da primeira competição de futebol
do Brasil. Em 1899 os três times se enfrentaram.
Ao final dessa série de amistosos Nobiling e seus amigos decidiram fundar
um clube, deram a ele o nome de Sport Club Internacional, uma homenagem às
diversas nacionalidades que formavam o time (brasileiros, alemães, ingleses,
franceses e portugueses). Nobiling discordou do nome (achava que deveria chamar
Sport Club Germânia) e em protesto retirou-se do clube. Dias depois ele fundava o
Germânia.
Nobiling, assim como Cox, sabia que somente por meio dos clubes o futebol
fincaria raízes no Brasil e deixaria de der um mero passatempo da elite. As
competições oficiais e a formação de ligas não tardariam (...). Agora com
status de esporte nobre, o campeonato ganhou cobertura da imprensa, que
antes tendia a desprezar o futebol (GUTTERMAN, 2010: 29).
O futebol paulista contava, até 1900, com quatro times: São Paulo Athletic,
Mackenzie, Internacional e Germânia. O quinto clube de São Paulo, o Paulistano,
surgiu por brasileiros que haviam sido preteridos no São Paulo Athletic.
“Materializava-se assim a tendência brasileira de traçar contrapontos nacionais em
25
26. relação as estrangeiros pelas vias do futebol, o que se revelaria, não muito tempo
mais tarde, como uma maneira de afirmar a identidade do próprio país”
(GUTTERMAN, 2010: 30).
O surgimento das ligas, por mais que completamente elitizadas, foram
importantes elementos para popularização do esporte. A presença da disputa, e não
mais da recreação, culminou na espetacularização do esporte, o qual passara a
ganhar diferentes papéis culturais, sociais e antropológicos.
“Uma hora antes do início do jogo, já era difícil encontrar um lugar nas
arquibancadas (..), que estavam cheias de moças para ver o Belo Sport inglês.”
(GUTTERMAN, 2010: 25). A medida que o futebol ganhava popularidade entre a
elite, os jogos se tornavam grandes espetáculos, o público que normalmente era
formado por famílias de classe alta, passou a receber também torcedores comuns. A
latente popularidade do futebol fez com que a imprensa cobrisse suas disputas, o
que contribuiu enormemente para a o conhecimento e entendimento do jogo nas
classes populares.
Segundo FRANCO (2007) a proliferação de clubes e times pelo país,
sobretudo no Rio de Janeiro e São Paulo, obedece basicamente a duas tendências.
A primeira delas orienta para a formação de equipe dentro dos grupos
dominantes, orientados pelo espírito do fairplay e do cavalheirismo. Nesse
movimento nasceu diversos times com origens distintas, como aqueles fundados
especialmente para a pratica do futebol (Fluminense, 1902; América-RJ, 1904),
aqueles criados como associações atléticas vinculados a instituições de ensino
(Ponte Preta, 1900; Botafogo, 1904), ou mesmo aqueles clubes dedicados a outros
esportes e que aceitaram a prática do futebol (Náutico, 1909; Flamengo, 1911). O
elemento que permite aglutinarmos todos esses clubes, pertencentes a essa
tendência elitista, é o papel que o futebol estabelecia para seus grupos: ao mesmo
tempo ferramenta lúdica e social, como também atestado de superioridade e
exclusão aos demais grupos.
Colégios e clubes constituíam-se em espaços restritivos de formação, lazer
e sociabilidade, nos quais se representava a pretensa superioridade da
elite, que procurava se fortalecer, num movimento endógeno, por meio da
26
27. difusão de vínculos de solidariedade e do conseqüentemente afastamento
dos demais setores sociais. (...) O futebol tornara-se um novo item da
modernidade européia que não podia faltar aos anseios de atualização da
elite brasileira e que devia ser praticado por pessoas de igual condição
social (FRANCO, 2007: 62-63).
Essa primeira tendência, no entanto, não impediu a formação de uma outra
frente para a gênese de novos clubes no país; a segunda tendência era na verdade
a contra-tendência da primeira, obedecendo aos interesses das camadas médias e
baixas da população, as quais viam no futebol uma maneira de afirmarem sua
existência e identidade que a aristocracia tentara negar. Além do mais, o futebol é
um esporte simples de ser praticado, mesmo sem os recursos ideais (bolas, campo
e equipamentos); a improvisação foi um importante facilitador para a disseminação
do esporte nos grupos marginalizados. Desse movimento surgiram vários clubes por
iniciativa de operários, artesãos, comerciantes e imigrantes das grandes metrópoles
(Internacional, 1909; Corinthians, 1910).
As fronteiras sociais do futebol começaram a ser transpostas desde cedo
com a formação de times improvisados pelos setores populares, que
passaram da curiosidade ao mimetismo. (...) O futebol dos grupos
subalternos tornava-se um modo de representação da existência negada
em outros campos sociais. E alastrava-se pelos subúrbios proletários
(FRANCO, 2007: 63).
Por outro lado, houve também outra manifestação dentro da segunda
tendência na gênese de clubes. Essa manifestação - que também quebrava as
barreiras sociais erguidas inicialmente pelo futebol - ocorria quando a iniciativa da
formação de clubes não partia diretamente dos indivíduos das classes populares, e
sim das empresas e fábricas que estes indivíduos pertenciam (Bangu, 1904;
Juventus, 1924). Os clubes vinculados a empresas recrutavam operários para seus
times e, com freqüência, os bons atletas gozavam de diversos privilégios nas
empresas, dedicando-se cada vez mais para as tarefas do time do que para aquelas
atividades que, teoricamente, haviam sido contratados. Processo semelhante ao
ocorrido na Inglaterra décadas antes.
27
28. Era o início de um processo de profissionalização do esporte, “o amadorismo
era dissimulado por meio de gratificações oferecidas aos jogadores de origem
operária” (FRANCO, 2007: 64). A partir de 1913 a Liga Paulista de Futebol (na
época chamava-se APSA – Associação Paulista de Sports Athléticos) decidiu cobrar
ingressos para seus jogos, rendendo recursos extras aos clubes que agora
poderiam oferecer gratificações a seus atletas. Desse momento em diante diversos
jogadores que não originários da elite passaram a figurar nas escalações de times
elitistas, ou seja, a competitividade dos clubes tradicionais abria lacunas no seu
exclusivismo e permitia certo afrouxamento das barreiras sociais.
Devemos ressaltar, também, outro processo histórico-social que teve papel
fundamental para a formação de novos clubes brasileiros: o intenso fluxo migratório
de europeus. A abolição da escravatura e a conseqüente necessidade de mão de
obra assalariada (após 1888), assim como a deflagração da Primeira Guerra
Mundial (1914-17), fez do Brasil um dos principais pólos de recepção de imigrantes
europeus abnegados e sem recursos (aqueles com melhores condições, na maioria
dos casos, imigravam para os Estados Unidos).
O processo migratório culminou no branqueamento da população brasileira
(em todas as classes sociais) e a transformarão da região centro-sul em um grande
mosaico de colônias européias.
A população imigrante buscava a construção de sua identidade e meios de
ascensão social (em um pais distante e de cultura muito diferente daquela em seu
pais de origem), levando-nos a supor que a adoção do futebol tenha sido encarada
como plataforma para atingir esses objetivos e como adaptação à cultura local.
Nesse contexto sugiram alguns dos clubes mais famosos do Brasil, formados
inicialmente pela aglutinação de alemães, italianos, portugueses e espanhóis,
respectivamente: Grêmio (1903) e Coritiba (1909); Guarani (1911), Juventude (1913)
e Palestra Itália (1914, que posteriormente se dividiriam entre Palmeiras e Cruzeiro);
Vasco da Gama (1898, departamento de futebol em 1915) e Portuguesa de
Desportos (1920); Jabaquara (1914).
Se inicialmente o futebol tivesse personalidade elitista, características de
modismo importado, e funcionava como afirmação das famílias nobres e exclusão
das camadas subalternas, todo esse cenário havia mudado radicalmente já na
28
29. primeira década do século XX. A ingressão dos grupos marginalizados deu ao
futebol novos campos sociais.
Para as camadas populares o futebol exercia função completamente
diferente, seja como ferramenta de ascensão social ou como exercício lúdico. Aos
indivíduos mais talentosos o futebol passou a ser um mecanismo para conseguir
melhores empregos, gratificações e destaque social (o cerne do atual mercado de
jogadores); enquanto que a imensa maioria, menos talentosa, descobriu no futebol
um passatempo lúdico, fácil de praticar por permitir o improviso e o uso de espaços
públicos das metrópoles que se formavam.
Mas para todos os grupos - ricos e pobres, talentosos ou não - ou o futebol
era o espaço para a produção simbólica, de identidade e de sociabilidade.
Através do futebol, a sociedade brasileira experimenta sentido singular de
totalidade e unidade, revestindo-se de universalidade capaz de mobilizar e
gerar paixões a milhões de pessoas. É nesse universo que se observam,
com freqüência, indivíduos cuja diversidade está estabelecida pelas normas
econômicas e sociais de comunicação que nos leva a abraços e conversas
informais nos estádios, ruas, praias e escritórios (HELAL, 1997: 25).
1.4. Esporte e veículos de massa
A importância que o futebol adquiriu na sociedade contemporânea é visível
aos nossos olhos, sua quase onipresença faz com que ele seja praticado, assistido e
discutido em todas as classes e campos sociais.
E, se hoje o futebol tem tamanha abrangência, os meios de comunicação de
massa, sobretudo o rádio e a televisão, tiveram (e ainda têm) papel fundamental,
pois ao mesmo tempo garantem o acesso fácil ao espetáculo esportivo, como
também hiperbolizam e ratificaram seu caráter puramente espetacular.
O casamento entre o futebol e os veículos de comunicação consolidou-se na
década de 30, período no qual o futebol ganhava muito espaço nacionalmente e
29
30. internacionalmente (1930 foi o ano da primeira Copa do Mundo) e também quando o
Brasil vivia um novo momento político com a posse do jovem Getúlio Vargas. O
presidente, que colocara fim a república café-com-leite, encarava um país tentando
se reinventar depois que a crise de 1929 havia desvalorizado completamente seu
principal ativo econômico, o café. A política popular de Vargas encontrou no rádio e
no futebol dois importantes pilares para sua sustentação ideológica.
A primeira transmissão integral de um jogo de futebol ocorreu em 1931, em
um jogo entre a Seleção de São Paulo contra a Seleção do Paraná. Os narradores
esportivos, por sua vez, tinham como desafio criar no imaginário popular a “imagem”
da disputa, apesar de não possuírem esse recurso tecnológico. A solução, ou a
conseqüência, foi à criação de uma linguagem e dinâmica própria para as
transmissões, a qual por essência precisava transmitir emoção para suprir a
carência de referências visuais. Essa linguagem própria, como representação da
identidade e diferenciação da manifestação esportiva, colaborou ainda mais para
fazer do esporte um espetáculo.
Brincando com as palavras, criando neologismos e empregando um ritmo
veloz e de emoção, os narradores esportivos encontraram fórmulas que
caíram no gosto popular, tanto quanto o futebol. O rádio buscou através dos
vários recursos da linguagem radiofônica (...) levar a magia do espetáculo
ao ouvinte, por meio do apelo a sua imaginação. O objetivo era levar o
ouvinte a ver praticamente outro jogo, mais vibrante, que o prendesse ao
rádio durante os 90 minutos (ALMEIDA; MICELLI, 2004: 10).
O grito de “gooooool” esticado, uma das mais importantes características da
transmissão radiofônica do futebol, foi inventado para ganhar tempo e descobrir o
autor do lance. Essa forma de narrar é tão marcante que depois fora incorporado
pela televisão, mesmo sem a necessidade inicial. O fenômeno lingüístico é a
representação consolidada da catarse coletiva gerada pelo gol, além de ter a função
de fazer com que o ouvinte distante corra para perto do aparelho (de rádio ou da TV)
para saber mais detalhes do lance e da partida.
30
31. Antigamente as irradiações eram feitas pelo telefone e os locutores saíam
correndo do campo para contar os lances do jogo (...). Só depois as
transmissões esportivas viraram “óperas sonoras”, superando e trazendo
uma outra conotação para o próprio espetáculo (BAUMWORCEL, 1999: 61).
A partir de 1932 o governo federal começa a distribuir concessões de canais
de rádio a particulares, além do mais, é nesse período que as emissoras são
autorizadas a veicular anúncios publicitários. Esses dois fatos, somados, mudaria
completamente o percurso da comunicação de rádio e a propagação do futebol.
Getúlio iniciou um projeto de expansão do rádio a várias regiões do Brasil,
num processo de aparente modernização nacional, onde os veículos de massa
tinham papel fundamental: “à radiofonia está reservado o papel de interessar a todos
por tudo quando se passa no Brasil” (HAUSSEN, 1997: 23).
Já a publicidade, que em sua essência mais primitiva objetiva a venda, faz
dos veículos um meio para atingir esse objetivo. No entanto, antes de se tornarem
agentes de consumo os veículos precisam ser objetos de consumo. Dessa forma, a
publicidade ao mesmo tempo exigia e garantia a profissionalização do rádio (e dos
veículos de comunicação em geral), o futebol se tornara fonte de audiência
garantida e o presságio de recursos que melhorariam a transmissão do espetáculo,
e que conseqüentemente mobilizaria ainda mais pessoas. O futebol, portanto, fora
retro-alimentado pela publicidade num ciclo vicioso e virtuoso.
É sabido que a publicidade tem papel essencial na sociedade moderna, pois
além de diversos papéis sociais (como a informação, o estímulo a concorrência e até
o entretenimento), é também fonte de recursos que garante a liberdade de
expressão para os canais de comunicação. Fato que, antes da consolidação
definitiva da democracia (1989), fora fundamental no decorrer dos acontecimentos
políticos do Brasil.
A publicidade sempre esteve presente no escopo da mídia, formando com a
informação e o entretenimento o tripé da sua programação e do seu
discurso. Inclusive, é preciso reconhecer que a publicidade exerceu um
papel importante na construção da sociedade moderna, pois representava
uma fonte para o auto-financiamento da mídia, garantindo-lhe relativa
31
32. autonomia em relação aos governos e grupos dominantes, autonomia essa
consolidada na inestimável “liberdade de imprensa” (PIRES, 2007: 7).
Imagem 3: Anúncio (parcial) do canal esportivo “ESPN Brasil”, em busca de novos anunciantes, no
jornal publicitário “Meio & Mensagem”, focado na qualidade da programação. Antes de ser agente
de consumo, o jornalismo esportivo se consolida como objeto de consumo (Agosto/2010).
Apesar de parecer muito claro os benefícios trazidos com as transmissões
das partidas de futebol (em todas as esferas da sociedade), no início os radialistas
encontraram muitas barreiras. Acreditava-se que as transmissões iriam afastar os
torcedores dos estádios, cuja renda era a principal fonte de recursos dos clubes. No
entanto, a imprensa a popularizou ainda mais o esporte e hoje é a base da indústria
esportiva.
A educação dos gostos é o ponto-chave na constituição de um mercado.
Nesse caso, o início da imprensa esportiva foi fundamental para educar o
público com novas regras, práticas e para construir os ídolos locais que
realimentam toda a indústria (SOARES, A.; VAZ, 2009: 501).
Graças à comunicação o esporte ganha “informação” e “exposição”; a
informação faz com que a imprensa estabeleça papel didático com o público,
ensinando regras, comportamentos e linguagem do esporte, o que incentivam ainda
mais a prática e ao consumo do próprio espetáculo. Paralelo a isso, a intensa
exposição e alcance da mensagem culminam na ativação da economia esportiva
32
33. através de patrocínios, publicidade e outros retornos financeiros. Por fim, a
associação do esporte à televisão e ao capital proporciona condições para o
aperfeiçoamento técnico e estético do esporte, ora por meio do acesso à tecnologia
a serviço do esporte (materiais, condições de treinamento), ora através de
tecnologia de transmissão (equipamentos de ponta) que possibilita o acesso à
informação e a imagens espetaculares. Sobre isso, a tensão gerada entre a
informação pura e a hiperbolização do espetáculo, PIRES (2007) discorre:
Apesar do seu discurso pretensamente informativo-educativo, os meios de
comunicação não vacilam em afrouxar o rigor com que deveriam lidar com o
conhecimento sobre esporte, em favor da sua espetacularização, mesmo ao
arrepio de qualquer ética profissional (PIRES, 2007: 7).
No entanto, é importante ressaltar que os veículos de comunicação exercem
papel muito mais determinante na percepção das pessoas do que a simples
circulação pura de um conjunto de informações.
A mídia vem exercendo fundamentalmente uma função de agendamento do
debate sobre esporte, isto é, ao proceder a escolha dos assuntos, do tipo de
abordagem e da forma como repercute aquilo que veicula, ela define sobre
o quê devemos falar e ter opinião, além de, no limite, formar a nossa opinião
sobre os temas que elege e faz circular (PIRES, 2007).
A teoria do Agenda Setting (MCCOMBS; SHAW, 1972) se aplica aqui pois, ao
mediar o acesso a realidade concreta, a mídia a recria artificialmente através de
seus recortes subjetivamente escolhidos, suprimindo ou exaltando fatos e
características da manifestação esportiva de acordo com seus interesses e
demanda. A estratégica de síntese da imprensa esportiva, com os “melhores
momentos”, é um bom exemplo disso; assim como a intensa cobertura jornalística
dos clubes com maior torcida em detrimento das informações dos clubes de menor
expressão.
Dessa forma, para conseguir vender-se e também ser agente de promoção do
consumo de bens concretos e simbólicos que veicula, a mídia adota estratégias que
33
34. tornam superlativas algumas características de seus objetos de observação, o que
cria um processo de espetacularização da (hiper)realidade, na qual é incentivado o
seu consumo para suprir essa necessidade artificialmente produzida.
Mecanismos psicológicos de identificação com os ídolos esportivos, por
meio das imagens vencedoras que são construídas pela mídia, ajudam a
criar necessidades de consumo no imaginário dos torcedores, que para
satisfazê-la/s procuram comportar-se como seus ídolos, adquirir os produtos
e os símbolos a eles relacionados, enfim, “assumem” os valores que eles
ajudam a difundir (PIRES, 2007).
No final da década de 40 já havia essa demanda cultural latente pelo futebol
e, para supri-la, começaram a surgir diversos programas sobre futebol, os quais
inaugurariam uma categoria jornalística (e de entretenimento) muito representativa
nos dias de hoje. O primeiro programa, chamado de “Filmando a rodada” e criado
em 1948 pela Rádio Pan-americana (hoje Jovem-Pan), apenas retransmitia os
principais momentos do jogo. O surgimento desses programas atende a dois
objetivos: “atrair a audiência masculina para outros horários, além das tardes de
domingo e trazer para as rádios novos anunciantes e patrocinadores.” (ALMEIDA;
MICELLI, 2004: 15)
Mas apesar da inegável contribuição dos meios de comunicação para a
popularização do futebol, segundo FRANCO (2007), o futebol possui características
intrínsecas que já garantiriam sua espetacularização, com ou sem o auxílio da mídia.
O papel da mídia, portanto, seria apenas criar a linguagem e significação própria, a
qual passaria a ser absorvida e replicada pela população.
Mas se o futebol pôde ser adaptado ao capitalismo atual pela televisão, é
porque seus traços essenciais permitem isso. O futebol tem profundos e
inegáveis traços antropológicos, religiosos e psicológicos, que para serem
comunicados fizeram dele uma linguagem. Na essência, ele é espetáculo. E
muito antes da televisão colocá-lo ao alcance de milhões de pessoas
(FRANCO, 2007: 182).
34
35. Muitas vezes a mídia adquire papel opressor das informações no âmbito
esportivo, seu discurso adquire a percepção de verdade empírica ou de modelo
único de assunto a ser reproduzido. Fato que, segundo ECO (1984), em “a falação
esportiva”, contribui enormemente para que o assunto futebol seja considerado
intrínseco à cultura brasileira, não cabendo contestação para tal. Esse possível
papel opressor da comunicação esportiva, enquanto fábrica de assunto social (e de
simulacros de desempenho físico), talvez seja o principal malefício da mesma.
Essa prática, que ECO (1984) chamou de “opressora”, atingiu seu auge
durante a década de 50. Naquela época era comum que pequenas emissoras locais
e/ou rádios amadoras retransmitissem as partidas de futebol, algumas vezes até
para alto falantes instalados nas praças centrais.
Imagem 4: Torcedores acompanhando, pelo rádio e pelo placar do jornal “Última Hora”, a final da
Copa entre Brasil e Suécia (Acervo do jornal Última Hora/Arquivo público do Estado de São Paulo)
Essa rede, totalmente informal, amadora e sem contrato entre as emissoras
ou pagamento de direitos autorais, garantia que o futebol atingisse todo o Brasil
através de um efeito-dominó de retransmissão. Durante a Copa do Mundo de 1958
as ondas curtas da Rádio Bandeirantes, retransmitidas, chegou de norte a sul do
país com audiência média de 85%. “No jogo contra a Suécia (decisão da Copa) a
audiência da Bandeirantes foi de 92,5%” (SOARES, E; 1994: 55).
35
36. O futebol e rádio emergiram no país quase que simultaneamente e
transformaram as transmissões das partidas em espetáculo de massa. (...)
Sua mobilidade, praticidade e acessibilidade por parte do público fizeram
dele o grande parceiro do futebol. O rádio levou o esporte a todo o Brasil,
mas foi mais além. Contribuiu, de forma definitiva, para formar novos
torcedores e realimentar a paixão de várias gerações (ALMEIDA; MICELLI,
2004).
Podemos notar esse possível papel opressor dos meios de comunicação,
aplicado ao futebol, quando notamos a presença de torcidas que são muito
populares fora de seus estados de origem.
No estado do Paraná (segundo Instituto Paraná Pesquisa)6, a maior torcida é
a do Corinthians (SP), em detrimento aos tradicionais clubes locais. Para se ter uma
idéia, das 8 maiores torcidas do estado, 5 são de clubes de SP ou do RJ: o
Corinthians lidera (12,5%) e o Atlético-PR vem a seguir (9,6%), já o Coritiba (7,5%)
disputa um empate técnico com outro paulista, o Palmeiras (7,6%); o Paraná Clube
é apenas oitavo colocado (3,2%), sendo superado pelos “estrangeiros” São Paulo
(6,5%), Flamengo (6,2%) e Santos (4,3%). Diversos motivos podem explicar tal
fenômeno, não apenas a comunicação, mas sem dúvida o rádio e a televisão
tiveram papel fundamental para a escolha dos torcedores paranaenses, à medida
que as transmissões esportivas dos últimos 25 anos preteriam os clubes regionais
em favor daqueles de SP e do RJ; conforme relata o site regional Paraná Online:
A mídia teve um papel determinante para que os torcedores não aderissem
ao futebol paranaense, (...) em algumas regiões (...) não era possível
sintonizar as rádios paranaenses e o que era ouvido eram rádios do Rio de
Janeiro e Rio Grande do Sul. Em relação à televisão é a mesma coisa. Os
jogos que eram transmitidos na época eram de paulistas e cariocas (MAIA,
7
J. C; 2009 in site PARANÁ ONLINE) .
6
In: Site Uol Esporte, 21/12/2008.
7
In Site Paraná Online, 06/02/2009.
36
37. Na região Nordeste esse fenômeno também se repete, mas de forma ainda
mais notória. A torcida do Flamengo no Nordeste, com quase 24% da preferência,
representa mais do que o triplo do segundo colocado na região, o Corinthians, que
apesar de também não ser regional, conta com 7,4% dos torcedores. O Flamengo,
aliás, possui mais torcedores no nordeste (11,93 milhões) do que em qualquer outra
região, inclusive no sudeste (11,45 milhões), constituindo portanto uma parcela
muito representativa para o total do clube e um importante ativo econômico (graças
ao potencial de consumo) fora dos limites regionais. O time nordestino de maior
massa é o Sport, com 6,2%; número praticamente idêntico ao do São Paulo, que
tem 6,1% dos torcedores na região (DAMATTA, 2010).
Há várias explicações para tal cenário, uma delas diz que durante a ditadura
militar todos os cinemas eram obrigados a transmitir, nos primeiros 15 minutos, os
melhores momentos dos jogos pelo país. Com essa iniciativa o governo militar
buscava manter a ordem, o bem-estar social e o otimismo coletivo. Não há provas
para os argumentos a seguir mas, segundo a imprensa esportiva, o Flamengo (time
mais popular do país) teria sido privilegiado na montagem desses pequenos filmes-
noticiários, tanto em exposição quanto em construção de imagem, o que teria
influenciado diretamente na percepção e consequentemente na escolha do clube,
sobretudo na região nordeste. Outra explicação razoável, e ainda também com os
meios de comunicação como os principais agentes, é a de que o campeonato
carioca fora transmitido por muitos anos para a região nordeste, em detrimento dos
campeonatos locais. Tal explicação é tão plausível que até hoje, no ano de 2011,
alguns times paulistas buscam a transmissão de seus jogos para a região nordeste.8
O futebol se tornou poder.
O que se observa nesse percurso de pouco mais de um século de futebol
no Brasil é um deslocamento radical de finalidade. De diversão
descompromissada e elitizada, o principal esporte brasileiro passou a
fenômeno de massa e, na fase atual, a produto de consumo midiatizado
(GURGEL, 2006: 17).
8
In: Site Blog do Perrone, 05/04/2011.
37
38. 2. O FUTEBOL COMO NEGÓCIO
2.1. Um espetáculo lucrativo
“Aqui o futebol tem tudo que um negócio precisa para prosperar: um enorme
público cativo, mão de obra barata, publicidade de graça e praticamente nenhum
concorrente no seu ramo, o do esporte profissional” (VERÍSSIMO, 2010: 87-8).
Muito antes do termo “marketing esportivo” ser inventado, e até mesmo antes
da profissionalização do futebol, já havia no Brasil iniciativas embrionárias para
tornar o esporte do povo em instrumento rentável de capital, seja em torno de si
mesmo ou através da associação com produtos e marcas.
O primeiro caso, famoso e de grande repercussão, no Brasil, ocorreu na
década de 30, com o naming do jogador de futebol mais famoso da época. A
empresa, Lacta, queria relançar uma barra de chocolate e, para isso, nada melhor
que associá-la a um ídolo popular. O ídolo, Leônidas da Silva, era o autor do
primeiro gol brasileiro em Copas do Mundo, o inventor do gol de bicicleta e, segundo
alguns especialistas esportivos, o maior jogador brasileiro durante o período que
antecedeu Pelé (primeira metade do século XX). A ideia era associar o produto ao
jogador através do nome do produto, e apelido do craque: Diamante Negro.
A Lacta (...) usou o codinome dado ao jogador por um maravilhado jornalista
francês: Diamante Negro. O sucesso da fusão ídolo do esporte/produto
ajudou a transformar a Lacta numa gigante da indústria alimentícia no
Brasil, onde o Diamante Negro, em pleno século XXI, ainda é uma das
marcas mais consumidas (AREIAS, 200: 17).
38
39. Imagem 5: Reprodução de página do jornal “S. Paulo Sportivo”, em 1905, mostrando
que apesar de se orgulhar de ser amador, o futebol já era explorado economicamente.
Ao longo do século XX, o futebol deixou de ser apenas um esporte lúdico,
cujo território era dominado exclusivamente pela paixão e euforia quase infantil. O
futebol hoje movimenta muito dinheiro, em diversas formas, desde diretamente no
campo (como patrocínios e venda de jogadores), até com a força de sua torcida
(produtos licenciados) e outras formas indiretas. Clubes se tornaram marcas,
jogadores se tornaram ícones, e aos torcedores coube o papel (ora imposto pelo
sistema, ora por ele criado) de consumidores desse processo.
Atualmente, o esporte passa por este processo de mercadorização, tendo
se tornado um produto a ser preferencialmente consumido através dos
meios de massa. (...) Junto com ele, disponibilizam-se e consomem-se
produtos, símbolos e estilos de vida (PIRES in GRUNENNVALDT, 2007: 7).
Os números do futebol são impressionantes, segundo GURGEL (2006), a
maioria das pesquisas indica que o esporte movimente mundialmente acima de US$
210 bilhões ao ano. Mas, “João Havelange, ex-presidente da Fifa, já deu entrevistas
cravando em US$ 225 bilhões o poder econômico desse esporte. Outros falam em
US$ 260 bilhões” (GURGEL, 2006: 96). Todavia, o Brasil, conhecido mundialmente
39
40. como “o país do futebol”, apresenta números muito mais modestos. “Do total
mundial, em média, o país responde por volta de 1% a 4% desse total, ou seja. De
US$ 2 bilhões a US$ 7 bilhões” (2006: 97)
As possibilidades de ganhos com os eventos se ampliaram muito: cotas de
televisão, patrocinadores de eventos e campeonatos, imagem dos atletas,
marketing esportivo disseminando os valores do esporte, etc. Um maior
volume de dinheiro significa mais investimentos e uma ampliação das
possibilidades de lucro e empregabilidade (SOARES, A; 2009: 503).
O engajamento despertado pelo esporte bretão começou a aglutinar valor de
negócio à medida que seu processo de espetacularização se consolidava, o qual
fora potencializado por diversos fatores. Sendo o mais notório deles, sem dúvida, a
ação dos meios de comunicação.
Essa criação de valor passa, por exemplo, pela potencialização da torcida,
antes limitada aos torcedores do estádio, quando as TVs passaram a
massificar a transmissão do evento, (...) com isso, é incorporado o
telespectador, o torcedor da poltrona. Outra constatação desse processo
(...) foi o potencial propagandístico dos times de futebol, o que deu início a
patrocínios a clubes, jogadores e anúncios em estádios (GURGEL, 2006:
43).
Podemos elencar alguns fatores, anteriores a consolidação dos meios de
comunicação de massa, que podem ser considerados o pontapé inicial do processo
de capitalização do meio esportivo brasileiro. Essas ações, no início do século XX,
não podem ser vistas unicamente como o cerne do processo lucrativo do futebol,
mas também como seu processo de profissionalização.
Como seria de se esperar em sociedades crescentemente mercantilizadas,
o futebol de jogo estudantil foi se tornando atividade profissional. Ele
passava a ser mais um produto e seus produtores mais um tipo de operário.
Ou produtos eles próprios (FRANCO, 2007: 43).
40
41. Como vimos no capítulo anterior, a partir de 1913 a Liga Paulista de Futebol
passou a cobrar ingresso para os jogos, o que garantiu renda assegurada aos
clubes e o pagamento organizado de gratificações aos jogadores.
No entanto, “muitos historiadores colocam como fator central na passagem
para o modelo profissional a conquista do título fluminense pelo Vasco da Gama, em
1923” (GURGEL, 2006: 19). Essa conquista é histórica, pois une no mesmo feito o
primeiro título de um time remunerado, o qual já se considerava profissional, e que
era formado por jogadores mulatos, negros e pobres. Ou seja, foi o primeiro título
vencido por jogadores antes renegados socialmente (por sua raça ou por sua origem
não aristocrática) e que através de seu talento individual puderam ascender
financeiramente e socialmente. Criava-se aqui um movimento de aspiração social
que permeia o sonho da maioria dos garotos pobres do Brasil: querer se tornar
jogador de futebol e mudar de vida.
O processo de espetacularização do futebol, no entanto, apresenta alguns
malefícios ao esporte se consideramos sua origem recreativa.
Quanto maior a espetacularização do esporte, maior a dimensão econômica
que o esporte pode alcançar e, dessa forma, ele se distancia de seu princípio inicial
de jogo, o da celebração lúdica e amadora, passando a ser pautado pela
performance e pelos resultados. Vemos esse fenômeno também em
clubes/campeonatos que tiveram o amadorismo como gênese e característica
principal. A Copa Guaraná Antártica (que nasceu como um campeonato juvenil de
colégios) e a Copa Kaiser de Futebol Amador cresceram tanto que, hoje, possuem
patrocínios e até cobertura jornalística e hoje são pautadas pelo desempenho,
perdendo quase que totalmente seu caráter lúdico.
41
42. Imagem 6: Reprodução de foto oficial da Seleção Brasileira de Futebol para a Copa de 90,
onde jogadores escondem o patrocínio da Pepsi por estarem descontentes com os valores
negociados. A associação do futebol com os negócios não se isenta de polêmica
Visto essa constatação, a profissionalização do futebol e a associação do
mesmo com a busca de capitais nem sempre é vista com bons olhos, principalmente
para os torcedores mais apaixonados e românticos. Estes que são, justamente,
aqueles com maior afinidade ao esporte e aos seus clubes, consequentemente
aqueles que teriam maior propensão à compra de produtos. O processo de
espetacularização/capitalização do futebol, portanto, cria um ambiente praticamente
contraditório do ponto de vista do torcedor/consumidor, pois ao mesmo tempo os
apaixonados almejam o resgate do caráter lúdico e romântico do esporte
(principalmente no que tange a venda de atletas, que contraria o jogar por “amor à
camisa”) e o resgate de valores e identidade clubistica (os quais muitas vezes são
negligenciados em favor de uma negociação lucrativa); por outro lado a paixão
inserida no torcedor é potencializada pela espetacularização na qual ele fora
impactado ao longo de sua vida, além do mais esse mesmo torcedor espera e cobra
o comprometimento dos atletas, a busca por resultados e a disponibilidade de
produtos/serviços que o permitam participar do espetáculo (camisas do clube,
ingressos para o jogo).
42
43. Diferentemente de outras instituições, o futebol reúne muita coisa na sua
invejável multivocalidade, já que é jogo e esporte, ritual e espetáculo,
instrumento de disciplina das massas e evento prazeroso (DAMATTA, 1994:
12).
O Estatuto do Torcedor, lei federal de 2003, passa a encarar definitivamente o
torcedor como um consumidor, o qual passa a ter como direito receber um serviço
de qualidade: o jogo comprado. Segundo a lei, “torcedor é toda pessoa que aprecie,
apóie ou se associe a qualquer entidade de prática desportiva do País e acompanhe
a prática de determinada modalidade esportiva” (BRASIL, 2003). A lei permeia
desde acomodações e ingressos demarcados, como transporte, transparência de
regulamento e arbitragem esportiva, assim como o direito a reclamação caso sinta-
se lesado de alguma forma. “É direito do torcedor que a arbitragem das
competições desportivas seja independente, imparcial, previamente remunerada e
isenta de pressões” (BRASIL, 2003).
E, por mais que o torcedor não admita tal fato, ele se torna comprador (com
direitos e deveres) de um espetáculo armado, não em sua conclusão e
desenvolvimento, mas em sua razão de existir. Assim como os consumidores de
cinema, teatro e outras artes, o torcedor compra um espetáculo narrativo de final
desconhecido; a diferença entre os primeiros está na unicidade da narrativa (que
nunca se repetirá da mesma forma) e na imprevisibilidade de sua conclusão
(resultado desconhecido).
Segundo artigo publicado por VERÍSSIMO (1996), no Jornal do Brasil, o
futebol hoje vive um grande dilema, assim como todos os outros esportes de massa
do mundo. Segundo ele, o futebol está no ramo do entretenimento, concorrendo com
outros espetáculos diversos, desde o entretenimento de contemplação presencial
(como o teatro, dança e outras artes) até o entretenimento através da televisão
(filmes, programas, etc.). Para sobreviver o futebol precisa ser mais atraente. No
entanto, nenhum torcedor diria que se “entretém” com seu time, que acompanha um
jogo como quem acompanha uma ópera. O torcedor vai a um jogo “para dilacerar ou
ser dilacerado, vai para a guerra, mesmo que quase sempre uma guerra metafórica”
(1996: 3). Dessa forma, para o espetáculo futebolístico ser atraente, o mesmo não
pode ter nenhum atrativo de espetáculo, nenhum indício de montagem ou faz de
43
44. conta. Há de ser uma “séria e quase trágica competição por um cetro, não uma
experiência estética, mas a busca do coração do inimigo e da glória eterna, mesmo
que no ano seguinte todos voltem a ter zero pontos” (1996: 3).
GURGEL (2006) diz que entre 1950 e 1958, período compreendido entre o
maior trauma brasileiro do futebol (a derrota na final da Copa do Mundo, no
Maracanã) e o primeiro título mundial, viu-se uma grade mudança narrativa e de
perspectiva nacional em relação ao futebol, que passou de representação da
tragédia e sofrimento ao clássico apogeu heróico. Segundo o autor, a televisão foi o
principal responsável por essa construção da hiper-realidade e posteriormente pela
mudança de perspectiva, a medida que com o fortalecimento da mesma “a produção
de jogos como batalhas épicas, e de jogadores como heróis, somente se potencializou.
Sem dúvida, uma nova fase começava a se colocar à frente dos negócios do futebol. E
as mídias não ficariam somente assistindo.” (GURGEL, 2006: 29). Elas seriam partes
intrínsecas do processo.
Para GALEANO (2004) a história do futebol é uma triste dicotomia entre o
prazer e o dever. Do “prazer”, pelo amor com que o esporte é jogado nos inúmeros
“Maracanãs” existentes em cada bairro das cidades brasileiras e pelo “dever”, pelo
alto profissionalismo e inúmeros interesses comerciais, com que são tratados os
atletas e os agentes envolvidos no esporte mais popular do mundo.
Essa estrutura narrativa dicotômica - entre prazer e dever, paixão e negócios,
jogador e atleta profissional – é fruto de uma não definição entre a relação objeto e
observador do espetáculo, que Umberto ECO (1984) chamou de “esporte ao
quadrado”.
O esporte é elevado ao quadrado (...) quando o esporte, de jogo que era
jogado em primeira pessoa, se torna uma espécie de discurso sobre o jogo,
ou seja, o jogo enquanto espetáculo para os outros, e depois o jogo
enquanto jogado por outros e visto por mim. O esporte ao quadrado é o
espetáculo esportivo (ECO, 1984: 222).
A espetacularização esportiva ratifica o papel do mais importante personagem
dessa estrutura narrativa: o atleta, o herói, a representação do povo. Ainda segundo
44
45. ECO (1984), o esporte ao quadrado, faz do atleta um membro de instrumentação
total, praticamente um monstro que se destina a um único fim, assim como os
gladiadores romanos.
O atleta é um ser que hipertrofiou um único órgão, que faz de seu corpo a
sede e a fonte exclusiva de um jogo; o atleta é um monstro, é o Homem que
Ri, é a gueixa do pé apertado e atrofiado destinada a instrumentalização
total (ECO, 1984: 222).
2.2. Produto de exportação
É inegável, portanto, que hoje os atletas configuram a engrenagem principal
para o funcionamento e fonte de recursos dos clubes; seja por seu papel como
“meio de produção” no espetáculo futebolístico, como “bem de consumo” através da
associação do ícone com produtos/marcas e elemento de engajamento social, até
mesmo através do papel de “propriedade privada”, estabelecido quando há
transferência para outro clube (venda da propriedade) ou mesmo o ressarcimento ao
clube quando o atleta está servindo a seleção nacional ou emprestado a outro clube
(aluguel da propriedade).
Para se ter uma ideia, recentemente a FIFA divulgou os valores pagos aos
clubes por terem liberados seus atletas, ou “suas propriedades”, para a disputa da
Copa do Mundo de 2010. Campeonato, aliás, de apenas um mês de duração e que
paralisa todos os outros campeonatos locais. Ou seja, nenhum clube foi lesado pela
ausência de seus “meios de produção”. A cifra alcançou o valor de 40 milhões de
Euros; valor que, apesar de alto, não chega nem perto dos 2,6 bilhões de Euros
arrecadados pela FIFA em receitas comerciais com o evento. (FIFA, 2011) 9.
Para WITER (1996) a influência do mundo capitalista alterou a relação entre
atletas e clubes. O saudosismo com que é lembrada a relação de parceira entre
ambas as partes fundamenta-se nos milhões (de dólares) que (hoje) são
9
FIFA apud Site Futebol Finance, 07/01/2011.
45
46. necessários para se manter um jogador de alto nível no país. Em contra partida, a
venda desses atletas passou a ser uma das principais estratégias de negócio dos
clubes brasileiros (1996: 15).
Em 2004, juntamente com os direitos de televisão, a venda de jogadores já
era o principal ativo econômico dos maiores clubes do Brasil:
As transferências de atletas representaram R$ 191,97 milhões, ou 30% do
faturamento dos 19 maiores clubes – Foram R$ 825,7 milhões (como
faturamento total) de acordo com os balanços referentes a 2004. O dinheiro
da televisão respondeu por 29%; patrocínios e publicidade, por 11%; e
bilheteria, por apenas 7% (KISCHINHEVISKY in GURGEL, 2006: 190).
De fato, “para o Brasil os atletas profissionais tornaram-se mesmo o principal
produto de exportação. Em 2007, segundo o Banco Central, entraram no país cerca
de 195,2 milhões de Euros só em negociações de jogadores”. (SOARES, A.; 2009:
502)
Há várias causas para esse o fluxo migratório do futebol brasileiro,
relacionadas às especificidades locais e externas. Podemos notar que o mercado
empregador do futebol tem uma dinâmica completamente diferente se comparada
com outros setores da economia nacional, o que pode ser entendido como um
potencializador para as transferências internacionais. “Quem nunca sonhou em ser
um jogador de futebol”, não é verdade? A famosa música, “É uma partida de futebol”
(1996), da banda Skank, reflete muito a realidade no que tange a aspiração da
imensa maioria dos meninos brasileiros. No entanto, pouquíssimos conseguem
realizar o sonho. É uma relação clara entre oferta e demanda, são muitos candidatos
para poucas vagas.
Notamos que o número de postos de trabalho, para atletas profissionais bem
remunerados, é pequeno e não se expande na proporção do crescimento econômico
mundial e da multiplicação de escolas e centros de treinamento para formação de
atletas no Brasil. Esse cenário cria uma competição interna muito grande e viabiliza
a saída de trabalhadores/atletas competentes para ocupar postos de trabalho em
46
47. mercados do exterior, principalmente em locais onde o mercado futebolístico ainda
carece de mão de obra qualificada.
Imagem 7: Principais destinos dos jogadores brasileiros em 201010
Tanto que, em 2007, o país que mais recepcionou atletas brasileiros foi
Portugal (com 209 jogadores), enquanto que Ásia foi segundo continente que mais
empregou futebolistas brasileiros (com 222 atletas), perdendo apenas para a
Europa. Esses dados contrariam a percepção coletiva de que a maioria dos
jogadores brasileiros migra para jogar em tradicionais mercados europeus, como o
inglês, italiano e espanhol11. As transações internacionais milionárias são exceções,
ocorrendo apenas com atletas de alto rendimento e já conhecidos no futebol
brasileiro. O mercado exportador de atletas, no Brasil, é focado em volume, não em
valor.
Outro fator interno e que, segundo os clubes, teve grande influência no êxodo
de atletas, foi uma nova lei sancionada em 1998. A lei conhecida pelo nome de seu
10
In: Site ESTADÃO, 12/04/2011
11
In: Site UOL Esporte, 22/12/2008
47
48. criador - “Lei Pelé” (BRASIL, 1998) - instituía, entre outras coisas, o passe livre. O
“passe”, que antigamente era o vínculo estabelecido entre o jogador e o clube, foi
substituído por um vínculo trabalhista e desportivo, permitindo que o atleta sob
contrato fosse contratado por outra equipe mediante o pagamento de uma clausula
penal.
TRANSFERÊNCIAS INTERNACIONAIS DE JOGADORES BRASILEIROS
Ano Nº de transferências Ano Nº de transferências
1985 64 1998 530
1986 96 1999 658
1987 199 2000 701
1988 227 2001 736
1989 132 2002 665
1990 136 2003 858
1991 137 2004 857
1992 205 2005 804
1993 321 2006 851
1994 207 2007 1085
1995 254 2008 1176
1996 381 2009 1017
1997 556 2010 1029
Tabela 1: Transferências internacionais de jogadores brasileiros entre 1985 e 2010 12 13
Os clubes alegam que a Lei Pelé os enfraqueceu, uma vez que não havia
uma legislação especifica para resguardar seus interesses e assegurar o vínculo dos
jogadores. No entanto, segundo os atletas, a Lei Pelé representou o fim de um
vínculo injusto, uma vez que estes não tinham o poder de decisão sobre seu futuro,
cabendo as negociações e a “autorização” de transferência unicamente ao clube. A
partir da Lei Pelé, qualquer clube disposto a pagar a multa contratual, poderia contar
12
GURGEL, 2006: 62. (Dados entre 1985 e 2001)
13
CBF apud Site Papelada Solta, 22/04/2011
48
49. com qualquer atleta que atuasse no Brasil, cabendo a decisão somente ao jogador
e/ou a seus (novos) representantes.
O dinheiro passou a falar mais alto, e a economia internacional (sobretudo a
européia), com maior poder de barganha, tinha imensa vantagem comercial sobre o
mercado local. Começava, de fato, o modelo quase industrial de formação e
exportação de atletas.
Outro fator, dessa vez europeu, também contribuiu para a migração de
jogadores brasileiros. A Lei Bosman, instituída em 1995, estabelecia que qualquer
jogador pertencente à Comunidade Européia pudesse atuar em qualquer país
membro da CE sem ser considerado estrangeiro. Desde então, o futebol europeu
sofreu uma invasão de “novos europeus” para atuar nos campeonatos locais, os
clubes europeus foram muito beneficiados a medida que não precisariam mais
restringir o número de estrangeiros no time, a naturalização seria uma alternativa
para o problema.
O fluxo de naturalização de brasileiros foi tão intenso – alguns jogadores
atuam até pelas seleções nacionais -, que em 2008 o presidente da FIFA, Joseph
Blatter, declarou que um dia "o Brasil vai acabar sendo batido por ele mesmo se
continuar exportando tantos jogadores. Eles vão se naturalizar e um dia todas as
seleções do mundo jogarão apenas com brasileiros" (BLATTER, 2008)14.
2.3. A importação do produto nacional
Recentemente pudemos assistir no Brasil o crescimento de um movimento
contrário ao tradicional êxodo de atletas. A repatriação de ídolos consagrados não é
novidade, mas chamou muita atenção por ser o contra-fluxo do modelo no qual o
torcedor estava acostumado e por se tratar em um novo modelo de negócios.
Era via de regra que os jogadores brasileiros voltassem ao Brasil somente
para encerrar suas carreiras, estando normalmente muito aquém tecnicamente e,
por isso, sem espaço na Europa.
14
In: Site O Globo, 21/09/2008
49
50. Podemos destacar algumas exceções, como na década de 90, quando o time
do Palmeiras concretizou uma parceria inédita com a empresa Parmalat, o que
permitiu a contratação de grandes jogadores e técnicos, e consequentemente a
conquista de títulos no período. No entanto, esse modelo de negócio logo se
mostrou ineficiente, uma vez que o clube (completamente dependente da empresa
parceira) não conseguiu manter os grandes atletas com o fim da parceria.
Em dezembro de 2008, um novo conceito chega ao Brasil. Ronaldo
“Fenômeno” é apresentado no Corinthians, uma contratação que parecia impossível,
mas que fora concretizada graças a cotas de patrocínio que pagariam seu alto
salário. O clube era responsável pelo pagamento de um valor fixo do salário, algo
em torno de R$ 400 mil ao mês, enquanto que o restante do salário seria pago com
80% da cota de patrocínio dos calções e mangas, as quais foram super valorizadas
graças à exposição gerada pela presença do ídolo e a repercussão do clube na
mídia.
O salário total de Ronaldo era em torno de R$ 1,2 milhão ao mês, e o clube
ainda embolsava 20% do patrocínio dos calções e mangas. Ademais, a parceria foi
de grande lucratividade para o clube, que logo no primeiro ano teve um aumento de
60% (CORINTHIANS, 2010)15 na venda de produtos licenciados, e na cota de
patrocínio principal (que não é dividida com o atleta), a qual subiu de R$ 15 milhões
para R$ 18 milhões (PAVÃO, 2009)16.
O caso Ronaldo alavancou uma série de repatriações de outros atletas
renomados em situação bastante parecida, como por exemplo: Roberto Carlos
(Corinthians, 2010), Ronaldinho Gaúcho (Flamengo, 2011), Luís Fabiano (São
Paulo, 2011), Rivaldo (São Paulo, 2011), Robinho (Santos, 2010), Elano (Santos,
2011) e Adriano (Flamengo, 2009, e Corinthians, 2011).
15
CORINTHIANS, Sport Club apud Site Justiça Desportiva, 02/01/2010.
16
In: Site Veja.com, 30/04/2009
50
51. RELAÇÃO DE RETORNOS PARA O BRASIL DO EXTERIOR
Ano Nº de transferências Ano Nº de transferências
1999 303 2005 491
2000 352 2006 311
2001 351 2007 489
2002 350 2008 659
2003 344 2009 707
2004 499 2010 683
Tabela 2: Quantidade de jogadores que voltaram para o futebol brasileiro 17 18
Em uma análise rápida, é possível notar o quanto a presença desses ídolos
movimenta não apenas a paixão do torcedor, mas também sua propensão de
compra. Mais de 2 mil camisetas comemorativas a Luis Fabiano foram vendidas em
apenas quatro dias19; em três meses Ronadinho Gaúcho vendeu mais de 64 mil
camisas oficiais20; e Roberto Carlos foi o responsável por 20% no incremento de
vendas de produtos oficiais, com apenas cinco dias no clube 21. Apesar dos dados
refletirem apenas resultados de vendas a curto prazo, esses atletas tem poder retro-
alimentativo na paixão e consumo do torcedor a longo prazo. Para se ter uma ideia,
dois meses após sua aposentadoria, Ronaldo continuava sendo aquele que mais
movimentava as vendas no Corinthians.
No entanto, o caso de Ronaldo (um atleta de imenso apelo popular e de
trajetória transvertida pelo arquétipo do herói) talvez não possa ser considerado
padrão de comparação a outras negociações do mesmo gênero. O jogador gerou
uma movimentação financeira nunca vista no mercado brasileiro. E que, talvez, não
possa ser ultrapassado a curto/médio prazo.
Raul Corrêa, diretor financeiro do Corinthians em 2009, através de um blog
oficial para os torcedores, divulgou alguns dados da evolução financeira do clube
entre 2008/2009, o primeiro ano de Ronaldo:
17
GURGEL, 2006: 197 (dados de 1999 a 2004)
18
In: Site CBF, 08/06/2010 (dados de 2005 a 2010).
19
Fabricante NETSHOES. In: Site LanceNet, 31/03/2011.
20
Fabricante OLYMPIKUS. In: Site LanceNet, 15/04/2011
21
Rede de lojas ROXOS E DOENTES. In: Uol Esporte, 09/01/2010
51