1. Folha de S.Paulo - E, no entanto, se move - 14/06/2009 Page 1 of 8
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São Paulo, domingo, 14 de junho de 2009
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E, no entanto, se move
NOS 400 ANOS DAS OBSERVAÇÕES DE GALILEU,
QUE INAUGURARAM A CIÊNCIA MODERNA E SEU
CONFLITO COM A IGREJA, PADRE PREMIADO
POR UNIÃO ASTRONÔMICA DIZ QUE RELAÇÃO
ENTRE ESSAS ÁREAS EVOLUI, MAS LENTAMENTE
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Retrato do astrônomo Galileu Galilei, condenado pela Igreja Católica
por defender a ideia de que a Terra gira em torno do Sol
RAFAEL GARCIA
DA REPORTAGEM LOCAL
No quarto centenário das observações lunares de Galileu
Galilei (1564-1642), o padre americano George Coyne, 76,
conseguiu um feito memorável para um líder religioso:
receber uma condecoração de uma associação científica.
Tendo dirigido o Observatório do Vaticano por 28 anos, o
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matemático jesuíta com doutorado em astronomia foi julgado
digno de receber o prêmio Van Biesbroeck, da AAS
(Associação Americana de Astronomia), concedido àqueles
que prestam "generosos serviços de longo prazo" à
comunidade acadêmica de astrônomos.
Além de ter criado um curso de verão que introduziu
centenas de estudantes jovens na carreira de astronomia,
Coyne foi o pesquisador que colocou o observatório numa
condição de fazer pesquisa de ponta. Por meio de um
convênio com a Universidade do Arizona, onde Coyne
leciona, a instituição religiosa construiu um telescópio de
primeira linha.
Donna Wiestrop, astrônoma da AAS que coordena o prêmio
Van Biesbroeck, diz que aparentemente esta é a primeira vez
que a maior associação de astronomia do mundo premia um
padre. Os "serviços prestados" por Coyne, porém, vão além
de sua área de pesquisa.
Ele escreveu livros e deu grande contribuição ao diálogo
entre religião e ciência. Coyne também se meteu em
controvérsias por defender a teoria da evolução de Darwin
como a melhor explicação científica para a origem do
Universo e dos sistemas vivos.
Tal defesa colocou-o em choque contra um cardeal, ex-aluno
do papa Bento 16, que advogava o design inteligente.
Segundo a imprensa britânica, isso lhe custou o posto no
observatório, em 2006. Coyne nega. Em entrevista à Folha
por telefone de seu escritório em Tucson (EUA), ele explica
como acredita que essa relação conturbada pode amadurecer.
FOLHA - Neste ano a ciência tal qual desenvolvida por
Galileu completa quatro séculos. Em sua época, o cientista
teve entreveros com a Igreja Católica, e isso parece estar
acontecendo ainda hoje, nas igrejas cristãs de um modo
geral. Alguma coisa amadureceu nesses 400 anos na
relação entre ciência e religião, ou ela continua a mesma?
GEORGE COYNE - Há muito que pode ser dito sobre o
período de Galileu até hoje. Durante esses 400 anos, muitas
coisas mudaram na ciência e na igreja. Na época de Galileu, a
ciência moderna, tal qual a conhecemos, ainda estava
nascendo. Galileu foi um dos pioneiros, com Descartes,
Kepler e depois Newton. Partamos desse princípio.
O que aconteceu em 400 anos ou mais foi que a ciência
cresceu para se tornar um método muito bem definido de
explorar o Universo. Mas é um método muito limitado. Ele
busca causas naturais para eventos naturais, e ele foi muito
bem sucedido em fazê-lo.
Veja a cosmologia do Big Bang, que é a melhor explicação
para todas as observações que já fizemos durante esses 400
anos sobre o Universo. É a melhor explicação científica.
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Talvez amanhã ela sofra aprimoramentos. É assim que a
ciência caminha. Além da cosmologia do Big Bang eu
mencionaria a evolução neodarwinsta. É a melhor explicação
que temos - se a estendermos para o Universo todo- para
todos os processos físicos e biológicos. Ela se aplica
diretamente a sistemas vivos, mas vamos estendê-la para o
Universo e tudo o que há nele, incluindo nós mesmos. Esses
são apenas dois exemplos, entre muitos, mas acho que a
maioria das pessoas concordaria que essas são duas das
realizações mais significativas da ciência, desde o tempo de
Galileu até hoje. Ainda assim, às vezes elas se encontram em
grandes controvérsias. A razão pela qual isso ocorre é porque
alguns cientistas pisam fora dos limites da ciência. A ciência,
como tal, não pode provar a existência de Deus nem prová-la
falsa usando sua própria metodologia. Repito: ela se limita a
procurar explicações naturais para eventos naturais. E se
existe um Deus -a natureza própria de um Deus-, isso está
além da natureza.
FOLHA - A Igreja Católica só pediu perdão a Galileu no
ano 2000, mas o Observatório do Vaticano é uma
instituição bem mais antiga e já tinha começado a fazer
astronomia com seriedade antes disso. Quando exatamente
as autoridades católicas começaram a mudar de ideia com
relação a Galileu?
COYNE - Não existe uma data precisa. A igreja é como um
ser vivo, que cresce e muda com o tempo, assim como
qualquer outra instituição. E a mudança foi principalmente
em duas áreas: a compreensão das escrituras pela igreja e a
compreensão da ciência pela igreja.
Não sou historiador, mas sei que o entendimento da ciência
pela igreja só veio a ocorrer do século 18 para o meio do
século 19, quando a igreja finalmente removeu todos os
livros relacionados ao copernicanismo do Index. Isso foi por
volta de 1845. Até um século antes, houve muitas tentativas
de correção por parte da igreja, removendo os livros de
Copérnico do Index, mas isso nunca tinha sido feito de
maneira completa.
A igreja levou tempo para se acomodar às mudanças. Você
poderia perguntar quando surgiu a prova do copernicanismo.
Mas o que é uma prova em ciência? Acho que você aceitaria
como prova a descoberta da paralaxe e a descoberta da
aberração da luz.
A paralaxe era explicada da melhor forma pela Terra dando
voltas ao redor do Sol. E a aberração é explicada da melhor
forma pela Terra circundando o Sol e girando em seu próprio
eixo. A aberração da luz da luz das estrelas foi descoberta lá
pelo meio do século 17, e a paralaxe, por volta de 1830.
Então, o entendimento da ciência por parte igreja cresceu,
assim como a própria ciência cresceu, mas de modo lento. E,
quando apareceu o darwinismo, a igreja novamente hesitou.
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Isso é por causa da compreensão da ciência. Ainda hoje a
igreja está elaborando sua compreensão da ciência. O que a
ciência faz? Ela não faz tudo. Ela é uma ferramenta muito
limitada, mas muito poderosa.
"A ciência não pode provar a
existência de Deus nem prová-la
falsa usando sua própria
metodologia. Ela se limita a
procurar explicações naturais para
eventos naturais"
FOLHA - E o que isso tem a ver com a compreensão das
escrituras pela Igreja Católica?
COYNE - Um dos grandes problemas na época de Galileu é
que a igreja disse que o copernicanismo era claramente
contraditório com as escrituras, que em muitos trechos
afirmam ou implicam que o Sol esteja se movendo. Mesmo
hoje dizemos "o Sol se levanta" e "o Sol se põe". É modo de
falar, mas a igreja encarava isso como se a escritura estivesse
ensinando ciência. A igreja, depois de quatro séculos, se deu
conta de que isso está errado.
Uma grande realização dentro da igreja foi a encíclica
"Providentissimus Deus", de Leão 13, que começou a ensinar
aquilo que a igreja defende hoje: você deve interpretar as
escrituras de acordo com a técnica literária. Você não pode
interpretá-las literalmente. E além disso: não há nenhuma
ciência nas escrituras. As escrituras começaram a ser
compostas por volta de 5.000 a.C., com o patriarca Abraão,
até cerca de 200 d.C., mais ou menos. A ciência moderna
começou a existir entre os séculos 16 e 17. Como poderia
haver alguma ciência nas escrituras? Há uma separação de
pelo menos 1.500 anos entre a redação final das escrituras e a
ciência moderna. Então, não há nenhuma ciência nas
escrituras. Zero. E qualquer um que quiser usar as escrituras
de modo científico incorrerá em erros.
FOLHA - Pouca gente esperava que o Vaticano fosse se
desculpar pelo episódio de Galileu, muito menos quatro
séculos depois, em 2000, com João Paulo 2º. Por que isso
foi decidido naquele momento?
COYNE - Ele sabia que seria um gesto importante. E a razão
disso data de muito antes. Antes de ele se tornar papa, quando
era cardeal-arcebispo de Cracóvia, ele costumava promover
encontros de cientistas, filósofos e teólogos. Ele tinha
entusiasmo pelo diálogo entre a cultura científica e a
religiosa.
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Quando ele se tornou papa, ele se deu conta de que o caso de
Galileu, nas palavras dele próprio, ainda era um mito. O mito
de que, por causa da controvérsia com Galileu, havia um
conflito intrínseco entre a crença religiosa e a ciência. E ele
queria acabar com isso. Então, uma das coisas que fez, em um
dos primeiros anos de seu papado, foi indicar que ele queria
estabelecer uma comissão para tratar disso. Ele foi muito
dedicado em estabelecer um diálogo entre a igreja e a ciência
e se livrar de coisas negativas do passado. Uma das
principais, claro, era Galileu.
FOLHA - A controvérsia envolvendo o darwinismo é em
grande parte restrita a países com grande contingente
protestante, mas não se ouve falar muito da posição do
Vaticano.
COYNE - Não há documento oficial. Não uma declaração
oficial a respeito de evolução e design inteligente. É isso,
ponto. Há alguns integrantes da igreja que estão discutindo o
assunto. Alguns estão discutindo de maneira inteligente,
outros não, porque não entendem o que a ciência é nem o que
a evolução representa como explicação científica. João Paulo
2º, em uma mensagem para a Pontifícia Academia de
Ciências, disse que a evolução "não é mais uma mera
hipótese". Disse que a paleontologia, a geologia, a biologia, a
química e a cosmologia, todas convergem no sentido de que a
evolução é a melhor teoria científica que temos hoje. O papa
Bento 16 ainda não deu declarações de alta importância sobre
isso.
FOLHA - Quando o sr. deixou a direção do Observatório do
Vaticano em 2006, depois de 28 anos de trabalho, alguns
jornais disseram que o papa Bento 16 teria lhe pedido a
renúncia por causa de suas críticas ao design inteligente.
Isso é verdade?
COYNE - Não, absolutamente. E não digo isso para me
defender, mas para defender a verdade. Eu já tinha pedido
renúncia voluntariamente por quatro vezes durante minha
gestão. Apesar de amar meu emprego, eu francamente acho
que a direção de uma instituição científica precisa sempre de
sangue novo. Quando eu completei oito anos na direção, pedi
demissão, quando completei 16 anos, pedi de novo, e depois
de 24, mais uma vez. Quando pedi após 28 anos na diretoria,
eles finalmente a aceitaram.
Fora isso, o papa Bento nunca falou da evolução de maneira
negativa e nunca apoiou ou rejeitou o design inteligente.
Depende de o que você considera design inteligente. Se você
considera que é uma explicação científica, está errado. Não é.
Para começar, não conseguimos detectar inteligência pelo
método científico. Não conseguimos encontrar o design
inteligente na ciência.
Agora, a fé pode me ensinar que tudo isso foi projetado de
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maneira inteligente, e eu acredito nisso, mas não consigo
descobrir isso como cientista.
E uma coisa não está em contradição com a outra. Na
verdade, se eu acreditar em Deus, o Universo em evolução
me diz um bocado sobre Deus como criador inteligente. Ele
criou um Universo que não é uma máquina de lavar, nem um
carro, nem um relógio. Ele criou um Universo que tem um
dinamismo e uma criatividade próprios. É um "se"
importante.
FOLHA - Como foi sua carreira? Por que o sr. veio a se
interessar tanto por ciência quanto por religião?
COYNE - Eu entrei para o seminário como jesuíta aos 18
anos, em 1951. Fiz meus estudos espirituais, meu noviciado,
onde estudei história antiga e literaturas latina e grega por
dois anos. Também estudei filosofia por três anos, e durante
esse tempo conclui minha graduação em matemática. No fim
desse período, ainda como seminarista, fui enviado para um
doutorado em astronomia e astrofísica. Quando terminei,
depois de cinco anos, fui estudar teologia. Depois fui
ordenado padre. E, então, comecei minha carreira
pesquisando astronomia na Universidade do Arizona. Tudo
foi meio emaranhado, e sou feliz com isso.
Não vejo nenhum conflito na minha vida em ser padre e
cientista. Acho que ambos complementam um ao outro. Não
sou um cérebro ambulante. Sou uma pessoa. E, como todas as
pessoas tenho experiências em minha vida: experiências de
fé, experiências de amizade... todos nós temos essas emoções.
Temos partes das nossas vidas que tentamos integrar. Isso é o
que torna a vida interessante.
FOLHA - O fato de ser jesuíta o influenciou, já que a
Companhia de Jesus tem uma tradição em se relacionar
com a Academia?
COYNE - Sim. É uma longa tradição. Após 30 anos da
fundação da Companhia de Jesus, em 1540, nós tínhamos um
grupo renomado de matemáticos e astrônomos no Colégio
Romano, e alguns deles foram contemporâneos de Galileu.
Foram os precursores do observatório, e trabalharam para a
reforma do calendário. Esses jesuítas foram os primeiros a
corroborar as observações telescópicas de Galileu, que foram,
claro, o começo da ciência moderna. Nós [jesuítas] realmente
temos uma longa tradição de cientistas, mas ela não é
exclusiva. Mendel, o pai da genética, era um agostiniano.
"Não vejo nenhum conflito em ser
padre e cientista. Acho que ambos
complementam um ao outro. Não
sou um cérebro ambulante. Sou uma
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pessoa"
FOLHA - O sr. já enfrentou algum tipo de preconceito no
meio científico por ser padre?
COYNE - Nunca. E trabalhei durante toda a minha carreira
como cientista na universidade estadual, que não era um
seminário nem uma universidade de afiliação religiosa.
Sempre fui muito bem recebido lá, colaborei com pessoas lá
em minha pesquisa. Colaborei com pessoas na Finlândia e até
no Brasil, na Universidade de São Paulo. Faz tempo que não
vou para aí, mas em algumas vezes passei vários meses em
São Paulo e no Rio. "Falo um pouco de português brasileiro
[falando em português]."
FOLHA - O sr. pretende vir ao Rio neste ano para o
encontro da União Astronômica Internacional?
COYNE - Eu espero conseguir ir. Tenho alguns problemas
para resolver, mas acho que conseguirei fazer isso a tempo.
FOLHA - O sr. foi premiado pela AAS, em grande parte por
conta dos cursos de verão no Vaticano. O que era esse
programa?
COYNE - Antes de começarmos as escolas de verão, éramos
apenas um instituto de pesquisa. Alguns de nós ensinávamos -
como eu, no Arizona-, mas isso era pessoal. Não tinha nada a
ver com o Observatório do Vaticano. E nós colaborávamos
com astrônomos ao redor do mundo. Nós nunca
conseguíamos nos relacionar com astrônomos jovens,
estudantes. Mas também não podíamos transformar o
observatório em um instituição de ensino.
Então, resolvemos criar esse tipo especial de evento, uma
escola de verão de um mês em astrofísica, para o qual
convidaríamos astrônomos jovens de todo o mundo. Tivemos
apoio de nossos superiores no Vaticano para isso, em
particular do papa João Paulo 2º, e o projeto deu certo.
Chegamos a 11 edições, para onde levamos ao todo 275
jovens do mundo todo, de 22 países, sendo 62% de países em
desenvolvimento. As mulheres eram 48%.
FOLHA - O que o sr. tem pesquisado ultimamente?
COYNE - Eu não tenho sido muito ativo em pesquisa agora
porque tenho um trabalho em tempo integral, que é levantar
fundos para financiar o nosso telescópio. Mas, quando vim
para o Arizona, eu trabalhei com raios e partículas
interestelares. Eu trabalhei por muitos anos em estudos de
polarização, em meio interestelar, em estrelas com atmosferas
estendidas e até em alguns tipos de galáxias. Os estudos de
polarização nos ajudam a entender a geometria dos sistemas.
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FOLHA - O telescópio com o qual o sr. trabalha foi uma
iniciativa do Observatório do Vaticano, não?
COYNE - Sim. Nos foi oferecida a opção de nos unirmos à
Universidade do Arizona quando ela estava começando a
trabalhar em uma nova tecnologia de espelhos de telescópios.
O primeiro espelho que eles produziram foi o do nosso.
Colaboramos no desenvolvimento dessa tecnologia, e nosso
telescópio foi o tubo de ensaio dela. E deu tão certo que agora
temos como vizinho o maior telescópio do mundo usando
essa tecnologia com dois espelhos de oito metros de
diâmetro.
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