1. Wesley expandiu a compreensão da graça de Lutero, vendo-a como um processo com três momentos: graça preveniente, justificadora e santificadora.
2. A graça preveniente antecede qualquer ação humana e é universal, o Espírito age em todos. A graça justificadora inicia um novo relacionamento com Deus. A graça santificadora é um processo de renovação contínua.
3. Para Wesley, a graça requer resposta humana, mas é oferecida a todos pela iniciativa divina, dest
1. 1
A COMPREENSÃO WESLEYANA DA GRAÇA
Rev. Eber Borges da Costa
A doutrina da salvação pela graça de Deus é um tema fundamental na teologia
metodista e a põe em estreita ligação com a teologia da Reforma.
A Reforma Protestante, cujo marco fundamental data de 31 de outubro de
1517, expande-se a partir da divulgação das 95 teses de Lutero. Teses estas que,
especificamente, falavam contra a venda de indulgências. Tinham, portanto, no seu
bojo, a compreensão de que a graça é fundamental para a salvação. O perdão divino
não pode ser comprado; é concedido graciosamente ao pecador arrependido.
Essas teses eram um ataque direto a todo o sistema e pensamento que
justificavam a venda de indulgências, negando o poder do Papa sobre o purgatório.
Purgatório que se tornou um símbolo da situação de angústia e medo a que eram
submetidos os que, como Lutero, buscavam sinceramente agradar a Deus com seus
méritos pessoais e através das penitências.
Lutero estava em Aldersgate. A conhecida experiência do Coração Aquecido
se dá sob a influência de luteranos morávios e no exato momento em que alguém lia
o Prefácio de Lutero à Epístola aos Romanos; mais precisamente, no trecho em que
ele fala da mudança que Deus opera no coração pela fé em Cristo – que só é
possível pela graça atuante de Deus.
Entretanto, Wesley vai além na compreensão da graça. Não apenas repete
Lutero, mas revela um entendimento singular a respeito do amor salvador de Deus,
combinando a ênfase protestante na salvação pela fé (obra da graça) com a ênfase
católica na santificação. Avançando, entretanto, em ambos os conceitos.
A compreensão que Wesley tinha a respeito da graça é a chave para entender
todo o seu pensamento soteriológico. É conhecida a imagem que Wesley utiliza da
casa para representar o processo de salvação. Nesta imagem, aparecem os três
principais momentos da graça: a varanda da casa seria a graça preveniente; a porta,
a graça justificadora e o interior da casa, onde moramos, a graça santificadora.
Graça Preveniente
Preveniente é a graça que se antecipa a qualquer vontade humana. Reforça,
assim, a iniciativa divina no processo de salvação. Em oposição aos calvinistas que
enfatizavam a vontade eletiva de Deus que produz uma graça irresistível e limitada
aos eleitos, Wesley, com a doutrina da preveniência, reforça o amor universal de
Deus e destaca a necessária reação humana. É uma graça que deve ser acolhida e
à qual se pode resistir.
A graça preveniente é a única possibilidade de salvação. Após a queda, o ser
humano não é mais livre.É o Espírito Santo que lhe restitui a liberdade.Toda ação
humana em direção a Deus é, então, uma resposta à iniciativa divina. Não é causa,
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mas efeito da graça. Entretanto, é uma ação consciente, fruto de uma decisão e um
esforço pessoal. Deus não obriga a pessoa a escolhê-lo, mas cria esta possibilidade.
Em seu sermão de número 85, “Trabalhando para nossa própria salvação”,
Wesley descreve o papel da graça preveniente:
“A salvação começa com o que é acertadamente chamado uma ‘graça
preveniente’. Nos referimos assim ao desejo de agradar a Deus, ao primeiro
entendimento da sua vontade e à primeira sensação, leve e transitória, de ter
pecado contra ele. E tudo isso é um sinal de vida, de certo grau de salvação; o
primeiro passo para nos livrarmos de nossa cegueira e insensibilidade em
relação a Deus e a tudo que refere a Ele.”1
Este estágio da graça é o primeiro toque que quer despertar nossos sentidos
espirituais para genuinamente conhecermos a Deus.
Além disso, a graça preveniente tem um caráter universal. O Espírito age no
mundo inteiro, em todos os povos e culturas, distribuindo o amor gratuito de Deus.
Uma certa consciência a respeito do que é bom e mal moral, aprovando o primeiro e
repudiando o segundo, atesta isso. No sermão 129, “Tesouro celestial em vasos de
barro”, ele diz:
“Certamente, seja natural ou acrescentada pela graça de Deus, ela (a
consciência) é encontrada, pelo menos em certa medida, em todo ser que vem a
este mundo. Até certo ponto, está presente em qualquer coração humano,
sentenciando sobre o que é bom ou mal, não apenas em todos os cristãos, mas
em todos os maometanos, todos os pagãos, até mesmo o mais inculto dos
selvagens.”2
Essa universalidade da graça abre a possibilidade de transformação a todo ser
humano. Cada um é alvo do amor divino e possui um valor infinito.
Para Wesley, a essência da graça é a iniciativa do Espírito, o que torna sua
compreensão sobre a graça trinitária e não apenas cristológica. O Espírito chega
onde ainda não chegou o conhecimento explícito de Deus, onde Cristo ainda não é
conhecido.
Ao falar a respeito do pecado original, Wesley se revela pouco otimista em
relação à condição humana. Para ele, todos os homens são, por natureza, filhos da
ira. Entretanto, é exatamente ao tratar deste tema que ele faz afirmações muito
positivas a respeito do alcance da graça. É a ação do Espírito no mundo que torna a
graça divina acessível a todos, anulando os efeitos do mal. Ele age no mundo todo,
oferecendo seu auxílio a toda a humanidade, tanto a cristãos quanto a não-cristãos.
Graça Justificadora
O próximo passo no processo de salvação, continuando com a imagem da
casa, é a porta da justificação, também possibilitada pela graça de Deus.
1
2
WESLEY. John. Obras de Wesley. Franklin, Tennessee: Providence House Publishers. 1996, tomo IV.p. 120.
Idem p. 318
3. 3
“A justificação é o modo como Deus – usando um termo da informática – realinha
a humanidade, restaurando-nos ao relacionamento para o qual fomos criados.
Para Wesley, esse realinhamento é possível graças ao perdão a ao amor de
Deus manifestados a nós por meio de Cristo, interrompendo o círculo vicioso da
alienação e afastamento que nós mesmos impomos e estabelecendo um novo
relacionamento baseado na misericórdia reconciliadora de Deus.” 3
Inicia-se, com a justificação, um novo tipo de relacionamento com Deus em que
há uma confiança (fé) apenas nEle e não mais nos próprios méritos. Mais do que
isso, é o início de um novo processo, o da restauração da imagem de Deus em nós
(Novo Nascimento). Ao passar pela porta, um momento, entramos na casa –
santificação, um processo. Isso implica, agora, em não apenas receber de Deus
(graça), mas, também, repartir com outros o que dEle recebemos.
Todo o processo ocorre porque é uma possibilidade da graça de Deus. Graça
que age de formas distintas, na visão de Wesley, mas sempre relacionadas
“Numa seqüência de raciocínio, diz Wesley, a justificação precede o novo
nascimento (regeneração), como a ‘grande obra que Deus por meio de Cristo
faz por nós, perdoando nossos pecados’ e nos reconciliando. Já a
regeneração ou novo nascimento é a ‘grande obra que Deus por meio do Espírito
opera em nós, renovando-nos a natureza decaída’ E esse novo nascimento ou
regeneração inaugura o processo de santificação, da verdadeira renovação de
todos os aspectos de nossas vidas.”4
Wesley, talvez mais do que todos antes dele, tem uma visão muito positiva da
graça de Deus. Tem uma visão terapêutica da graça, em contraste com outras
visões em que predominam as imagens forenses a respeito dela. A justificação é
entendida por Wesley como um poder curativo do amor, e não apenas como perdão
oferecido por um juiz misericordioso. É um ato de amor que provoca um processo de
renovação, de reconstrução da vida.
Graça Santificadora
Utilizando ainda a metáfora de Wesley, entramos agora no interior da casa:
graça santificadora. Santificação é, segundo, Klayber e Marquardt, o centro da
teologia metodista. “Não somente a doutrina sobre a santificação, mas a pregação e
a vida de santificação se constituem, conforme Wesley, na justificativa para a
existência mesma do movimento metodista.”5
Duas coisas são importantes considerar. A primeira é a idéia do processo. A
santificação
não
acontece
num
momento.
É
inaugurada
com
a
justificação/regeneração e dura a vida toda. Acontece enquanto se caminha.
Diferentemente de Lutero – para quem a “descoberta e a apropriação da graça
e do perdão são o objetivo supremo, e a justificação a dádiva maior” 6 – Wesley vê a
3
RUNYON, Theodore. A Nova Criação: A teologia de João Wesley hoje.Tradução: Cristina Paixão Lopes. São
Bernardo do Campo: Editeo, 2002. p. 58
4
Ídem p.59
5
KLAIBER, Walter & MARQUARDT, Manfred. Viver a Graça de Deus: um compêndio de teologia metodista.
Tradução: Helmuth Alfredo Simon. São Bernardo do Campo: Editeo,1999.p.296
6
RUNYON, op. cit. p. 110
4. 4
justificação como o início da vida cristã e não como seu fim; ela continua na
santificação e esta é a ênfase wesleyana.
O segundo ponto a considerar é o seu caráter comunitário e social. É um
caminho que não se faz solitariamente. Inclui, evidentemente, os atos de piedade,
mas não se reduz a eles. Não se pode pensar um conceito, em Wesley, de “santo”
como “separado”, tão comum no meio evangélico brasileiro atual. Santificação é
santidade em amor e amor se vive no contato; se faz no encontro com Deus, com os
outros e com a criação. Santidade é santidade social.
Ele descreve a santificação com duas dimensões, uma negativa que seria a
superação do pecado e a outra positiva que é a vivência do amor. Santificação não
se define, portanto, com uma lista de ações que se deve evitar, mas com ações que
se devem realizar, motivadas pelo amor. A salvação não é apenas reconciliação com
Deus, mas, antes, a restauração da imagem de Deus no ser humano.
Enxergar a santificação como possibilidade da graça é vê-la não apenas como
resultado do esforço humano para a agradar a Deus, mas como um dom, fruto do
amor divino. Não é, portanto, um comportamento exigido por um Deus caprichoso
que quer de seus servos atitudes que inibam a alegria e o prazer. Não é um peso
imposto sobre os ombros humanos. É, antes, um estilo alegre de se viver.
“Santificação é o restabelecimento da comunhão paradisíaca com Deus, é a
recuperação da imagem de Deus e, através dela, o homem não só fica santo, mas
também plenamente feliz.”7
Graça divina e responsabilidade humana
Há uma evidente ênfase no pensamento e prática wesleyanos na graça
divina.É importante frisar, no entanto, que a graça em Wesley é um tema dentro de
um processo maior que é o caminho da salvação.
Pensar em salvação como um caminho a percorrer – caminho que é
possibilitado pela graça –, mas que ainda requer o esforço de caminhar, enfatiza
também a necessária resposta humana. A graça, sem uma resposta humana, tornase ineficaz.
A graça de Deus está sempre ativa na nossa vida, não depende de uma
resposta, é amor incondicional. No entanto, ela terá efeitos de transformação se
houver uma resposta positiva das pessoas.
A graça se manifesta em três momentos: na criação, no perdão, e na
transformação ou recriação do ser humano – graça preveniente, graça justificadora e
graça santificadora. Nestas três formas, ela pede uma resposta. Não pode ser
imposta nem é “irresistível”, porque é, essencialmente amor. “Privar o ser humano da
liberdade não tem a natureza da graça de Deus nem a natureza de seu amor” 8
Ainda assim, o amor de Deus é tão grande que esta graça o auxilia em sua resposta,
é um estímulo que a torna possível.
7
8
KLAIBER & MARQUARDT, op. cit. , p. 302
RUNYON, op. cit. p. 40
5. 5
Nos três momentos que caracterizam a graça na visão de Wesley a
participação humana é fundamental, assim, como a divina. “Poderíamos dizer que a
teologia da graça, na concepção inclusiva e abarcante de Wesley, devolve ao crente
sua responsabilidade, não seu protagonismo, pois a salvação é um dom da graça de
Deus, mas o crente é responsivo e responsável.”9
Afirmar a importância da participação da pessoa humana no processo de
salvação devolve-lhe a dignidade de alguém que tem valor e potencialidades. Essa
compreensão da graça fez com que muitas pessoas, no movimento metodista,
recuperassem sua dignidade, a auto-estima e o seu lugar como agentes do Reino de
Deus no mundo.
Conclusão
Wesley não foi totalmente original em sua compreensão a respeito da graça
divina. Como caminhante, numa caminhada que não se faz solitariamente, nem
poderia sê-lo. Absorveu muito do que há em Lutero e por mediações diversas. Mas,
não simplesmente absorve, avança originando uma compreensão do amor salvífico
de Deus singular e muito abrangente.
O poder renovador (recriador) da graça divina e o seu imenso alcance abre as
possibilidades para nossa atuação hoje. Renova a esperança e anima a caminhada.
A responsabilidade humana, em resposta à graça, é também desafiadora. Sem
trabalho, compromisso e envolvimento pessoal e social, nada acontecerá. Ao
unirem-se graça divina e responsabilidade humana, novos caminhos se abrem e a
recriação se torna possível.
A grande mensagem da graça são as possibilidades que ela abre e para quem
ela abre. Num contexto marcado pela “desgraça” e pela falta de perspectiva depois
de tantos modelos mostraram-se ineficazes; a graça de Deus nos desafia a
redescobrir o poder restaurador de Deus que, unido à boa vontade humana, poderá
trazer libertação a todos quantos dela precisem.
9
ARIAS, Mortimer. De Lutero a Wesley e de Wesley a nós .Caminhando: Revista da Faculdade de Teologia da
Igreja Metodista. São Bernardo do Campo, Editeo/UMESP, nº 12 , 2º semestre de 2003.p. 40