Este é um livro irreverente sobre as sombras que diariamente somos obrigados a varrer para baixo do 'tapete' de nossa mente. Acostumados a pensar nossos 'pensamentos de estimação', esquecemos de uma força brutal e demolidora que habita nos recônditos escuros de nosso pensamento. Seria medo do animal que subsiste em nós? Mas, e se este for um leão? Podemos abrir mão desta força? A quem interessa nossa fraqueza e submissão? Pois este livro deixa bem claro a quem interessa esta redução. Esta é uma história irreverente, para pessoas irreverentes... pessoas que não têm medo de mergulhar na própria sombra...
2. ÍNDICE
Pág 03.....................................................................................................PREFÁCIO
Pág 07 ............................................................................................... A APARIÇÃO
Pág 19.................................. ATRAINDO O OCEANO PARA UM PINGO D’ÁGUA
Pág 27......................................................... SOBRE SÓBRIOS E EMBRIAGADOS
Pág 41................................................................................... .UM TIRO NA CHUVA
Pág 48................................................................ EXPLICANDO O INEXPLICÁVEL
Pág 53................................................................................POR QUE O DIABO RI?
Pág 84................................................. ARMADILHAS QUE JÁ NÃO FUNCIONAM
Pág 91..................................... OS HOMENS- ESQUELETO E SUAS CARNIÇAS
Pág 98....................... .ROMPENDO COM OS PENSAMENTOS DE ESTIMAÇÃO
Pág 107.............. .PARA AS LUZES ELÉTRICAS O FOGO DA VELA É LOUCO!
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3. PREFÁCIO
Napoleão dizia: raspe um russo e por baixo aparecerá o cossaco! Esta frase sempre
me inspirou alguns pensamentos. Qual o sujeito que apareceria se raspássemos um
civilizado? Acho que quem mais aproximou o rosto deste quadro foi Freud. Fica
difícil, ao analisarmos nosso dia a dia, não entregar o cetro ao pai da psicanálise.
Mas então somos obrigados a admitir que subjaz abaixo dessa tenra roupagem,
uma força invisível, para a qual se fazem necessárias todas as formas de jogos e
interpretações com o fito de decifra-la e distraí-la. Por que? É tão forte assim? É tão
terrível assim? Então por que não incorporamos esta força definitivamente como
nossa? Como um poder atávico do animal que levamos conosco por onde quer
que andemos, embora ferido por lanças invisíveis, mas poderosas. Se olharmos
mais atentamente para as mãos dos portadores destas lanças, veremos que elas
estão vazias, as lanças não existem, apenas nos fizeram crer em suas pontas
envenenadas. Por que tanto medo do animal? Por que anatematiza-lo? Por que ser
ele a fonte de todo o ‘Mal’? Não é preciso ir longe para encontrarmos a resposta, é
simples: os instintos são o inimigo mortal desta grande acomodação
organizacional chamada sociedade. E não são poucas as distrações e arranjos que
os instintos mais poderosos observam com seus olhos extáticos e atentos, como os
de uma serpente. Quem não é do ‘ramo’ fica entre o espanto e o riso ante a
pantomima sem a qual esse grande negócio não iria para frente, esse grande
negócio que tem por essência a manutenção do ‘ser humano’ fora do ‘ser’. Afinal o
que é ‘ser’? Ora, uma discussão ontológica reservada aos filósofos da teoria! Tudo
muito bonito, muito erudito! Mas, enquanto isso a serpente de olhos extáticos e
atentos continua lá... alheia, perigosa, segregada, observadora silenciosa... sempre
varrida para baixo do imenso tapete platônico/teológico. Que este extenso e
3
4. invisível tapete abrigue os que se subtraem ao seu ‘inodoro’ calor, vá lá, é a grande
multidão dos friorentos! Porém, existem os animais selvagens que amam a neve!
Eles se desvelam e saem lentamente debaixo deste abrigo aconchegante e vão à
caça, animais de rapina que são... animais curiosos, animais de andar lento e olhos
de fogo! Ferinos de calmos e belos gestos. É preciso então que não saiam! É
preciso encontrar sempre uma ameaça, sim, mais uma ameaça... Pois quem não
tem medo do frio é porque é feito de fogo! Então se cria o inferno, lugar de fogo é
no inferno! Mas é cada vez mais difícil dormir embaixo do imenso e tépido tapete,
pois à noite os risos demoníacos lá de fora anunciam uma alegria que não é
tolerada, não pode ser tolerada, este riso desafiador dos ferinos de fogo... e seus
insuportáveis hálitos de liberdade! Este livro é dedicado a todos aqueles que
andam na neve, quem sabe até derretendo-a com seus passos incandescentes e
descobrindo a relva mansa que subjaz tranqüila sob seus pés descalços. Daí então
possivelmente estes correrão, saltarão, darão cambotas, pularão, dançarão, darão
muitas risadas e quando finalmente estiverem vencidos pelo cansaço de tanta
alegria, abrirão suas imensas asas e voarão para onde o infinito melhor lhes
aprouver. Enquanto isso, muitas doutrinas serão ‘ensinadas’ lá embaixo do Grande
Tapete; agora não só o fogo deverá ser evitado como pestilência, agora, também
deverão ser evitadas... as asas. Talvez então o coro exclame em uma só voz:
‘Maldito seja, todo aquele que é feito de fogo! Maldito seja, todo aquele que voa!’,
mas todos nós já estaremos longe demais para escutarmos as vozes uníssonas
desse patético coro, nada do que nos pertence e nos faz mais fortes pode ser
varrido para baixo desse tapete incolor e mortiço, até porque, teríamos então que
quebrar nossas imensas asas de morcego para caber embaixo de qualquer coisa.
Roberto Axe
Porto Alegre, 02 de julho de 2009.
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5. Este livro é dedicado a todo(a) caminhante que tem a coragem de inventar e
dançar os próprios passos.
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6. ‘Cuidado ao expulsares teus demônios, podes estar
expulsando o melhor de ti.’
Nietzsche
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7. A FILOSOFIA DO DIABO
Cap 01 A APARIÇÃO
- Esta é a pior parte. – esta frase, pronunciada pelo pensativo inspetor Santos,
quebrou o silêncio que normalmente acompanhava aqueles profissionais do crime.
Parados e pensativos diante do corpo inerme que jazia no chão, em um pequeno
apartamento perdido no meio da noite fria. Empoeirado e lúgubre, localizava-se no
centro baixo da cidade e a iluminação amarelada emprestava um ar mais sinistro
àquela cena de morte. Quatro vultos analisavam, quietos, aquela cena. No chão, o
corpo de um homem estatelado bem no meio da pequena sala tinha como
adequada mortalha um sobre-tudo negro e pesado. Jazia deitado com o peito em
uma imensa poça de sangue; um sangue denso e enegrecido pela iluminação
precária. A saleta era de uma pobreza constrangedora; em um canto uma cadeira
velha arcava com o peso de algumas revistas, e ao lado, encostada na parede, uma
pequena e velha mesa suportava o peso de um traste que outrora fora uma
televisão. A iluminação pífia tinha como fonte uma lâmpada que balançava
lentamente no centro da pequena sala, com o bocal amarrado do jeito que dava,
7
8. como um pingo de luz que teimava em não cair do teto. Pela janela semi-aberta
um ar sereno e frio embalava a solitária lâmpada de tal jeito, que projetava as
sombras daquelas pessoas ali de pé ao redor do defunto, numa dança lenta e
macabra, tendo como palco as imundas paredes daquela...
- Pocilga! Isto mais parece uma pocilga! – exclamou o inspetor Santos – o cheiro
da decadência chega a infectar minhas narinas. Acho que se alguém vive em um
lugar como este não tem realmente motivos que lhe prendam a esta vida, talvez a
morte lhe caia como uma libertação.
- Acho que o morto concorda com o senhor. – Edson, investigador, braço direito
de Santos disse isso se levantando calmamente depois de apanhar no chão, com
uma pinça, um pequeno bilhete ao qual acabara de ler e entregava-o ao inspetor.
Santos pegou o bilhete sem tirar os olhos de Edson enquanto tateava o bolso do
paletó à procura de seus óculos – Bosta! Nunca sei onde ponho esta merda de
óculos! Achei! Vejamos...hummm – leu então em voz alta o conteúdo do
papelzinho: - Não deixo nada, não tenho amigos, família, não tenho sonhos, não
tenho nenhum motivo para que ficar aqui! Minha vida é uma verdadeira merda! Pra
quem achar que estou mentindo, que olhe em volta, isto é tudo que eu tenho! Ah, e
tenho também 60 anos! Não é mole! Larguei! A quem interessar possa, vão todos
para a puta que os pariu! Ninguém vale nada! Ass Nestor. – Coitado, morreu pobre
e revoltado. – esta observação veio de outra pessoa presente, investigadora Nina. –
Pudera! - ponderou Santos – isto aqui é o próprio olho da miséria.
- E no quarto, além de algumas baratas mortas, – disse Edson saindo do outro
aposento – tem uma cama de solteiro e um armário sem portas com umas poucas
e rotas vestimentas, o homem era um miserável, coitado.
- Bem, vejamos, mande entrar o senhorio desta porra toda! – ordenou Santos.
Ato contínuo entrou um sujeito que parecia ter saído das entranhas daquele lugar,
e levava a sua triste história decadente no semblante. Vestia todo de negro e as
olheiras profundas davam um ar mais fantasmagórico ao seu rosto muito pálido e
sulcado; era um senhor de alguma idade e parecia nervoso.
- Está bem nervoso não é senhor? – inquiriu Santos.
- Pudera – respondeu o senhorio – isso nunca aconteceu em meu prédio! Do
que este homem morreu? De tiro? Foi morto? Matou-se? – indagou o homem sem
tirar os olhos do morto.
- É o que queremos saber – prosseguiu Santos – seu nome era Nestor?
- Bem, pelo menos este é o nome que ele me deu quando fez a papelada aqui, e
também da identidade.
- Eis a arma! A numeração está raspada. – interrompeu Nina apontando para um
38 cano longo cromado, quase embaixo do corpo. O quinto personagem naquela
sala, quieto e observando tudo era Tito, um novato que estava acompanhando
seus colegas policiais pela primeira vez em uma cena de crime. Tito a tudo se
8
9. mantinha atento, a tudo observava, extasiado com aquela experiência profissional
fascinante, seu primeiro crime... uau! Seu primeiro crime! Ele, tão jovem e tão
policial, tava no sangue afinal. Tito divagava nestas coisas quando a voz baixa de
Edson lhe trouxe de volta à cena do crime.
- Hoje você vai conhecer nossa arma secreta! Sei que já mandaram chamá-lo,
chego a me arrepiar! Aguarde.
- Arma secreta? De que você está falando?
- Calma, aguarde.
- Há quanto tempo – prosseguia Santos - este Nestor é seu inquilino, senhor...
senhor...
- Irineu, meu nome é Irineu.
- Pois bem, Sr Irineu, há quanto tempo?
- Uns três meses.
- E qual era o comportamento do Nestor?
- Esquisitão.
- Melhore isso, como assim, esquisitão?
Neste momento algum alvoroço veio do corredor, o que fez com que os presentes
ficassem calados; Irineu ia dizer alguma coisa, mas foi interrompido por um
schhhht! - É ele, é ele... – cochichou Edson para Tito; este entendia cada vez menos
o que se passava. Do lado de fora do apartamento, que estava com a porta
escancarada, crescia uma voz alta e risonha que derrapava em algumas
gargalhadas; pastosa, parecia a voz de um bêbado que vinha da farra. – Ele está
chegando! – disse Edson a Tito que divisou então na soleira da porta uma silhueta,
ou melhor, duas silhuetas, um homem grande parecia carregar outro, menor e de
casacão escuro e um chapéu preto estilo Homburg inclinado desleixadamente
sobre a testa e... bêbado! Sim, o homem menor estava totalmente embriagado.
Falava sem nexo, dava algumas gargalhadas e dizia algumas coisas meio estranhas
como: - Estou sentindo o cheiro do defunto! hummmm e de cabaço! – foi então
que o estranho homem parou debaixo da luz mortiça e o novato percebeu, não
sem tremer levemente, uma figura misteriosa; parecia uma daquelas intrigantes
divindades saídas do panteão do umbanda. Era um homem negro, baixo, quase
gordinho, tinha uma idade indefinida e que enquanto ajeitava o chapéu desleixado
sobre sua careca reluzente, esparramou malevolente um olhar que jamais lhe sairia
da memória. Tito recebeu o olhar do homem; um olhar agudo, injetado, sanguíneo
e cortante que saltava dos olhos esbugalhados do estranho. Este olhar inquietante
era entrecortado sistematicamente por pálpebras preguiçosas que teimavam em
baixar indolentes, mas reabriam num sacrifício contínuo e penoso. O odor do
álcool logo se espalhou pelo pequeno recinto. Um homem imenso e de rosto
insosso mantinha o recém chegado, mesmo que às duras penas, de pé. O peso
daquele olhar foi amenizado por um sorriso que lentamente desabrochou no rosto
9
10. negro e redondo acompanhado pelos olhos indolentes. Tito sentiu um alívio e
esboçou também um sorriso, meio que de alívio, meio que de uma verdadeira e
estranha alegria; por não ter sido devorado talvez? Reparou nos dentes
amarelados, mas sem falhas apresentados pela alegria ruidosa de uma boca
grande e de imensos beiços. O negrão arfava – Vai ter um treco – pensou Tito,
reparando no suor que fazia as têmporas reluzirem naquela luz amarelada. O
estranho apontou lentamente para Tito, deu uma gargalhada e depois disparou
com sua voz embriagada e lenta: - Bom, o cabaço eu já encontrei, quem é esse, um
novato?
- Este é Tito, - respondeu Santos – está sentindo o cheiro de sangue pela
primeira vez, e seja muito bem vindo Epaminondas!
- Seja bem vindo Epaminondas! – repetiu o negrão, ensaiando alguns passos,
mas sempre carregado pelo seu anjo da guarda – Seja bem vindo Epaminondas!
Vocês acham que é mole! Saí de uma roda de samba cheia de boceta, trago, e
outras ilicitudes, he, he, pra vir aqui lamber sangue de morto! Vocês acham que eu
sou o que? Um mísero vampiro, ou já serei um personagem mitológico desta
cidade? Uma gárgula sanguinária que adquire vida tão logo é evocada pelos
necessitados! Mas então minhas asas são de pedra, preciso de muito tempo para
me mover, e sair para a luz me é penoso demais! Isto é sabido.
- Pare com esses discursos Epaminondas, - comentou o impaciente Santos – e
fique à vontade para dar uma boa olhada por aí.
- Bem, - prosseguiu o recém chegado – o cabaço eu já encontrei, só falta o
cadáver – e ato contínuo, apontou para Irineu – Eis o defunto! Viram, não perdi o
faro! Ecce Homo! Há,há,há,há,há... – os presentes riram meio constrangidos, com
exceção, claro, do senhorio e de Santos que emendou: - Agora chega
Epaminondas! Dá uma força pra nós...
- Chega é o caralho! – interrompeu Epaminondas perdendo a paciência – não
ganho pra isso, moreno! Vocês que são sóbrios que se entendam, eu, perturbado
na minha embriaguez, minha divina e cristalina embriaguez, tenho que socorrer
sóbrios! Era só o que faltava! Levar sermão de sóbrio! Oh, filhos do Bem e do Mal!
– levantou as mãos imitando um discurso grandiloqüente, dando mais trabalho
para seu atento arrimo - Vocês batem suas cabecinhas sóbrias quando acontece o
inusitado, não são preparados para isso não é? Oh, filhos do Bem e do Mal!
Miquinhos amestrados da civilização! Tão sóbria e séria esta civilização, mamãe
zelosa! Por quê recorrem a este velho embriagado quando lhe faltam as respostas?
Taí o corpo no chão, e vocês querem trabalhar pouco, não é assim? Do contrário
não me chamariam em horas tais. Dou a mão, querem o saco! Precisam das
respostas, sempre as respostas, - tirou do bolso do casaco uma pequena garrafa e
a ergueu numa libação - a Dionísio! Meu amado Dionísio! Meu sangue negro é teu
ditirambo! Meu sangue entorpecido na tua profunda orgia! Brinca, deus
10
11. embriagado! Brinca, na escuridão da minha profunda alegria! E que, com Sileno,
sábio quando sóbrio, eu ao contrário, aprenda a brincar de esconde-esconde com
o Sol! - ato contínuo deu um imenso gole e guardou a garrafa novamente no
bolso, limpou a boca com as costas da mão e emendou – agora vamo lá! o que
temos aqui, um possível suicida certo?
- Exato, teria deixado este bilhete – Santos entregou o papelzinho a
Epaminondas. Este apanhou o bilhetinho e após lê-lo rapidamente, desabou em
ruidosa gargalhada. Ria tanto, que seu anjo da guarda tinha alguma dificuldade em
segurá-lo, as risadas eram entrecortadas por eventuais acessos de tosse. A risada
contagiou a todos, menos Irineu, que arfava, muito intrigado com tudo aquilo. A
cena sugeria que o evento transformava-se rapidamente em uma tragicomédia.
- Meu caro senhorio – prosseguiu Epaminondas, limpando com um lenço as
lágrimas que o riso descontrolado provocara em seus imensos olhos esbugalhados
– o senhor obviamente deve ter um livro de registro de seus hóspedes...
inquilinos... ou seja lá o que for, traga para mim rapidamente, por obséquio. - o
homem saiu rápido e silencioso. Epaminondas deu uma rápida olhada no quarto
soltando um comentário – Porra, que miserê do caralho! – voltou então para a
saleta e rondou o morto com seu passo trôpego e evitando pisar no sangue quase
caiu, mas foi amparado prontamente por seu guardião. Neste momento adentrou
na cena mórbida o senhorio Irineu, trazia o livro com os apontamentos e o
entregou ao bêbado. Este o apanhou levando-o para onde a tímida iluminação
tinha uma melhor incidência. Após uma rápida olhada, perguntou para Irineu,
enquanto lhe devolvia o documento: – Este pobre coitado nunca lhe pagou não é?
- Nunca, ele estava desempregado, para dizer a verdade, nem sei o que ele fazia.
- Então o senhor o matou não é? É bem verdade que quase acidentalmente, isso
vai amenizar sua pena, mas o melhor é confessar logo, nêgo véio!
- Como ousa! – o velhote colou as costas na parede, como que procurando um
apoio para não desabar ao chão.
- Como ousa? Diz ele! Como ousa? Pois então, o que se passou aqui eu vou
contar agora, - tirou o chapéu e começou a batucar na copa como se fosse um
pandeiro – se liga moçada neste sambinha que vou improvisar – ato contínuo,
começou a cantarolar, batucando no chapéu:
- Era uma vez um senhorio, que tinha o nome de Irineu.
Hospedou um tal Nestor, que mancada ele deu!
Era pobre o tal Nestor, não tinha nada nem ninguém.
Ficou ruim pro senhorio, dele arrancar algum vintém!
Foi então que um belo dia, num acesso passional,
Decidiu o senhorio, nisto botar ponto final.
Procurou ao tal Nestor, pra pôr fim a esta contenda,
11
12. Mas foi munido de sua arma, cano longo, cromada,
Que o Nestor é um cara grande ‘e eu não tô pra palhaçada!’
Discussão começou, e desandou pra pancada;
Irineu apavorado usou então sua cromada;
Merda feita, Nestor no chão!
Bolou então o matador, seu plano malsão.
Escreveu um bilhetinho, sua arma na mão do morto, tudo certinho.
Não percebia, Irineu, que com este plano cretino,
Escrevia em sua testa, a palavra ‘assassino’.
Um bilhetinho, Irineu? Um bilhetinho?
De onde tirou idéia tal! Quanta asneira escrita em papelzinho!
Ora, não se deu conta o assassino, que na penúria o inquilino,
Se fosse o conteúdo escrito, ao pé da letra levar,
Justamente um bilhete, é a ultima coisa que ia deixar.
E foi mais desatento o tolinho, no que tange ao bilhetinho.
Ora, se o coitado, morrendo de fome estava, e fome é coisa brava!
Capaz de distorcer, os sentimentos mais nobres;
É de estranhar que a cromada, mesmo raspada, não seja passada nos cobres!
Olhem em volta, amigos, que no meio desta miséria,
A arma é o único bem do morto, que não se presta à pilhéria!
Mas não parou por aí, a peraltice do Irineu;
Pasmem agora, com esta mancada que ele deu!
Ao botar a arma, na mão direita do morto,
Realizou na Razão, um admirável aborto.
Embora tenha acertado, pois o defunto usava a destra,
Para tanto basta olhar o seu quarto, a mesinha de cabeceira,
Ao lado direito da cama, nisto não cometendo asneira.
Porém, não percebeu o maroto!
Que a porra do bilhetinho, fora escrito por canhoto.
Embora o tenha escrito, em desgraçada caligrafia,
Não foi o suficiente, para não entrar numa fria.
Quando o negão aqui, pediu seu livro de anotação,
Foi só pra tirar a cisma e lhe apontar o dedão;
O Irineu é canhoto! Minha gente, é um canhotão!
Eis o assassino, deste coitado no chão!
A esta altura, realmente os presentes não continham as gargalhadas, com exceção
óbvia de Irineu. Que num acesso de raiva disparou para Epaminondas: - Bêbado
desgraçado! Quem ou o que é você? Como pode saber tudo isso? Você arruinou
minha vida! - Epaminondas ficou sério. Desprendeu-se calmamente de seu poste,
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13. caminhou com seus passos arrastados e encarou o senhorio quase encostando a
ponta de seu nariz na ponta do nariz do homem, que encarava o negrão com
visível pavor nos olhos. – Seu sóbrio filho da puta, – disse Epaminondas, com sua
voz bêbada e calma – olhe para você, sua vida está arruinada desde que nasceu.
Seu zumbi desgraçado, morto-vivo de uma figa... ou você pensa que o fato de
respirar, comer e cagar, lhe dá o direito de se sentir vivo? Não fosse você um
sujeito que me inspirasse pena eu me alongaria no assunto. Como pode um ente
que se pretende homem, não arcar com as próprias atitudes? Como pode não
matar no peito seus atos? Que tipo de homem pode escolher se esconder na
mentira a encarar a vida de frente, de peito aberto, senhor dos seus atos, mesmo
quando estes dão em merda? encarar sem medo? Foi para seres humanos como
você que foram inventadas as regras e a moral, afinal, não passam de crianças
idiotas que brincam com dinheiro e gravatas; afinal que digo eu? – Epaminondas
encaminhou-se para a porta, sendo carinhosamente seguro por seu fiel amigo –
Estou entre sóbrios, e o apanágio do sóbrio é o medo. Seguir as regras é o crème
de la crème de toda uma vida sóbria. Sem coragem, sem riso, sem dança, sem
demônios ruidosos e risonhos. Acocorados atrás das regras, atiram pedrinhas nos
que têm coragem de andar. Você nunca mudará, Irineu, vai sempre preferir a
mentira à responsabilidade de ser homem, ou seja, nada mais nada menos do que
ser você mesmo, com coragem de ser autêntico; mas você não tem nada por
dentro não é? Não tem demônios, não tem conflitos, não tem nada que possa dar
um pingo de dignidade a essa existência de mera casquinha, para que? Se vocês
sóbrios imaginam fora de vocês o que os tornariam pessoas interessantes, para
fazer o que mais gostam; jogar pedras ou ajoelhar-se diante desses totens, seus
totens do Bem e do Mal! Bem, já não tenho mais nada a fazer aqui. – e partiu
calmamente, sumindo na escuridão dos corredores do antigo prédio, não sem
antes os presentes escutarem uma gargalhada, e ainda sua voz: – Às bocetas,
amigão, às bocetas, há,há,há,há - que desapareceram rapidamente.
- O que é tudo isso? – comentou um patético Irineu – como ele poderia saber os
detalhes? Quem é esse cara?
- Esse cara – disse Santos enquanto Edson botava as algemas no velhote – é o
pesadelo de quem não se comporta direitinho Sr. Irineu – vamos...
- Hmmm... Quem não se comporta direitinho? – disse o velhote lá com seus
botões - acho que não... Acho que não...
13
14. ***
Encaminhado o assassino à delegacia, todos saíram à rua e enquanto caminhavam
Santos comentou: - O cara está cada vez melhor, aí está um mistério que jamais
entenderei; Epaminondas... Epaminondas... Às vezes penso que este homem é um
enviado dos infernos, zomba da gente, da nossa incapacidade, se sente superior,
no entanto não passa de um bêbado inveterado. Caramba!
- Zomba da nossa preguiça, se me permite, senhor – começou Edson –
poderíamos desvendar, ou não, este caso. Quanto tempo de trabalho penoso
teríamos de encarar? Virar a vida do defunto de cabeça pra baixo e sacudir até cair
as migalhas com que pudéssemos trabalhar! Ademais, quem liga para esse morto?
É só mais um, não é verdade? Teríamos saco pra levar isto adiante? Pra que
iniciarmos algo que nos sacrifica, se o negão resolve na hora? Ele vem, olha e
pimba! Está feito. É bem verdade que sempre nos faz escutar aquela merda toda,
acho que o cara é místico, sei lá... sempre tem aquele sermão! Aquele negócio de
sóbrios e embriagados.
– Vocês sóbrios que se entendam! – falou Edson imitando o jeito ébrio de
Epaminondas.
- Místico é o caralho! – refutou com veemência Santos – esse cara é um grande
filho da puta! Aposto que agora está rindo da nossa cara lá com as putas dele! Eu
realmente de minha parte não chamaria essa entidade infernal! Confesso pra vocês
que às vezes ele me dá medo; de onde ele tira essas respostas tão rápidas? Alguém
duvida que tem parte com o diabo? Decididamente não é dos nossos, não fosse o
delegado Fidelis nos empurrar goela abaixo essa figura dantesca, há muito que não
precisaríamos encarar aquele olhar assustador presente nas cenas dos crimes; aí
sim sou obrigado a concordar com Edson, o Fidelis não quer é trabalho.
Nina então botou sua mão no ombro de Tito e deixou um belo sorriso se achegar
manso no seu rosto sereno, deu uma carinhosa chacoalhada no novato – E então,
neófito? Nos diga o que achou do seu primeiro dia? De uma coisa eu gostei,
confesso, o broto não teve náusea, isso é um bom começo. – Tito riu e respondeu:
- Náusea realmente não tive, mas, mais do que a cena do crime, de fato fiquei
muito impressionado com esse tal Epaminondas...
- Não disse! – interrompeu Santos – o senhor Epaminondas roubou a cena mais
uma vez! Com sua bruxaria, com seu hálito de cachaça, e aquele muro de arrimo
14
15. que carrega consigo. – virou-se subitamente para Tito abrindo os braços
energicamente – Vamos pergunte! Pergunte logo, mate esse verme da curiosidade
que corrói esse coraçãozinho novato! De onde surgiu esse ente, Epaminondas! Ora,
poderia te responder que ele não existe. Sim, não existe, é só uma alma penada
que sai do Cemitério das Camélias para ajudar policiais quando estes se deparam
com casos escabrosos. – Santos de repente parou a pantomima, e sério, encarou
Tito, os outros dois embarcaram com notória curiosidade naquele repentino
silêncio. – Bem, na verdade... na verdade não é bem assim. – prosseguiu
caminhando calmamente, no que foi seguido pelos demais; Tito tinha os olhos
cravados no semblante de Santos e este reparou no vivo interesse do rapaz, deu
então um leve sorriso e prosseguiu.
- Epaminondas era um policial da velha guarda, aliás, era excelente policial,
daqueles de meter a cara no fogo, não tinha medo de nada. Não precisou muito
tempo para despertar o espanto e a admiração dos seus superiores, era destemido
e muito inteligente; suas diligências invariavelmente apontavam para o culpado, ou
os culpados; sempre trabalhou no crime. Subia morro e encarava de igual para
igual todo mundo, se pesca bandido com isca de chumbo! Dizia. Pulava em telhado,
disparava forte, não deixava colega na mão. Todos queriam ir para a linha de frente
com ele, aliás, se espelhavam nele. Certa vez tomou dois tiros durante uma batida
no morro, caiu e todos pensaram que era o fim de Epaminondas; achegaram-se
então ao ferido. Iam pedir ajuda pelo rádio quando para espanto de todos, o
negão levantou de um pulo empunhando sua ponto 45 e saiu gritando e correndo
como um ensandecido na direção dos tiros inimigos. Pulou para dentro de uma
casa através da janela, que estava fechada e, diga-se de passagem, espatifou-a
com o impacto de seu corpo ágil e uma vez lá dentro fuzilou a todos, sem
clemência! Bem, este feito lhe rendeu uma honra ao mérito é claro, porém,
também rendeu uma imensa desconfiança por parte de seus superiores; quem,
diabos, era aquele homem? Bom, Epaminondas logo se recuperou de seus
ferimentos com rapidez espantosa. Ficou mais alucinado ainda, pediu a seus
superiores para agir somente à noite, no que foi atendido. Começou a trabalhar
mimetizado sob as sombras noturnas, se tornou invisível... e implacável! Os colegas
apenas davam cobertura à distância, mas em vão, pois o demônio sumia na
escuridão; a partir daí, quem presenciou suas ações conta que o negócio era de
arrepiar! Não demorava muito e os gritos dos vagabundos apanhados por ele se
faziam ouvir em toda a vila ou morro onde a ação se passava. Eram gritos
alucinados de verdadeiro e vivo pavor! Ninguém saiu vivo de suas investidas. Era
silencioso, invisível e... mortal! Bem, disso resultou que a criminalidade começou a
cair na cidade; os marginais, por incrível que pareça, começaram a temer o tal ‘
homem da sombra’. A repercussão à época foi tanta, que até as mães humildes
desses locais ameaçavam seus filhos, no caso de mau comportamento, com a
15
16. proverbial frase ‘veja bem o que você vai fazer ou o Homem da Sombra te pega!’.
– Tito interrompeu o relato com viva empolgação - Êpa! Minha mãe cansou de me
ameaçar com o tal Homem da Sombra! Este então realmente existiu? Há,há,há,há...
não acredito que acabei de conhecer um mito de coação infantil! Cresci sendo
ameaçado com ele e o tal ‘velho do saco’! Puta merda! Quem diria!
- É isso aí, garoto. – prosseguiu Santos - Conheceu o home! É difícil saber o que
é verdade e o que é lenda na história deste demônio; as coisas hoje se confundem,
mas tudo que relatei até então é a mais pura verdade. Mas, mais verdadeiro ainda
é o final desta história. Os superiores começaram a desconfiar de que uma pessoa
normal não poderia agir daquela maneira; veja bem, não que os resultados os
desagradassem, ao contrário, a criminalidade caiu tanto que até a mídia deu uma
força e começou a divulgar, irmanada com a polícia, tratar-se os eventos de um
esquadrão de justiceiros. Assim, nosso herói poderia agir à vontade. Porém,
resolveram examinar Epaminondas mais de perto e descobriram que ele agia sob
efeito de drogas pesadíssimas, que eu não saberia descrever agora, tratava-se de
verdadeiros coquetéis de entorpecentes, os quais, dizia-se, um ser humano normal
não agüentaria um décimo! Harmonizava tudo isto com generosas doses de
cachaça; realmente não fosse ele um sujeito fora do normal e há muito teria
sucumbido. Foi então que os superiores perceberam de que não valia a pena correr
o risco de abalar a reputação da corporação caso algo saísse errado. Até porque
Epaminondas estava cada vez indo mais longe com suas diabruras, e tudo indicava
que não terminaria bem. Epaminondas há algum tempo já começara a discutir com
seus superiores, a zombar mesmo da cara das autoridades, chegou até a
questionar se estava do lado certo desta briga. Submeteram então o endiabrado a
um tratamento para livra-lo das drogas e do álcool, mas foi tudo em vão; em
pouco tempo todos os que tratavam Epaminondas ou já não o suportavam mais
ou estavam viciados, isso mesmo, viciados. Foi nesse tempo, na clínica, que
começou a pedir para ficar afastado da luz, passou a não suportar claridade,
tiveram que improvisar um quarto totalmente escuro para ele. Passou por outras
clínicas, e transformou-se numa rotina ter de acomoda-lo em quartos escuros.
Passou a ter comportamento estranho, pois quando privado da bebida e das
drogas, escutava música clássica e jazz, e passava horas e mais horas de pé com
um roupão negro com capuz, dizia coisas incompreensíveis. Acendia velas pelo
quarto escuro, e todos, sabedores do que ele era capaz, não o contrariavam,
faziam-lhe as vontades. Epaminondas sempre foi espantosamente persuasivo,
porém, nessa época falava muito pouco. Bom, segue-se daí que obviamente o
aposentaram. Epaminondas então sumiu. Ninguém sabia dele. Foi então que um
crime aconteceu em um bairro bacana da cidade, aquele da loira com o vibrador,
recordam? Pois é, para espanto de todos, o homem apareceu na cena do crime e
os antigos companheiros o saudaram com alegria e emoção. Ele mal se agüentava
16
17. de pé de tão bêbado, e era amparado por dois homens, possivelmente seus
amigos. Por delicadeza e até por reconhecido respeito, deixaram Epaminondas dar
seus pitacos sobre a cena do crime. Ele então descreveu o que ocorrera ali com
uma precisão cirúrgica; bom, é óbvio que todos fingiram, por gentileza ou quem
sabe até por um pouco de medo, que levavam a sério o que o bêbado dizia.
Epaminondas assim como apareceu, foi embora. Dias depois o crime foi elucidado,
e para espanto geral, era ipsis verbis o que o negão descrevera. A partir daquele
episódio, e já faz tempo, quando o caldo engrossa, quando se calcula ser um crime
encardido: chama o Epaminondas! Ah, sim, ele deixou um número de telefone para
contato quando da primeira vez, alegando que o chamassem para que ele pudesse
praticar um pouco de esporte. Bem, senso de humor ele tem. Meu jovem, acredito
ter lhe dado o cartão de visita de nosso amigo misterioso, e se me perguntar por
onde esse cara andou ou anda, não saberia lhe responder, ele é uma aparição, e
todos querem que continue assim.
Tito a tudo escutara impressionado, quando a voz de Nina interrompeu seu
pensamento que já viajava longe – Vamos comer alguma coisa, Cabaço! Não é tão
tarde assim, e esses dois têm família esperando em casa, eu não tenho e pelo que
sei você também não.
- Claro, apesar de não ter muita fome, o defunto embrulhou meu estômago.
- Normal, mas isso passa logo, coisa de novato nestas coisas.
- Não vai comer o rapaz já logo de saída Nina, você nem engorda o porco? –
brincou Edson.
Nina fez um conhecido sinal com o dedo médio e pegando na mão de Tito, o
retirou da presença dos outros, que seguiram na direção oposta não sem antes
ouvir de Santos alguma recomendação em tom jocoso. Não precisaram andar
muito para acharem um bar de esquina já com poucos clientes. Sentaram, pediram
um sanduíche aberto e duas cervejas pequenas. Nina reparou que Tito seguia meio
aéreo, e o chamou ao chão novamente.
- Primeiro dia na pauleira é assim mesmo, malandro! E olhe que você foi
agraciado! Conheceu já de saída, o grande Epaminondas! – o grande Epaminondas
foi dito numa imitação de grandiloqüência.
- Realmente estou impressionado, admito que nunca vi nada assim, o homem
chegou e pum! Resolveu tudo! De que manga ele tirou tão rapidamente a solução
do caso? Ou realmente – agora com um sorrisinho maroto – ele tem parte com o
demo?
- Parte com o demo? – disse Nina interrompendo um gole direto da garrafinha
de cerveja – não sei. A única coisa que sei é que estou há dez anos na polícia e
todos se borram de medo desse homem. Mas não tenha receio querido, pelo que
eu sei, ele só sai à noite e não muito. Como já fez sua ‘aparição’ hoje, duvido que
nos assombre mais uma vez.
17
18. - Mas Nina, me diga... Você nunca ficou curiosa sobre esse homem nestes dez
anos?
- Meu querido Cabacinho! É praticamente proibido tocar no assunto
‘Epaminondas’ na polícia. É uma espécie de totem em que a gente não toca.
Realmente acho que o pessoal tem medo de que o negão encha o saco e suma
para nunca mais voltar. Seria um prejuízo incalculável se ele sumisse. Você viu, ele
chega e mata a charada. Ninguém quer correr o risco de afugentar o cara. Agora,
você me pergunta se nunca tive curiosidade, é óbvio que sim. Para dizer a verdade,
perdi noites de sono tentando desvendar o segredo deste homem, o ‘Homem da
Sombra’; mas quer saber? Nunca cheguei à conclusão nenhuma, então desisti.
Acho que existem alguns mistérios que se explicam por si, e isso é tudo; paciência.
- Acho que quem não vai dormir a partir de agora sou eu. Fiquei com esta
imensa pulga negra atrás da orelha. – neste momento Tito pousou os olhos com
mais calma em sua interlocutora, e reparou que Nina apesar de não ser uma
mulher bonita, tinha um rosto interessante: olhos levemente puxados que sorriam
em consonância com sua boca pequena e bem desenhada. Tinha possivelmente
uns trinta e alguma coisa, de corpo mignon e sarado, apesar do excesso de roupa
naqueles dias frios. Tinha cabelos castanhos claros invariavelmente presos e pele
branca como neve. Agora na claridade daquele bar podia vê-la pela primeira vez,
assim, de pertinho, e estava surpreso por não ter reparado antes nos sutis e bem
escondidos encantos de Nina. É bem verdade que a achava meio abuzadinha, meio
espaçosa para seu gosto. Bom, era o jeito dela, e ele agora estava imbuído em
coopta-la para um grande plano que se desenvolvia com grande velocidade em
sua cabeça.
- Estou cansado demais por hoje Nina, me desculpe se já bocejei duas vezes, é
que foi dose pra elefante estes acontecimentos desta noite.
- Não seja por isso, Cabacinho, vamos embora porque eu também não agüento
mais esse negócio de Epaminondas.
- Mas aquele sambinha, aquele sambinha foi sensacional. Nunca esquecerei
aquilo. - e os dois riram, pediram a conta e se foram.
18
19. A FILOSOFIA DO DIABO
Cap 02 ATRAINDO O OCEANO PARA UM PINGO D’ÁGUA
Na delegacia, na manhã seguinte, a agitação de sempre; gente entre balcões e
mesas protagonizava o tráfego ruidoso do ambiente policial. Nina digitava seu
relatório num ultrapassado computador, há muito que o pessoal reivindicava por
aparelhos mais avançados, mas sabem como é... repartição, etc. tem de esperar. Ela
esbravejava alguma coisa baixinho quando Tito aproximou-se sorrateiro e por trás
sussurrou no seu ouvido: - Consegui! - Nina deu um pulo – Droga, seu puto! Vai
assustar a sua mãe!
Tito riu despreocupadamente, e prosseguiu balançando um pequeno pedaço de
papel – Ta aqui, neguinha, ta aqui! - ela tentou apanhar o papel, mas ele recolheu
19
20. rapidamente a mão - Não com tanta pressa amorzinho! Isto aqui é um verdadeiro
tesouro!
- Se é seu número de telefone, não me interessa, seu abestado! – brincou Nina,
retomando seus afazeres no velho computador.
- Nada disso, o que tenho aqui, me foi dado pelo comissário Gordon, é o
numero do telefone direto do Batman.
- Então liga pra ele e diz pro morcegão que eu acho ele um saco.
- Se liga mulher! Se liga, consegui o telefone do Epaminondas, há,há,há...
A mulher tirou rapidamente os olhos de sua tarefa e com vivo interesse, levantou-
se para contemplar aquela pérola apanhada nos mais recônditos mares. – Como
você conseguiu?
- Isso, fala mais alto. O que temos aqui é o maior segredo da policia! Quer que a
delegacia toda descubra? Vamos sair daqui quietinhos. – e os dois retiraram-se do
local. Já no corredor ela acendeu um cigarro, e eufórica, pedia para ver o
papelzinho – Olha - disse Tito - é uma pérola conseguida graças a minha cara de
pau; arrisquei o couro pra conseguir essa porra!
- E como você conseguiu?
- Bem, hoje cedo, Santos me chamou em sua sala para que eu assinasse alguns
relatórios sobre a ação de ontem. A partir daí começamos a conversar. Ele estava
sentado à sua mesa e em dado momento alguém o chamou para uma merda
qualquer, ele pediu que eu esperasse e se retirou. Percebi seu celular em cima da
mesa, e então me veio a idéia! Ora, eu sabia que Santos havia ligado para
Epaminondas ontem à noite. A partir daí bolei um plano; sentei
despreocupadamente o bundão em sua mesa, peguei um pedaço de papel e uma
caneta, fingi então que anotava alguma coisa, e realmente anotava, anotava as
últimas ligações do Santos, que estavam na memória do celular.
- Putz! Você é louco, malandro? Se o homem te pega...
- Mas não pegou, chhht, deixa-me terminar. O Santos voltou e veio com umas
papeladas, disse então que falaríamos outra hora e me dispensou. Procurei um
telefone público e testei os números. O da casa dele eu conheço, esse eu pulei,
outros dois atenderam mulheres diferentes, talvez uma seja sua esposa e a outra
sua amante sei lá... Noutra deu numa casa de penhores, acho que ele anda mal de
grana... Depois, em outra deu no escritório de um tal Dr. Palácios advocacia cível,
etc. e finalmente, pimba! Atendeu um sujeito estranho que disse ‘alô’ e ficou
mudo, é aí, pensei, então eu disse: - É da parte do inspetor Santos – o homem
respondeu o seguinte: - Inspetor Santos? Mas ele sabe muito bem que o home não
atende de dia, vão ter de se virar sem ele. - Nesse momento eu desliguei. Não há
dúvidas este é o número do negrão! Diga-me, sou ou não sou um bom
investigador?
20
21. - Acho que isto é o que vamos descobrir a partir da agora; mas saiba, essa
curiosidade é minha também, nem pense... Nem pense em fazer qualquer coisa
sozinho! Desvendaremos este mistério juntos, capisci, Cabacinho?
- Então vamos começar desvendando outro mistério; que prazer é esse que você
tem de me chamar de Cabacinho? Porra, esse troço enche o saco, capisci? Se
quiser ser minha companheira neste negócio, das duas uma: ou confere meu
cabacinho na cama, ou pára com essa merda!
- Tá se agigantando, malandro? Mais devagar... ter esse segredinho no bolso
não lhe torna policial experiente, e pra encarar essa merda toda tem que ser galo
velho! Só quero ver. Quanto a lhe chamar de Cabacinho, certo, negócio fechado. Eu
paro. Quando começamos as investigações, Pequeno Hímem! – Nina caiu na risada,
e foi acompanhada por um sorriso meio sem graça de Tito; não era hora para
polêmicas, ele tinha uma idéia fixa e aquela mulher era a melhor cúmplice com que
podia contar. – Bem, vamos ter de esperar anoitecer para fazer contato.
- comentou Tito.
- E alegar o que? Ou vamos matar alguém para atrai-lo ao local do crime. Diga-
se de passagem, que esta seria a maior burrice do mundo, uma vez que ele mataria
a charada em dois segundos.
- Vamos dizer a verdade.
- Que?
- A verdade, pura e simples, nada mais.
- E qual é a verdade pura e simples, nada mais?
- Que somos fascinados nele, é nosso herói etc., sei lá, porra!
- Você não conhece este homem. Ele vai rir da nossa cara, esse negócio de herói
com ele não cola e de mais a mais, por quais nobres motivos ele nos receberia em
sua toca?
- Bem, vou pensar em algo até a noite, agora vamos trabalhar para não
pensarem que estamos de namoro no serviço.
- Oh!
Os dois então entraram e foram às suas respectivas mesas. Mas foi difícil trabalhar
naquele dia, a expectativa era grande e nada acontecia, o dia foi lento e sem graça;
pequenas e corriqueiras ocorrências, boletins e papeladas. A única graça que os
dois acharam para se entreterem naquela modorra burocrática, era a de rápidos
olhares cúmplices trocados sorrateiramente. Quando enfim, começou a anoitecer,
Tito percebeu que estava ficando nervoso, e isto não era bom. Se quisesse que o
plano desse certo, teria de encará-lo com naturalidade. Começou então a pensar
de como conseguiria uma audiência com Epaminondas. Onde afinal vivia o negrão?
Que tipo de recepção eles teriam? E se o cara se negasse a recebe-los? Se
reclamasse deste assédio a Santos? Como ele explicaria a aquisição do numero do
telefone? Percebeu então que começara a suar frio. Poderia estar botando sua
21
22. carreira em jogo, valeria a pena arriscar tudo assim? Logo agora que começara a
investigar crimes? Se descobrissem poderia tomar um cano, e ficar por meses
rebaixado ao envolvimento com a burocracia da delegacia. Mas estava
irreversivelmente fascinado com aquela misteriosa e profundamente enigmática
figura. Achava estranho, mas seus instintos diziam que ele teria muito a ganhar
com aquele desconhecido, sentia algo místico, que o impelia a correr riscos para
atingir seu fim; mais ainda: achava que se não houvesse riscos, seu
empreendimento seria de bem menor valia. Estava convencido de que
Epaminondas era um daqueles raros sujeitos que realmente tem algo a dizer. O
problema era de como convencê-lo de que eram de confiança; que seus possíveis
segredos estariam em total segurança. Às vezes Tito perdia seu olhar na paisagem
cinzenta que a janela oferecia e alguns pensamentos lhe provocavam algumas
pontas de desânimo; e se tivesse mitificado aquele sujeito? Se não fosse nada
disso, se o cara não passasse de um bêbado comum que acertava palpites em
cenas de crimes? Se, ao encontrá-lo, finalmente percebesse que Epaminondas era
um pobre coitado, miserável e rancoroso por ter sido relegado ao ostracismo da
polícia, um homem que choramingasse as mágoas de ser um incompreendido e
injustiçado, que dera seu sangue, literalmente, ao seu trabalho e que quando está
para chover, os ferimentos dos tiros doem e lhe causam grandes transtornos de
saúde? Ele mostraria os remédios de que era obrigado a tomar para depressão,
cirrose, etc. enquanto sua velha e paciente companheira diria que ele não bebia
tanto antes de sair da policia – Agora está virado nisso aí! – e apontaria para um
Epaminondas baboso, atirado em uma velha e furada poltrona, com uma garrafa
de conhaque no colo. A paciente senhora se retiraria para preparar-lhes café, e
então o ex-policial começaria, com sua voz pastosa, a desfiar o rosário familiar e de
como era mal tratado por todos os seus circundantes, para em seguida, em voz
alta para a esposa escutar, contar bravatas de valentia, dos seus bons e velhos
tempos. Quem sabe à luz, seu olhar amedrontador não passe de olhos embaçados
pelo vício e pela idade; que já não dizem nada, sem força e sabe-se lá, até mesmo
suplicante e patético. De repente, Tito despertou deste devaneio. Não, claro que
não, ele não seria este ente patético e deprimido. E Tito deixou escapar uma risada;
não, um cara assim jamais desvendaria um crime compondo e cantando um samba
de improviso! Não, decididamente este ser doente não seria jamais aquele
repentista fascinante e embriagado que o assombrou na noite passada. E
principalmente, o homem que disse o que disse, olhando nos olhos assombrados
do assassino, na noite anterior. Olhando então pela janela, Tito esqueceu a noite
passada, porque a noite de hoje já havia chegado.
22
23. ***
Tito e Nina saíram juntos da delegacia. Percorreram alguns quarteirões e
resolveram sentar em um bar para tratar da execução do plano.
- Muito bem, maroto. O que você bolou. Qual será nosso cavalo de Tróia
para entrarmos na vida do Sr. Misterioso? – perguntou Nina.
- Para dizer a verdade, não me ocorreu nada. Acho que temos que ligar e
pronto. Sem muito esquema. – disse Tito, enquanto observava o garçom
colocando dois copos na mesa e uma garrafa de cerveja.
- Quem sabe o convidamos para beber? Não é o que ele mais gosta? À
nossas expensas. – brincou Nina.
- Seria como atrair o oceano para um pingo d’água. Se existe uma coisa da
qual, creio eu, Epaminondas não se ressente, é da falta de trago. Não acredito
que é por aí o negócio. Temos que pensar em algo que realmente lhe agrade.
– comentou Tito enquanto servia os copos.
- Mais que a cachaça? Você tá brincando! Um brinde, tim tim!
- Tim tim!
Nina então reparou com mais calma no seu teimoso colega. Achou que era, até,
um sujeito bonito. Tinha estatura média e forte. A pele queimada pelo sol
realçava um belo sorriso, embora Tito fosse o que Nina considerava homem
sério, não muito afeito a brincadeiras fora de hora. O cabelo extremamente
negro e um pouco comprido para seu gosto, apresentava nuances do trabalho
inclemente do Sol, enquanto os olhos grandes igualmente pretos, dificilmente
pousavam por muito tempo em alguma coisa, ao que Nina atribuía a uma
possível timidez mal disfarçada. Talvez não passasse de um menino.
- Quantos anos você tem? – disparou curiosa.
- Vinte e seis. Porquê? Pareço muito velho? É esta porra desta luz, dá bem em
cima de mim! Quanto eu aparento, trinta, trinta e cinco?
- Com a boca fechada. Quando fala, uns... dez. – falou Nina divertindo-se.
- Ah, sim, é que tenho de fazer jus a meu gracioso apelido de Cabacinho.
- Mas não fique brabo comigo, quem lhe presenteou com esta maravilhosa
alcunha foi seu amado ídolo. Aliás, me ocorreu uma idéia! Epaminondas disse
23
24. que sente cheiro de defunto e cabaço; logo, ele poderá chegar a nós farejando
você! Vamos andar pela cidade e deixar que nos ache, há,há,há...
- Isso, tira sarro... você não está ajudando em nada para acharmos uma
solução. Me pergunto se não seria melhor trabalhar nisso sozinho. Não é mole
agüentar todo esse seu sarcasmo.
- É que você é muito sério, precisa relaxar. Desde que botou esse bebum na
cabeça não fala de outra coisa. E se por acaso tudo isso não der em nada? O
que você vai fazer? Aguardar outro assassinato para encontrar-se com seu
único e verdadeiro amor? Ele aparecerá e desaparecerá no nada, como sempre.
- Quantas vezes você presenciou suas aparições?
- Não muitas, mas lhe garanto, ninguém nunca se atreveu a segui-lo ou coisa
parecida. Todos têm respeito ou medo dele. Você viu ontem? O Santos,
sempre cheio de pose, metido a sabichão, gosta de vomitar ordens, etc. meteu
o rabo no meio das pernas quando o negão abriu a boca. O que você quer
fazer, na verdade, é praticar um crime de lesa-majestade. No momento que
encontrar o cara e ele não gostar, pode desistir de ajudar a polícia. E aí, o que
você vai dizer para o Santos? E para o delegado Fidelis? E para toda a
corporação? O que dirá você? Amigos, o homem da sombra não virá nunca
mais, pois fui impertinente o suficiente a ponto de procurá-lo e aborrecê-lo,
agora ele não quer mais saber da policia! – Nina deu uma parada, suspirou e
prosseguiu – Sei o que você deve estar pensando, que eu então não devia ter
topado esta empreitada...
- Exatamente.
- Mas eu também morro de curiosidade sobre esse homem. Só que temos
que ter um plano que não dê errado do modo algum, só isso. Acho precipitado,
você conheceu o cara ontem e já quer procurá-lo hoje, e assim, sem nenhuma
carta na manga! Você nem sabe com o que está lidando, e se ele for perigoso, e
se há muito ele já não esteja em seu juízo perfeito? Porra o cara é uma esponja!
Duvido muito que não haja algum dano naquele cérebro.
- Puta merda! Se aquele cérebro tem algum dano, também quero um deste.
Você não tem vergonha de dizer uma coisa destas? Quatro policiais sóbrios
precisam que um bêbado, vindo não se sabe de onde, resolva um crime! Dano?
Que dano pode ser esse, que faz com que o sujeito improvise um samba e
conte a história do assassino e do morto? Assim, num estalar de dedos! Ao
contrário de você, eu realmente acho que estamos diante de um misterioso
fenômeno. E quero descobri-lo. Só não sei se ainda posso contar com você.
- Pode... Claro que pode – disse Nina, fazendo um ar cansado - mas volto a
dizer, precisamos de um plano.
- Você quer um plano? Está aqui o plano... – ato contínuo, Tito pegou o
celular e ligou, com tanta determinação, que Nina preferiu ficar em silêncio,
24
25. embora aflita. Tito esperava com o aparelho junto ao ouvido, o rosto impassível
aos poucos descorava, e a mão começou a tremer levemente – Droga! Não
posso fraquejar agora.
Alguém atendeu do outro lado. Tito estremeceu. Os olhos saltavam no rosto
exangue. Nina tinha os olhos cravados na fisionomia do rapaz, como se através
desta, pudesse decifrar o enredo daquela conversa que enfim começava. Uma
voz grave e pastosa atendeu do outro lado – Ora, ora, ora... se não é o meu
amigo cabaço! Fale meu rapaz, onde foi a merda desta vez?
- Não... não houve nenhum crime Sr. Epaminondas. – Tito sentia que a voz
lhe saia miúda e a garganta parecia fechar.
- Não? Então o que vocês querem de mim, porra? Estava me preparando pra
dar uma sonora trepada! Ou lembraram deste velho diabo porque finalmente
reconheceram que é chagada a hora de recompensá-lo com um gordo cachê?
Desembucha meu filho!
- Não é a policia que está lhe ligando, sou eu. É particular. Gostaria inclusive
que eles não soubessem deste contato. Aliás, não sei como adivinhou ser eu ao
telefone.
- Há,há,há... Não, meu filho, adivinhação não existe. Eu apenas sabia ser você
ao telefone, nada mais. É particular? Hummm... Qual é o rolo que você se
meteu? Eu tô dizendo... vão acabar me chamando até para fazer parto! Essa é
boa! O cara quer atendimento particular! Agora escute com atenção, filhote, se
eu abrir uma exceção para atendimento particular, este telefone não vai mais
parar de tocar, que horas vou achar para me embriagar? Meu negócio é beber,
me chapar a valer, trepar muito, brincar, dançar, cantar e dar risadas, a que
horas poderei fazer isto? Não poderei, pois terei de trabalhar sob a incidência
de luz... urghh! Tá louco! Por isso, não me leve a mal, não é nada pessoal, a
polícia é uma exceção por questões sentimentais, pois dei uma parte da minha
vida a ela em troca de algum dinheiro. Agora lhe dou uma ínfima parte da
minha vida e não quero dinheiro nenhum, faço por esporte, isso é tudo, garoto.
- Não desligue! Deixe-me dizer! Não sei como o senhor vai interpretar isso,
mas realmente, como um policial que está iniciando uma carreira na
investigação de crimes. Cabaço você diz; sim, totalmente cabaço! Gostaria
muito que me ensinasse sua técnica dedutiva! Seria-me de grande valia, isto é...
Obviamente, se o senhor tiver um pouco de paciência com seu jovem aprendiz.
Sou de aprender rápido sei que não se arrependerá. – Tito disse isto quase que
de um fôlego só, e começava a sentir uma incômoda sensação de que
começava a fazer papel de idiota.
- Há,há,há... Espere que vou dar mais um gole! Êta vinho bom! Hummm....
Delícia! Bom, que você queira ser um dedicado filhotinho do Estado, posso
compreender, afinal está há pouco tempo nesse negócio. Todo o tesão é
25
26. louvável meu garoto! Mas creio realmente que a estas ambições, algumas
cartilhas e manuais de procedimento poderão lhe ser de maior utilidade que do
que eu. Obviamente, meu caro, além de um dom natural que, espero, você
tenha. De minha parte, se tem alguma coisa que nunca me passou pela cabeça
é ensinar alguma coisa; me seria terrivelmente penoso vestir essa carapuça, a de
mestre; porra, só de falar disso me deu sede! Bravo! Mais um gole... êta vinho
bom! Agora, se me permite, filhote, tem uma mulata... eu adoro mulata, os
sóbrios costumam dizer que ela tem a cor do pecado! há,há,há... tem uma
mulata maravilhosa na minha cama, exalando seu cheiro amoroso de cravo, ela
faz agora uma dança de cigana, quer o seu negão! Seu negão! Bem
embriagado! E todo amor e tesão que pode sorver, egoísta, desta minha
embriaguez despreocupada e profana! Sim, todos os meus sentidos estão em
profunda alegria, tem uma mulata na minha cama! Portanto irmãozinho sóbrio,
sem rodeios: sinto que você quer mesmo é me conhecer mais de perto, eu lhe
impressionei, etc. e tal... Eu li isto ontem nos seus olhos. Por que você
simplesmente não fala a verdade? Dá para sentir o cheiro da mentira daqui!
Enquanto optar pela mentira, não poderei fazer nada por você. Pare para
pensar, nessa luz parca que incide sobre vocês, sóbrios, que induz à mentira
para atingir um fim, mesmo que este tenha nascido dos mais profundos
sentimentos.
- Perdoe-me, o senhor tem razão, – disse Tito totalmente sem jeito sob o
olhar estupefato de Nina que não imaginava que o rapaz pudesse levar a
conversa tão adiante - talvez eu não esteja pronto para este contato.
- Sim está; tanto que, creio eu, deve ter conseguido meu telefone de forma
não muito lícita. Arriscou seu pescoço. Isto demonstra paixão, paixão ao
empreendimento ao qual você se propôs. Com isso angariou meu respeito.
Livre-se destas pequenas mentiras e me aguarde, eu te acho. Uau! Estou me
derretendo de tão embriagado e tesudo; tem uma mulata na minha cama, e
ela... ela faz uma dança de cigana... Ah! Antes de desligar, dê um beijo aí, para a
Nina... é Nina o nome dela não é mesmo? Tchau!
Tito desligou o telefone sem tirar os olhos da atônita Nina. – Lhe deixou um
beijo! – disse em júbilo – yes, yes, yes... Consegui! Consegui! Ele me dará uma
chance e se não tivesse eu, usado de subterfúgios mentirosos, me daria bem já
hoje. Lembra quando lhe disse que a verdade seria o melhor caminho para
chegarmos a ele? Você queria planos mirabolantes! Não, para se achegar a ele
basta apenas ser você mesmo, sem estas mentirinhas nojentas que inventamos
todos os dias para abrir pequenas portas. Sim, eu tinha razão.
- Certo, você ganhou, tinha razão, mas me conte tudo, tudinho, fale, fale
garoto! - e Tito cheio de um entusiasmo anormal, pediu mais uma cerveja e
começou a descrever sua rápida conversa.
26
27. A FILOSOFIA DO DIABO
Cap 03 SOBRE SÓBRIOS E EMBRIAGADOS
Três dias se passaram sem nenhuma novidade. Neste ínterim, não acontecera
nenhum crime que justificasse a presença de Epaminondas no local. Mas, uma frase
não saia da cabeça de Tito: me aguarde, eu te acho... o que o ex-policial queria
dizer com eu te acho? Nestes dias quando saía da delegacia, nem que fosse para
fazer um lanche, olhava para todos os lados à procura de algum sinal. Procurava
alguma pessoa estranha, algum aceno no outro lado da rua, alguém que lhe
entregasse sorrateiramente algum bilhete contendo instruções sobre como e
quando encontrar aquela enigmática figura. Estava criando o hábito de tomar
algumas cervejas com Nina quando um ou outro não estava de plantão. Às vezes
Edson também participava, mas nestas ocasiões tinham os dois, ele e a colega, de
cuidarem o que diziam, afinal, tinham um segredo. Um olhava para o outro, de um
jeito que ficasse claro quando o álcool ameaçava fazer derrapar a língua, pondo
em perigo seus planos. Às vezes reparava melhor na mulher, principalmente
27
28. quando a bebida lhe afrouxava o espírito sisudo; olhava-a então com mais atenção
e tinha de admitir que o riso brincalhão de Nina ‘mexia com ele’. Algumas vezes
lhe ocorria convidá-la para continuarem a festa em seu apartamento, mas em
seguida sua costumeira insegurança com as garotas apossava-se de seus nervos.
Melhor deixar assim, de mais a mais, ela tinha um espírito brincalhão que talvez o
fizesse confundir as coisas. Sabia também, que não podia perder esta forte aliada;
se cometesse algum deslize que desgostasse a moça poderia pôr tudo a perder.
Foi assim que três dias se passaram e ele já começava a cogitar ligar mais uma vez
para o homem; no entanto, quando pegava seu celular desistia. O que dizer?
Epaminondas disse que o achava, e se isto fosse alguma regra que deveria
obedecer com total reverência? Poderia ser a condição sine qua non para o
encontro. Não, melhor não; desistia então da ligação e ficava entregue à ansiedade.
Foi pensando nestas coisas que chegou em casa, depois de mais um dia de
trabalho em que nada acontecera digno de nota. Cansado, talvez da modorra do
dia, não conseguiu naquela noite nem ver um pouco de televisão, indo direto
desabar em sua cama, de roupa e tudo, adormecendo em seguida. Caiu então na
imensidão do nada. O sono profundo em que mergulhara aos poucos dava lugar a
uma voz arrastada e grave, era a voz de Epaminondas. Enquanto despertava
lentamente, juntava preguiçosamente as migalhas de seu raciocínio perdidas na
escuridão silenciosa do sono. Aquela voz... Achou que estava iniciando um sonho e
entregou-se lentamente à doçura etérea daquele canto de Morfeu. Uma
gargalhada então, alta e lasciva, o trouxe à superfície. Abriu lentamente os olhos
numa luta serena contra pálpebras de chumbo. Começou aos poucos a divisar
algumas coisas à sua frente; a princípio imagens desconectas que dançavam; eram
luzes salpicadas de escuridões. Num esforço mais intenso obrigou suas pupilas a
lhe fazerem uma tradução mais fiel do que via. Dezenas de círios acesos, pretos e
vermelhos, emprestavam suas luzes a imagens assustadoras, carrancas, cabeças de
bronze com imensos chifres. Nas paredes pululavam imagens estranhas, pareciam
demônios que zombavam do recém chegado com seus sorrisos ruidosos. A dança
lenta, porém intensa daqueles pontos de fogo faziam com que claridade e sombra
brincassem em suas fisionomias assustadoras e alegres. Davam-lhes os
movimentos necessários para que mostrassem todo o êxtase de suas alegrias
pagãs; demônios orgulhosos que realizavam extáticos, suas danças infernais. O
medo exalado pelo inusitado visitante parecia arrancar-lhes risadas maldosas
embora surdas, como que em agradecida celebração pelo inocente, que agora ali,
petrificado, era oferecido em holocausto. Tito reparou então em uma imensa e
temerosa pira que ardia no centro do recinto, sentindo arrepios. Estava nauseado e
verdadeiramente apavorado. Não, aquilo não era um sonho! Decididamente aquilo
tudo era real, podia sentir o calor daquelas chamas e sentia também o aroma
inebriante e suave de incenso; sim, seus olhos estavam bem abertos.
28
29. - Não, garotinho, você não está sonhando... – aquela voz bêbada e arrastada ele
já conhecia. E o pavor da situação o fez pensar se realmente acertara naquela
procura. Estava com muito medo. E se Epaminondas fosse um louco! E se
ingenuamente, caíra como um cãozinho estúpido e xereta nas garras de um
depravado! Ali imóvel, a mercê de seu raptor, que reação poderia exercer? Levou a
mão, num ato mecânico, abaixo do braço; procurava sua arma no coldre axilar, o
movimento saiu lento e em vão. Ouviu então a risada debochada de Epaminondas.
Aquilo o fez tremer. Sentiu uma vontade incrível de chorar, chorar um choro
infantil, de criancinha desamparada e então percebeu que estava entrando em
pânico. Começou a respirar fundo e tentou levantar-se de um só golpe; não
conseguiu. O sentimento de medo foi dando lugar ao de raiva, seu corpo imóvel
possivelmente drogado, fora conduzido sabe-se lá como, para aquele lugar
assustador. Pesava agora trezentos quilos. Desistiu de uma reação, apenas olhou
para o raptor à procura de alguma indulgência. Nos seus olhos estava escrita a
rendição, e os de Epaminondas pareciam-lhes mais sinistros do que nunca – Meu
caro e indefeso amigo - prosseguiu Epaminondas, que vestia uma grande capa
negra com capuz. Esta indumentária dava aspecto mais sinistro ao evento e a seu
principal personagem – Permita que me apresente: eu sou eu e não eles. Eu sou
aquele que escutou quando menino, ‘seja nós’, e respondeu: não posso porque eu
sou eu. Mais tarde escutou, então seja igual, e respondeu: impossível, porque sou
diferente. Por fim escutou, então pelo menos seja ‘bom’ e respondeu: como assim,
me pedir um sentimento? Ficou então enojado dos pedintes e foi embora. Não me
presto a ser comestível, queriam que eu fosse mais um arroz...branquinho, coletivo
e indefeso, mas não. Eu sou a mosca que pousou no prato! Este sou eu. Portanto
meu caro espero que você não seja um babaca qualquer, que venha apentelhar
meu sossego. Imagino que o que lhe fascinou naquela noite, foi o inusitado, estou
errado? Claro que não. O inusitado, quando se está entre sóbrios é entretenimento
que desconcerta, é diversão. Sob a luz mortiça da Razão, todo mundo é valente!
Todos, sob a tutela da sobriedade, essa parca luz, são muito curiosos. No entanto,
basta apagar a luz, e voltam a ser as criancinhas mimadas, desprotegidas e
chorosas, que os sóbrios, em ultima instancia, são. Crianças que têm medo do
escuro. Apresenta-se a você uma situação inédita, e seu coraçãozinho sóbrio entra
em desespero. Por que? Porque o dia a dia em que sua cabecinha é viciada, não
pode prever que exista vida onde você não enxerga. Ninguém me vê durante o dia.
Pois saiba novato! Na sombra a vida é mais intensa que na luz. Porque à sombra,
só enxerga quem ilumina com o próprio fogo, se não, morre de fome! Quem não
tem luz própria, apavora-se na escuridão, não vê nada, e que perigos podem surgir
de onde não se enxerga! Ajoelha-se então e reza por uma lanterna salvadora. A
lanterna da luz sóbria! Olhe você! Queria ter comigo. Dou-lhe uma chance e você
se caga nas calças! O que você imaginou? Que eu estaria à sua espera em um
29
30. botequim de quinta categoria, em uma esquina qualquer? Claro que sim! Tenho
certeza, há,há,há... mas não, meu filho, embora adore botequins de quinta
categoria. Só cuide com esse hábito sóbrio de rebaixar o que não conhece à
imagem e semelhança do conhecedor. – Epaminondas abriu os braços e saiu
andando pela imensa sala com seus passos trôpegos – Olhe tudo isso! Estes todos
são avatares de uma embriaguez cósmica! Estão lhe recepcionando com intensa
alegria! São os melhores amigos que você pode ter, desde que possa percebe-los
quando vêm dançar, no silêncio misterioso da sombra. Oh, não! Esqueci-me, você é
um sóbrio! Tem pra você tudo bem iluminadinho! Escolhe as coisas pela incidência
de luz que nelas refletem; narcisicamente, escolhe então os reflexos de luzes que
mais lhe agradam. Alimenta-se de luzes refletidas, reflexos de luzes alheias. Mas, e
a sua luz? Não existe? Há,há,há... Você só saberá se dançar com seus demônios
danças infernais, menino, sob a luz negra de sua própria sombra. Olhe essas velas...
iluminam na escuridão com luzes feitas de fogo! Luzes que dançam! E só pode
haver fogo, se este vier da nossa mais profana profundidade. Para mim, filhote, não
há dúvidas, ou iluminamos com nosso fogo ou somos iluminados por luzes
mofadas. Esse pavor estancado em seus olhos vem do mofo sóbrio em que você
foi criado. Vocês civilizados, há.há.há... os civilizados me divertem muito! Você sabe
realmente o que é ser um civilizado? Eu tenho um palpite: é nada mais nada menos
do que assumir o compromisso de ser hoje, ao acordar, o mesmo que você foi
ontem. Você se transformar no seu próprio circulo vicioso, é isso que esperam de
você, que seja um óbvio, um previsível. Só assim pode ser medido o grau de perigo
que você eventualmente possa representar à sociedade sóbria; se for um óbvio,
receberá o selo de ‘bom’. Divirto-me quando vejo aquelas figuras empoladas
falando; o discurso combinando com a gravata, almas decoradas. Aliás, creio que a
‘alma’ é a armadilha do ser. Caralho! A ‘alma’ é a jaula dos instintos! Para quem os
têm bem fracos ou praticamente não os têm, essa dama é uma benção!
Praticamente pode justificar toda uma existência débil. É o manto sagrado vestido
pelo sóbrio; no entanto, é uma camisa de força a ser rasgada pelo embriagado!
Quem não tem nada se apega a qualquer coisa, principalmente se vem pintada de
branco e tem ornamentos santarrões. A alma é a carteira de identidade dos
sóbrios, assim, reconhecendo-se nela, reconhecem-se todos, e todos querem
também a imortalidade dos seus pequenos egos. E assim conduzem à
imortalidade... o ‘divino’ Platão. Nada mais. Divertem-me esses sóbrios, acocorados
sob a luz platônica! Lutando contra seus instintos, lutando contra si próprios! Ficam
com a ‘alma’ e jogam no lixo o que têm de mais profundo, forte e original, dando-
lhe o nome de diabo. Mas é no lixo dos sóbrios que faço minhas melhores
pescarias. Qualquer coisa que não sirva para um sóbrio torna-se uma iguaria para
um embriagado! Costumam desfazer-se do fruto, consumindo avidamente a casca.
Bem, digo-lhe tudo isto, porque realmente me surpreende seu medo. Você foi
30
31. valente para me encarar, ou foi uma súbita curiosidade tola? Se foi, tudo bem,
estará em casa logo mais e faz de conta que tudo não passou de um pesadelo;
agora não repare, mas tenho que tomar um gole! Minha boca está ficando seca.
Porra, eu falo pra caralho, compadre! Foi você aí deitado, abatido, que me inspirou
esta fúria verborrágica! É que vocês me enchem o saco com esses medinhos tolos.
– Epaminondas serviu-se de uma garrafa de champanha, enchendo também uma
taça para Tito. Estendeu-a ao assustado rapaz, que a apanhou com mão trêmula.
Este em seguida conseguiu sentar-se com dificuldade no acanhado sofá, que só
agora percebia, estivera por este tempo todo deitado. O pior já havia passado, e
aos poucos, Tito reorganizava suas idéias. Planejara não fraquejar quando estivesse
na presença do negrão e dava-se conta de ter protagonizado um pequeno vexame.
Embora tivesse ficado este tempo todo em silêncio, o lance de tentar pegar sua
arma demonstrava uma patetice à toda prova. Resolveu então, entrar de bem na
dança. Epaminondas sugeriu um brinde e os dois bateram os copos. Em seguida,
Tito ensaiou suas primeiras falas.
- Perdoe-me Sr. Epaminondas – disse isso levando a mão à cabeça, ainda estava
meio zonzo – foi tudo muito rápido, ainda agora dormia em minha casa e... de
repente...
- Deixa comigo que eu sei como é, mas não posso correr riscos. Compreenda,
estou em meu habitat, não posso permitir que venham xeretar por aqui, tomei a
precaução de remove-lo dormindo, sei alguns truques, é fácil. Assim, com este
pequeno ardil, eu garanto minha tranqüilidade, pois se você falar disso para
alguém, dirão que sonhou e que você não passa de um lunático. Aliás, penso que
você é meio maluquinho, não e? - Epaminondas sentou-se em uma poltrona de
espaldar alto, ornada com mantos de cetim com variadas cores e estranhos
brocados, mas estava difícil para Tito divisar pormenores naquele ambiente; o
negrão olhava-o e sorria com a taça de champanha na mão, o rapaz achou melhor
corresponder-lhe o sorriso.
- Você é corajoso garoto, gosto disto. O pessoal da policia é só interesseiro.
Querem somente os meus préstimos, e quanto mais rápido eu partir da cena do
crime, melhor. Mal sabem eles que tudo que quero é sair logo de suas presenças
sóbrias. É um bando de cínicos. O Santos mal consegue disfarçar o seu desgosto
com minha presença, mas trabalhar pouco é tudo que ele quer, portanto, chama o
negão Epaminondas! Só vou nessas porras todas porque gosto de praticar, botar
um vagabundo mentiroso e covarde na cadeia é uma delícia! Veja, e você é novato
e vai se acostumar, como é a condição humana; eles cometem crimes e escondem-
se atrás de mentiras, das mais variadas, isso não é uma vergonha? Os sóbrios e
seus crimes... não conseguem nem assumir a própria violência de suas paixões. Não
assumem nada, afinal. O que me deixa puto é que muitos botam a culpa na
bebida! Ora! Eles são sóbrios! Sóbrios quando bebem não ficam embriagados,
31
32. ficam bêbados! e nesta condição encontram a desculpa adequada para todo tipo
de patifaria. ‘Eu estava fora de mim!’ é isso que alegam. Porém, como aqueles
cãezinhos de circo que só têm valor porque andam ‘de pé’, nas patinhas de trás,
adestrados que foram para isso, quando andam com as quatro patinhas perdem o
glamour e a serventia, porém tornam-se o que realmente são, cãezinhos, nada
mais. Assim é que imagino a condição humana, ‘eu estava fora de mim!’, aqui ó!
Quando botou as patinhas no chão, tornou-se por um momento o que é lá nos
recantos mais profundos de seu ser: uma besta! É quando a máscara do
adestramento sóbrio cai, e vemos o rosto que se esconde por detrás da mascara
‘civilizada’. É irmãozinho... acho que o velho Freud realmente tinha razão. Dá um
tremendo mal estar ter de estar sóbrio o tempo todo! Mas estar embriagado é uma
delicia! Amo a embriaguez! Por isso, vamos tomar outra! – encheu então sua taça e
a de Tito, que continuava um pouco aéreo, sentou novamente e continuou – À
besta humana! – ergueu um brinde, ato contínuo, sorveu tudo em poucos goles - À
besta humana, por encenar esta maravilhosa ópera buffa que me diverte tanto! A
essa canga pesada que são obrigados a carregar, sua santa Razão, uma Razão de
túnica branca. Muito bonita e que cheira a jasmim, para combinar com suas almas
puras, tão branquinhas. Tudo muito bonitinho, muito comovente... oh, como me
toca! Sabe, pimpolho, a maioria dessas caras que você encontra lá fora, quando
está ao Sol, precisam mesmo de uma alma, de um rótulo, de um comportamento;
ser sóbrio é uma profissão. Parece-me que agradecem aliviados, já existir de
antemão um molde os aguardando, para que, tal qual a água que toma a forma do
recipiente no qual é vertida, seu ser assuma uma função nesse grande negócio.
Será remunerado com grana! Grana e reconhecimento.Terá uma bela família, para
mostrar fotos aos amigos. Não precisará existir fora disso, para alívio seu, pois não
teria para onde ir. Não é nada, só um molde. Acho isso a ditadura do frasco sobre a
essência, quando esta é parca ou não existe. O sóbrio é uma aparência. Mas
existem os embriagados, ah... os embriagados, os que vertem seu ser para fora do
acanhado recipiente, porque este por si só não basta. Uma coisa eu aprendi nestas
minhas andanças pelos becos da existência: o pequeno precisa de um conteúdo
que lhe dê forma, e o grande, precisa livrar-se de um conteúdo que lhe deforma.
Isto é tudo. Saiba, esta pode ser a fórmula para entender o mundo sóbrio. A
sociedade detesta qualquer superfície em que não possa colar seus rótulos. Eu, por
exemplo, sou um ‘bêbado’! Há,há,ha... um mero bêbado, porém, pensam eles,
talvez até um homem demoníaco! Há,há,há... a única coisa que quero do sóbrio é o
seu medo. Assim, ficam longe de mim. Que vão pra puta que pariu! Há,há,há... o
sóbrio e sua ‘alma’! Eu não tenho alma, meu garoto! Sou só instintos! Sou um
monstro instintivo, uma espécie de Dragão de Komodo, negro, gordo e
malevolente, que anda nas quatro patas com aquela lassidão que uma existência
confortável proporciona. Carrego comigo uma garrafa de aguardente, e ando pelos
32
33. esconderijos mais escuros e sujos, sempre com minha língua de dragão dando
rápidas investidas no nada e sempre lascivo, com meu pau arrastando por onde
ando! Desapareço nas sombras atrás de minhas presas, caço os demônios mais
escrotos, os devoro com a calma dos crocodilos, mas sempre mastigando com
cuidado para não matá-los, pois ao ingeri-los vivos, passarão a fazer parte do que
sou, acolherei suas danças em meu ventre. O velho e bom dragão sai de suas
sombras de buxo cheio, mais pesado, mais preguiçoso, e mais forte. Quero que me
chamem de diabo! Quero os epítetos mais escabrosos! Quero ser o adversário! O
do contra! O bárbaro! O parta! O godo! O herege! Quero ser queimado em suas
fogueiras! E então, em meio às chamas, riria minha mais diabólica risada e diria em
alto e bom som:
Cá estou eu
Na fogueira de novo!
Mas saibam, senhores:
De tanto ser queimado,
Fiquei amigo do fogo!
Epaminondas falava alto e transpirava. Estava bastante embriagado e Tito não
sabia realmente onde tudo aquilo ia dar. O negrão falava todas aquelas coisas que
o confundiam, era um sujeito extremamente debochado, concluíra Tito; e vertia
aquelas palavras de um jeito que realmente pelo que parecia, estavam engasgadas
há muito. Tito então era o ‘sóbrio’ que caiu em suas redes; mais que isto, às
procurou. Achou, então, que devia dizer alguma coisa; talvez dizer que muitas
vezes não se sentia como um sóbrio, e quando isso acontecia tinha vontade de
sumir. Mas ‘sumir para onde?’ Talvez tivesse uma ‘alma’ e não soubesse lidar com
ela, mais que isto, talvez algumas vezes sentisse o peso da responsabilidade de a
ter, mas quem sabe era tudo que tinha. Seria ele um ‘sóbrio’? Estava confuso.
Teriam as recém chegadas palavras de Epaminondas despertado alguma coisa
adormecida na sua curta existência? No torvelinho da situação, preferiu deixar para
pensar nestas coisas em outra ocasião. Reparou então que Epaminondas dançava,
e naquela dança estranhamente, sua bebedeira parecia haver passado. Dançava
com uma leveza surpreendente para o cara pesado que era, estava de braços
abertos e dava suaves e precisos rodopios no ar, parou então e encarou Tito. – É
aqui que pratico meu misticismo. Sacou, garoto! É aqui que mergulho nos meus
mais profundos abismos. É aqui que confraternizo com meus demônios, é aqui que
a cachaça que é o meu ser exala seu perfume, um perfume negro e demoníaco,
profundamente delicioso e inebriante! Instintos lascivos e embriagados encontram
guarida nas mais tesudas companheiras de jornada. Adoro mulata, então trepo
muito! Bebo e trepo! E aí? Quem vai dizer o que? Os sóbrios não praticam suas
33
34. religiões ajoelhados em seus templos? Pois eu pratico meu misticismo fodendo,
dançando e bebendo aqui no meu! Ah... As delicias dionisíacas... este hedonismo
manso, esta alegria incontida no meu corpo e na minha mente! Sempre mais vinho,
garoto! Sempre mais vinho! Quem poderá me atirar uma pedra? Acaso não é
enojado que eu volto daquelas cenas de crimes? Crimes de sóbrios! Aqui não
existe mentira, não existe cinismo nem a desfaçatez, sou o que sou no meu mais
puro ser. Não quero a luz, quero a escuridão. Não quero o ranço da existência
comprometida com o desempenho, o ranço das coisas ditas e repetidas, de
pessoas carameladas pelo açúcar da alma. A chatice desse dia a dia na parca luz. O
que poderia dizer a mim, o que não tem voz? O que não tem cor? Só o odor de
pensamentos coagulados! A roda morta do dia a dia na promessa traiçoeira de
mais dinheiro! Muito pouco, meu nêgo! Muito pouco pra mim. Quero as
cachoeiras que brotam de mim mesmo, cachoeiras de cerveja preta! Delicia!
Sóbrios filhos das putas! Deixem-me viver o que é meu, fora daqui! Fora da minha
cabeça! Pulgas brancas! Sanguessugas de meus mais violentos instintos! Se o
velho Freud tinha razão, se temos dentro de nós sentimentos aos quais ele
denominou Eros, instinto de vida, e Tanatos, instinto de morte; este segundo, eu
dei para o Estado. Matei muito. E quando matava todos me amavam. Este meu
instinto, então, servia à sociedade! Meu instinto de morte! Sempre o tive muito
forte e eu matava mesmo. Sem perdão, sem compaixão. Matar ou morrer, foda-se!
E sabe que mais, neguinho... eu adorava fazer isto: matar! Sempre tive comigo, que
só me realizaria enquanto o homem que sou, se matasse. Sentia um poder
indescritível, o poder de sentenciar e executar a sentença. Nunca questionei estes
meus sentimentos, pois sabia serem instintivos e eu não questiono meus instintos,
apenas dou a eles a mim mesmo, inteiro, total. Sempre fiz meu trabalho com
eficiência; alguém há de duvidar? O que me impressiona é esse seu olhar
assustado. Assustado com o que? Não é isso que esperam de um bom policial? De
um bom servidor da sociedade? Não espantei, por acaso, os vagabundos da
cidade? Não fiz despencar os índices de criminalidade nesta porra de cidade
sóbria! Esta cidade sóbria, por isso mesmo hipócrita e cínica, que diz: ‘bandido
bom é bandido morto?’ Todos passaram a dormir tranqüilos em suas camas
quentes, não sem antes beijarem as testas dos filhos, assegurando-se de que seus
anjinhos dormiam seguros. Enquanto isso o negão aqui, com o olhar repleto de
sangue, no vento frio da madrugada violenta e com o dedo coçando a ponto 45,
encarava os lugares mais escabrosos. Lugares, meu querido novato, que fariam
você tremer, suar pela bunda e pedir pela mamãe. Sou um louco sanguinário? Que
seja, mas no mundo sóbrio é uma linha tênue a que separa um louco sanguinário
de um herói, não é mesmo? Eu seria um assassino filho da puta, caçado pelos
quatro cantos, tendo sob meus ombros o ódio desta sociedade se esta não tirasse
proveito de meus instintos mortais. A mesma sociedade que tem exércitos e treina
34
35. adolescentes para serem assassinos frios em suas guerras podres. Mais uma vez o
proveito próprio vem em primeiro lugar. Viu como tudo é relativo meu caro
aprendiz de polícia? Há,há,há... se eu levasse chumbo, caísse morto em qualquer
beco escuro, todos continuariam dormindo seus sonos de anjo, afinal, me pagavam
para isso, certo? Saí de cena amiúde, ninguém viu meu rosto. Sou um homem das
sombras, para que os sóbrios me vissem, eu precisaria sair à parca luz. Talvez
então, esta sociedade que dorme tranqüila, me olhasse nos olhos e horrorizada, me
expulsasse para a sombra, esconjurando seu protetor, dizendo ser lá o meu lugar e
de onde nunca deveria ter saído. Não precisariam mais de mim, me chamariam de
demônio. Eu agradeceria comovido, pois meu habitat natural é o escuro e uma vez
não precisando mais de meus préstimos, me proporcionariam a alegria de me
dedicar à lascívia serena de minha proverbial embriaguez. Eu sumi nas sombras e a
partir deste dia um batalhão de inseguros insones assumiu os corpos daqueles
seguros dorminhocos de outrora. O medo, apanágio do sóbrio, estava de volta.
Mas eu sou a morte impiedosa. Sou aquele que as lagrimas e pedidos de piedade
não convencem. A sociedade sóbria sempre precisará de mim! Só tenta se
convencer de que não. Mas de minha parte já chega; sugaram meu Tanatos como
um bebê suga as tetas fartas de uma mãe matrona. Aposentaram-me. E sabe por
que? Porque descobriram que meu Eros não interessava; deste meu instinto, ela, a
sociedade sóbria, não tiraria nenhum proveito! Não é irônico? Sempre a utilidade!
O que ou quem, não é função, não interessa. Você só é reconhecido enquanto
função. Mesmo quando eles tenham de fechar os olhos para seu zelador, enquanto
ele faz o trabalho sujo! De minha parte, dei algo de mim para esses utilitaristas de
merda e é o que basta! Agora desabrocho em mim mesmo, na volúpia deliciosa
desta embriaguez. Nesta dança alegre do autoconhecimento, neste despencar
despreocupado e inebriante dentro de mim mesmo. Longe das pulgas morais,
soldadesca espúria, sempre zelosa em sua missão de cravar ‘nãos’ em nosso Sim!
Mas comigo não, sou mais eu, sou um embriagado. E não se consegue colar
rótulos em um copo transbordante. Saiba garoto! Só se deixa apanhar o que é
extático, parado, inerte. Um corpo dançarino estará sempre livre! E longe... bem
longe das redes dos sóbrios.
***
35
36. Tito conseguira retomar agora amplamente seus sentidos, e mais que isto: já
sentia os torpores do champanha com que insistentemente Epaminondas
completava seu copo. Talvez até pelo efeito do álcool, agora se sentia à
vontade com seu raptor. Sentia mesmo até um sentimento de cumplicidade.
Achava que Epaminondas não estava tão errado naquilo que até então
expusera com sua língua arrastada, embora claramente compreensível. Avaliara
que o ex-policial fizera seu trabalho, e bem, ao tempo em que prestou seus
inestimáveis serviços à corporação. Também não era falso quando afirmava que
seus instintos assassinos foram de grande proveito seu, enquanto a pura
catarse de sua agressividade; e, todavia, também proveitoso a todos, porquanto
disto a sociedade também usufruiu. A franqueza enigmática de Epaminondas
lhe impressionava, não julgava que merecesse tão rapidamente a confiança de
alguém, principalmente daquele velho ex-policial. Mas tinha de admitir que
estava gostando do crédito que lhe era concedido. Mais que isso, aquilo lhe
conferia até uma certa importância, julgava ele. E o sentimento de medo agora
dava lugar a uma sensação de felicidade. Este é um momento etéreo, devo
segura-lo, pensou. E então tomou a iniciativa de erguer a taça para
Epaminondas – Estou feliz de estar aqui, veterano colega! – disse, com um
brilho verdadeiro nos olhos.
- Há, há,há... – gargalhou despreocupadamente o negrão -Ora, ora... quem
sabe você tenha algumas sombras que precisam ser visitadas! Quem sabe esta
minha humilde moradia não seja a porta de entrada para um mundo muito
maior? E que você não pode ver, por estar ainda sóbrio? Você me diz que está
feliz! Ora, ora... Não seria por causa do champanha? Do incenso? Do fogo
dançarino das velas? Dos rostos dos faunos risonhos que brotam das paredes?
De toda essa infinita escuridão que nos circunda? E deste seu amigo, que diz
coisas embriagadas?
- Acho que de tudo isso, estou feliz, realmente feliz! Há,há,há....
- Há,há,há... – Epaminondas riu junto com Tito, tornando mais hilária a cena. E
os dois então desabaram em muitos risos. Um não podia olhar a cara do outro
sem dar início a novas gargalhadas. Tito sentiu uma alegria extasiante, parecia
perceber, que um átimo de tempo poderia conter a eternidade. Talvez até, o
segredo da existência coubesse num momento fortuito. Estava feliz e nada
mais. Nada mais existia em sua volta, somente aquelas presenças fantásticas...
seu hilário anfitrião, os demônios risonhos, o fogo inquieto, o delicioso
incenso. Seus sentidos estavam em festa, nunca vivera algo parecido, era a
sensação da alegria mais pura e mais inebriante. Sem porquês, sem motivos
aparentes, sem responsabilidades, sem perguntas e sem respostas, só aquela
alegria etérea, - Acho que engoli o Céu! Há,há,há... – brincou então.
36
37. - Não é uma deliciosa ironia? – disse Epaminondas – dizer que engoliu o Céu,
quando se está nos portais do inferno? Há,há,há... Você me diverte muito
querido amigo! Curta! Curta este momento intenso! - ato contínuo, bateu
palmas, duas vezes, e a porta daquele estranho recinto abriu dando entrada a
duas mulheres fantásticas, de formas voluptuosas, que fizeram Tito estremecer
de prazer ante aquela visão. Estavam nuas, porém portavam máscaras
estranhas, com imensos chifres e intensa cabeleira; eram máscaras de demônios
semelhantes àqueles da parede. Começaram elas então a dançar numa
coreografia mansa e estranha; uma terceira pessoa entrou então no local, desta
vez um corpo masculino, mas com máscara semelhante e tocava flauta
enquanto saracoteava numa dança mais frenética. Uma das mulheres sentou no
colo de Epaminondas, que, para surpresa de Tito, havia colocado uma
amedrontadora máscara de demônio. Tito reparou também que Epaminondas
não vestia nada por baixo da sua capa negra, estava completamente nu. A
mulher começou então a manusear a imensa pica do negrão e este começou a
soltar gemidos de incontido prazer. Em seguida, a outra mulher sentou-se no
colo de Tito, que a princípio ficou meio atônito, mas, embriagado com aquela
situação cedeu com alegria àqueles deliciosos apelos eróticos. Caíram no chão.
O cheiro daquela pele eriçou seus sentidos, entregando-se ele então a um sexo
carnal e despreocupado, de puro tesão incontido, emitindo gemidos prazerosos
que se confundiam com os da companheira; esta, após arriar calças, montava
na posição ‘cavalinho’ no rapaz que se encontrava saborosamente vencido,
estirado no grosso tapete. Os gemidos de Epaminondas, abafados pela
máscara, eram cada vez mais lascivos e o sátiro continuava a tocar sua ruidosa
flauta; dançava circulando por todo o recinto. Acirrava sua música, conforme
pressentia o momento do gozo dos participantes da orgia. De repente
Epaminondas levantou-se de chofre e prensou a mulher contra a parede,
cavalgando-a por trás, com força e determinação, até atingir um gozo
alucinado; gritando, gemendo e bufando como um potro. Tito tesionou-se mais
ainda com aquela cena e no embalo, acabou-se numa alucinação deliciosa,
intoxicado pelo incenso e por aquela dança ardente das velas; o sátiro pulava
em volta com sua flauta em êxtase! – Que tesudo esse rapaz! – brincou
Epaminondas, trazendo à Terra um saciado Tito. Este reparou que o negrão
estava de pé ao seu lado, já sem a máscara, acompanhando o gran finale do
ato. O manto negro do anfitrião estava entreaberto, dando vista a Tito do
imenso membro pendurado e em proximidade temerosa. Tito então removeu
carinhosamente a moça, e procurou distancia segura. Epaminondas,
percebendo a preocupação do rapaz caiu em sonora gargalhada.
- Há,há,há... Meu assustado amiguinho! Mesmo que eu quisesse, não teria
fôlego para tanto! Portanto, que minhas amigas desfrutem de seus dotes físicos
37
38. e vice-versa, fique tranqüilo. Porra! Dou-lhe minhas boas vindas e você ainda
tem medo de mim, caralho! Que convidado difícil de agradar esse! – disse,
enquanto com um sinal, mandou que os demais se retirassem.
- Não, não... fique tranqüilo. – disse Tito ofegante - Apenas, tudo isto é muito
pra mim! Não estava preparado para estas emoções. É natural que fique um
pouco assustado, só isso. Estou extasiado, realmente extasiado, só posso lhe
agradecer por esta noite louca.
- Isso não é nada meu filho! – disse Epaminondas sentando-se em sua
poltrona, visivelmente cansado – vamos beber... é sua vez, sirva-nos de mais
champanha! O véio aqui está mortinho.
Tito serviu duas taças e entregou uma ao ex-policial, este então ergueu uma
libação.
- A Dionísio! Deus embriagado! A Sileno, sátiro safado! Às ariscas ninfas, com
seus aromas de mato e rio! Duendes e Egipãs! À flauta de Pã! Flauta da
embriaguez, da desmesura, dos sentidos em êxtase... deus ao qual as fronteiras
sóbrias que delimitam os seres seriam motivo de risos. Ah... que trepada
gostosa! Celebremos, meu amigo, celebremos! – Tito ergueu a taça a
Epaminondas em retribuição. Estava sereno e feliz, o efeito da embriaguez já se
fazia sentir. Sentou-se então no velho sofá, e observou seu extasiado
interlocutor sem o sinistro capuz, com o rosto à mostra com seus olhos de sapo
e a capa aberta sentado em seu ‘trono’. Ostentava várias correntes no pescoço
que serviam de amparo a mandalas estranhas e em quase todos os dedos das
mãos havia anéis das mais variadas formas e tamanhos. Estava com as pernas
despudoradamente abertas, quase que em exibicionismo desleixado e oferecia
uma visão desconfortável a Tito; o imenso pênis jazia desabusado tendo como
arrimo um gordo saco, imenso e negro. O rapaz evitou então, esbarrar os olhos
naquela região. Epaminondas, indiferente às comezinhas preocupações do
moço, prosseguia: - Ah... como eu gosto destas incursões orgásticas! É a famosa
blitz do prazer! Gostou? Criei este negócio para meu mais etéreo gozo. De
repente, estamos no caminho desse ditirambo frenético de sexo e alegria. Esses
deliciosos súcubos nos acham, nos usam, e partem com seu sátiro saltitante;
voyeur lascivo na excitação de sua flauta! Aí, celebro sua aparição bebendo
champanha e vinho. Posso querer mais que isto? Que tipo de papel eu teria de
representar, que personagem teria a força de me remover do meu mundo? A
sobriedade de qual função utilitarista teria o condão de me remover da
sombra? Diga-me, fazer o quê, sob a incidência da parca luz? Ou talvez, seus
apelos de consumo exerceriam sobre mim alguma influência? Há,há,há... essa é
boa! Por que eu abriria mão do meu paganismo; meu, só meu? Este delicioso
misticismo saído das minhas impressões digitais, para cair no canto das sereias
corporativas? Tão zelosas com os hábitos de seus clientes. Sabe garoto... hoje
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39. olho espantado para do que são capazes estes ‘deuses corporativos’.
Encaixotar as mentes com seus rótulos, seus comportamentos. Fabricando
gente em série. Até quando vendem ‘rebeldia’, deixam claro que estão
fabricando um ‘rebelde’. Você é ‘rebelde’ desde que consuma seus produtos...
há,há,há... me divirto muito! Ah... vocês sóbrios... há muito achei uma função
para vocês, a função de me divertirem com seus comportamentos
comprometidos, assépticos, consoantes. Vendem também ‘liberdade’,
há,há,há... me perdoe, mas não consigo parar de rir; ‘liberdade’ há,há,há... –
Epaminondas riu muito e então enxugou com as costas da mão as lágrimas
provocadas pelo riso – Ah, que deliciosa bebedeira! Não repare menino, é que
gosto de caçoar dos sóbrios. O que me restaria em relação a eles? Leva-los a
sério? Impossível. Acho até que eles hoje têm vergonha de seus dentes caninos.
Talvez estes lhes lembrem o animal desfalecido que são obrigados a carregar;
até acredito, ao contrário de Aristóteles, que esta é a única essência do ser
humano. E o que dizer de seus entretenimentos patéticos? E suas mídias? E o
pânico das grandes corporações de que em suas iniciativas persuasivas possa
vazar inadvertidamente um átomo de inteligência? E que dizer da Arte? Que
finalmente agora se encontra quase que totalmente sob o domínio dos sóbrios?
A Arte agora é sóbria, pobre, comprometida. Os sóbrios finalmente abriram
totalmente mão da Arte, acho que este era um velho sonho. Ela não precisa
mais expressar, não precisa mais exprimir beleza, não precisa mais ser a flor
nascida da criação. A que sobrou só precisa vender, nada mais. Que fim levou a
capacidade do homem de admirar-se perante as coisas, perante o próprio
homem? Foi relegada aos becos escuros da existência, onde o artista cria a
partir do próprio sangue, quem ousará molhar os dedos nesse sangue? Agora
tudo o que viceja sob a parca luz é o que se pode comercializar. Os sóbrios
sempre ‘toleraram’ a Arte. Detestam qualquer coisa que não possam reduzir ao
tamanho da palma de suas mãos; haja vista de como sempre interpretaram
seus textos religiosos. A metáfora, ou seja, a pérola contida na ostra, a
mensagem viva, é desprezada; porém, a forma como ela é dita, através das mais
variadas metonímias e polissemias, são consumidas ao pé da letra! Os sóbrios
só consomem a forma, posto, que são só forma. São incapazes de perceber que
a forma é a encarnação de uma mensagem mais profunda. As formas são
fantoches que ganham vida e movimento pela mão da Arte. Só que essa mão é
invisível ao sóbrio, portanto, este ficará somente com as formas e as
interpretará colando seus rótulos, principalmente os seus preferidos: os do
‘Bem’ e do ‘Mal’. Sendo assim, criam seu próprio Céu e Inferno, creio que
jamais poderiam viver sem estas instituições; precisam submeter-se a elas, os
sóbrios são altamente ‘morais’. Acho até que é só para isso que existem. Talvez
agora nesta porra de pós-modernidade, em que a economia de mercado feriu
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40. de morte o velho deus moral deles, comecem a bater cabeças gerando feridas
novas. Não imaginam, nem por sonho, que mundos possam existir fora de suas
redomas em forma de ‘Céu’. Ahhhh! como vivo bem fora do Céu! No orgasmo
constante da minha singularidade, um ébrio de mim, um homem das sombras!
Bem, assim penso eu. Ninguém é obrigado a concordar comigo, aliás, sempre
desconfio quando assentem muito rápido com minhas idéias. Esta é minha
leitura de mundo. Isto é tudo. Adoro opinar; mais que isto, preciso!
principalmente quando encontro um amigo tão atento. Tenho opinião,
portanto a exponho; claro, à medida que o silêncio de meu interlocutor permita.
Posto isto, eu pergunto: quem poderá me atirar uma pedra? Os ‘livres’?
há,há,há... portanto, querido amigo, que marche o exército de autômatos
sóbrios, que o façam com seus olhares mortos sob essa parca luz! Porque da
minha parte, prefiro observar tudo daqui da minha sombra, que é o meu lugar.
É na sombra que constatamos até onde nosso olhar alcança, porque somos
obrigados a enxergar emitindo nossa própria luz, a luz de nosso fogo, a luz
mais intensa do mundo, porque é nossa! Este é o lugar mais negro e mais belo
da face da Terra! Porque é meu! Meu paraíso, minha delícia! Bebamos, há muito
que celebrar! Celebremos! Celebremos a alegria de existir, de existir no único
lugar onde podemos realmente ser felizes... em nós mesmos! Não quero
seguidores, não quero ser exemplo de nada, não nasci para ser função de porra
nenhuma! Nasci para a embriaguez, a embriaguez de desabrochar em mim
mesmo! Celebremos! - Tito ergueu sua taça com incontida alegria, mas sentia o
peso da bebida sorvida em excesso, longe de tentar acompanhar o ritmo do
raptor-anfitrião Epaminondas. Sabia que não teria a menor chance de
permanecer consciente. Observou Epaminondas levantar-se, colocar novamente
sua máscara de demônio e iniciar uma dança em volta da pira cantando coisas
desencontradas, talvez num dialeto desconhecido. Os gestos e as palavras do
negrão foram confundindo-se suavemente em sua cabeça, as luzes vivas dos
círios concediam um pano de fundo que dançava amarelado, pontilhado por
infinitas escuridões; e foi numa destas que Tito mergulhou sua mente cansada,
para em seguida, carrega-la consigo e dissolver-se no nada.
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41. A FILOSOFIA DO DIABO
Cap 04 UM TIRO NA CHUVA
Tito abriu os olhos de supetão! Mirando o teto, sentiu um arrepio correr pela
espinha. Estava em casa, na segurança uterina de sua cama quente. Demorou
algum tempo para reorganizar suas idéias. Levou a mão lentamente à cabeça,
esta doía, doía de um jeito que ele conhecia. Dor de bebedeira! As imagens da
madrugada então lhe saltaram à mente. Aquilo não poderia ter sido um sonho,
não, não... sabia discernir sonho de realidade. Para ter certeza passou a mão no
pinto e cheirou, sim, cheiro de boceta! Uma estranha alegria então se apossou
dele, esteve com Epaminondas em seu esconderijo, tinha certeza; mais que isto,
fez uma bela festa com o negão! A cabeça doía, mas estava extasiado de
prazer, considerava uma distinção ter privado da intimidade do ‘velho diabo’,
concessão que deveria ser dada a bem poucos. Olhou no relógio, acordara na
sua hora de sempre, estava a tempo de assumir seu papel de ‘sóbrio’.
Levantou-se e cambaleou até o chuveiro, onde tomou uma ducha quente e não
contendo seus instintos de alegria, cantarolou. Após vestir-se, enquanto bebia
um copo cheio de café e comia uma fatia de pão preto, perdeu seu olhar pela
janela da cozinha enquanto divagava. Afinal quem era aquele homem? Porque
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