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A desincorporação e a crise da crença do oficialato: ocaso da Academia de
Polícia Militar do Ceará.

                                                                                     Leonardo Sá1

Este paper discute a desinstitucionalização da Academia de Polícia Militar
(APM) General Edgard Facó e seus efeitos sobre a desincorporação de um
habitus militarista na formação dos oficiais da Polícia Militar (PM) do Estado do
Ceará, no Nordeste do Brasil. Ao longo de décadas (1929-2008), a APM foi
responsável pela formação da hexis corporal dos cadetes por meio de rituais
de instituição militaristas. Com o fechamento da APM em 2008, revela-se uma
crise da crença neste modelo militarizado de controle social interno que afeta a
reprodução do quadro de oficiais como grupo corporado. A análise deste paper
está baseada em materiais de pesquisa de campo realizada pelo autor entre
1997 e 1999, acrescidos de novos materiais, como reportagens, artigos de
jornais e entrevistas realizadas após o fechamento da escola, recobrindo a
memória social sobre o período de uma década (1998-2008).

Parte-se da hipótese de que as relações sociais tanto passam por processos
de incorporação como de desincorporação do habitus. Se há processos de
distinção, há também, em momentos de crise, processos de indistinção. E a
indiferença, gerada pela crise de um grupo corporado, produz socialmente um
deslocamento dos meios simbólicos com que o grupo se fecha em si mesmo
perante o mundo social que lhe circunda. As próprias fronteiras simbólicas se
tornam mais instáveis e movediças. O habitus é um operador conceitual que
busca explicitar os princípios ativos de classificação e ação centrados nas
homologias entre um espaço de perspectivas e um espaço de posições sociais.
Por suas práticas discursivas e não-discursivas, os atores sociais investem-se
e são investidos de princípios incorporados que, por sua vez, são geradores
das suas práticas (BOURDIEU, 1993 e 1997). As formas de pensar, de se
organizar e de interagir são dispostas pelo habitus como uma naturalização do
simbolismo do grupo social em função de práticas de luta e competição pelo

1
 Pesquisador do Laboratório de Estudos da Violência e professor do Departamento de Ciências Sociais e
do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Ceará. Autor do livro Os filhos
do Estado: auto-imagem e disciplina na formação do oficial da Polícia Militar do Ceará (Rio de Janeiro:
Editora Relume Dumará, Núcleo de Antropologia da Política/Pronex, 2000).
poder que cristalizam valores sociais específicos para a renovação de um
ethos (ELIAS, 1997). Mas tudo o que pode ser incorporado, também pode ser
desincorporado. A diferenciação está atuando sob o risco da indiferenciação. A
opulência sob a pressão da miséria. A sociogênese das instituições diante do
ocaso de sua substancialidade institucional.

Na APM, os valores simbólicos do universo do oficialato eram constituídos
como princípios de visão e de ação, centrado na hexis corporal dos cadetes ao
longo do processo de formação. Tratava-se de uma unidade social específica,
entra várias especializadas no meio interno institucional da corporação, cujos
critérios de distribuição do poder, da estima e dos recursos, elaboravam uma
vida simbólica para o aprendiz de oficial, de modo metonímico, tendo em vista
o universo mais amplo onde a condição de oficial é decisiva para o
funcionamento das relações de poder. A APM revelava “a notável propensão
que as pessoas apresentam para projetar parte de sua auto-estima individual
nas unidades específicas, às quais estão ligadas por fortes sentimentos de
identidade e de participação” (ELIAS, 1998). Neste sentido, a APM era
concebida como o lugar de formação de “guardiães da sociedade”, onde
“honra”, “civismo”, “renúncia” e “bravura” compunham os elementos de uma
estratégia discursiva que se legitimava de modo hiperbólico por meio dos
juramentos solene pelo quais cadetes se tornavam oficiais proclamando
defender o Estado até com a imolação de sua própria vida. Esse tom de
doação máxima do valor da vida é acionado sempre para lembrar à
“sociedade” que os soldados são homens valorosos ao ponto de se
sacrificarem em nome da ordem, da segurança e do serviço ao qual atrelam
suas mais intensas identificações sociais.

Percurso da pesquisa

Em 1997-1999, realizei trabalho de campo na Academia de Polícia Militar
General Edgard Facó (APM), instituição de ensino responsável até 2008,
quando foi desativada, pela formação de oficiais da corporação policial militar
cearense. Além de fontes documentais, como editais, regulamentos, currículos,
jornais e revistas impressos pelo setor de ensino da corporação, monografias
escritas por policiais militares em processo de formação, dediquei um total de
42 dias de observação participante no quartel da Escola de Comandantes,
como também era nomeada a APM-CE, e onde tive ocasião de realizar uma
série de entrevistas em profundidade, gravadas, com meus interlocutores,
incluindo soldados, cadetes e oficiais da PM. Meu objetivo nesta pesquisa (Sá,
2002) foi analisar a produção social do oficial da Polícia Militar do Ceará (PM-
CE) a partir do contexto de interação cotidiana dos cadetes do Curso de
Formação de Oficiais (CFO), em torno das questões da auto-imagem e das
práticas disciplinares.

Minha condição de pesquisador frente à agenda temática específica da
formação policial militar tornou-se complexa e multifacetada ao longo de quase
duas décadas de pesquisas, num recorte temporal que coincide com minha
inserção, como pesquisador do Laboratório de Estudos da Violência da
Universidade Federal do Ceará. Se, de um lado, fazia pesquisa sobre o tema,
de outro, era convidado a opinar publicamente, em programas de mídia
televisiva e em reportagens e artigos de mídia impressa, oferecendo análises,
como “especialista da segurança pública”, sendo instado, sob a demanda dos
profissionais da mídia, a apresentar “soluções” para a melhoria da formação
policial militar. Isso se tornou uma dupla condição, e que é também um limite,
para a construção desse objeto de pesquisa. Todavia, foi esta proximidade-
distanciamento que possibilitou que eu estivesse em contato com meus
interlocutores de 1997-1999 ao longo de uma década, mantendo conversas
informais e ampliando o conhecimento do universo interno da corporação pelo
acesso que tive como professor de cursos de especialização oferecido pela
UFC para policiais de várias organizações. Uma vez que os pesquisadores do
LEV-UFC passaram a fazer parte da Rede Nacional de Altos Estudos em
Segurança Pública (RENAESP), podemos interagir com várias turmas
heterogêneas de policiais ao longo dos anos, gerando novos laços e acessos
de pesquisa.

Um evento inusitado de recepção

Em 2008, quando ministrei uma disciplina de Antropologia de Estado para uma
turma de policiais tive a grata surpresa de me deparar com capitães da PM que
tinham sido meus interlocutores durante a minha pesquisa em 1997-1999.
Policiais militares, policiais civis, guardas municipais, policiais rodoviários
federais, bombeiros militares compunham a turma. Entre os policiais militares,
havia soldados e oficiais reunidos numa mesma sala. Resolvi então realizar um
experimento de recepção do meu livro sobre a APM. Pedi que a turma lesse o
livro e produzisse uma resenha crítica, envolvendo apreciação também uma
apreciação pessoal sobre o que tinham lido. Este evento de recepção induzida,
envolvendo a leitura de uma etnografia por parte do universo investigado dez
anos após a realização da pesquisa de campo, gerou novos materiais que
acabaram por completar em vários pontos a documentação produzida
anteriormente. Foram os textos escritos nesse exercício em sala de aula e as
conversas informais que mantive com os policiais, dez anos após o início da
pesquisa, que tornaram possível me acercar das percepções dos atores sociais
a respeito dessa desincorporação e crise da crença em torno do fechamento da
APM. Esses materiais juntamente com a documentação da pesquisa anterior
estão na base das interpretações aventadas neste artigo.

Visão de rua ou visão de escola?

No final da década de 1990, as formas de pensar de cadetes, oficiais e
instrutores operavam com categorizações simbólicas reveladoras de suas
práticas profissionais. Sobre a dificuldade em fazer convergir aprendizagem no
espaço escolar e a informal no cotidiano das atividades de policiamento, eles
apresentavam uma divisão, uma barreira quase instransponível, entre a “visão
de escola” e a “visão de rua”, uma espécie de fronteira mágica. Havia ceticismo
e frustração em suas falas sobre isso. Investidos de uma visão de escola que
de pouco ou nada serviria na prática cotidiana das ruas, lamentavam as
deficiências relativas à falta de investimento no treinamento propriamente dito
que os tornariam competentes para a atividade de policiamento. Ter aulas de
tiro, por exemplo, era uma reivindicação constante, pois faltava munição na
Academia. Apesar disso, a maioria se orgulhava tenazmente dessa escola de
formação, onde nascia o futuro da PM, onde eram produzidos socialmente,
seus futuros oficiais, portanto, comandantes, a partir de um trabalho de
modelação do self de seus neófitos, os cadetes da PM, os futuros
comandantes.
A Academia de Polícia Militar Gal. Edgard Facó era um lugar central para a
construção do lugar moral do oficialato no seu grupo corporado, e também
como função derivada do seu orgulho e dignidade profissionais no espaço
social como agentes do campo estatal. Era um espaço de rituais de instituição,
onde os cadetes aprendiam a visão de mundo, o ethos, o habitus e o estilo de
vida considerado próprio à condição de oficial da PM. Era, enfim, um lugar de
construção de disciplina e da auto-imagem, o que possibilitava a inserção em
posições no campo do poder, envolvendo as dinâmicas de governo e das elites
burocráticas civis e militares do Estado.

Todavia, à época, meus entrevistados falavam de um choque de futuro. A
sociedade brasileira havia mudado, queria-se democrática. As exigências de
uma nova condição policial, para não dizer de uma nova polícia, pressionavam
as estruturas do ensino e da formação herdadas da década de 1970, baseadas
no militarismo e na noção de que o policial é um filho do Estado armado para
defendê-lo de seus inimigos. Não havia acordo sobre suas adesões ao novo
cenário e aos novos valores. De um lado, cadetes classificados por colegas
como “bacharéis de farda” tendiam a adotar discursos inovadores sobre as
exigências de uma polícia cidadã, defendendo a legalidade de um Estado
Democrático de Direito. Direitos humanos, mesmo entre estes, era um tema
tabu. Eles eram uma minoria. Expressavam-se em torno de expectativas de
democratização da vida social. Diziam-se capazes de formar uma nova
geração de oficiais que soubessem agir dentro da lei e que fossem capazes,
como comandantes, de “reintegrar a polícia à sociedade”. Falavam de uma
polícia que soubesse ser um “amigo” para a sociedade. O desejo de renovar,
de “poder tentar restaurar a imagem da polícia e uni-la de novo com a
sociedade, tentar mostrar a importância real de um policial militar para a
sociedade”. Nutriam a “esperança” de “viver a nova polícia militar que está
surgindo”, com “renovação”, “crescimento”, a fim de “limpar essa imagem suja
que tem a polícia”. Para além do militarismo, essa minoria de cadetes se
expressava com desejos de cidadania plena para os policiais militares,
alcançando isso em conjunto com a sociedade.

Mas, de outro lado, a maioria, havia os cadetes sob influência dos militaristas,
influenciados por oficiais operacionais extremamente dedicados à missão de
“preservar” a ordem pública, até mesmo com o sacrifício de suas próprias
vidas, como reza seu juramento sob o batismo das espadas, um ritual de
consagração dos três anos que os cadetes dedicavam em regime semi-
internamento ao Curso de Formação de Oficiais (CFO) do qual saiam como
aspirantes a oficiais.

Esse modelo hegemônico de oficial era o do homem de rua, do homem
operacional, que mostrava serviço no cumprimento de sua missão. Muito
dedicado, mais militarista, mais líder em relação à tropa, mais “vibrador” e mais
compromissado com as razões de Estado, leal às estruturas de governo.
Ótimos servidores, diziam os cadetes da minoria, mas não para o exercício do
policiamento numa sociedade democrática, completavam.

É preciso ressaltar que entre os bacharéis de farda também havia homens de
rua, policiais operacionais, respeitados pelos colegas por simultaneamente ter
formação intelectual elevada e competência policial no teatro de operações. O
que tornava a compreensão desse universo de educação policial militar mais
complexo eram categorizações simbólicas expressas pelos termos “matador” e
“moita”. Policiais matadores, como alguns jogadores de futebol matadores, são
aqueles que além de operacionais, de rua, são temidos, pois são guerreiros,
antes de soldados. Policiais moitas, como alguns professores da universidade,
ou alguns membros do judiciário, do legislativo e do executivo (ou seja, em
qualquer lugar), escondem-se da atividade-fim, apegando-se à atividade-meio,
obtendo benesses políticas através de sistema de apadrinhamento político.
Esses últimos são aqueles que não trabalham, apenas cuidam de suas
carreiras de prestígio junto às instâncias de poder e de mando. Atuam com
pistolões.

Ensino policial militar no Ceará

As formas oficiais de apresentação pública da APM expressam vários dos
sentidos e atribuições de valor dos quais tratei anteriormente, a partir da
oposição simbólica entre visão de rua e visão de escola, com que os oficiais
operam o princípio de divisão e de visão de suas “missões” na sociedade.
Assim, segundo as Normais Gerais de Ação da Academia pode visualizar
melhor a forma implícita desse regime discursivo:
A Academia de Polícia Militar General Edgard Facó, Unidade de Ensino de
Nível Superior da Polícia Militar do Ceará destina-se a habilitar, formar,
aperfeiçoar e especializar profissionais de segurança pública do Ceará e de
diversos outros estados da federação. Considerada como a Unidade Maior de
Ensino da Polícia Militar do Ceará pelos cursos que oferece em nível de
graduação, como também pelo garbo nos desfiles e pelo entusiasmo de seus
discentes em bem servir a sociedade, quem por ela passa, jamais esquecerá
os momentos aqui vividos. É na Academia que o jovem consegue se tornar
independente, com poder e capacidade para tomar suas próprias decisões.
Ensina-se ao(à) aluno(a) a praticar atos, a fazer e a dizer como se faz, e dar-se
acima de tudo o exemplo para o que é pregado, busca-se a eficácia como uma
constante dentro de um clima de camaradagem, cortesia e civilidade,
cultivando e incentivando a cooperação recíproca para um espírito de corpo
coeso (Estado do Ceará, 1999).

Depreende-se que a APM é concebida pelos oficiais de acordo com um padrão
duplo de atribuição de valor que investe sobre um de seus pólos constituintes
para a determinação do sentido da existência social da “Unidade Maior de
Ensino”. E isso de acordo com os contextos e situações sociais a partir das
quais as imagens simbólicas são manejadas. Se fizermos uma suspensão
metodológica dos contextos e situações de poder que tornam problemática a
manipulação do padrão simbólico, pode-se pensar que a Academia é
concebida como um espaço de “formação”, “qualificação”, “habilitação”,
“capacitação”,   enfim,   um    espaço     de       profissionalização,     onde     são
pedagogicamente produzidos os novos oficiais. Nesse nível da representação
simbólica   da   Academia,     os   profissionais     e   o   próprio     processo   de
profissionalização são percebidos como um mecanismo de qualidade superior
e de maior eficácia de controle sobre a conduta esperada da tropa de neófitos
que está destinada a se tornar o comanda das tropas da corporação. Todavia,
em outro nível dessa mesma representação simbólica, há a pressuposição de
que a Academia envolve a formação ética e a constituição do espírito de corpo
dos oficiais. Lugar de aprendizagem moral da disciplina e das “referências
castrenses” que compõem a perspectiva e atitudes do “militarismo”. Reivindica-
se a partir da Academia um lugar moral de dignidade própria para os oficiais da
PM, o que mascara o alto grau de rejeição e subordinação suportadas pelos
oficiais nas hierarquizações e lutas pelo poder que envolvem o campo estatal e
as estruturas de governo. Com a mesma intensidade que os oficiais da PM
reivindicam honra e dignidade nas hierarquias sociais, eles expressam
implicitamente a decepção de serem tratados pelas “elites” de governo e as
“elites” sociais, econômicas e burocráticas, do Poder Judiciário, por exemplo,
como oficialato da baixa estima social nas formas de categorização hierárquica
no campo do poder. Os oficiais sempre ressaltam que diante do “povo”, ou
seja, das camadas populares das periferias, onde a PM tem uma presença
permanente de vigilância e controle, um oficial da PM é muito estimado, mas,
em contrapartida, nos círculos sociais das camadas médias e altas, um oficial é
tratado como um empregado entre outros, da longa cadeia de gerentes de
baixo escalão. Isso gera uma forte decepção que parece se compensar pelas
reivindicações de honra e dignidade militar, como forças auxiliares do Exército.
O pertencimento militarista mascara a decepção do oficialato com um lugar
desqualificado nas hierarquias de poder do Estado. A farda e as patentes
constroem esse lugar moral que é assolado pelas práticas de poder de
humilhação contra os oficiais, praticadas pelos segmentos dominantes do
campo do poder. O militarismo tornou-se um problema de reconhecimento.

A promoção do recrutamento, instrução e treinamento dos quadros oficiais da
PM, para usar termos das categorizações simbólicas da instituição, ganhou
lugar na forma de uma história institucional que revela muito mais sobre os
marcadores de tempo e lugar da cosmologia policial militar do que sobre a
história enquanto disciplina acadêmica. A história social do ensino policial
militar no Ceará não tem mais do que sete décadas e confunde-se com o
processo de construção do campo estatal sob o período republicano, com seus
esforços e expectativas agenciados em torno das demandas por “reformas
policiais” justificada por discursos de poder centrados na categorização sobre a
insuficiência da ordem (GONÇALVES, 2011).

Diferentemente da própria corporação, cuja origem é socialmente reconhecida
pelos membros da PM como remontando ao ano de 1835, quando houve a
fundação da Força Policial da Província do Ceará, o ensino é reconhecido
como tendo uma origem bem mais recente, o ano de 1929. Deste modo,
seriam oito décadas entre a fundação e o fechamento da APM (BRASIL, 1990
e CASTELO, 1970).

O evento de fundação da APM em 1929 ganhou importância no contexto da
histórica mítica da corporação. A cada ano, o oficialato, reunido aos cadetes na
APM,    promovia   uma    celebração    desse    aniversário.   O   esforço   de
profissionalização e de educação dos quadros da organização a partir da
criação, em 1929, da Escola de Formação Profissional da Força Pública, foi
elaborado simbolicamente como uma das missões do oficialato. Afinal, como
informam trechos do Caderno de Orientação do Cadete, “a missão da escola
era de fornecer instrução literária e técnico-profissional aos homens que se
candidatavam ao primeiro posto do oficialato”. A Escola de 1929 foi fundada às
vésperas da Revolução de 1930, o que acarretaria por móvitos de ordem
político-revolucionária o seu fechamento entre 1931 e 1935. A Escola,
“acompanhando as transformações políticas que o país atravessava na época”,
esteve nesse período desativada. Foi somente “a partir da década de 40” que
“o ensino passou a ser de maneira regular e planificada”. A instituição de
ensino policial militar, reaberta desde 1934 com o nome de Escola de
Formação de Quadros. “Até 1946, não havia na corporação um quartel próprio
como centro de instrução; os cursos eram ministrados ora no quartel-general,
ora no quartel do Esquadrão de Cavalaria. Neste último, a instrução funcionou
por muito tempo”. Nessa ocasião, a instituição ganhou o nome de Grupamento
Escola, “desta feita com quartel próprio”, onde funcionava o Esquadrão de
Cavalaria. Em 1953, o nome do fundador da Escola de 1929, o então
comissionado coronel do exército Edgar Facó, “como uma forma de justa
homenagem”, passa a fazer parte do nome do Grupamento Escola. Em 1957, o
curso de formação de oficiais (CFO) fez “surgir uma muito brilhante página da
história da briosa corporação” (cf. HOLANDA, 1987 e 1995).

Ocorre que na década de 1970, durante o regime militar brasileiro, o Exército
promove a integração nacional do ensino policial militar sob a bandeira de que
policiais militares são forças auxiliares do Exército brasileiro. Foi nesse
contexto que nasceu o novo quartel exclusivo para a formação do oficialato, na
Academia de Polícia General Edgard Facó, onde realizei meu trabalho de
campo. Foi nesse período (1977-1997) que a APM tornou-se o principal
mecanismo de reprodução do “militarismo” na polícia militar do Ceará.
Gerações de cadetes foram formadas em regime de semi-internato, em regime
de quartel, com práticas de formação predominantemente militares, e com
pouquíssimos registros de profissionalização para a atividade policial
propriamente dita. Há quase um consenso dos próprios oficiais, numa visão
retrospectiva, sobre esse caráter excessivamente militarista da formação na
APM. As rotinas eram rotinas que mimetizavam o processo de formação de
oficiais do Exército brasileiro e estavam, durante longo período, sob
coordenação ou supervisão de oficiais do Exército. A Lei da Segurança
Nacional, a formação de uma milícia do Estado contra “distúrbios” e revoltas
populares, o treinamento para o combate contra-revolucionário às guerras de
guerrilhas, a formação de serviço secreto de espionagem e infiltração de
movimentos sociais e de partidos de esquerda, entre outras formas de
preparação para a guerra, conduziam os processos formativos dessas
gerações de cadetes.

Academia de Polícia Militar como lugar moral

Os jovens cadetes, treinados para serem futuros oficiais, são representados
como os “jovens fortes”, como os “futuros heróis”, que atuaram “na vanguarda
da ordem e do bem”. A APM é expressa pelo simbolismo máximo de ser o
lugar de uma “sagrada Unidade”, onde o sentido da honra pessoal está em
função da honra do Estado. Essa sagrada unidade é tida como sendo o “berço”
de uma “tradição” de combatentes do bem, da paz e da tranqüilidade que não
pode ser quebrada, sob pena de colocar em risco o próprio futuro da ordem
social. Há toda uma cosmologia quase escatológica nesses brados guerreiros
contidos pela captura de um aparelho de Estado. Sobre essas imagens
idealizadas, a Canção do Cadete tinha o que revelar a esse propósito:

Da polícia sou cadete / Levo em peito amor vibrante / Tenho muito para dar /
De minha força pujante / Sou de toda a construção / Pedaço de fé servil / Saga
da Corporação / E exemplo ao meu Brasil / Em mim nascendo a semente / Que
germina um ideal / O modelar lentamente / D’um Aspirante a Oficial / Já não
temendo fadigas / De estudos, exercícios vários / Sou semente do futuro /
Sendo exemplo, temo nada / E o futuro Oficial / Da ordem mantenedor / Se
orgulhará do Cadete / Que foi com muito valor.

Meus interlocutores mais velhos (e mais antigos na PM do Ceará), entre eles,
coronéis, tenentes-coronel e majores, se emocionam quando relembrar,
durante as entrevistas, os tempos de APM, os tempos de Cadete. O
investimento simbólico dessas canções e narrativas de celebração de si
perpassa o fluxo do desejo dos atores sociais a ponto de não mais querem
mudar de assunto, durante uma entrevista, quando estamos falando dos
tempos da escola.

A noção de responsabilidade, de assumir uma responsabilidade diferente da
assumida pelos atores sociais civis, é um tema central do modo de
pensamento do oficialato. Os cadetes expressavam a centralidade deste ponto
por meio de suas falas sobre ser oficial da PM. Diziam, por exemplo, que “ser
um oficial requer um comportamento adequado, tem que ser uma pessoa
comedida, de raciocínio rápido e certeiro”. Ou, ainda, que os cadetes “nós
somos espelhos para a juventude (...) você sente o peso da responsabilidade,
você realmente sente o peso da responsabilidade”. O estudante, cadete, busca
responder a esses apelos sociais da corporação para que ele seja o espelho da
“boa conduta”, da “conduta correta” e do “dever”, tanto do ponto de vista interno
quanto externo à corporação. Esses valores simbólicos eram construídos pelas
performances da aprendizagem dos cadetes, expressas pelas falas de
justificação perante a sociedade que envolve demandas por reconhecimento
social, como, por exemplo, a seguinte fala de um cadete:

Eu gostaria que houvesse um reconhecimento da sociedade pelo nosso
serviço, nós trabalhamos num serviço que é árduo, é difícil, vamos passar
muito tempo de nossas vidas resolvendo problemas dos outros, dormindo,
deitando e acordando com a violência do nosso lado, problemas (...) eu espero
isso, o reconhecimento da nossa sociedade, de um dia, não só a Polícia Militar,
mas que todas as profissões sejam dignas, de um homem brasileiro poder
bater no peito e poder ter segurança de levantar, levar toda sua família,
sustentar a família, dar educação, dar saúde, dar lazer, segurança, também, e
não viver de um mundo de ilusões, de preocupações, o que poderia ser, um
dia, viver na realidade.

O cotidiano na Academia era pensado pelos cadetes com um sentido monacal.
A Academia era representada como um “retiro de abnegação” e a carreira de
oficial da PM concebida simbolicamente como um “sacerdócio”. Na vida
cotidiana, os cadetes diziam viver um tipo de convento, onde o sentido da
responsabilidade funcionava como elemento de integração.

Os cadetes estavam envolvidos num circuito de responsabilidade onde sua
performance deveria ser “ilibada” e “perfeita”, porque eles formavam a “tropa de
elite” da corporação. Enquanto tropa de elite, eles eram cobrados para se
tornarem responsáveis diretos pelo prestígio da escola e, por conseguinte, da
corporação. A honra pessoal do cadete se liga à honra do oficialato. Uma
imagem prestigiosa da instituição dependia da qualidade da imagem pública
dos cadetes ofertados como vítimas de sacrifícios à sociedade, uma vez que a
oferta pública da possibilidade de se perder a vida era parte constituinte do
ritual de poder que produzia socialmente a condição do oficial após os anos de
formação na Academia.

Os oficiais da PM costumam ainda se identificar a partir das turmas
constituídas a que pertenceram nos tempos de Academia. Assim, os cadetes
funcionam como o campo de nascimento das lutas internas pelo poder e pela
competição de prestígio junto ao campo estatal do poder.

O fechamento da escola de comandantes

O encerramento das atividades da APM foi marcado por um profundo e
significativo silêncio. Se a Academia era toda essa significação que estamos
tentando evidenciar a partir do que apresentamos ao longo do paper, o que se
esperava seria uma grande manifestação de repúdio ao fechamento da
Academia. Mas não foi isso o que aconteceu diretamente. O silêncio, imposto
em grande parte pelo regime militar, e também pelos compromissos políticos
das alianças dos oficiais com o governantes do Estado, se deslocou para
outros eventos de indisciplina, envolvendo uma “greve branca”, marcada pelo
“cruzamento de braços” dos policiais militares frente à gestão da Segurança
Pública, até fazer cair o Secretário de Estado. E, também, pela insatisfação
constante que gerou novas formas de associativismo na PM, inclusive
resultando em perseguições denunciadas pelos policiais que tentaram se
organizar de modo sindical para reivindicar novos direitos de trabalho, renda e
qualidade de vida.

Os coronéis da PM não se opuseram abertamente e publicamente ao
fechamento da Unidade Maior, à Sagrada Unidade da APM. Isso nos pareceu
um componente significativo do que estamos chamando de crise da crença e
desincorporação do oficialato da PM, antes fortemente marcado pelos
pertencimentos próprios ao militarismo, oriundos do regime ditatorial militar
brasileiro.

Uma nova Academia foi proposta como forma de substituir a APM, mas desta
vez o problema afetou o conjunto das organizações policiais do Estado do
Ceará, já que a nova Academia, Academia Estadual de Segurança Pública
(AESP), foi concebida para realizar a integração das organizações num modo
de formação unificado, o que toca em dois pontos centrais da resistência das
corporações ao debate sobre desmilitarização da PM, integração das forças
policiais e unificação do trabalho policial, concebido como uma atividade
eminentemente civil e centrada em modelos preventivos de segurança cidadã.

Por ironia do destino, o diretor da recém-criada AESP, o prof. César Barreira,
presidente-fundador do Laboratório de Estudos da Violência, que foi meu
orientador de mestrado ao longo da pesquisa sobre a AMP, assumiu como
desafio   reorganizar a    significação política,   social e    simbólica      dessa
desincorporação da condição anterior do oficialato. Esse entrecruzamento
entre Universidade e Nova Academia tornou mais complexa a relação
anteriormente negociada entre os dois espaços institucionais. Nas palavras do
novo diretor da AESP:

A segurança faz parte dos direitos e garantias fundamentais contemplados na
Constituição: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer
natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a
inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade”. No art. 144, a segurança pública é destacada como dever do
Estado e responsabilidade de todos, sendo exercida para preservar a ordem
pública e a incolumidade das pessoas e do patrimônio. Essa perspectiva põe
como eixo fundamental a relação dos órgãos policiais com a população.
Poderia dizer que o policiamento comunitário ou de prevenção configura a
forma mais explícita, no campo da segurança, de garantir a vida. Para esta
atuação os policiais devem estar muito bem preparados com a aquisição de um
saber técnico, psicológico e humanista.

A experiência brasileira no ensino policial é ainda muito marcada por uma
ênfase em uma concepção jurídica exclusiva e uma doutrina de repressão
herdada desde a ditadura. Há, entretanto, experiências criativas em diversas
instituições de ensino policiais no Brasil, ganhando destaque a Academia
Nacional de Polícia em Brasília. A Rede Nacional de Ensino em Segurança
Publica (Renaesp), mediante convênios entre o Ministério da Justiça e as
Universidades brasileiras, incluindo a Universidade Federal do Ceará, tem
impulsionado uma experiência pedagógica inovadora.

Destaca aí um ensino multidisciplinar, baseado na concepção de uma
Segurança Cidadã, com respeito aos Direitos Humanos e à diversidade ética e
cultural. No Ceará está sendo implantada uma prática pioneira no país que terá
como missão unificar e integrar o ensino das instituições responsáveis pela
segurança pública. Os policiais cearenses devem ter uma capacitação inicial e
permanente, buscando uma formação, cada vez maior, humana e técnica, bem
como, na valorização profissional. Esta valorização passa a ser um princípio
pedagógico, contribuindo para recuperar a confiança popular e reduzir o risco
de vida a que estão submetidos os profissionais da segurança pública. É
preciso retomar um conjunto de saberes práticos que os membros dos órgãos
de Segurança foram acumulando ao longo do período democrático brasileiro.

As atuais questões sociais mundiais trazem desafios para o ensino policial, tais
como o tráfico de drogas, armas e de pessoas, ao lado das novas tecnologias
do mundo do crime. Ganham também destaque a inserção de jovens em
práticas sociais classificadas como delituosas ou mesmo criminosas, a
violência doméstica e de gênero, e as práticas homofóbicas. As transformações
ou complexidades do mundo contemporâneo demandam um novo modelo de
ensino policial.

Mantendo o espírito crítico, sem desconsiderar o legado das antigas academias
de polícia é possível renascer um ensino ancorado nos desafios das
sociedades modernas e orientado pelo direito fundamental de preservação do
bem maior que é a vida (BARREIRA, 2011).

Referências bibliográficas

BARREIRA, César. Educação policial em revista. Jornal O Povo,
http://www.opovo.com.br/app/opovo/opiniao/2011/04/09/noticiaopiniaojornal212
3617/educacao-policial-em-revista.shtml, 9 de abril de 2011.

BOURDIEU, P. De la Maison du roi à la raison d’État: un modèle de la genèse
du champ bureaucratique. Actes de la Recherche em Sciences Sociales,
118, 55-68, 1997.

__________. Esprit d’État: genèse et structure du champ bureaucratique.
Actes de la Recherche em Sciences Sociales, 96/97, 49-62, 1993.

BRASIL, M. G. M. A genealogia da instituição policial no Brasil e no Ceará.
Fortaleza: Dissertação de Mestrado, PPGS-UFC, 1990.

CASTELO, P. A. O ensino militar. In: História do ensino no Ceará. Fortaleza:
Imprensa Oficial, 1970.

ELIAS, Norbert. Envolvimento e alienação. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,
1998.

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séculos XIX e XX. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 1997.

HOLANDA, J. X. Polícia Militar do Ceará: origem, memória e projeção.
Fortaleza: Imprensa Oficial, vol. II, 1995.

_________. Polícia Militar do Ceará: origem, memória e projeção. Fortaleza:
Imprensa Oficial, vol. I 1987.
SÁ, Leonardo Damasceno de. Os filhos do estado: auto-imagem e disciplina
na formação dos oficiais da Polícia Militar do Ceará. Rio de Janeiro: Relume
Dumará: NUAP, 2002.

TAVARES DOS SANTOS, José Vicente. A arma e a flor: formação da
organização policial, consenso e violência. Tempo Social: Revista de
Sociologia da USP, Vol. 9, n.1, 1997.

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O ocaso da Academia de Polícia Militar e a crise da identidade corporativa dos oficiais

  • 1. A desincorporação e a crise da crença do oficialato: ocaso da Academia de Polícia Militar do Ceará. Leonardo Sá1 Este paper discute a desinstitucionalização da Academia de Polícia Militar (APM) General Edgard Facó e seus efeitos sobre a desincorporação de um habitus militarista na formação dos oficiais da Polícia Militar (PM) do Estado do Ceará, no Nordeste do Brasil. Ao longo de décadas (1929-2008), a APM foi responsável pela formação da hexis corporal dos cadetes por meio de rituais de instituição militaristas. Com o fechamento da APM em 2008, revela-se uma crise da crença neste modelo militarizado de controle social interno que afeta a reprodução do quadro de oficiais como grupo corporado. A análise deste paper está baseada em materiais de pesquisa de campo realizada pelo autor entre 1997 e 1999, acrescidos de novos materiais, como reportagens, artigos de jornais e entrevistas realizadas após o fechamento da escola, recobrindo a memória social sobre o período de uma década (1998-2008). Parte-se da hipótese de que as relações sociais tanto passam por processos de incorporação como de desincorporação do habitus. Se há processos de distinção, há também, em momentos de crise, processos de indistinção. E a indiferença, gerada pela crise de um grupo corporado, produz socialmente um deslocamento dos meios simbólicos com que o grupo se fecha em si mesmo perante o mundo social que lhe circunda. As próprias fronteiras simbólicas se tornam mais instáveis e movediças. O habitus é um operador conceitual que busca explicitar os princípios ativos de classificação e ação centrados nas homologias entre um espaço de perspectivas e um espaço de posições sociais. Por suas práticas discursivas e não-discursivas, os atores sociais investem-se e são investidos de princípios incorporados que, por sua vez, são geradores das suas práticas (BOURDIEU, 1993 e 1997). As formas de pensar, de se organizar e de interagir são dispostas pelo habitus como uma naturalização do simbolismo do grupo social em função de práticas de luta e competição pelo 1 Pesquisador do Laboratório de Estudos da Violência e professor do Departamento de Ciências Sociais e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Ceará. Autor do livro Os filhos do Estado: auto-imagem e disciplina na formação do oficial da Polícia Militar do Ceará (Rio de Janeiro: Editora Relume Dumará, Núcleo de Antropologia da Política/Pronex, 2000).
  • 2. poder que cristalizam valores sociais específicos para a renovação de um ethos (ELIAS, 1997). Mas tudo o que pode ser incorporado, também pode ser desincorporado. A diferenciação está atuando sob o risco da indiferenciação. A opulência sob a pressão da miséria. A sociogênese das instituições diante do ocaso de sua substancialidade institucional. Na APM, os valores simbólicos do universo do oficialato eram constituídos como princípios de visão e de ação, centrado na hexis corporal dos cadetes ao longo do processo de formação. Tratava-se de uma unidade social específica, entra várias especializadas no meio interno institucional da corporação, cujos critérios de distribuição do poder, da estima e dos recursos, elaboravam uma vida simbólica para o aprendiz de oficial, de modo metonímico, tendo em vista o universo mais amplo onde a condição de oficial é decisiva para o funcionamento das relações de poder. A APM revelava “a notável propensão que as pessoas apresentam para projetar parte de sua auto-estima individual nas unidades específicas, às quais estão ligadas por fortes sentimentos de identidade e de participação” (ELIAS, 1998). Neste sentido, a APM era concebida como o lugar de formação de “guardiães da sociedade”, onde “honra”, “civismo”, “renúncia” e “bravura” compunham os elementos de uma estratégia discursiva que se legitimava de modo hiperbólico por meio dos juramentos solene pelo quais cadetes se tornavam oficiais proclamando defender o Estado até com a imolação de sua própria vida. Esse tom de doação máxima do valor da vida é acionado sempre para lembrar à “sociedade” que os soldados são homens valorosos ao ponto de se sacrificarem em nome da ordem, da segurança e do serviço ao qual atrelam suas mais intensas identificações sociais. Percurso da pesquisa Em 1997-1999, realizei trabalho de campo na Academia de Polícia Militar General Edgard Facó (APM), instituição de ensino responsável até 2008, quando foi desativada, pela formação de oficiais da corporação policial militar cearense. Além de fontes documentais, como editais, regulamentos, currículos, jornais e revistas impressos pelo setor de ensino da corporação, monografias escritas por policiais militares em processo de formação, dediquei um total de
  • 3. 42 dias de observação participante no quartel da Escola de Comandantes, como também era nomeada a APM-CE, e onde tive ocasião de realizar uma série de entrevistas em profundidade, gravadas, com meus interlocutores, incluindo soldados, cadetes e oficiais da PM. Meu objetivo nesta pesquisa (Sá, 2002) foi analisar a produção social do oficial da Polícia Militar do Ceará (PM- CE) a partir do contexto de interação cotidiana dos cadetes do Curso de Formação de Oficiais (CFO), em torno das questões da auto-imagem e das práticas disciplinares. Minha condição de pesquisador frente à agenda temática específica da formação policial militar tornou-se complexa e multifacetada ao longo de quase duas décadas de pesquisas, num recorte temporal que coincide com minha inserção, como pesquisador do Laboratório de Estudos da Violência da Universidade Federal do Ceará. Se, de um lado, fazia pesquisa sobre o tema, de outro, era convidado a opinar publicamente, em programas de mídia televisiva e em reportagens e artigos de mídia impressa, oferecendo análises, como “especialista da segurança pública”, sendo instado, sob a demanda dos profissionais da mídia, a apresentar “soluções” para a melhoria da formação policial militar. Isso se tornou uma dupla condição, e que é também um limite, para a construção desse objeto de pesquisa. Todavia, foi esta proximidade- distanciamento que possibilitou que eu estivesse em contato com meus interlocutores de 1997-1999 ao longo de uma década, mantendo conversas informais e ampliando o conhecimento do universo interno da corporação pelo acesso que tive como professor de cursos de especialização oferecido pela UFC para policiais de várias organizações. Uma vez que os pesquisadores do LEV-UFC passaram a fazer parte da Rede Nacional de Altos Estudos em Segurança Pública (RENAESP), podemos interagir com várias turmas heterogêneas de policiais ao longo dos anos, gerando novos laços e acessos de pesquisa. Um evento inusitado de recepção Em 2008, quando ministrei uma disciplina de Antropologia de Estado para uma turma de policiais tive a grata surpresa de me deparar com capitães da PM que tinham sido meus interlocutores durante a minha pesquisa em 1997-1999.
  • 4. Policiais militares, policiais civis, guardas municipais, policiais rodoviários federais, bombeiros militares compunham a turma. Entre os policiais militares, havia soldados e oficiais reunidos numa mesma sala. Resolvi então realizar um experimento de recepção do meu livro sobre a APM. Pedi que a turma lesse o livro e produzisse uma resenha crítica, envolvendo apreciação também uma apreciação pessoal sobre o que tinham lido. Este evento de recepção induzida, envolvendo a leitura de uma etnografia por parte do universo investigado dez anos após a realização da pesquisa de campo, gerou novos materiais que acabaram por completar em vários pontos a documentação produzida anteriormente. Foram os textos escritos nesse exercício em sala de aula e as conversas informais que mantive com os policiais, dez anos após o início da pesquisa, que tornaram possível me acercar das percepções dos atores sociais a respeito dessa desincorporação e crise da crença em torno do fechamento da APM. Esses materiais juntamente com a documentação da pesquisa anterior estão na base das interpretações aventadas neste artigo. Visão de rua ou visão de escola? No final da década de 1990, as formas de pensar de cadetes, oficiais e instrutores operavam com categorizações simbólicas reveladoras de suas práticas profissionais. Sobre a dificuldade em fazer convergir aprendizagem no espaço escolar e a informal no cotidiano das atividades de policiamento, eles apresentavam uma divisão, uma barreira quase instransponível, entre a “visão de escola” e a “visão de rua”, uma espécie de fronteira mágica. Havia ceticismo e frustração em suas falas sobre isso. Investidos de uma visão de escola que de pouco ou nada serviria na prática cotidiana das ruas, lamentavam as deficiências relativas à falta de investimento no treinamento propriamente dito que os tornariam competentes para a atividade de policiamento. Ter aulas de tiro, por exemplo, era uma reivindicação constante, pois faltava munição na Academia. Apesar disso, a maioria se orgulhava tenazmente dessa escola de formação, onde nascia o futuro da PM, onde eram produzidos socialmente, seus futuros oficiais, portanto, comandantes, a partir de um trabalho de modelação do self de seus neófitos, os cadetes da PM, os futuros comandantes.
  • 5. A Academia de Polícia Militar Gal. Edgard Facó era um lugar central para a construção do lugar moral do oficialato no seu grupo corporado, e também como função derivada do seu orgulho e dignidade profissionais no espaço social como agentes do campo estatal. Era um espaço de rituais de instituição, onde os cadetes aprendiam a visão de mundo, o ethos, o habitus e o estilo de vida considerado próprio à condição de oficial da PM. Era, enfim, um lugar de construção de disciplina e da auto-imagem, o que possibilitava a inserção em posições no campo do poder, envolvendo as dinâmicas de governo e das elites burocráticas civis e militares do Estado. Todavia, à época, meus entrevistados falavam de um choque de futuro. A sociedade brasileira havia mudado, queria-se democrática. As exigências de uma nova condição policial, para não dizer de uma nova polícia, pressionavam as estruturas do ensino e da formação herdadas da década de 1970, baseadas no militarismo e na noção de que o policial é um filho do Estado armado para defendê-lo de seus inimigos. Não havia acordo sobre suas adesões ao novo cenário e aos novos valores. De um lado, cadetes classificados por colegas como “bacharéis de farda” tendiam a adotar discursos inovadores sobre as exigências de uma polícia cidadã, defendendo a legalidade de um Estado Democrático de Direito. Direitos humanos, mesmo entre estes, era um tema tabu. Eles eram uma minoria. Expressavam-se em torno de expectativas de democratização da vida social. Diziam-se capazes de formar uma nova geração de oficiais que soubessem agir dentro da lei e que fossem capazes, como comandantes, de “reintegrar a polícia à sociedade”. Falavam de uma polícia que soubesse ser um “amigo” para a sociedade. O desejo de renovar, de “poder tentar restaurar a imagem da polícia e uni-la de novo com a sociedade, tentar mostrar a importância real de um policial militar para a sociedade”. Nutriam a “esperança” de “viver a nova polícia militar que está surgindo”, com “renovação”, “crescimento”, a fim de “limpar essa imagem suja que tem a polícia”. Para além do militarismo, essa minoria de cadetes se expressava com desejos de cidadania plena para os policiais militares, alcançando isso em conjunto com a sociedade. Mas, de outro lado, a maioria, havia os cadetes sob influência dos militaristas, influenciados por oficiais operacionais extremamente dedicados à missão de
  • 6. “preservar” a ordem pública, até mesmo com o sacrifício de suas próprias vidas, como reza seu juramento sob o batismo das espadas, um ritual de consagração dos três anos que os cadetes dedicavam em regime semi- internamento ao Curso de Formação de Oficiais (CFO) do qual saiam como aspirantes a oficiais. Esse modelo hegemônico de oficial era o do homem de rua, do homem operacional, que mostrava serviço no cumprimento de sua missão. Muito dedicado, mais militarista, mais líder em relação à tropa, mais “vibrador” e mais compromissado com as razões de Estado, leal às estruturas de governo. Ótimos servidores, diziam os cadetes da minoria, mas não para o exercício do policiamento numa sociedade democrática, completavam. É preciso ressaltar que entre os bacharéis de farda também havia homens de rua, policiais operacionais, respeitados pelos colegas por simultaneamente ter formação intelectual elevada e competência policial no teatro de operações. O que tornava a compreensão desse universo de educação policial militar mais complexo eram categorizações simbólicas expressas pelos termos “matador” e “moita”. Policiais matadores, como alguns jogadores de futebol matadores, são aqueles que além de operacionais, de rua, são temidos, pois são guerreiros, antes de soldados. Policiais moitas, como alguns professores da universidade, ou alguns membros do judiciário, do legislativo e do executivo (ou seja, em qualquer lugar), escondem-se da atividade-fim, apegando-se à atividade-meio, obtendo benesses políticas através de sistema de apadrinhamento político. Esses últimos são aqueles que não trabalham, apenas cuidam de suas carreiras de prestígio junto às instâncias de poder e de mando. Atuam com pistolões. Ensino policial militar no Ceará As formas oficiais de apresentação pública da APM expressam vários dos sentidos e atribuições de valor dos quais tratei anteriormente, a partir da oposição simbólica entre visão de rua e visão de escola, com que os oficiais operam o princípio de divisão e de visão de suas “missões” na sociedade. Assim, segundo as Normais Gerais de Ação da Academia pode visualizar melhor a forma implícita desse regime discursivo:
  • 7. A Academia de Polícia Militar General Edgard Facó, Unidade de Ensino de Nível Superior da Polícia Militar do Ceará destina-se a habilitar, formar, aperfeiçoar e especializar profissionais de segurança pública do Ceará e de diversos outros estados da federação. Considerada como a Unidade Maior de Ensino da Polícia Militar do Ceará pelos cursos que oferece em nível de graduação, como também pelo garbo nos desfiles e pelo entusiasmo de seus discentes em bem servir a sociedade, quem por ela passa, jamais esquecerá os momentos aqui vividos. É na Academia que o jovem consegue se tornar independente, com poder e capacidade para tomar suas próprias decisões. Ensina-se ao(à) aluno(a) a praticar atos, a fazer e a dizer como se faz, e dar-se acima de tudo o exemplo para o que é pregado, busca-se a eficácia como uma constante dentro de um clima de camaradagem, cortesia e civilidade, cultivando e incentivando a cooperação recíproca para um espírito de corpo coeso (Estado do Ceará, 1999). Depreende-se que a APM é concebida pelos oficiais de acordo com um padrão duplo de atribuição de valor que investe sobre um de seus pólos constituintes para a determinação do sentido da existência social da “Unidade Maior de Ensino”. E isso de acordo com os contextos e situações sociais a partir das quais as imagens simbólicas são manejadas. Se fizermos uma suspensão metodológica dos contextos e situações de poder que tornam problemática a manipulação do padrão simbólico, pode-se pensar que a Academia é concebida como um espaço de “formação”, “qualificação”, “habilitação”, “capacitação”, enfim, um espaço de profissionalização, onde são pedagogicamente produzidos os novos oficiais. Nesse nível da representação simbólica da Academia, os profissionais e o próprio processo de profissionalização são percebidos como um mecanismo de qualidade superior e de maior eficácia de controle sobre a conduta esperada da tropa de neófitos que está destinada a se tornar o comanda das tropas da corporação. Todavia, em outro nível dessa mesma representação simbólica, há a pressuposição de que a Academia envolve a formação ética e a constituição do espírito de corpo dos oficiais. Lugar de aprendizagem moral da disciplina e das “referências castrenses” que compõem a perspectiva e atitudes do “militarismo”. Reivindica- se a partir da Academia um lugar moral de dignidade própria para os oficiais da
  • 8. PM, o que mascara o alto grau de rejeição e subordinação suportadas pelos oficiais nas hierarquizações e lutas pelo poder que envolvem o campo estatal e as estruturas de governo. Com a mesma intensidade que os oficiais da PM reivindicam honra e dignidade nas hierarquias sociais, eles expressam implicitamente a decepção de serem tratados pelas “elites” de governo e as “elites” sociais, econômicas e burocráticas, do Poder Judiciário, por exemplo, como oficialato da baixa estima social nas formas de categorização hierárquica no campo do poder. Os oficiais sempre ressaltam que diante do “povo”, ou seja, das camadas populares das periferias, onde a PM tem uma presença permanente de vigilância e controle, um oficial da PM é muito estimado, mas, em contrapartida, nos círculos sociais das camadas médias e altas, um oficial é tratado como um empregado entre outros, da longa cadeia de gerentes de baixo escalão. Isso gera uma forte decepção que parece se compensar pelas reivindicações de honra e dignidade militar, como forças auxiliares do Exército. O pertencimento militarista mascara a decepção do oficialato com um lugar desqualificado nas hierarquias de poder do Estado. A farda e as patentes constroem esse lugar moral que é assolado pelas práticas de poder de humilhação contra os oficiais, praticadas pelos segmentos dominantes do campo do poder. O militarismo tornou-se um problema de reconhecimento. A promoção do recrutamento, instrução e treinamento dos quadros oficiais da PM, para usar termos das categorizações simbólicas da instituição, ganhou lugar na forma de uma história institucional que revela muito mais sobre os marcadores de tempo e lugar da cosmologia policial militar do que sobre a história enquanto disciplina acadêmica. A história social do ensino policial militar no Ceará não tem mais do que sete décadas e confunde-se com o processo de construção do campo estatal sob o período republicano, com seus esforços e expectativas agenciados em torno das demandas por “reformas policiais” justificada por discursos de poder centrados na categorização sobre a insuficiência da ordem (GONÇALVES, 2011). Diferentemente da própria corporação, cuja origem é socialmente reconhecida pelos membros da PM como remontando ao ano de 1835, quando houve a fundação da Força Policial da Província do Ceará, o ensino é reconhecido como tendo uma origem bem mais recente, o ano de 1929. Deste modo,
  • 9. seriam oito décadas entre a fundação e o fechamento da APM (BRASIL, 1990 e CASTELO, 1970). O evento de fundação da APM em 1929 ganhou importância no contexto da histórica mítica da corporação. A cada ano, o oficialato, reunido aos cadetes na APM, promovia uma celebração desse aniversário. O esforço de profissionalização e de educação dos quadros da organização a partir da criação, em 1929, da Escola de Formação Profissional da Força Pública, foi elaborado simbolicamente como uma das missões do oficialato. Afinal, como informam trechos do Caderno de Orientação do Cadete, “a missão da escola era de fornecer instrução literária e técnico-profissional aos homens que se candidatavam ao primeiro posto do oficialato”. A Escola de 1929 foi fundada às vésperas da Revolução de 1930, o que acarretaria por móvitos de ordem político-revolucionária o seu fechamento entre 1931 e 1935. A Escola, “acompanhando as transformações políticas que o país atravessava na época”, esteve nesse período desativada. Foi somente “a partir da década de 40” que “o ensino passou a ser de maneira regular e planificada”. A instituição de ensino policial militar, reaberta desde 1934 com o nome de Escola de Formação de Quadros. “Até 1946, não havia na corporação um quartel próprio como centro de instrução; os cursos eram ministrados ora no quartel-general, ora no quartel do Esquadrão de Cavalaria. Neste último, a instrução funcionou por muito tempo”. Nessa ocasião, a instituição ganhou o nome de Grupamento Escola, “desta feita com quartel próprio”, onde funcionava o Esquadrão de Cavalaria. Em 1953, o nome do fundador da Escola de 1929, o então comissionado coronel do exército Edgar Facó, “como uma forma de justa homenagem”, passa a fazer parte do nome do Grupamento Escola. Em 1957, o curso de formação de oficiais (CFO) fez “surgir uma muito brilhante página da história da briosa corporação” (cf. HOLANDA, 1987 e 1995). Ocorre que na década de 1970, durante o regime militar brasileiro, o Exército promove a integração nacional do ensino policial militar sob a bandeira de que policiais militares são forças auxiliares do Exército brasileiro. Foi nesse contexto que nasceu o novo quartel exclusivo para a formação do oficialato, na Academia de Polícia General Edgard Facó, onde realizei meu trabalho de campo. Foi nesse período (1977-1997) que a APM tornou-se o principal
  • 10. mecanismo de reprodução do “militarismo” na polícia militar do Ceará. Gerações de cadetes foram formadas em regime de semi-internato, em regime de quartel, com práticas de formação predominantemente militares, e com pouquíssimos registros de profissionalização para a atividade policial propriamente dita. Há quase um consenso dos próprios oficiais, numa visão retrospectiva, sobre esse caráter excessivamente militarista da formação na APM. As rotinas eram rotinas que mimetizavam o processo de formação de oficiais do Exército brasileiro e estavam, durante longo período, sob coordenação ou supervisão de oficiais do Exército. A Lei da Segurança Nacional, a formação de uma milícia do Estado contra “distúrbios” e revoltas populares, o treinamento para o combate contra-revolucionário às guerras de guerrilhas, a formação de serviço secreto de espionagem e infiltração de movimentos sociais e de partidos de esquerda, entre outras formas de preparação para a guerra, conduziam os processos formativos dessas gerações de cadetes. Academia de Polícia Militar como lugar moral Os jovens cadetes, treinados para serem futuros oficiais, são representados como os “jovens fortes”, como os “futuros heróis”, que atuaram “na vanguarda da ordem e do bem”. A APM é expressa pelo simbolismo máximo de ser o lugar de uma “sagrada Unidade”, onde o sentido da honra pessoal está em função da honra do Estado. Essa sagrada unidade é tida como sendo o “berço” de uma “tradição” de combatentes do bem, da paz e da tranqüilidade que não pode ser quebrada, sob pena de colocar em risco o próprio futuro da ordem social. Há toda uma cosmologia quase escatológica nesses brados guerreiros contidos pela captura de um aparelho de Estado. Sobre essas imagens idealizadas, a Canção do Cadete tinha o que revelar a esse propósito: Da polícia sou cadete / Levo em peito amor vibrante / Tenho muito para dar / De minha força pujante / Sou de toda a construção / Pedaço de fé servil / Saga da Corporação / E exemplo ao meu Brasil / Em mim nascendo a semente / Que germina um ideal / O modelar lentamente / D’um Aspirante a Oficial / Já não temendo fadigas / De estudos, exercícios vários / Sou semente do futuro /
  • 11. Sendo exemplo, temo nada / E o futuro Oficial / Da ordem mantenedor / Se orgulhará do Cadete / Que foi com muito valor. Meus interlocutores mais velhos (e mais antigos na PM do Ceará), entre eles, coronéis, tenentes-coronel e majores, se emocionam quando relembrar, durante as entrevistas, os tempos de APM, os tempos de Cadete. O investimento simbólico dessas canções e narrativas de celebração de si perpassa o fluxo do desejo dos atores sociais a ponto de não mais querem mudar de assunto, durante uma entrevista, quando estamos falando dos tempos da escola. A noção de responsabilidade, de assumir uma responsabilidade diferente da assumida pelos atores sociais civis, é um tema central do modo de pensamento do oficialato. Os cadetes expressavam a centralidade deste ponto por meio de suas falas sobre ser oficial da PM. Diziam, por exemplo, que “ser um oficial requer um comportamento adequado, tem que ser uma pessoa comedida, de raciocínio rápido e certeiro”. Ou, ainda, que os cadetes “nós somos espelhos para a juventude (...) você sente o peso da responsabilidade, você realmente sente o peso da responsabilidade”. O estudante, cadete, busca responder a esses apelos sociais da corporação para que ele seja o espelho da “boa conduta”, da “conduta correta” e do “dever”, tanto do ponto de vista interno quanto externo à corporação. Esses valores simbólicos eram construídos pelas performances da aprendizagem dos cadetes, expressas pelas falas de justificação perante a sociedade que envolve demandas por reconhecimento social, como, por exemplo, a seguinte fala de um cadete: Eu gostaria que houvesse um reconhecimento da sociedade pelo nosso serviço, nós trabalhamos num serviço que é árduo, é difícil, vamos passar muito tempo de nossas vidas resolvendo problemas dos outros, dormindo, deitando e acordando com a violência do nosso lado, problemas (...) eu espero isso, o reconhecimento da nossa sociedade, de um dia, não só a Polícia Militar, mas que todas as profissões sejam dignas, de um homem brasileiro poder bater no peito e poder ter segurança de levantar, levar toda sua família, sustentar a família, dar educação, dar saúde, dar lazer, segurança, também, e
  • 12. não viver de um mundo de ilusões, de preocupações, o que poderia ser, um dia, viver na realidade. O cotidiano na Academia era pensado pelos cadetes com um sentido monacal. A Academia era representada como um “retiro de abnegação” e a carreira de oficial da PM concebida simbolicamente como um “sacerdócio”. Na vida cotidiana, os cadetes diziam viver um tipo de convento, onde o sentido da responsabilidade funcionava como elemento de integração. Os cadetes estavam envolvidos num circuito de responsabilidade onde sua performance deveria ser “ilibada” e “perfeita”, porque eles formavam a “tropa de elite” da corporação. Enquanto tropa de elite, eles eram cobrados para se tornarem responsáveis diretos pelo prestígio da escola e, por conseguinte, da corporação. A honra pessoal do cadete se liga à honra do oficialato. Uma imagem prestigiosa da instituição dependia da qualidade da imagem pública dos cadetes ofertados como vítimas de sacrifícios à sociedade, uma vez que a oferta pública da possibilidade de se perder a vida era parte constituinte do ritual de poder que produzia socialmente a condição do oficial após os anos de formação na Academia. Os oficiais da PM costumam ainda se identificar a partir das turmas constituídas a que pertenceram nos tempos de Academia. Assim, os cadetes funcionam como o campo de nascimento das lutas internas pelo poder e pela competição de prestígio junto ao campo estatal do poder. O fechamento da escola de comandantes O encerramento das atividades da APM foi marcado por um profundo e significativo silêncio. Se a Academia era toda essa significação que estamos tentando evidenciar a partir do que apresentamos ao longo do paper, o que se esperava seria uma grande manifestação de repúdio ao fechamento da Academia. Mas não foi isso o que aconteceu diretamente. O silêncio, imposto em grande parte pelo regime militar, e também pelos compromissos políticos das alianças dos oficiais com o governantes do Estado, se deslocou para outros eventos de indisciplina, envolvendo uma “greve branca”, marcada pelo “cruzamento de braços” dos policiais militares frente à gestão da Segurança
  • 13. Pública, até fazer cair o Secretário de Estado. E, também, pela insatisfação constante que gerou novas formas de associativismo na PM, inclusive resultando em perseguições denunciadas pelos policiais que tentaram se organizar de modo sindical para reivindicar novos direitos de trabalho, renda e qualidade de vida. Os coronéis da PM não se opuseram abertamente e publicamente ao fechamento da Unidade Maior, à Sagrada Unidade da APM. Isso nos pareceu um componente significativo do que estamos chamando de crise da crença e desincorporação do oficialato da PM, antes fortemente marcado pelos pertencimentos próprios ao militarismo, oriundos do regime ditatorial militar brasileiro. Uma nova Academia foi proposta como forma de substituir a APM, mas desta vez o problema afetou o conjunto das organizações policiais do Estado do Ceará, já que a nova Academia, Academia Estadual de Segurança Pública (AESP), foi concebida para realizar a integração das organizações num modo de formação unificado, o que toca em dois pontos centrais da resistência das corporações ao debate sobre desmilitarização da PM, integração das forças policiais e unificação do trabalho policial, concebido como uma atividade eminentemente civil e centrada em modelos preventivos de segurança cidadã. Por ironia do destino, o diretor da recém-criada AESP, o prof. César Barreira, presidente-fundador do Laboratório de Estudos da Violência, que foi meu orientador de mestrado ao longo da pesquisa sobre a AMP, assumiu como desafio reorganizar a significação política, social e simbólica dessa desincorporação da condição anterior do oficialato. Esse entrecruzamento entre Universidade e Nova Academia tornou mais complexa a relação anteriormente negociada entre os dois espaços institucionais. Nas palavras do novo diretor da AESP: A segurança faz parte dos direitos e garantias fundamentais contemplados na Constituição: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”. No art. 144, a segurança pública é destacada como dever do
  • 14. Estado e responsabilidade de todos, sendo exercida para preservar a ordem pública e a incolumidade das pessoas e do patrimônio. Essa perspectiva põe como eixo fundamental a relação dos órgãos policiais com a população. Poderia dizer que o policiamento comunitário ou de prevenção configura a forma mais explícita, no campo da segurança, de garantir a vida. Para esta atuação os policiais devem estar muito bem preparados com a aquisição de um saber técnico, psicológico e humanista. A experiência brasileira no ensino policial é ainda muito marcada por uma ênfase em uma concepção jurídica exclusiva e uma doutrina de repressão herdada desde a ditadura. Há, entretanto, experiências criativas em diversas instituições de ensino policiais no Brasil, ganhando destaque a Academia Nacional de Polícia em Brasília. A Rede Nacional de Ensino em Segurança Publica (Renaesp), mediante convênios entre o Ministério da Justiça e as Universidades brasileiras, incluindo a Universidade Federal do Ceará, tem impulsionado uma experiência pedagógica inovadora. Destaca aí um ensino multidisciplinar, baseado na concepção de uma Segurança Cidadã, com respeito aos Direitos Humanos e à diversidade ética e cultural. No Ceará está sendo implantada uma prática pioneira no país que terá como missão unificar e integrar o ensino das instituições responsáveis pela segurança pública. Os policiais cearenses devem ter uma capacitação inicial e permanente, buscando uma formação, cada vez maior, humana e técnica, bem como, na valorização profissional. Esta valorização passa a ser um princípio pedagógico, contribuindo para recuperar a confiança popular e reduzir o risco de vida a que estão submetidos os profissionais da segurança pública. É preciso retomar um conjunto de saberes práticos que os membros dos órgãos de Segurança foram acumulando ao longo do período democrático brasileiro. As atuais questões sociais mundiais trazem desafios para o ensino policial, tais como o tráfico de drogas, armas e de pessoas, ao lado das novas tecnologias do mundo do crime. Ganham também destaque a inserção de jovens em práticas sociais classificadas como delituosas ou mesmo criminosas, a violência doméstica e de gênero, e as práticas homofóbicas. As transformações
  • 15. ou complexidades do mundo contemporâneo demandam um novo modelo de ensino policial. Mantendo o espírito crítico, sem desconsiderar o legado das antigas academias de polícia é possível renascer um ensino ancorado nos desafios das sociedades modernas e orientado pelo direito fundamental de preservação do bem maior que é a vida (BARREIRA, 2011). Referências bibliográficas BARREIRA, César. Educação policial em revista. Jornal O Povo, http://www.opovo.com.br/app/opovo/opiniao/2011/04/09/noticiaopiniaojornal212 3617/educacao-policial-em-revista.shtml, 9 de abril de 2011. BOURDIEU, P. De la Maison du roi à la raison d’État: un modèle de la genèse du champ bureaucratique. Actes de la Recherche em Sciences Sociales, 118, 55-68, 1997. __________. Esprit d’État: genèse et structure du champ bureaucratique. Actes de la Recherche em Sciences Sociales, 96/97, 49-62, 1993. BRASIL, M. G. M. A genealogia da instituição policial no Brasil e no Ceará. Fortaleza: Dissertação de Mestrado, PPGS-UFC, 1990. CASTELO, P. A. O ensino militar. In: História do ensino no Ceará. Fortaleza: Imprensa Oficial, 1970. ELIAS, Norbert. Envolvimento e alienação. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998. _________. Os alemães: a luta pelo poder e a evolução do habitus nos séculos XIX e XX. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 1997. HOLANDA, J. X. Polícia Militar do Ceará: origem, memória e projeção. Fortaleza: Imprensa Oficial, vol. II, 1995. _________. Polícia Militar do Ceará: origem, memória e projeção. Fortaleza: Imprensa Oficial, vol. I 1987.
  • 16. SÁ, Leonardo Damasceno de. Os filhos do estado: auto-imagem e disciplina na formação dos oficiais da Polícia Militar do Ceará. Rio de Janeiro: Relume Dumará: NUAP, 2002. TAVARES DOS SANTOS, José Vicente. A arma e a flor: formação da organização policial, consenso e violência. Tempo Social: Revista de Sociologia da USP, Vol. 9, n.1, 1997.