O texto discute dois casos de intolerância religiosa abordados por Voltaire em seu Tratado sobre a Tolerância: o caso Jean Calas no século XVIII e o caso Jean Charles de Menezes no século XXI. Voltaire critica o fundamentalismo presente nas religiões e defende a tolerância como sendo conforme a razão, questionando o que é essencial na religião.
1. Revista eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do Protestantismo da Escola Superior de Teologia
Volume 12 (ano 06, n. 01 ) –– janeiro-abril de 2007
São Leopoldo –– RS
Periodicidade Quadrimestral - ISSN 1678-6408
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Volume 12, jan.-abr. de 2007 – ISSN 1678 6408
3. Coordenador Geral
Prof. Dr. Oneide Bobsin
Conselho Editorial
Berge Furre - Universidade de Oslo
Emil A. Sobottka - PUCRS
Adriane Luísa Rodolpho – Escola Superior de Teologia
Ricardo W. Rieth – Escola Superior de Teologia/ULBRA
Edla Eggert - Unisinos
Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 2
ISSN: 1678-6408
Responsável por esta edição
Valério Guilherme Schaper e Kathlen Luana de Oliveira
Capa desta edição
Iuri Andréas Reblin
Revisão
Iuri Andréas Reblin, Kathlen Luana de Oliveira, Valério Guilherme Schaper.
Editoração Eletrônica
Iuri Andréas Reblin
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Protestantismo em Revista é um órgão do Núcleo de Estudos e Pesquisa do Protestantismo (NEPP),
que visa ser um canal de socialização de pesquisas de docentes e discentes da área de Teologia,
Ciências das Religiões, abrangendo o espectro das Ciências Humanas e das Ciências Sociais Aplicadas,
tanto de integrantes da Escola Superior de Teologia (EST) quanto de outras instituições.
Protestantismo em Revista está sob a coordenação do Prof. Dr. Oneide Bobsin, titular da Cadeira de
Ciências das Religiões da EST.
A revista eletrônica Protestantismo em Revista é uma publicação quadrimestral (jan.-abr.; mai.-ago.,
set.-dez.), sendo que as três edições do ano são tradicionalmente planejadas em duas edições temáticas
e uma edição livre. Comumente, a equipe de redação aceita textos até o final do segundo mês do
quadrimestre e a publicação acontece normalmente na segunda quinzena do terceiro mês do
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Sumário
Editorial................................................................................................................................................. 4
Textos:
Emblemas da intolerância: Jean Calas, Jean Charles e a tolerância segundo Voltaire ............... 8
Por Valério Guilherme Schaper
Fronteiras da Intolerância ................................................................................................................. 20
Por Mario Miranda Filho
Tolerância Repressiva........................................................................................................................ 28
Por Herbert Marcuse [Tradução de Kathlen Luana de Oliveira]
A Tolerância e a ironia da trajetória protestante: refletindo sobre as intolerâncias na história
do protestantismo, a partir de uma leitura da obra Dogmatismo Tolerância de Rubem Alves
............................................................................................................................................................... 59
Por Kathlen Luana de Oliveira
O Testemunho Histórico da Intolerância nos Documentos relacionados aos Direitos
Humanos ............................................................................................................................................. 80
Por Clemildo Anacleto da Silva
Pedagogia da Tolerância ................................................................................................................... 99
Por Thyeles Borcarte Strelhow
O X da Questão: Evolução, alteridade e preconceito como desafios à tolerância - uma leitura
a partir dos X-Men - ......................................................................................................................... 114
Por Iuri Andréas Reblin
Resenhas, Leituras e Prefácios de Obras:
Prefácio à edição brasileira de O sentido e o Fim da Religião de Wilfred Cantwell Smith........ 126
Por Oneide Bobsin
Como citar esta revista.................................................................................................................... 129
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Editorial
A pergunta pelo intolerável traça as fronteiras éticas em todas as culturas.
Nenhum povo constitui-se com base na total permissividade. É justamente a média
entre o tolerável e o intolerável que determina os povos.
O Ocidente ousou criar uma nova forma de colocar em relação estes termos
essenciais. A história de autoconstituição da cultura ocidental é a história da criação
de uma fronteira móvel quanto ao tolerável. Neste novo enfoque, intolerável é
somente o que tende a constituir barreiras para o exercício do tolerável.
Esta compreensão, que ganhou uma formulação clássica sob o tema da
tolerância justamente durante as guerras de religião na Europa, na passagem dos
séculos XVII para XVIII, tornou-se objeto de pesquisa de um projeto em curso na
Escola Superior de Teologia.
Porque móvel, a fronteira do tolerável no Ocidente constitui-se sempre de
novo a partir de coordenadas altamente complexas, gerando dinâmicas inesperadas.
A pesquisa se faz a partir de interesses éticos e também metodológicos. De um lado,
permanece sempre aberta a pergunta pela melhor forma de ler as constituições de
sentido que a fronteira móvel do tolerável engendra. De outro lado, a reflexão ética
persegue a trilha das possíveis aplicações do saldo desta pesquisa.
Aqui está reunida uma mostra das primeiras aproximações ao tema no bojo
deste projeto e também através da contribuição de amigos/as cujas pesquisas estão
em referência cruzada com a deste projeto.
O primeiro texto é de Valério Guilherme Schaper que traz reflexões a partir
de Voltaire e seu Tratado sobre a Tolerância. O autor pauta a discussão a partir de dois
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Jeans: Jean Calas (1762) e Jean Charles de Menezes (2005). Ambas histórias são
marcadas por uma cruel intolerância. Com a crítica de Voltaire, o autor aborda o
fundamentalismo presente nas religiões. Voltaire aponta para a necessidade da
tolerância, “apanágio da natureza” conforme a razão, perguntando pela essência da
religião. Tais considerações evocam a tolerância como assunto de discussão para os
dias atuais.
No texto seguinte, Mário Miranda Filho expõe sua preocupação com a
intolerância como manifestação perversa. “Ser intolerante é instituir uma identidade
(de Ego, de grupo), com o propósito de negar ao outro sua humanidade, sua
dignidade”. O autor retrata a tradição filosófica que edificou a defesa da liberdade e
da tolerância, entrecruzada com outras disciplinas, em especial, a história e a religião.
O texto traz a tensão entre a realidade e a teoria a partir de duas histórias: a da
pensadora Irshad Manji e a da refugiada Ayaan Hirsi Ali, esta última apresentada
por Espinosa. Por fim, aponta para a necessidade de valorizar a reflexão teórica
capaz de dar conta do relativismo, a fim de tentar “desmontar os mecanismos
engenhosos” da “máquina de exclusão” da intolerância.
O terceiro texto tem por título Tolerância Repressiva, de autoria de Herbert
Marcuse (1898-1979), e foi traduzido para o português a partir da versão inglesa
disponibilizada na Internet por Harold Marcuse, o qual cordialmente autorizou a
publicação desta tradução nesta revista eletrônica (agradecemos desde já). Situando o
contexto do liberalismo, Marcuse coloca em cheque a compreensão de tolerância. O
autor afirma que tolerância requer intolerância frente a opiniões e atitudes devido às
políticas predominantes. Tolerância apresenta-se como uma “meta partidária, uma
prática e uma noção libertária subversiva”, como em suas origens, no começo do
período moderno. Dissonante das “coisas bonitas” que a palavra tolerância evoca,
tolerância está servindo a causa da opressão.
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Já Kathlen Luana de Oliveira coloca em discussão os desafios da tolerância
dentro da trajetória do protestantismo. Evidencia que o protestantismo surgiu a
partir de um espírito profético, mas ironicamente, na história, o ideal libertário se
torna uma instituição repressora. A partir de uma leitura da obra de Rubem Alves,
Dogmatismo e Tolerância, percebe-se que grande parte dessa ironia se deve a
manutenção da reta doutrina como unidade institucional. O espírito profético,
especialmente quando crítico e autocrítico, impulsiona uma compreensão de
tolerância engajada na luta contra as injustiças. Tolerância evidencia divergências,
evidencia a diversidade e não pode compactuar com ideologias repressivas,
discriminatórias e exclusivistas. Assim, Rubem Alves aponta para o resgate do
espírito profético e para o diálogo com o catolicismo para a edificação da tolerância.
O texto seguinte é da autoria de Clemildo Anacleto da Silva e traz uma
análise de documentos históricos que colaboraram no desenvolvimento do
pensamento relacionado à liberdade e ao exercício da prática religiosa dentro da
perspectiva dos Direitos Humanos. O autor destaca artigos e menções que
cooperaram tanto para a tolerância quanto para a intolerância religiosa e ressalta a
necessidade do reconhecimento e o respeito das diferenças como ato imprescindível
para o exercício da tolerância e a obrigação do Estado em garantir através da
educação e da legislação um tratamento igualitário e digno a todos os seres humanos.
Para o autor, a intolerância é uma “questão de justiça”.
Thyeles Borcarte Schleihow realiza uma leitura da obra Pedagogia da
Tolerância, uma obra com reflexões e de diálogos de Paulo Freire sobre o respectivo
tema. O autor descreve como Paulo Freire combina sua compreensão e sua prática
pedagógica com a questão da tolerância e como a presente obra contribui para a
construção epistemológica da paz e da tolerância. Para Paulo Freire, a tolerância é
virtude da convivência humana. Isso significa conviver com o diferente em uma
perspectiva dialógica, em cumplicidade, com vistas à cidadania.
Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 6
8. Revista Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do Protestantismo (NEPP) da Escola Superior de Teologia
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O último texto desta edição é da autoria de Iuri Andréas Reblin e aborda o
tema da tolerância na trilogia cinematográfica dos super-heróis mutantes conhecidos
como X-Men. O autor apresenta os conceitos antropológicos de evolução, alteridade e
preconceito como obstáculos para o exercício da tolerância e indica a necessidade de
uma interconexão entre as diferentes esferas sociais para a garantia da convivência
pacífica entre os seres humanos. Por fim, o texto aponta para a prática do amor,
segundo a compreensão do teólogo Søren Kierkegaard, como engrenagem-mestre de
uma convivência tolerante e eqüitativa.
A todos o nosso muito obrigado. Que a pesquisa avance e que seu produto
seja um serviço à defesa da dignidade inalienável do ser humano.
São Leopoldo, abril de 2007.
Prof. Dr. Valério Guilherme Schaper
Kathlen Luana de Oliveira
Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 7
9. Revista Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do Protestantismo (NEPP) da Escola Superior de Teologia
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Emblemas da intolerância: Jean Calas, Jean Charles e a
tolerância segundo Voltaire
Por Valério Guilherme Schaper*
Resumo:
O texto é uma apresentação do tratamento que Voltaire deu ao tema da intolerância a
propósito de um caso que se tornou famoso na França no século XVIII. O caso envolve o
julgamento público de um protestante calvinista que foi acusado de ter enforcado o próprio
filho que, se supõe, pretendia passar para o catolicismo. A pretexto deste caso, Voltaire
empreende uma leitura mordaz e irônica das práticas religiosas, cujo zelo enredam os
cristãos em um emaranhado de contradições, que colocam a França numa situação caótica e
sob o risco de se desintegrar política e economicamente. A análise ferina de Voltaire é um
microscópio que amplia os labirintos insuperáveis do fanatismo no seio das religiões. O texto
de Voltaire oportuniza ainda uma interessante reflexão sobre fatos atuais os quais recolocam
a pergunta pela tolerância como condição indispensável da vida em sociedade.
Palavras-chave:
fanatismo, superstição, tolerância, intolerância, religião, Voltaire
“[...] tanto é fácil ao fanatismo arrancar a vida à inocência,
como é difícil à razão restituir-lhe a justiça”.
Voltaire
Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 8
Prólogo
* Doutor em teologia e professor de teologia sistemática e de ética da Escola Superior de Teologia em
São Leopoldo. Membro da Comissão Teológica do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs (CONIC) e
da Comissão Bilateral Católico-romana e evangélico-luterana, vem se dedicando no último ano a
um projeto de pesquisa voltado para o tema da tolerância.
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A morte de Jean Charles de Menezes1, num metrô de Londres em 2005,
converteu-se em um emblema do tipo de “fricções” que as recentes correntes
migratórias vêm gerando pelo globo afora2. As grandes migrações que, no passado
da humanidade, foram oportunidade para espalhar vida, combinando genes e
culturas, converteram-se em ameaça à vida, às culturas. Jean Charles, não obstante o
nome quase anglo-galês, entrou num padrão de suspeição étnico-cultural, acirrado
pelos embates entre o Ocidente e o Oriente.
Vítima do medo, Jean Charles tornou-se mais um personagem na longa
história de um drama que ele sequer chegou a atinar ou, mesmo, entender. Presumo
que o povo de Gonzaga, cidade onde nasceu Jean Charles, tampouco chegará a
entender de fato a amplitude deste evento3. E se quiserem entender, como explicar a
derrocada da tolerância num povo que tem como um dos seus pais intelectuais, John
Locke, filósofo que contribuiu decisivamente para estabelecer o uso moderno do
1 “A polícia britânica matou ontem o mineiro Jean Charles de Menezes, 27, na estação de Stockwell,
no sul de Londres, após tê-lo confundido com terrorista ligado aos ataques da última quinta-feira
na capital britânica. Ele era natural de Gonzaga, no interior de Minas Gerais, e vivia há cerca de
quatro anos em Londres trabalhando como eletricista. Hoje, a Scotland Yard admitiu o erro e
informou que o homem foi atingido cinco vezes na cabeça depois de ter se recusado a obedecer a
ordens da polícia de parar dentro de um vagão do metrô.” Érica FRAGA. - Polícia britânica mata
brasileiro por engano após confundi-lo com terrorista. Notícia publicada na Folha Online em
23.07.2005. Notícia disponível em
http://www1.folha.uol.com.br/folha/mundo/ult94u86015.shtml, acessada em 02.04.07.
2 Gonzaga, MG, vizinha da famigerada cidade de Governador Valadares - a cidade brasileira mais
próxima dos EUA - tem nominalmente cerca de 5.482 habitantes. Fernanda MENA, Adriana
CHAVES E Deborah GIANNINI. Morte choca cidade de 5.500 habitantes.
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mundo/ft2407200504.htm. Acessado em 28.07.05. Segundo
Istoé Dinheiro, cerca de 1.500 jovens de Gonzaga estão espalhados pelos EUA e Europa. No Brasil,
esse número quase chega à casa dos 3 milhões de brasileiras/os, que enviaram ao país, em 2004,
um total de US$ 3,268 bilhões. Elaine COTTA. Amargo regresso. Disponível em
http://www.terra.com.br/istoedinheiro/412/economia/amargo_regresso.htm. Acessado em
28.07.05.
3 Há pessoas da localidade que intuíram o problema, como indica a seguinte frase de uma moradora
de 68 anos: “Isso vai continuar acontecendo enquanto a juventude se achar sem condições de
crescer financeiramente por aqui mesmo”. Elaine COTTA. Amargo regresso. Disponível em
http://www.terra.com.br/istoedinheiro/412/economia/amargo_regresso.htm. Acessado em
28.07.05.
Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 9
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conceito? Como explicar o assassinato de um jovem numa sociedade que foi
admirada por Voltaire pela capacidade de aceitar a pluralidade da sociedade?4
Voltaire e o caso Jean Calas
Foi um equívoco de ordem semelhante5, uma morte sob o manto do
cumprimento da justiça e da salvaguarda da sociedade, que motivou o filósofo
Voltaire6 a escrever seu “Tratado sobre a Tolerância”.
Em Toulouse, França, em 09.03.1762, Jean Calas, cujo primeiro nome também
coincide emblemática e ironicamente com o do brasileiro, condenado pela justiça,
morreu na “roda do suplício” por ter, assim supôs a justiça francesa, enforcado o
próprio filho, Marc-Antoine.
A história, no entanto, é complexa. A família Calas, negociante em Toulouse
há mais de 40 anos, era protestante (calvinista) num local e numa época pouco
favorável para as dissidências religiosas. Um filho havia abjurado do protestantismo.
A cozinheira, há muitos anos na família, também era católica-romana. Havia, então,
espaço para opção religiosa no seio da família. O filho morto não se ajustava ao
4 VOLTAIRE, Tratado sobre a tolerância. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 22.
5 As semelhanças param por aí. Jean Calas, bem ou mal, teve um julgamento e foi supliciado após ter
se chegado a um veredicto. Jean Charles foi sumariamente assassinado. Um erro brutal! O
julgamento que se seguiu não conseguiu atribuir responsabilidades nem culpas. O fato entrou para
a nebulosa área do “acidente lamentável”. Ignora-se, conscientemente ou não, que os mecanismos
de suspeição protetivos da sociedade Ocidental diante do Oriente Muçulmano estão disparando os
mecanismos irracionais do medo coletivo, o medo como epidemia. Todos, e principalmente os que
entrarem no padrão de suspeição étnico-cultural, são culpados até que se prove o contrário. A
fronteira nebulosa entre motivações religiosas, políticas e econômicas é, contudo, muito
semelhante.
6 François Marie Arouet, mais conhecido pelo pseudônimo Voltaire, nasceu em 1694 e faleceu em
1778. Foi filósofo e homem de letras e sua obra teve grande repercussão, ainda durante a sua vida.
Deísta de forte influência empirista, Voltaire é um dos grandes nomes do Iluminismo francês.
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comércio e aspirava à magistratura, no que foi impedido por não obter os certificados
de catolicidade romana. Desesperançado, imagina-se, enforcou-se.
A multidão, que afluiu a casa no momento em que o corpo foi encontrado,
não interpretou assim. A multidão histérica entendeu que o Pai (auxiliado pela mãe,
pelo irmão e por um amigo de visita) matou o filho porque ele pretendia abjurar da
sua fé e converter-se ao catolicismo no dia seguinte. No desvario, imaginou-se um
complô dos protestantes. Arrastado ao julgamento, Jean Calas foi condenado num
julgamento de poucas provas materiais e grande divisão dos magistrados.
Dos treze conselheiros, oito votaram a favor da morte. Mesmo com um
resultado tão apertado, “[...] era preferível supliciar um velho calvinista inocente a
expor oito conselheiros [...] a admitirem que haviam se enganado”7, como se disse na
época. Voltaire coloca da seguinte forma o dilema: ou o fanatismo religioso da
multidão induziu e coagiu a magistratura a fazer supliciar um inocente, ou o
fanatismo religioso do pai (mãe, irmão, amigo) levou-o a estrangular o filho. Num
caso ou noutro, o excesso religioso gerou um crime.
Voltaire decidiu apresentar ao público suas reflexões sobre a tolerância,
“apanágio da natureza” segundo a razão, tendo como tema central uma pergunta
acerca da essência da religião: ser bárbara ou caridosa. Por que este remoto incidente
deveria nos interessar hoje? Voltaire diz que a desgraça de Calas deveria provocar a
“maior impressão”, como se fosse um “trovão irrompendo na serenidade de um belo
dia”.
As questões que se colocam hoje a partir do caso de Jean Charles, assim como
as que se colocavam no caso de Jean Calas, apontam para um amálgama gigantesco
de motivações religiosas, étnicas, culturais, econômicas, políticas que se cruzam num
7 VOLTAIRE, 2000, p. 13.
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mosaico assustador, cuja imagem se nega terminantemente a se entregar a qualquer
forma superficial de compreensão.
Neste teatro de absurdos, um clamor ora forte, ora frágil, ora racional, ora
emotivo, parece convergir para a idéia da tolerância, como uma espécie de
“apanágio” residual - celebra Voltaire! - de um mundo que navega sobre incertezas.
Tolerância parece circular entre nós como uma espécie de “últimos dos moicanos”
conceituais, relicário de valores e direitos inalienáveis. Apresentam-nos a tolerância
como “tabu”, novo interdito moral capaz de refundar a civilização, recriar as
instituições. Teria a tolerância tanto poder? Afinal em que consiste a tolerância para
que dela se possa esperar tanto? Nos fatos narrados acima, ela não se apresenta tão
convincente quanto derrotada? Quem pôs e põe a circular este conceito? De onde ele
vem? Para onde nos conduz? Trata-se de um tesouro ou mero ouro de tolo?
Sem assumir o compromisso de responder pontualmente estas questões,
queremos nos deter aqui nas reflexões de Voltaire sobre aquele caso do passado, na
esperança de que o presente seja iluminado.
Um terreno movediço
Para se ter uma breve idéia retrospectiva das belicosas relações entre
católicos-romanos e huguenotes (protestantes franceses) na França, basta lembrar
que enfretamentos armados com muito derramamento de sangue que atravessaram
os séculos XVI e XVII. Os primeiros protestantes aparecem na França em 1520,
embora livros de Lutero já circulassem em Paris em 1519. Até que se firmasse o Édito
de Saint-Germain (1570), dando direito de culto aos protestantes em duas localidades
nos subúrbios de Paris e controle militar sobre 04 cidades, assistiu-se a vários
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enfrentamentos8 (1562-3, 1567-8, 1568-70). Entretanto, a frágil trégua consagrada pelo
Édito de Saint-Germain durou dois anos. Em 1572, a tentativa mal-sucedida de
eliminar um dos maiores líderes protestantes, Almirante Coligny, desencadeou, na
noite do dia 24 de agosto de 1572, um massacre de protestantes, que passou à história
como “Noite de São Bartolomeu”. Novamente os enfretamentos militares voltaram
(1573, 1574-6, 1577, 1580). Finalmente, chegou-se ao Édito de Nantes, que previa
liberdade religiosa, política e militar para protestantes. Em 1610, Richelieu persegue
os protestantes e retira seus direitos políticos e militares, restando a liberdade
religiosa. Em 1685, Luís XIV aboliu também a liberdade religiosa dos protestantes,
ocasionando uma massiva fuga de protestantes e, obviamente, uma evasão de
capitais9. Este cenário todo é amplamente intensificado pela crescente influência do
jansenismo10, que apresentava vários pontos de contato doutrinário com o
calvinismo.
Diferentemente do que ocorria em outros países (Alemanha, Inglaterra,
Holanda) na Europa no século XVIII, a França não oferecia muitas possibilidades de
interpretação religiosa dentro do cristianismo. A opção real dava-se entre o
catolicismo-romano de forte cunho jesuítico e a posição racionalista que crescia e que
desaguaria, com os resultados conhecidos, na Revolução Francesa (1789). Neste
complexo cenário de enfrentamentos, é preciso situar os fatos imediatos que
motivam Voltaire a escrever e os demais eventos da questão religiosa, a maioria deles
arrolados na argumentação de Voltaire.
8 O primeiro édito de tolerância de 1562, fruto mais palpável do colóquio de Poissy, durou menos de
um mês (janeiro a fevereiro de 1562). LINDBERG, Carter. As reformas na Europa. São Leopoldo:
Sinodal, 2001. p. 342-5.
9 LINDBERG, 2001, p. 345-54; WALKER, W. História da Igreja Cristã. São Paulo: ASTE, 1981, v.2. p.
Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 13
110-20.
10 Tendo iniciado sob a égide do bispo de Ypres, Cornelius Jansen (1585-1638), o jansenismo, de forte
influência agostiniana e ênfase na predestinação do ser humano para a salvação e para a perdição,
expandiu-se na França graças ao trabalho de Jean Duvergier de Hauranne, abade de Saint-Cyran,
Antoine Arnauld e, mais tarde, de Pasquier Quesnel (1634-1719). Blaise Pascal (1623-1662) esteve
ligado a este movimento.
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A essência da religião e as razões da tolerância
Voltaire inicia sua argumentação mostrando que o espírito faccioso e a
perseguição causaram muitos males. Ele sugere que a indulgência e a liberdade de
consciência jamais causariam males como aqueles e demonstra, por inúmeros
exemplos históricos, que a intolerância causa mais males do que a tolerância. Em
suma, ele contesta qualquer possibilidade de fundar a intolerância em algum suposto
direito natural ou humano. O princípio universal, argumenta ele, é o de fazer ao
outro o que se deseja para si.
Com ironia e mordacidade, Voltaire investe contra um suposto direito à
intolerância por parte da religião dominante contra os heréticos. Ele demonstra as
contradições em que incorre a intolerância, pois afirmá-la supõe condenar os pais da
fé cristã e dar razão aos que supliciaram tantos mártires. Deveria uma religião divina
reinar pelo ódio? Pergunta Voltaire. Ele afirma que quanto mais divina uma religião,
tanto menos compete aos seres humanos comandá-la. Isto cabe a Deus. O suposto
direito da intolerância chegaria ao cúmulo de encher o céu de criminosos, pois seria
tanto mais santo aquele que mais hereges matasse. Voltaire tem em mente aqui a
fatídica noite de São Bartolomeu que, segundo dados aproximados, significou a
morte violenta de 20 mil protestantes.
A partir de um atento exame da Escritura, Voltaire passa por textos
complexos do Antigo Testamento e do Novo Testamento, contestando as leituras que
procuravam encontrar ali apoio para as práticas intolerantes. Voltaire assegura que,
no Antigo Testamento, se percebe que Deus não somente tolerava outros povos como
tinha por eles um cuidado particular. Do exame do Novo Testamento, sobretudo, do
ensino de Jesus, Voltaire conclui ali é pregada a doçura, a paciência e a indulgência.
Ele aconselha aos que querem imitar Cristo que observem bem, pois aos imitadores
cabe mais atitude de mártir do que de algoz. Ele insiste que é preciso ter razões
muito mesquinhas para querer encontrar na Escritura fundamento para intolerância.
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O único acaso em que a intolerância é de direito humano é quando se deve resistir
aos intolerantes e sua ações pretensamente bem intencionadas.
O autor encerra conclamando todos a uma tolerância universal, pois somos
todos filhos/as do mesmo Pai e criaturas do mesmo Deus. As condenações e
exclusões mútuas não competem ao ser humano, pois significaria antecipar o juízo de
Deus. Para finalizar, ele dirige-se não mais às pessoas, mas ao próprio Deus em
oração, clamando por misericórdia pelos erros dos seres humanos e pedindo para
que as pessoas ajudem a suportar o fardo da vida e para que se lembrem de que são
irmãos/ãs.
O fanatismo é uma superstição!
Deísta e defensor da razão como norma primeira da vida, Voltaire afirma
que é estranho que, em uma época de tantos progressos da razão, o fanatismo tenha
prevalecido. Otimista, ele quer crer que estas convulsões súbitas do fanatismo sejam
estertores de morte. Ele se debate tanto mais se apercebe de sua condição de
prisioneiro condenado a uma morte eminente. Contudo, ele admite a fraqueza da
razão e a insuficiência das leis. Por isso mesmo entende que cabe, nesta hora, o uso
imparcial da razão para restituir as coisas aos seus lugares, pois, não obstante, fraca,
Voltaire crê na força persuasiva da razão e aponta para a necessidade de cultivar os
seus frutos, posto ser “impossível impedi-los de nascer”11.
Como todo pensador das luzes, Voltaire trava batalha cerrada contra toda
forma de obscurantismo. Ele entende que não pode dar trégua a qualquer forma de
“superstição”.
11 VOLTAIRE, 2000, p. 115.
Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 15
17. Revista Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do Protestantismo (NEPP) da Escola Superior de Teologia
Volume 12, jan.-abr. de 2007 – ISSN 1678 6408
A religião abusada torna-se superstição: “Quando os homens não têm noções
corretas da divindade, as idéias falsas as substituem, assim como nos tempos difíceis
trafica-se com moeda ruim, quando não se tem a boa”12. A superstição, diz Voltaire,
funciona para a religião como a astrologia para a astronomia, é “a filha muito
insensata de uma mãe muito sensata”13. Ambas subjugaram a terra por muito tempo.
E o ser humano prefere viver afogado em superstições a viver sem religião. Em certo
sentido, admite Voltaire, a religião é até mesmo necessária em qualquer lugar em que
haja sociedade, pois, enquanto a lei protege contra crimes conhecidos, a religião
protege contra os crimes secretos14. A religião funcionaria como uma espécie de
trincheira ética, um tipo de freio moral contra as pulsões interiores.
De toda as superstições, a mais perigosa, afirma Voltaire, é a de “odiar o
próximo por suas opiniões”15. Voltaire afirma que, no cristianismo, pessoas são
mortas por causa de “parágrafos”, “opiniões”, enfim, “crenças”16. Quando isso
ocorre, a superstição degenera-se no fanatismo, que supõe ser criminoso todo o que
pensa diferente, todo o que não concorda integralmente. No seu entender, o motor
gerador da intolerância em toda sua extensão é o fanatismo17. O fanatismo, ensina
Voltaire, é inimigo da natureza; a tolerância é o apanágio da natureza, apanágio dos
razoáveis, dos não fanáticos18. O fanatismo é irracional. Só os não fanáticos merecem
a tolerância, pois todo o fanatismo perturba a sociedade e configura-se como crime
passível de punição por parte do estado. Não é possível, então, como dito, tolerar o
fanático.
Para a superstição do fanatismo, como para todas as outras em geral, vale o
princípio da razão iluminista: só há uma forma de reduzir o número de fanáticos,
12 VOLTAIRE, 2000, p. 113.
13 VOLTAIRE, 2000, p. 113.
14 VOLTAIRE, 2000, p. 113.
15 VOLTAIRE, 2000, p. 116.
16 VOLTAIRE, 2000, p. 34; 37.
17 VOLTAIRE, 2000, p. 132.
18 VOLTAIRE, 2000, p. 105; 132.
Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 16
18. Revista Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do Protestantismo (NEPP) da Escola Superior de Teologia
Volume 12, jan.-abr. de 2007 – ISSN 1678 6408
maníacos: “submeter esta doença do espírito ao regime da razão, que esclarece lenta
mais infalivelmente, os homens”19.
Voltaire não define exatamente o que seria a tolerância. Em alguns
momentos, o texto sugere que seja um dispositivo legal para o correto funcionamento
do estado de direitos20. Em outros momentos, soa como uma virtude a ser
cultivada21. Em outras ocasiões, o texto sugere simplesmente que, por ser um
“apanágio da natureza”, cujo corolário é o regime da razão, a tolerância seria um
fruto inevitável em termos de saldo civilizatório que deve apenas ser administrado22.
Voltaire não menciona os mecanismos educacionais como instrumento para alcançar
a tolerância. Theodor Adorno, pensador contemporâneo de influência neo-iluminista,
insiste no poder da educação contra a possibilidade de repetição da barbárie, como a
de Auschwitz. Ele não crê que a educação impeça o surgimento de mentes fanáticas,
facciosas, criminosas, mas pode impedir que pessoas, abaixo deles, estejam
suscetíveis a praticar atos que as escravize, destituindo-as de sua dignidade
humana23.
Como diz o texto em epígrafe, Voltaire está ciente de que é mais fácil ao
fanatismo macular a inocência e atacar a vida, do que o mero recurso à razão
devolver-lhe justiça. No caso Calas, em 09 de março de 1765, no mesmo dia do
suplício de Jean Calas, três anos depois, a justiça reconheceu o equívoco e inocentou
a família. Além disso, a família contou ainda com o direito da beneficência e foi
indenizada pelo estado. Obviamente, a justiça feita à família Calas não reparou os
danos provocados pelo fanatismo. Somente a tolerância pode evitar que a terra seja
devastada pelo fanatismo e que os irreparáveis males decorrentes fustigue as
consciências e destrua vidas.
19 VOLTAIRE, 2000, p. 30.
20 VOLTAIRE, 2000, p. 105.
21 VOLTAIRE, 2000, p. 13; 127.
22 VOLTAIRE, 2000, p. 30.
23 ADORNO, Theodor. Educação após Auschwitz. In: COHN, Gabriel (Org.). Sociologia. 1986. p. 45.
Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 17
19. Revista Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do Protestantismo (NEPP) da Escola Superior de Teologia
Volume 12, jan.-abr. de 2007 – ISSN 1678 6408
A religião com vórtice
Voltaire volta-se contra uma leitura por demais estreita da tradição cristã no
âmbito do catolicismo-romano levada a cabo pelos jesuítas. Neste sentido, ele faz
coro ao jansenistas em seu combate aos jesuítas. Voltaire advoga a dissolução desta
ordem, pois, no seu entender, parte dos males que assolam a França está na
intolerância dos jesuítas, no seu fanatismo24. Voltaire percebe que o fanatismo
implícito nos dois lados do enfrentamento, mas especialmente criticado por ele na
posição jesuíta, estava gerando problemas de outra ordem: econômica25.
Assim, ele espalha pelo livro várias considerações de ordem prática que
mostram claramente que, em primeiro lugar, a concórdia entre as religiões, tendo
como referência a tolerância, era benéfica para a sociedade em termos materiais26. Em
segundo lugar, ele indica regiões da França onde a prevalência do luteranismo
coincide com a opulência das províncias27. Em terceiro lugar, ele indica que o fim das
disputas poderia significar o repatriamento de muitas fortunas que se foram por
medo28. Em quarto lugar, ele frisa que até mesmo a mais corriqueira negociação fica
impossibilitada de fazer parte do pressuposto de que o outro é réprobo29. Em quinto
lugar, ele insiste, que se o cenário não mudar manufaturas francesas que geram
muitos empregos e divisas continuarão saindo para a Holanda, de onde não
voltarão30.
24 VOLTAIRE, 2000, p. 26.
25 VOLTAIRE, 2000, p. 27.
26 VOLTAIRE, 2000, p. 22, 25.
27 VOLTAIRE, 2000, p. 23.
28 VOLTAIRE, 2000, p. 29-30; 32.
29 VOLTAIRE, 2000, p. 124.
30 VOLTAIRE, 2000, p. 130-1.
Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 18
20. Revista Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do Protestantismo (NEPP) da Escola Superior de Teologia
Volume 12, jan.-abr. de 2007 – ISSN 1678 6408
Pomeau, na introdução ao livro de Voltaire, chama a atenção para o fato de
que o conflito religioso permite que tensões de outra ordem se manifestem31. Outros
autores chamaram a atenção para as tentativas de descaracterização religiosa destes
eventos que se deram na França em torno do protestantismo32. O fato é que, como
bem observou, Walker, nos Países Baixos e na França, os elementos políticos e
econômicos foram mesclando-se cada vez mais ao religioso, com crescente destaque
para este último33. Os argumentos de Voltaire, embora tragam um forte viés
filosófico, deixam transparecer os reais benefícios da tolerância para a vida social: a
paz e o respeito que permitem o tranqüilo desenvolvimento econômico da sociedade.
Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 19
Epílogo
A título de encerramento vale citar estas palavras de Voltaire, porque
caracterizam o seu enfoque filosófico ao mesmo tempo em que indicam a ocultação
das motivações materiais da tolerância:
Esse texto sobre a tolerância é uma petição que a humanidade
apresenta muito humildemente ao poder e à prudência. Semeio um
grão que algum dia poderá produzir uma grande colheita. Esperemos
tudo do tempo, da bondade do rei, da sabedoria de seus ministros e
do espírito de razão que começa a espalhar por toda parte sua luz.34
31 POMEAU René. Introdução. In: VOLTAIRE, 2000, p. vii.
32 LINDBERG, 2001, p. 349-50.
33 WALKER, 1981, p. 112.
34 VOLTAIRE, 2000, p. 136.
21. Revista Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do Protestantismo (NEPP) da Escola Superior de Teologia
Volume 12, jan.-abr. de 2007 – ISSN 1678 6408
Fronteiras da Intolerância*
Por Mario Miranda Filho**
“Se todos nós que viemos do Nietzscheismo, do nihilismo ou do
realismo histórico disséssemos em público que estávamos errados e
que existem valores morais e que no futuro devemos fazer o que for
necessário para implanta-los e ilustra-los, não lhes parece que isto
seria o começo de uma esperança?”
A. Camus, Cadernos de Notas, 1942-1951.
‘Fronteiras da Intolerância’ é uma designação voluntariamente ampla, como
deve ser um título genérico cuja função é abrir espaço para a reflexão e o debate, mas
por isso mesmo portadora de algumas ambigüidades. Dentre estas, destaco a mais
óbvia: na expressão acima, estaremos designando fatos ou idéias? A questão pode
parecer algo escolástica ou especiosa, já que fatos sem idéias são cegos e idéias
desvinculadas de fatos nos transformam em nefelibatas, mas, como esperamos
justificar a seguir, cremos que terá sua utilidade.
Parto do pressuposto de que nosso seminário visa antes um esclarecimento
conceitual e, portanto, é nesse sentido que encaminharei minha intervenção. Mas,
tendo em vista que não se podem deixar de lado ‘os fenômenos’, procurarei trabalhar
os conceitos vinculados a exemplos factuais.
* Comunicação apresentada por Mario Miranda Filho no Seminário Interno do LEI, em 24/09/05, na
Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 20
USP.
** Mário Miranda Filho é graduado e doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo (1973 e
1986, respectivamente). Atualmente, é Professor-Doutor da Universidade de São Paulo. Tem
experiência na área de Filosofia, com ênfase em História da Filosofia, atuando principalmente nos
seguintes temas: Augusto Conte, filosofia antiga. (Apresentação extraída do CV-Lattes)
22. Revista Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do Protestantismo (NEPP) da Escola Superior de Teologia
Volume 12, jan.-abr. de 2007 – ISSN 1678 6408
Do ponto de vista empírico, a intolerância é uma manifestação perversa,
como cremos, de uma auto-afirmação excludente, particularista, tribalista, que
institui fronteiras apenas com o propósito de demarcar o território do mesmo em
relação ao outro, do nosso em relação ao deles – ‘os infiéis’ – numa operação em que
os segundos são sempre potencial ou realmente excluídos, senão eliminados. Ser
intolerante é instituir uma identidade (de Ego, de grupo), com o propósito de negar
ao outro sua humanidade, sua dignidade.
Diante assim dos fatos brutos, e brutais, da intolerância empírica, como se
orienta preliminarmente nosso pensamento? Como opera diante dessa percepção ou
mais precisamente: como podemos nos capacitar para, primeiramente, definir a
‘coisa’ e quais os recursos de que dispomos em nossa cultura filosófica para tentar
desmontar os mecanismos engenhosos desta máquina de exclusão a serviço da
barbárie?
Com essa questão, passamos para o plano propriamente conceitual e, ao
mesmo tempo, tocamos em cheio no subtema deste seminário: ‘Intolerância e
Multidisciplinaridade’, pois todos sabemos que, desde seu início, a filosofia procurou
produzir conceitos aptos a cumprir esta dupla tarefa de definição e desmonte. Não
podemos, pois, compreender esse antigo exercício filosófico sem recorrer antes a
outra disciplina: a História.
Mas há mais: quando estudamos a filosofia em seu berço, na Grécia, os
historiadores mostram que ela nasce numa civilização constituída de Poleis (cidades-estado).
Não vou repetir aqui o que já tive ocasião de expor em outros seminários do
LEI, lembro apenas de Fustel de Coulanges, citando Tito-Lívio: “Não há um lugar
nesta cidade que não esteja impregnado de religião...os deuses habitam nela”.
Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 21
23. Revista Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do Protestantismo (NEPP) da Escola Superior de Teologia
Volume 12, jan.-abr. de 2007 – ISSN 1678 6408
Assim, define a cidade antiga: “Toda cidade era um santuário... podia ser
chamada de cidade santa”1. E acrescenta: “É portanto um erro singular, entre todos
os erros humanos acreditar que nas cidades antigas o homem gozava de liberdade.
Não tinha sequer a mais ligeira idéia dela. Não julgava que pudesse existir direito em
frente da cidade e dos seus deuses”2. Os historiadores nos asseguram, assim, de que
a pátria da filosofia é uma comunidade marcada por uma mentalidade
eminentemente religiosa, que restringe ou exclui a liberdade individual. Em outros
termos: a filosofia nasce numa ‘sociedade fechada’, para empregarmos um conceito
moderno.
Estamos, então, operando no entrecruzamento de três disciplinas: filosofia,
história e religião. Nesse sentido, refletindo sobre as dificuldades com que se
defrontou a filosofia em seu nascimento, Merleau-Ponty dizia a propósito de um dos
primeiros atos de intolerância contra ela que: “Para arrumar na terra um lar para a
filosofia foram precisos justamente filósofos como Sócrates”3. Séculos mais tarde, B.
Espinosa, no século de ouro da Holanda, reencontraria, mutatis mutandis, o mesmo
obstáculo e anotava no seu Tratado Teológico Político que seu propósito era o de obter
a liberdade para filosofar. Ambos os filósofos, em épocas diferentes, afirmam a
filosofia em confronto com sociedades onde predomina a mentalidade hegemônica
da religião.
Podemos perceber, então, a existência de um fio, nem sempre muito visível,
mas sólido, que vai dos antigos aos modernos, passando pelos medievais, que se
caracteriza por ser a marca de uma grande tradição filosófica que podemos designar
de Republicana, Liberal, ou Iluminista. (Ela envolve distintas áreas do conhecimento.
Alem das três mencionadas mencionemos a Filologia ou a Hermenêutica, prestimosa
quando se trata de saber, p. ex., se a palavra árabe, do Alcorão, ‘Hur’ significa
1 COULANGES, F. de. A Cidade Antiga. Lisboa, 1919, v.1. p. 242.
2 COULANGES, 1919, v.1. p. 404.
3 MERLEAU-PONTY, M. Éloge de la Philosophie. Paris: Gallimard, 1960. p. 46.
Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 22
24. Revista Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do Protestantismo (NEPP) da Escola Superior de Teologia
Volume 12, jan.-abr. de 2007 – ISSN 1678 6408
‘virgens de olhos negros’ ou ‘uvas’, já que ninguém daria sua vida em troca de um
além onde receberia apenas uvas). Foi essa mesma tradição que consolidou nos
tempos modernos a defesa da liberdade e da tolerância, que precederam até mesmo a
instituição dos Direitos Naturais consagrados, como direitos universais do homem,
nas nossas constituições republicanas.
A História também narra o que ocorre quando defensores da liberdade de
pensamento e de discurso se põem a praticá-la em sociedades fechadas. Narra
também quanto tempo – e não só tempo, é claro – foi necessário para ‘abrirmos’
nossas sociedades de modo a fazê-las aceitar o pluralismo. Nada disso é novo. Mas,
talvez, hoje, a pergunta mais interessante é a que indaga acerca da situação inversa a
essa mencionada, ou seja: O que ocorre quando práticas corriqueiras em sociedades
fechadas se introduzem, graças às imigrações, em sociedades abertas?
Essa questão pode servir para reduzir a ambigüidade presente em nosso
tema ‘Fronteiras da Intolerância’, uma vez que ela nos permite visualizar o problema
em sua dupla dimensão: teórica e empírica. Para tratar dessa questão, vou recorrer a
dois exemplos que, ambos, provêm da história contemporânea, do calor da hora. Ela
diz respeito a uma boa parte da humanidade, talvez, até mais do que a metade dela:
as mulheres.
Nosso primeiro exemplo é o da pensadora Irshad Manji, jornalista, que
publicou, em 2003, The Trouble with Islam Today, a muslim call for reform in her faith4.
Irshad é de origem Ugandense e sua família se exilou fugindo de Idi Amin Dada para
o Canadá em 1972. É negra, assume publicamente sua condição de lésbica e se define
como uma Islâmica ‘Refusenik’, empregando o termo usado na extinta URSS para
designar os judeus soviéticos que lutavam por sua liberdade contra o totalitarismo.
Seu livro, escrito sob forma de depoimento, é a história de sua libertação de um
4 MANJI, I. The Trouble with Islam Today. New York: St. Martins’s Grifin, 2003.
Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 23
25. Revista Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do Protestantismo (NEPP) da Escola Superior de Teologia
Volume 12, jan.-abr. de 2007 – ISSN 1678 6408
sistema teocrático especialmente perverso para as mulheres expostas, entre outras
barbáries, à mutilação sexual.
Nela vemos a história da transição entre as fronteiras da teoria e da prática,
da passagem por uma doutrinação – a que foi submetida na Madrassa Islâmica de
Vancouver – para a real educação para a liberdade que ela encontrou nessa mesma
cidade, mas agora numa escola de ensino ‘Republicano’, onde aprendeu a “Pensar,
pesquisar, falar, trocar, discutir, desafiar e repensar”5, enfim, a conquistar o que I.
Kant chamou de maioridade em O que é Ilustração. Sem abandonar sua fé, ela passou
a investigar a origem do esclerosado dogmatismo que interditava o pensamento aos
Islâmicos e descobriu a existência de uma tradição de livre pensamento
independente que era anterior a este fanatismo e que se designa em árabe pelo termo
‘Ijtihad’.
Essa tradição, conta-nos, surgiu e se desenvolveu no Islã de 750 a 1250 e se
define como uma ‘cultura da tolerância’ entre árabes e judeus na Espanha e no
Iraque, sede do império Islâmico, onde Cristãos, Judeus e Muçulmanos traduziram e,
assim, devolveram vida aos textos da filosofia grega6. Irshad pôde assim descobrir a
idade de ouro islâmica no século XII e a obra de Moses ben Maimônides, filósofo e
médico judeu que escrevia em árabe (conta-nos que Ben Gurion aprendeu árabe para
lê-lo no original). Cita esta passagem do Guia dos Perplexos: “Está na natureza do
homem prezar o que lhe é familiar e os ensinamentos em que foi educado, e temer o
que é estrangeiro. A pluralidade das religiões e sua mútua intolerância derivam do
fato de que as pessoas permanecem fiéis a educação que receberam”. E cita também o
correspondente árabe de Maimônides, o filósofo cordobês Averróes7.
5 MANJI, 2003, p. 19.
6 Sobre as semelhanças entre a situação da filosofia no mundo grego e no mundo islâmico-judeu, v.
STRAUSS, Leo. How to begin to study medieval philosophy. In: The Rebirth of Classical Political
Rationalism. Chicago, 1989, p. 207-226.
7 Sobre filosofia medieval, v. a seguinte coletânea: LERNER, Ralph, MADHI, Muhsin (Ed.). Medieval
Political Philosophy. New York: Cornell Un. Press, 1991.
Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 24
26. Revista Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do Protestantismo (NEPP) da Escola Superior de Teologia
Volume 12, jan.-abr. de 2007 – ISSN 1678 6408
Bem, é ocioso dizer o quanto Irshad sofreu e vem sofrendo todo tipo de
perseguição por suas idéias e práticas e o quanto lhe tem sido valioso o encontro
desta tradição ‘Ijtihad’, graças à qual a filosofia grega se transmitiu aos autores
medievais, como Maimônides e Averróes, que Espinosa tomaria como interlocutores
fundamentais em sua obra que lança as bases para o Iluminismo moderno. É
Espinosa que nos leva para nosso segundo exemplo.
Trata-se também de outra refugiada, proveniente igualmente da África –
Somália – e também islâmica, embora tenha se tornado, atualmente, atéia: Ayaan
Hirsi Ali. Resumindo muito: Ali fugiu e se asilou na Holanda onde pôde realizar seus
estudos na Universidade de Leiden, onde freqüentou cursos de Filosofia Política e
publicou, em 2004, The Cage of Virgins. Tornou-se famosa por ter feito um filme –
‘Submissão, parte I’ – juntamente com o cineasta Leo van Gogh, que foi assassinado
em novembro de 2004, pelo fundamentalista islâmico, nascido na Holanda,
Muhammed Bouyeri, filho de imigrantes marroquinos. Nesse filme, eles apresentam
versos do Alcorão projetados sobre os corpos nus de mulheres. Acusada de
sensacionalismo, ela retruca que “estes corpos são o motivo de metade da nação da
Arábia Saudita não ter permissão para dirigir automóveis”.
Ali passou pela mesma doutrinação que Irshad recebera e que ensinava
ambas a odiar passionalmente os judeus. Diz Ali: “eu que até meus 16 anos nunca
tinha sequer visto um israelita”8. Hoje, já na condição de deputada, seu propósito é o
de “desafiar a auto-imagem da elite européia como tolerante, enquanto que sob seu
nariz mulheres vivem como escravas”. Por suas posições, ela foi denominada de
“fundamentalista do iluminismo” e diz que o Islã precisa de seu próprio Voltaire. De
fato, reivindica ser herdeira, em linha direta, do iluminismo Holandês, constatando
que, naquela época, a maioria dos filósofos era ‘Allochtonen”9, e não obstante terem
8 Citada por Christopher Caldwell, no artigo “Daughter of Enlightenment”, no New York Times,
April 3, 2005 . V. agora de ALI, Ayaan Hirsi. Infidel. New York: Free Press, 2007 e BURUMA, Ian.
Murder in Amsterdã. New York: The Penguin Press, 2006.
9 Holandês para imigrantes, o contrário de autóctones.
Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 25
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Volume 12, jan.-abr. de 2007 – ISSN 1678 6408
sido odiados, não eram perseguidos, nem assassinados e reconhece em Espinosa sua
maior inspiração no Ocidente.
É ela que enuncia uma questão com a qual encerro. Diz que, em breve,
Amsterdã, uma cidade artística, terá 60% de sua população composta de cidadãos de
origem não-ocidental. Quando a municipalidade, nessas condições, tiver que votar
sobre a distribuição de recursos, enfrentando dúvidas, tais como, se os fundos devem
ser destinados a preservar a arte ou construir mesquitas, esses cidadãos poderiam,
talvez, perguntar por que deveriam pagar por esta ‘estúpida pintura’? Ela vê aqui
apenas um exemplo das dificuldades de convivência postas numa democracia
moderna cujos representantes tendem a se refugiar num pragmatismo que evita o
debate sobre valores. O perigo, diz ela, é que a Holanda se veja dividida entre duas
extremas direitas: uma islâmica e outra não-islâmica.
Nossos dois exemplos ilustram a riqueza de instrumentos de que dispomos
no Ocidente, desde os primórdios da nossa história – em particular a doutrina do
Direito Natural – para combater as tentativas, em suas várias modalidades, de
intolerância, sempre à espreita em nossas sociedades. Cremos que a rememoração
deste acervo de direitos, que constitui nossa tradição filosófica iluminista, é tanto
mais importante quanto, hoje, a chamada filosofia pós-moderna tem procurado
‘desconstruir’, isto é, desqualificar, essa mesma tradição, acusada de metafísica,
universalista, etnocêntrica, logocrática, etc. Em suma, estamos assistindo hoje a um
emaranhamento de fronteiras, tanto no sentido literal, geográfico-étnico, quanto no
plano teórico, e sabemos bem que, se não dispusermos de uma boa reflexão teórica
que seja especialmente capaz de dar conta do relativismo, estamos condenados a
enfrentar as facetas negativas do multiculturalismo e da intolerância com a mesma
precariedade com que hoje lidamos com furacões.
Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 26
28. Revista Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do Protestantismo (NEPP) da Escola Superior de Teologia
Volume 12, jan.-abr. de 2007 – ISSN 1678 6408
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Volume 12, jan.-abr. de 2007 – ISSN 1678 6408
Tolerância Repressiva*
Por Herbert Marcuse**
[Tradução: Kathlen Luana de Oliveira***]
Este ensaio é dedicado a meus estudantes na Universidade de Brandeis.
Este ensaio examina a idéia de tolerância em nossa sociedade industrial
avançada. A conclusão alcançada é de que a realização do objetivo da tolerância
requer intolerância perante as políticas predominantes, atitudes, opiniões, e a
extensão da tolerância às políticas, atitudes e opiniões que são proscritas ou
suprimidas. Em outras palavras, hoje a tolerância apresenta-se novamente como o
que era em suas origens, no começo do período moderno -uma meta partidária, uma
prática e uma noção libertária subversiva. Contrariamente, o que hoje é proclamado e
* Texto fornecido por Mark, e convertido em html por Harold Marcuse, em 6 oct. 2004, para Herbert
Marcuse homepage; tradução alemã; veja também minha página Marcuse Haters page. Disponível
na Internet: http://www.marcuse.org/herbert/pubs/60spubs/65repressivetolerance.htm. Este
texto foi originalmente publicado em: WOLFF, Robert Paul; MOORE JR, Barrington e MARCUSE,
Herbert. A Critique of Pure Tolerance. Boston: Beacon Press, 1969, p. 95-137. Este livro de 123
páginas foi publicado originalmente em 1965; A presente edição inclui o “Pós-escrito” de Herbert
Marcuse de 1968. Os conteúdos de A Critique of Pure Tolerance são os seguintes: “Além de
Tolerância” - Robert Paul WOLFF; “Tolerância e a Perspectiva Científica”- Barrington MOORE JR.;
“Tolerância Repressiva” - Herbert MARCUSE.
** Herbert Marcuse nasceu em Berlim em 19/07/1898. Estudou Letras, Filosofia e Economia nas
Universidades de Berlim e Freiburgo. Concluiu seus estudos de pós-doutoramento na
Universidade de Freiburgo em 1922. Foi assistente de Martin Heidegger e admirador de seu
pensamento filosófico. Migrou para os Estados Unidos em 1934 e tornou-se membro do Instituto
de Pesquisa Social da Universidade de Columbia em Nova Yorque. Em 1940, tornou-se cidadão
estadunidense. Foi professor de Ciências Políticas na Universidade de Brandeis em Waltham,
Massachussetts, de 1958 a 1965, e professor na Universidade da Califórnia em San Diego, de 1965 a
1976. Dentre as suas obras se destacam: Studien über Autorität und Familie (1936), Eros and
Civilization (1955), One Dimensional Man (1964), Tolerância Repressiva (1965), An Essay on Liberation
(1969) e The Aesthetic Dimension (1978).
*** Teóloga brasileira, mestranda no Instituto Ecumênico de Pós-Graduação (IEPG), em São Leopoldo,
RS, com o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Sua
pesquisa está direcionada à argumentação teológica dos Direitos Humanos na sociedade moderna.
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praticado como tolerância está, em muitas de suas manifestações mais efetivas,
servindo a causa da opressão.
O autor está completamente atento que, no momento, não existe nenhum
poder, nenhuma autoridade, nenhum governo que traduziria tolerância libertária em
prática, mas ele acredita que é a tarefa e o dever do intelectual recordar e preservar as
possibilidades históricas que parecem ter se tornado possibilidades utópicas - que é a
sua tarefa quebrar a concreticidade da opressão a fim de abrir o espaço mental no
qual esta sociedade pode ser reconhecida como o que é e faz.
Tolerância é um fim em si mesmo. A eliminação da violência e a redução da
supressão ao grau exigido para proteger o ser humano e os animais da crueldade e
da agressão são as condições prévias para a criação de uma sociedade humanitária.
Uma sociedade assim ainda não existe; o progresso rumo a ela é talvez mais do que
aquele antes apreendido pela violência e na supressão numa escala global. Como
impedimentos contra a guerra nuclear, como ação policial contra a subversão, como
ajuda técnica na luta contra o imperialismo e o comunismo, como métodos de
pacificação em massacres neocoloniais, a violência e a supressão são promulgadas,
praticadas e defendidas igualmente por governos democráticos e autoritários, e as
pessoas sujeitas a esses governos são educadas a sustentar tais práticas como
necessárias para a preservação do status quo. A tolerância é estendida às políticas, às
condições e aos modos de comportamento que não deveriam ser tolerados porque
eles estão impedindo, se não destruindo, as chances de se criar uma existência sem
medo e miséria.
Esse tipo de tolerância fortalece a tirania da maioria contra a qual os liberais
autênticos protestaram. O locus político da tolerância mudou: enquanto for mais ou
menos sorrateira e constitucionalmente afastada da oposição, ela é transformada em
um comportamento compulsório com respeito às políticas estabelecidas. A tolerância
é alterada de um estado ativo a um estado passivo, de prática em não-prática: laissez-
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faire das autoridades constituídas. São as pessoas que toleram o governo, o qual em
troca tolera a oposição dentro da moldura determinada pelas autoridades
constituídas.
A tolerância com respeito ao que é radicalmente maldade agora se apresenta
como bondade, porque serve à coesão do todo em direção à abundância ou à
superabundância. A toleração do entorpecimento sistemático, semelhante em
crianças e em adultos por meio da publicidade e da propaganda, a liberação da
destrutibilidade em condutas agressivas, no recrutamento e no treinamento das
forças especiais, a tolerância impotente e benevolente perante a completa decepção
no merchandizing, inútil, e a obsolescência planejada não são distorções e aberrações,
elas são a essência de um sistema que fortifica a tolerância como um meio para
perpetuar a luta pela existência e para suprimir as alternativas. As autoridades em
educação, em valores morais, e em psicologia esbravejam contra o aumento da
delinqüência juvenil; porém elas são menos vociferantes contra a apresentação
orgulhosa - em palavras, ações e imagens - de mísseis cada vez mais poderosos,
foguetes, bombas - a delinqüência madura de uma civilização inteira.
De acordo com uma proposição dialética, é o todo que determina a verdade -
não é no sentido que o todo é anterior ou superior a suas partes, mas é no sentido
que a sua estrutura e função determinam toda a relação e a condição particular.
Assim, dentro de uma sociedade repressiva, até mesmo os movimentos progressistas
ameaçam se transformar no seu oposto até o ponto em que eles passam a aceitam as
regras do jogo. Pode-se considerar um caso mais controverso: o exercício de direitos
políticos (como votar, escrever carta à imprensa, a senadores, etc., demonstrações de
protesto com uma renúncia prévia da contra-violência) em uma sociedade com total
administração serve para fortalecer essa administração através do testemunho da
existência de liberdades democráticas, as quais, na realidade, mudaram o seu
conteúdo e perderam a sua eficácia. Nesse caso, a liberdade (de opinião, de
assembléia, de expressão) se torna um instrumento para absolver a servidão. E ainda
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(e só aqui a proposição dialética mostra sua plena intenção) a existência e a prática
dessas liberdades mantêm uma condição prévia para a restauração da sua função de
oposição original, contanto que o esforço para transcender (freqüentemente
imposição-própria) suas limitações seja intensificado. Geralmente, a função e o valor
da tolerância dependem da igualdade predominante na sociedade na qual a
tolerância é praticada. A tolerância por si mesma estava sujeita a anular critérios: sua
extensão e seus limites não podem ser definidos nos termos da respectiva sociedade.
Em outras palavras, a tolerância é um fim em si mesmo somente quando ela é
verdadeiramente universal, praticada pelos governadores como também pelos
governados, pelos senhores como também pelos camponeses, pelos xerifes como
também por suas vítimas. E tal tolerância universal só é possível quando nenhum
inimigo real ou alegado exigir a educação e o treinamento das pessoas para a
violência militar e para a destruição no interesse nacional. Tão logo quanto essas
condições não prevaleçam, as condições da tolerância estão “loaded”: elas são
determinadas e definidas pela desigualdade institucionalizada (que é certamente
compatível com a igualdade constitucional), i.e., pela estrutura de classe da
sociedade. Em uma sociedade assim, a tolerância é de facto limitada no chão dual da
violência legalizada ou da supressão (polícia, forças armadas, guardas de todos os
tipos) e da posição privilegiada segurada pelos interesses predominantes e por suas
“conexões”.
Essas limitações de fundo da tolerância normalmente são anteriores as
limitações explícitas e judiciais como as definidas pelos tribunais, pelos costumes,
pelos governos, etc. (por exemplo, “perigo claro e presente”, ameaça para a
segurança nacional, heresia). Dentro da moldura de uma estrutura social assim, a
tolerância pode ser seguramente praticada e proclamada. Ela possui dois tipos: (1) a
toleração passiva de atitudes e idéias estabelecidas e fortificadas, mesmo se o seu
efeito prejudicial sobre o ser humano e a natureza sejam evidentes, e (2) a tolerância
ativa, a tolerância oficial concedida à direita bem como à esquerda, aos movimentos
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de agressão bem como aos movimentos de paz, os grupos de ódio assim como os
grupos humanitários. Eu chamo esta tolerância não-partidária de “abstrata” ou
“pura” já que ela se abstém de tomar partido - mas fazendo assim, na verdade, ela
protege a máquina já estabelecida de discriminação.
A tolerância que aumentou o alcance e o conteúdo da liberdade sempre foi
partidária - intolerante perante os protagonistas do status quo repressivo. O assunto
era só o estágio e a extensão da intolerância. Na sociedade liberal firmemente
estabelecida da Inglaterra e dos Estados Unidos, a liberdade de expressão e de
assembléia foram concedidas até mesmo aos inimigos radicais da sociedade,
contanto que eles não fizessem a transição da palavra para ação, do discurso para a
ação.
Confiando nas efetivas limitações de fundo impostas por sua estrutura de
classe, a sociedade parecia praticar tolerância genérica. Mas a teoria liberal já tinha
colocado uma importante condição à tolerância: era “aplicar apenas a seres humanos
na maturidade das suas faculdades”. John Stuart Mill não só fala de crianças e
menores; ele elabora: “Liberdade, como um princípio, não tem nenhuma aplicação a
qualquer estado de coisas anterior à época quando a espécie humana tornou-se capaz
de ser aprimorada pela discussão livre e igualitária”. Anterior àquele tempo, os seres
humanos ainda poderiam ser bárbaros, e “o despotismo é um modo legítimo de
governo que entra em acordo com bárbaros, desde que o fim seja para a melhoria
deles, e os meios sejam justificados pela real conseqüência daquele fim”. As palavras
freqüentemente citadas de Mill têm uma implicação menos familiar, da qual depende
o seu significado: a conexão interna entre liberdade e verdade. Há uma compreensão
que a verdade é o fim da liberdade, e a liberdade precisa ser definida e limitada pela
verdade. Agora, por causa da verdade, em que compreensão pode estar a liberdade?
A liberdade é autodeterminação, autonomia - esta é quase uma tautologia, mas uma
tautologia que é o resultado de uma série inteira de julgamentos sintéticos. A
liberdade estipula a habilidade para se determinar a própria vida: para ser capaz de
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determinar o que fazer e o que não fazer, o que suportar e o que não suportar. Mas o
conteúdo dessa autonomia nunca é o contingente, o indivíduo particular como o que
ele realmente é ou é casualmente; mais propriamente, é o indivíduo como ser
humano que é capaz de ser livre junto com os outros. E o problema de tornar
possível tal harmonia entre cada liberdade individual e a do outro não é aquilo que é
encontrado num acordo entre competidores, ou entre liberdade e lei, entre o interesse
geral e individual, nem entre o bem-estar comum e privado em uma sociedade
estabelecida, mas é de criar a sociedade na qual o ser humano não é mais escravizado
por instituições que viciam a sua autodeterminação desde o princípio. Em outras
palavras, a liberdade ainda será criada até mesmo para a mais livre das sociedades
existentes. E a direção na qual isso deve ser buscado, e as mudanças institucionais e
culturais que podem ajudar a atingir a meta são, pelo menos em uma civilização
desenvolvida, compreensíveis, quer dizer, elas podem ser identificadas e projetadas,
com base na experiência, através da razão humana.
Na interação entre teoria e pratica, soluções verdadeiras e falsas tornam-se
distinguíveis - nunca com a evidência da necessidade, nunca como o positivo, mas
apenas com a certeza de uma chance debatida e razoável, e com a força persuasiva
do negativo. Para o verdadeiro positivo está a sociedade do futuro e,
conseqüentemente, está além da definição e da árida determinação, enquanto que o
positivo existente é aquilo que deve ser superado. Mas a experiência e o
entendimento da sociedade existente podem ser bem capazes de identificar o que não
conduz a uma sociedade livre e racional, o que impede e distorce as possibilidades
de sua criação. Liberdade é liberação, um processo histórico específico na teoria e na
prática, e como tal tem o seu certo e o seu errado, a sua verdade e a sua falsidade.
A incerteza da possibilidade nessa distinção não anula a objetividade
histórica, mas necessita da liberdade de pensamento e de expressão como condições
prévias para encontrar o caminho para a liberdade - necessita de tolerância. De
qualquer forma, essa tolerância não pode ser indiferente e uniforme perante os
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conteúdos de expressão, nem em palavra nem em ação; ela não pode proteger
palavras falsas e ações erradas, demonstrando que elas contradizem e contrariam as
possibilidades de liberação. Tal tolerância indiferente é justificada em debates
inofensivos, em conversa, em discussão acadêmica; ela é indispensável ao
empreendimento científico, à religião privada. Mas a sociedade não pode ser
indiferente, onde a pacificação da existência, onde a liberdade e a felicidade por si
mesmas estão em jogo: aqui, certas coisas não podem ser ditas, certas idéias não
podem ser expressas, certas políticas não podem ser propostas, certo comportamento
não pode ser permitido sem tornar a tolerância um instrumento para a continuidade
da servidão.
O perigo da “tolerância destrutiva” (Baudelaire), da “neutralidade
benevolente” com respeito à arte foi reconhecido: o mercado que absorve igualmente
bem (embora com freqüentes e súbitas flutuações) arte, anti-arte, e não-arte, todos os
estilos conflituosos possíveis, escolas, formas, abastece um “receptáculo complacente,
uma garganta amigável”1, na qual o impacto radical da arte, o protesto da arte contra
a realidade estabelecida é engolido. De qualquer forma, a censura da arte e da
literatura é regressiva sob todas as circunstâncias. A oeuvre [obra] autêntica não é e
não pode ser um suporte da opressão, e a pseudo-arte (que como tal pode ser um
suporte) não é arte. A arte encontra-se contra a história, porém, ela resiste à história
que tem sido a história da opressão, pois a arte submete a realidade às leis que são
diferentes daquelas estabelecidas: as leis da Forma que criam uma realidade
diferente - negação do estabelecido até mesmo onde a arte descreve a realidade
estabelecida. Mas em sua luta com a história, a arte se sujeita à história: a história
entra na definição da arte e entra na distinção entre a arte e a pseudo-arte. Dessa
maneira, acontece o que uma vez era arte se torna pseudo-arte. Formas prévias,
estilos e qualidades, modos prévios de protesto e recusa não podem ser recapturados
dentro ou contra uma sociedade diferente. Há casos onde uma oeuvre autêntica leva
1 Edgar WIND. Art and Anarchy. London: Faber, 1963.
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uma mensagem política regressiva - Dostoievski é um caso relevante. Entretanto, a
mensagem é anulada pela própria oeuvre: o conteúdo político regressivo é absorvido,
aufgehoben [suprimido] na forma artística: no trabalho como literatura.
A tolerância à liberdade de expressão é o modo de aperfeiçoamento, de
progresso na liberação, não porque não há nenhuma verdade objetiva, o
aperfeiçoamento deve necessariamente ser um acordo entre uma variedade de
opiniões, mas porque há uma verdade objetiva que pode ser descoberta, averiguada
apenas no aprendizado e na compreensão daquilo que é e daquilo que pode e
deveria ser feito por causa do aperfeiçoamento de uma parte da humanidade. Esse
“dever” comum e histórico não é imediatamente evidente, não está à mão: ele tem
que ser descoberto ao “cortar completamente”, “dividir”, “quebrar em pedaços” (dis-cutio)
o material dado - separando o certo e o errado, o bom e o ruim, o correto e o
incorreto. O sujeito cuja “melhoria” depende de uma prática histórica progressiva é
cada ser humano enquanto ser humano, e essa universalidade é refletida na
discussão que, a priori, não exclui nenhum grupo ou indivíduo. Mas até mesmo o
caráter inclusivo da tolerância liberal era, pelo menos na teoria, baseado na
proposição de que os seres humanos eram indivíduos (potencialmente) que poderiam
aprender a ouvir e a ver e poderiam sentir por eles mesmos, desenvolver os seus
próprios pensamentos, agarrar os seus verdadeiros interesses, direitos e capacidades,
também contra a opinião e a autoridade estabelecida. Essa era a razão da liberdade
de expressão e de assembléia. A toleração universal torna-se questionável quando
sua razão já não prevalece, quando a tolerância é administrada para indivíduos
manipulados e doutrinados que papagueiam a opinião dos seus mestres como se
fosse a sua própria, para eles heteronomia se tornou autonomia.
O telos da tolerância é a verdade. É evidente que a partir do registro histórico,
os porta-vozes autênticos da tolerância tiveram mais em mente uma e outra verdade
daquela da lógica proposicional e da teoria acadêmica. John Stuart Mill fala da
verdade que é perseguida na história e que não triunfa sobre a perseguição em
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virtude do seu “poder inerente”, que, na realidade, não tem nenhum poder inerente
“contra o calabouço e a estaca”. E ele enumera as “verdades” que eram cruelmente e
prosperamente liquidadas nos calabouços e à estaca: a de Arnold de Brescia, de Fra
Dolcino, de Savonarola, do Albigensians, Waldensians, Lollards, e Hussites. A
tolerância é a primeira e a principal para a causa dos hereges - o caminho histórico
rumo a humanitas aparece como heresia: alvo da perseguição pelos poderes que são.
Contudo, a heresia por si mesma não é símbolo da verdade.
O critério do progresso na liberdade de acordo com a qual Mill julga esses
movimentos é a Reforma. A avaliação é ex post, e a sua lista inclui a oposição
(Savonarola também teria queimado Fra Dolcino). Até mesmo a avaliação ex post é
contestável sobre sua verdade: a história corrige o julgamento - tarde demais. A
correção não ajuda às vítimas e não absolve seus executores. Contudo, a lição é clara:
a intolerância atrasou o progresso e prolongou a matança e a tortura de inocentes por
centenas de anos. Isso revira o caso da tolerância “pura”, indiferente? Há condições
históricas nas quais tal a toleração impede a liberação e multiplica as vítimas que são
sacrificadas ao status quo? A garantia indiscriminada de liberdades e de direitos
políticos pode ser repressiva? Tal tolerância pode servir para conter a mudança social
qualitativa?
Eu discutirei essa pergunta apenas com referência aos movimentos políticos,
às atitudes, às escolas de pensamento, às filosofias que são “políticas” no sentido
mais amplo - afetando a sociedade como um todo, transcendendo expressivamente a
esfera da privacidade. Acima de tudo, eu proponho uma substituição no foco da
discussão: ela não estará apenas preocupada, e nem fundamentalmente, com a
tolerância perante os extremos radicais, as minorias, os subversivos, etc., mas antes
estará preocupada com a tolerância perante as maiorias, perante a opinião pública e
oficial, perante os protetores estabelecidos da liberdade. Neste caso, a discussão pode
ter como um quadro de referência apenas uma sociedade democrática na qual as
pessoas, como indivíduos e como membros de organizações políticas e outras,
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participam na construção, na sustentação, e na mudança de políticas. Em um sistema
autoritário, as pessoas não toleram - elas suportam as políticas estabelecidas.
Sob um sistema constitucionalmente garantido e (geralmente e também sem
muitas e claras exceções) praticado são tolerados liberdades e direitos civis, a
oposição e a dissensão, a menos que elas propagem a violência e/ou a exortação para
a organização da subversão violenta. A hipótese subjacente é de que a sociedade
estabelecida é livre, e que nenhum aprimoramento, até mesmo uma mudança na
estrutura e nos valores sociais, ocorreria no curso normal dos eventos, preparados,
definidos, e testados na discussão livre e igualitária, na feira aberta de idéias e bens2.
Agora recordando a passagem de John Stuart Mill, eu chamei a atenção a premissa
escondida nessa suposição: discussão livre e igualitária pode cumprir a função
atribuída a ela somente se for expressão racional e se for desenvolvimento de
pensamento independente, livre do doutrinamento, da manipulação, da autoridade
estranha. A noção de pluralismo e dos poderes contraditórios não é nenhum
substituto para essa exigência. A pessoa poderia construir um estado em teoria, na
qual uma multidão de pressões diferentes, interesses, e autoridades compensam um
ao outro e resultam em um interesse verdadeiramente geral e racional. Todavia, essa
péssima construção ajusta uma sociedade na qual os poderes são e permanecem
desiguais e até mesmo aumentam o seu peso desigual quando eles tomam o seu
próprio curso. Essa construção ajusta até pior quando a variedade de pressões unifica
e coagula uma totalidade subjugadora, integrando os poderes compensatórios
particulares em virtude de um padrão crescente de vida e uma concentração
crescente de poder. Então, o trabalhador cujo real interesse entra em conflito com o
da administração, o consumidor comum cujo real interesse entra em conflito com o
do produtor, o intelectual cuja vocação entra em conflito com aquilo que os seus
2 Eu desejo reiterar para a discussão seguinte que, de fato, a tolerância não é indiferente e “pura” até
mesmo na sociedade mais democrática. As “limitações de fundo” declaradas na página [2 deste
livro?] restringem a tolerância antes de ela iniciar o processo. A estrutura antagônica da sociedade
manipula as regras do jogo. Aqueles que estiverem contra o sistema estabelecido estão a priori em
uma desvantagem a qual não é removida pela toleração das suas idéias, discursos, e jornais.
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empregadores constatam por eles mesmos, submetem os intelectuais a um sistema
contra o qual eles são impotentes e parecem irracionais. A idéia de alternativas
disponíveis evapora dentro de uma dimensão totalmente utópica onde ela se sente
em casa, pois uma sociedade livre é de fato irreal e indefinivelmente diferente da
existente. Sob essas circunstâncias, qualquer melhoria pode acontecer “no curso
normal dos eventos” e sem a subversão é provável que seja uma melhoria na direção
determinada pelos interesses particulares que controlam o todo.
Justamente por isso, essas minorias que se esforçam por uma mudança do
todo propriamente dito, sob ótimas condições que raramente prevalecem, serão
deixadas livres para deliberar e discutir, para falar e reunir-se - e serão deixadas
inofensivas e desamparadas diante da maioria subjugadora que milita contra a
mudança social qualitativa. Essa maioria é firmemente fundamentada na crescente
satisfação das necessidades e da co-ordenação mental - e tecnológica – a qual
testemunha o desamparo geral de grupos radicais em um sistema social que funciona
- bem.
Dentro da democracia abundante, prevalece a discussão abundante, e dentro
da moldura estabelecida, ela é tolerante a uma grande escala. Todos os pontos de
vista podem ser ouvidos: o Comunista e o Fascista, a Esquerda e a Direita, o branco e
o Negro, os militantes a favor do armamento e do desarmamento. Além do mais, os
debates infindavelmente prolongados a respeito da mídia, da opinião estúpida que é
tratada com o mesmo respeito que a inteligente, dos desinformados que podem falar
tanto quanto o informado, e da propaganda que anda junto com a educação, a
verdade com a falsidade. Essa toleração pura do sentido e do absurdo está justificada
pelo argumento democrático de que ninguém, nem em grupo nem individualmente,
está em posse da verdade e está capacitado para definir o que é certo e errado, bom e
ruim. Por essa razão, todas as opiniões competitivas devem ser submetidas “às
pessoas” para sua deliberação e escolha. Mas eu já sugeri que o argumento
democrático implica numa condição necessária, a saber, que as pessoas devem ser
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capazes de deliberar e de escolher com base no conhecimento, que elas têm que ter
acesso à informação autêntica, e que, nessa base, a avaliação delas deve ser o
resultado do pensamento autônomo.
No período contemporâneo, o argumento democrático para a tolerância
abstrata tende ser invalidado pela invalidação do próprio processo democrático. A
força libertária da democracia era a possibilidade que ela ofereceu à dissensão
efetiva, no indivíduo como também na escala social, sua abertura para formas
qualitativamente diferentes de governo, de cultura, de educação, de trabalho - da
existência humana em geral. A toleração da discussão livre e do direito igualitário da
oposição era definir e esclarecer as diferentes formas de dissensão: sua direção, seu
conteúdo, sua perspectiva. Mas com a concentração do poder econômico e político e
a integração de opostos em uma sociedade que usa a tecnologia como um
instrumento de dominação, a dissensão efetiva é bloqueada onde pudesse emergir
livremente; na formação de opinião, na informação e na comunicação, no discurso e
na assembléia. Sob o controle da mídia monopolizadora - eles mesmos, os meros
instrumentos de poder econômico e político - uma mentalidade é criada para a qual o
certo e o errado, o verdadeiro e o falso são predefinidos onde quer que eles afetem os
interesses vitais da sociedade. Antes de toda expressão e comunicação, isso é um
assunto de semântica: o bloqueio da dissensão efetiva, do reconhecimento do que
não é do sistema governante o qual começa na linguagem que é difundida e
administrada. O significado das palavras é severamente fixado. A persuasão racional,
a persuasão para o oposto é tudo, mas é impedida. As avenidas de entrada são
fechadas ao significado de palavras e a idéias diferentes das estabelecidas -
estabelecidas pela publicidade dos poderes que existem, e verificado na sua prática.
Outras palavras podem ser ditas e ouvidas, outras idéias podem ser expressas, mas, à
proporção volumosa da maioria conservadora (fora de tais enclaves como a
intelligentsia), elas são imediatamente “avaliadas” (i.e. automaticamente entendidas)
em termos da linguagem pública - uma linguagem que determina “a priori” a
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direção na qual se move o processo de pensamento. Assim o processo de reflexão
finaliza onde começou: nas condições e nas relações determinadas. Autovalidando-se,
o argumento da discussão repele a contradição, porque a antítese é redefinida nos
termos da tese. Por exemplo, tese: nós trabalhamos para paz; antítese: nós nos
preparamos para a guerra (ou até mesmo: nós empreendemos a guerra); unificação
de opostos; preparar-se para a guerra é trabalhar para a “paz”. A paz é redefinida
como necessária, na situação predominante, incluindo na preparação para a guerra
(ou até mesmo a guerra) e nessa forma orwelliana, o significado da palavra “paz” é
estabilizado. Dessa forma, o vocabulário básico da linguagem orwelliana opera a
priori como categorias de entendimento: pré-formando todo o conteúdo. Essas
condições invalidam a lógica da tolerância que envolve o desenvolvimento racional
do significado e impede o fechamento do significado. Conseqüentemente, a
persuasão através da discussão e da igual apresentação de opostos (até mesmo onde
realmente é, igual) facilmente perde a sua força libertária como fatores de
entendimento e de aprendizado; mais provavelmente eles estão distantes de
fortalecer a tese estabelecida e de repelir as alternativas.
A imparcialidade até o extremo, o tratamento igual dos assuntos
competitivos e conflituosos realmente é uma exigência básica para a tomada de
decisão no processo democrático - é uma exigência igualmente básica para definir os
limites da tolerância. Mas em uma democracia com organização totalitária, a
objetividade pode cumprir uma função muito diferente, a saber, fortalecer uma
atitude racional que tende a obliterar a diferença entre o verdadeiro e o falso, entre a
informação e o doutrinamento, entre o certo e o errado. Na realidade, a decisão entre
opiniões contrárias foi tomada antes que a apresentação e a discussão se colocassem
a caminho-feito, não por causa de uma conspiração ou de um patrocinador ou de um
editor, nem por qualquer ditadura, mas antes pelo “curso normal dos eventos” que é
o curso de eventos administrados e pela mentalidade moldada nesse curso. Também
aqui, é o todo que determina a verdade. Então a decisão se afirma, sem qualquer
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violação aberta da objetividade, em tais coisas como a composição de um jornal (com
o rompimento da informação vital em pedaços permeados por material estranho,
itens irrelevantes, relegando algumas notícias radicalmente negativas a um lugar
obscuro), na justaposição de anúncios deslumbrantes com horrores turbulentos, na
introdução e na interrupção da transmissão dos fatos por comerciais esmagadores. O
resultado é uma neutralização de opostos, uma neutralização, porém, que toma lugar
sobre as bases firmes da limitação estrutural da tolerância e dentro de uma
mentalidade pré-formada. Quando uma revista imprime lado a lado uma
reportagem negativa e uma positiva do FBI, ela cumpre honestamente as exigências
da objetividade: todavia, as possibilidades são de que o positivo vença, porque a
imagem da instituição está gravada profundamente na mente das pessoas. Ou, se um
repórter informa a tortura e o assassinato de trabalhadores de direitos civis no
mesmo tom não emotivo que ele usa para descrever a bolsa de valores ou o tempo,
ou com a mesma grande emoção com que ele anuncia os seus comerciais, então tal
objetividade é espúria - mais, ela ofende a humanidade e a verdade por estar
tranqüila onde alguém deveria estar enfurecida, por abster-se da acusação onde a
acusação está nos próprios fatos. A tolerância expressada em tal imparcialidade serve
para minimizar ou até mesmo para absolver a supressão e a intolerância
predominante. Se a objetividade tem qualquer coisa a ver com a verdade, e se
verdade for mais que um assunto da lógica e da ciência, então este tipo de
objetividade é falso, e esse tipo de tolerância é desumano. E se é necessário quebrar o
universo estabelecido do significado (e a prática incluída nesse universo) a fim de
possibilitar ao ser humano descobrir o que é verdadeiro e falso, essa imparcialidade
enganosa teria que ser abandonada. As pessoas expostas a essa imparcialidade não
são nenhuma tabulae rasae, elas são doutrinadas pelas condições sob as quais elas
vivem e pensam e as quais elas não transcendem. Para permitir a elas tornarem-se
autônomas, acharem por elas mesmas o que é verdadeiro e o que é falso para os seres
humanos na sociedade existente, eles teriam que ser libertados do doutrinamento
predominante (que já não é reconhecido como doutrinamento). Mas isso significa
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que a tendência teria que ser invertida: eles teriam que adquirir informações
inclinadas na direção oposta. Porque os fatos nunca são imediatamente dados e
nunca imediatamente acessíveis; eles são estabelecidos, “mediados” por aqueles que
os fizeram; a verdade, “a plena verdade” ultrapassa esses fatos e requer a ruptura
com a sua aparência. Essa ruptura - condição prévia e símbolo de toda a liberdade de
pensamento e de expressão - não pode ser realizada dentro de uma moldura
estabelecida da tolerância abstrata e da objetividade espúria, porque essas são
precisamente os fatores que pré-condicionam a mentalidade contra a ruptura.
As barreiras reais que a democracia totalitária ergue contra a eficácia da
dissensão qualitativa são fracas e suficientemente agradáveis comparadas com as
práticas de uma ditadura que reivindica educar as pessoas na verdade. Com todas as
suas limitações e distorções, a tolerância democrática está abaixo de todas as
circunstâncias mais humanitárias do que uma intolerância institucionalizada que
sacrifica os direitos e as liberdades das gerações vivas por causa das gerações futuras.
A questão é se essa é a única alternativa. Eu agora tentarei sugerir a direção na qual
uma resposta pode ser buscada. Em todo caso, o contraste não está entre a
democracia na teoria e a ditadura na teoria.
Democracia é uma forma de governo que ajusta tipos muito diferentes de
sociedade (isso se confirma até mesmo para uma democracia com voto universal e
igualdade antes da lei), e os custos humanos de uma democracia, sempre e em todos
lugares, são aqueles extorquidos pela sociedade cujo governo ela é. O seu alcance se
estende a toda forma de exploração normal, de pobreza, e de insegurança para as
vítimas de guerras, de ações policiais, de ajuda militar, etc. com as quais a sociedade
está comprometida - e não só com as vítimas dentro de suas próprias fronteiras.
Essas considerações nunca podem justificar a extorsão de diferentes sacrifícios e as
diferentes vítimas em nome de uma melhor sociedade futura, mas elas reconhecem o
peso dos custos envolvidos na perpetuação de uma sociedade existente contra o risco
de promover alternativas que ofereçam uma possibilidade razoável de pacificação e
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liberação. Certamente, de nenhum governo pode ser esperado que fortaleça sua
própria subversão, mas em uma democracia assim o direito é adquirido pelas
pessoas (i.e. pela maioria das pessoas). Isso significa que os modos, nos quais uma
maioria subversiva poderia se desenvolver, não deveriam ser bloqueados sobre os
quais, e se eles são bloqueados por uma repressão organizada e pelo doutrinamento,
sua reabertura podem exigir meios aparentemente antidemocráticos. Eles incluiriam
a retirada da toleração do discurso e da assembléia de grupos e movimentos que
promovem políticas agressivas, armamento, chauvinismo, discriminação por motivos
de raça e de religião, ou que se opõem à extensão dos serviços públicos, de
previdência social, de cuidado médico, etc. Além disso, a restauração da liberdade de
pensamento pode necessitar restrições novas e rígidas em ensinos e práticas nas
instituições educacionais que, pelos seus mesmos muitos métodos e conceitos,
sirvam para incluir a opinião dentro do universo estabelecido de discurso e
comportamento - impedindo a priori assim uma avaliação racional das alternativas.
Na condição para a qual a liberdade de pensamento envolve a luta contra a
desumanidade e a restauração de tal liberdade também implicaria na intolerância
perante a pesquisa científica no interesse de “impedimentos” mortais de resistência
humana anormal sob condições desumanas, etc. eu discutirei agora a questão como
quem vai decidir a distinção entre liberar e reprimir, ensinos e práticas humanos e
desumanos; Eu já sugeri que essa distinção não é uma questão de preferência de
valor, mas de critérios racionais.
Embora a reversão da tendência no empreendimento educacional pudesse,
pelo menos, ser obrigada concebivelmente pelos estudantes e por seus professores, e
assim fosse auto-imposta, a retirada sistemática da tolerância perante opiniões e
movimentos regressivos e repressivos só poderia ser enfrentada como resultados de
pressão em larga escala que chegaria a um motim. Em outras palavras, isso
pressuporia aquilo que ainda será realizado: a reversão da tendência. De qualquer
forma, a resistência em ocasiões particulares, o boicote, a não-participação dos
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