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CAPÍTULO 5
      "Eu penso 99 vezes, e nada descubro; eu deixo de pensar e mergulho num grande
silêncio, e eis que a verdade me é revelada."
      (Albert Einstein)


      Os oito graus centígrados colocavam fora de hipótese almoçar na esplanada. No
interior, uma lareira de dimensões gigantescas era o centro das atenções, a par de um
magnífico aquário com dezenas de exemplares piscícolas. Dir-se-ia que as magníficas
danças que pareciam executar só poderiam ter tido o dedo de reputado coreógrafo. Mal
sabiam que, para quase todos, aquele poderia bem ser o seu último tango no cais. Ou o
canto do cherne…
      Escolheram uma mesa perto da lareira. Para além do conforto térmico, aquela era
a mesa que lhes permitia estar mais afastados dos outros clientes. Não que não
gostassem de socializar, mas, nesta altura do campeonato, todo o cuidado era pouco.
      Se Teresa adorava as entradas daquele restaurante, Rodolfo não lhes resistia.
Umas gambas cozidas abriram as hostilidades, a que se juntaram umas coxinhas de
caranguejo divinais. O vinho branco, fresquíssimo, começou logo a escorrer, estando
montado o cenário para um almoço a roçar a perfeição.
      Não foi difícil escolher o prato principal. Embora fossem com o engodo no peixe,
a sugestão de polvo à lagareiro caiu-lhes no goto.
      — Que tal, Teresa? Está delicioso, não está? Queres que peça ao empregado para
trazer a cabeça do bicho? Não quero que fiques aguada por não chupares uma cabeça
de…
      — Não tens emenda, Rodolfo! Sim, está mesmo uma maravilha. O peixe fica para
a próxima. Quer dizer, tens noção de que polvo não é peixe, não tens? — perguntou
Teresa, picando Rodolfo.
      — Para tua informação, Teresa, dá-se a coincidência (eh pá, mais coincidências
não!) de eu ser um expert em cefalópodes. Polvos, lulas, chocos, tudo bicheza com pés e
cabeça. Cephalopoda, do grego kephale, que significa cabeça, e pous, podos, o pé.
      — Muito bem, caro Cousteau, desconhecia essa tua faceta de biólogo marinho!
Pensava que só gostavas de números e de andar de cabeça no ar!
      — Lá está, Teresa, temos de estar sempre preparados para as coisas mais
inesperadas. Já agora, estás a ver aquele quadro que tens lá em casa, na sala, pintado a
tinta-da-china? Sabias que, dantes, era com a tinta libertada por estes moluscos que se
fazia essa tinta, também conhecida por sépia ou nanquim?
     — Bem, as coisas que tu sabes. Não, não fazia a mínima ideia.
     — Pois é, aproveita, que eu não duro para sempre.
     — Primeiro falas em moluscos e agora dizes que não duras para sempre. Começo
a ficar com dúvidas acerca da tua masculinidade. Vá, estou a brincar. Dizem que o
priapismo dói que se farta!
     — O quem?
     — Priapismo. É a minha vez de te ensinar alguma coisa.
     — Parece-me justo. Avança.
     — O nome vem de Príapo, o deus grego da fertilidade, filho de Dionísio e de
Afrodite. É normalmente representado por um homem, de alguma idade, do qual se
destaca um enorme pénis. Diz a lenda que foi Hera, por ciúmes de Afrodite, que fez
com que ele nascesse já assim. Teve mesmo direito a diversos poemas erótico-festivos,
sendo o Corpus Priapeorum a colecção mais interessante. Tenho lá em casa um livro
que podes ler, se te interessar. Foi um amigo catalão que mo ofereceu, quando estive, há
uns anos, de férias em Barcelona. Chama-se A Príapo, dios del falo.
     — Notável, sem dúvida. Só não explicaste o que é o pia… pria…
     — Priapismo. Pois, o priapismo é uma situação médica bastante dolorosa, na qual
o paciente não consegue perder a erecção, podendo durar quatro horas ou mais!
     — Situação médica, dizes tu? A tua descrição parece encaixar perfeitamente no
ideal de muitos homens… e mulheres, não?
     — Nem por isso, Rodolfo. Sabes que, se não for tratado de imediato, pode levar à
impotência sexual de forma definitiva. Não estás interessado, pois não? Ainda que isso
te permitisse aumentar os teus relacionamentos sexuais aí em… umas três horas e
cinquenta e oito minutos, calculo!
     — Estás com umas piadas giras, estás! Olha, está na altura de pedirmos a
sobremesa e ainda não falámos do cherne da questão!
     Enquanto esperavam pela sobremesa caseira e pelo molotov, passaram em revista
os principais acontecimentos que o Aleascript proporcionara até ao momento. O que é
que sabiam?
 Paulo, o amigo informático de Rodolfo, criara, a seu pedido, o programa
informático Aleascript, para extracção aleatória de palavras, com o propósito de o
ajudar a escrever uma história;
       Este, por brincadeira, programara o Aleascript para, nas duas primeiras
utilizações de Rodolfo, lhe fornecer conjuntos de palavras (escolhidas por si por
conhecimento da vida deste) que lhe fizessem lembrar dois acontecimentos marcantes
da sua vida;
       Nas utilizações seguintes, o processo passaria a ser, como pedido,
completamente aleatório, graças ao algoritmo criado por Paulo;
       Contudo, o processo nunca passou para o funcionamento casual, mantendo, pelo
contrário, as características das primeiras duas extracções;
       Com o programa Aleascript em funcionamento, ao clicar sucessivamente (cinco
vezes) na tecla "enter", as palavras, ao invés de surgirem de forma aleatória, começaram
a aparecer organizadas, relatando acontecimentos passados da vida de Rodolfo;
       Descobriram que o Aleascript não retratava exclusivamente acontecimentos
passados de Rodolfo mas também de Teresa;
       Graças a esta descoberta, percebem que o Aleascript reage em função de quem o
utiliza;
       Ao relatar um acontecimento do irmão gémeo (verdadeiro) de Paulo, ficou-se a
saber que o Aleascript consegue fazer um scan do utilizador, identificando-o pelo seu
código genético.


      Quando estavam a terminar a revisão da matéria dada, chegaram as sobremesas.
Curiosamente, o molotov vinha acompanhado de um pequeno cartão onde, para além da
receita, era descrita a origem do seu nome. Ficaram a saber que o seu nome original era
“pudim Malakof” e que estava relacionado com a guerra da Crimeia, 1854-1855. Por ter
conquistado a fortaleza de Malakof, a qual protegia a cidade de Sebastopol, actual
cidade do sul da Ucrânia, o general (do Segundo Império Francês) Pélissier recebeu o
título de duque de Malakof. É uma sobremesa de tempos de guerra, visto que é feita
com claras e não com gemas de ovo. Durante a guerra de 1939-45, o ministro dos
Negócios Estangeiros da URSS, Vyacheslav Mikalovich Skriabine, era conhecido, na
clandestinidade, por “Molotov”. Talvez por isto os portugueses passassem a designar
esta sobremesa por “pudim Molotov”.
— Está visto que hoje é o dia de todas as aprendizagens — disse Teresa, após
engolir a última colherada do seu malakov. — E sabes que mais? Quase que aposto
quais seriam as cinco palavras que o Aleascript me devolveria se o experimentasse hoje.
     — A sério? Diz lá então.
     — Fácil: “COMER”, “FARTAR”, “MULA”, “BANHAS”, “BALEIA”, hai
capito?

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  • 1. CAPÍTULO 5 "Eu penso 99 vezes, e nada descubro; eu deixo de pensar e mergulho num grande silêncio, e eis que a verdade me é revelada." (Albert Einstein) Os oito graus centígrados colocavam fora de hipótese almoçar na esplanada. No interior, uma lareira de dimensões gigantescas era o centro das atenções, a par de um magnífico aquário com dezenas de exemplares piscícolas. Dir-se-ia que as magníficas danças que pareciam executar só poderiam ter tido o dedo de reputado coreógrafo. Mal sabiam que, para quase todos, aquele poderia bem ser o seu último tango no cais. Ou o canto do cherne… Escolheram uma mesa perto da lareira. Para além do conforto térmico, aquela era a mesa que lhes permitia estar mais afastados dos outros clientes. Não que não gostassem de socializar, mas, nesta altura do campeonato, todo o cuidado era pouco. Se Teresa adorava as entradas daquele restaurante, Rodolfo não lhes resistia. Umas gambas cozidas abriram as hostilidades, a que se juntaram umas coxinhas de caranguejo divinais. O vinho branco, fresquíssimo, começou logo a escorrer, estando montado o cenário para um almoço a roçar a perfeição. Não foi difícil escolher o prato principal. Embora fossem com o engodo no peixe, a sugestão de polvo à lagareiro caiu-lhes no goto. — Que tal, Teresa? Está delicioso, não está? Queres que peça ao empregado para trazer a cabeça do bicho? Não quero que fiques aguada por não chupares uma cabeça de… — Não tens emenda, Rodolfo! Sim, está mesmo uma maravilha. O peixe fica para a próxima. Quer dizer, tens noção de que polvo não é peixe, não tens? — perguntou Teresa, picando Rodolfo. — Para tua informação, Teresa, dá-se a coincidência (eh pá, mais coincidências não!) de eu ser um expert em cefalópodes. Polvos, lulas, chocos, tudo bicheza com pés e cabeça. Cephalopoda, do grego kephale, que significa cabeça, e pous, podos, o pé. — Muito bem, caro Cousteau, desconhecia essa tua faceta de biólogo marinho! Pensava que só gostavas de números e de andar de cabeça no ar! — Lá está, Teresa, temos de estar sempre preparados para as coisas mais inesperadas. Já agora, estás a ver aquele quadro que tens lá em casa, na sala, pintado a
  • 2. tinta-da-china? Sabias que, dantes, era com a tinta libertada por estes moluscos que se fazia essa tinta, também conhecida por sépia ou nanquim? — Bem, as coisas que tu sabes. Não, não fazia a mínima ideia. — Pois é, aproveita, que eu não duro para sempre. — Primeiro falas em moluscos e agora dizes que não duras para sempre. Começo a ficar com dúvidas acerca da tua masculinidade. Vá, estou a brincar. Dizem que o priapismo dói que se farta! — O quem? — Priapismo. É a minha vez de te ensinar alguma coisa. — Parece-me justo. Avança. — O nome vem de Príapo, o deus grego da fertilidade, filho de Dionísio e de Afrodite. É normalmente representado por um homem, de alguma idade, do qual se destaca um enorme pénis. Diz a lenda que foi Hera, por ciúmes de Afrodite, que fez com que ele nascesse já assim. Teve mesmo direito a diversos poemas erótico-festivos, sendo o Corpus Priapeorum a colecção mais interessante. Tenho lá em casa um livro que podes ler, se te interessar. Foi um amigo catalão que mo ofereceu, quando estive, há uns anos, de férias em Barcelona. Chama-se A Príapo, dios del falo. — Notável, sem dúvida. Só não explicaste o que é o pia… pria… — Priapismo. Pois, o priapismo é uma situação médica bastante dolorosa, na qual o paciente não consegue perder a erecção, podendo durar quatro horas ou mais! — Situação médica, dizes tu? A tua descrição parece encaixar perfeitamente no ideal de muitos homens… e mulheres, não? — Nem por isso, Rodolfo. Sabes que, se não for tratado de imediato, pode levar à impotência sexual de forma definitiva. Não estás interessado, pois não? Ainda que isso te permitisse aumentar os teus relacionamentos sexuais aí em… umas três horas e cinquenta e oito minutos, calculo! — Estás com umas piadas giras, estás! Olha, está na altura de pedirmos a sobremesa e ainda não falámos do cherne da questão! Enquanto esperavam pela sobremesa caseira e pelo molotov, passaram em revista os principais acontecimentos que o Aleascript proporcionara até ao momento. O que é que sabiam?
  • 3.  Paulo, o amigo informático de Rodolfo, criara, a seu pedido, o programa informático Aleascript, para extracção aleatória de palavras, com o propósito de o ajudar a escrever uma história;  Este, por brincadeira, programara o Aleascript para, nas duas primeiras utilizações de Rodolfo, lhe fornecer conjuntos de palavras (escolhidas por si por conhecimento da vida deste) que lhe fizessem lembrar dois acontecimentos marcantes da sua vida;  Nas utilizações seguintes, o processo passaria a ser, como pedido, completamente aleatório, graças ao algoritmo criado por Paulo;  Contudo, o processo nunca passou para o funcionamento casual, mantendo, pelo contrário, as características das primeiras duas extracções;  Com o programa Aleascript em funcionamento, ao clicar sucessivamente (cinco vezes) na tecla "enter", as palavras, ao invés de surgirem de forma aleatória, começaram a aparecer organizadas, relatando acontecimentos passados da vida de Rodolfo;  Descobriram que o Aleascript não retratava exclusivamente acontecimentos passados de Rodolfo mas também de Teresa;  Graças a esta descoberta, percebem que o Aleascript reage em função de quem o utiliza;  Ao relatar um acontecimento do irmão gémeo (verdadeiro) de Paulo, ficou-se a saber que o Aleascript consegue fazer um scan do utilizador, identificando-o pelo seu código genético. Quando estavam a terminar a revisão da matéria dada, chegaram as sobremesas. Curiosamente, o molotov vinha acompanhado de um pequeno cartão onde, para além da receita, era descrita a origem do seu nome. Ficaram a saber que o seu nome original era “pudim Malakof” e que estava relacionado com a guerra da Crimeia, 1854-1855. Por ter conquistado a fortaleza de Malakof, a qual protegia a cidade de Sebastopol, actual cidade do sul da Ucrânia, o general (do Segundo Império Francês) Pélissier recebeu o título de duque de Malakof. É uma sobremesa de tempos de guerra, visto que é feita com claras e não com gemas de ovo. Durante a guerra de 1939-45, o ministro dos Negócios Estangeiros da URSS, Vyacheslav Mikalovich Skriabine, era conhecido, na clandestinidade, por “Molotov”. Talvez por isto os portugueses passassem a designar esta sobremesa por “pudim Molotov”.
  • 4. — Está visto que hoje é o dia de todas as aprendizagens — disse Teresa, após engolir a última colherada do seu malakov. — E sabes que mais? Quase que aposto quais seriam as cinco palavras que o Aleascript me devolveria se o experimentasse hoje. — A sério? Diz lá então. — Fácil: “COMER”, “FARTAR”, “MULA”, “BANHAS”, “BALEIA”, hai capito?