Do ai 5 à distensão - milagre econômico repressao e censura
1. O jornalismo brasileiro do AI-5 à
distensão: “milagre econômico”,
repressão e censura
Victor Gentilli*
Resumo: Abstract:
Panorama da conjuntura brasileira dos anos 1969 a This paper reviews the Brazilian political and econo-
1973, marcados pelo “milagre econômico” por um lado mic situation between 1969 and 1973, a period market
e pela repressão mais brutal. Este foi o período de by the “economic miracle” and by a brutal political
dificuldades dos jornais, do surgimento da imprensa control. The alternative press flourished in this ye-
alternativa e do controle da imprensa pela censura. ars while the press faced many difficulties including
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censorship.
Palavras-chave: Key-words:
“milagre econômico”, Ditadura militar, imprensa alternativa, “economic miracle”, military rule, alternative press, censorship,
censura, história history
2. A conjuntura econômica A expansão da de 5,4% para 6,6%, e a quase duplicação
O que se convencionou chamar “milagre economia desse das exportações. O crescimento médio do
brasileiro” foi um período de rápido cresci- Produto Interno Bruto (PIB), no período
teve início no
mento da economia brasileira, entre 1968 1967/1973 atingiu 11,2 % ao ano, atingindo
Plano de Metas,
e 1973, bene-ficiando-se de ampliação do o pico em 1973.
iniciado ainda com O grande desenvolvimento do período be-
comércio mundial e do capital financei-
JK. A presença do neficiou desigualmente a sociedade brasilei-
ro inter-nacional, num momento em que
foram aumentadas excepcionalmente as capital estrangeiro ra. Além do crescimento dos setores produ-
trocas externas, e os empréstimos estran- se deu na forma tivos, sobretudo aqueles ligados à expansão
geiros, na época a juros baratos. de investimentos econômica, também foram beneficiados seg-
A expansão da economia desse teve iní- diretos e de mentos de classe média de maior renda.
cio no Plano de Metas, iniciado ainda com A renda concentrou-se ainda mais e houve
empréstimos.
JK. A presença do capital estrangeiro se queda real no valor do salário mínimo.
deu na forma de investimentos diretos e Os salários vão se recuperar gradualmen-
de empréstimos. te entre 1969 e 1972, só voltando a crescer o
O comando da economia no governo do seu poder aquisitivo após 1973, evidencian-
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general Emílio Garrastazu Médici esteve do a estratégia de arrocho salarial da dita-
nas mãos de Delfim Netto, que estava no dura como um todo - e particularmente do
poder desde o período da Junta Militar governo Médici -, como mecanismo para fa-
em 1969. vorecer a acumulação do capital e da renda.
Sua política econômica possibilitou o No governo Médici, a euforia do desen-
aumento do crédito ao setor privado e es- volvimento motivou ampla divulga-ção do
timulou a produção para o mercado inter- crescimento da indústria automo-bilística,
no, fato que levaria ao círculo virtuoso da da produção de bens duráveis, além dos
economia do período, coin-cidente com o grandes projetos como a hidroelétrica de
governo Médici. Itaipu, a ponte Rio-Niterói e a tentativa da
Manteve-se assim, a mesma matriz de construção da rodovia Transamazônica. Es-
crescimento do Plano de Metas (repete-se sas iniciativas volta-das supostamente ao
o efeito econômico do desenvolvimen-tis- crescimento indus-trial chegaram a ser tra-
mo da era JK), processo que leva a ou- tadas como objeto de orgulho nacional.
tro período com aumento de importações Antes do ápice do desenvolvimento econô-
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3. mico em 1973, a má distribuição de renda turas paraestatais de repressão e do méto-
no Brasil, chegou a ser criticada pelo Ban- do de obtenção de informações por meio de
co Mundial em 1972. A imagem do “cres- torturas, fato que levou a muitas prisões. O
cimento do bolo” para divisão posterior, fato mais marcante que inaugura o seu go-
cunhada por Delfim Netto, foi uma retóri- verno é o assassinato de Carlos Marighella,
ca que não se preocupou em camuflar as líder da ALN (Ação Libertadora Nacional)
escolhas políticas realizadas pelo modelo na semana de sua posse.
econômico. Apesar da dura repressão aos militantes
clandestinos de esquerda, no ano de 1970
A conjuntura política foram realizados o seqüestro do cônsul japo-
Politicamente, o período Médici foi o nês em São Paulo, do embaixador alemão e
mais duro de todo o regime militar. O do embaixador suíço, todos realizados pela
prenúncio do que viria acontecer já ha- Vanguarda Popular Revolucionária (VPL),
via sido anunciado no ano anterior com a comandada por Carlos Lamarca.
decretação do AI-5. Os conflitos políticos Carlos Lamarca, ex-oficial do Exército
tornaram-se mais radicalizados: de um e instrutor de segurança de bancos, que
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lado, a repressão cada vez mais dura nos desertara, acompanhado de vários outros
porões da ditadura e, de outro, segmentos militares em janeiro de 1969, fugiu de um
da esquerda entram definitivamente para quartel em Osasco levando armas e muni-
a luta armada, promovem seqüestros de O fato mais ções, escondendo-se na região do Vale do
diplomatas, tentam articular guerrilha no marcante que Ribeira, onde criou um foco de guerrilha ru-
campo e na cidade. inaugura o seu ral. Por suas ações espetaculares tornou-se
Estimulados pelas vencedoras guer- governo é o um herói da luta armada, mas é morto em
ri-lhas cubana e vietcong e também pela assassinato de setembro de 1971 por agentes de segurança
“Revolução Cultural” promovida por Mao- no interior da Bahia.
Carlos Marighella,
Zetung na China, os militantes radicais Lamarca pretendia aderir à luta armada
líder da ALN
de esquerda enfrentavam o regime militar saindo do quartel onde servia num cami-
(Ação Libertadora
com um projeto revolucionário. nhão carrregado de armamentos, munição
O governo Médici tem início em meio ao Nacional) na e novos guerrilheiros. Poucos dias antes, o
pleno desenvolvimento dos aparelhos de semana de sua caminhão, que fora roubado e estava sen-
repressão e “aperfeiçoamento” das estru- posse. do pintado num campo de treinamento de
4. guerrilhas no vale do Ribeiro é descober- O sistema macia política sobre seus adversários polí-
to. A grande maioria consegue fugir, mas repressivo manteve- ticos custou muitas vidas, além dos guer-
um militante é preso. rilheiros mortos em ações de perseguição
se íntegro e a
Diante das circunstâncias, o capitão e luta. Muitos militantes foram assassina-
imprensa manteve
Carlos Lamarca não abdica de seus pla- tos sob tortura e outros em circunstâncias
nos na totalidade. Carrega uma Kombi
o mais absoluto de “desaparecimentos” nunca explicados.
do Exército, com armas e munição, e sai, silêncio. O que Possibilitou, inclusive, o surgimento de um
normalmente, com ela do quartel. Era viria a ocorrer no poder paralelo nos porões da ditadura, pela
um líder querido e admirado no Exérci- Araguaia apenas certeza da impunidade.
to, campeão de tiro. Sua deserção torna o anos depois seria
conflito militar muito mais tenso. de conhecimento da O sistema midiático no período
Sua morte, assim como de outras princi- O sistema midiático como o que conhece-
sociedade.
pais lideranças e as prisões dos principais mos hoje, configurado e consolidado na dé-
quadros da resistência, provocou grandes cada de 1970, teve seu início nos paradoxos
baixas na luta armada. As sucessivas vi- da associação entre modernização produtiva
tórias da repressão sobre os grupos guer- e forte repressão política. Tanto a moderni-
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rilheiros da resistência armada vão dando zação dos maquinários, quanto a reforma
uma nova forma ao quadro político. das formas de produção das notícias, além
Já em 1973, a resistência armada prati- do aparecimento dos surpreendentes jor-
camente se esgotara. A única exceção é a nais alternativos, foram possibilitados pelos
guerrilha que o PCdoB mantém na região processos desencadeados a partir do extra-
do Araguaia, uma região de fronteira en- ordinário rigor da ditadura e da resistência
tre os Estados do Pará, Maranhão e Goi- a ela.
ás, sob a orientação de militantes de linha Na imprensa, assim como na política, a
pró-chinesa do PCdoB, que foi dizimada década de 1970 foi uma época extraordina-
em 1976. O sistema repressivo manteve- riamente rica, complexa e definidora dos
se íntegro e a imprensa manteve o mais caminhos que o país percorreria no futuro.
absoluto silêncio. O que viria a ocorrer no A imprensa, como uma espécie de porta-voz
Araguaia apenas anos depois seria de co- de seu tempo, acompanha as ambivalências
nhecimento da sociedade. do momento. Ora adere ou simplesmente
O objetivo da ditadura militar de supre- se cala, ora reage, sinalizando para o leitor
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5. os acontecimentos, às vezes buscando sua maciço de capital na Rede Globo ajudam a
cumplicidade. compreender o modo como se configurou o
Foi também um período em que um con- panorama midiático no Brasil.
junto de fatores e uma feliz conjunção de Um terceiro fator - para o sucesso da im-
circunstâncias forneceram as condições plantação da Rede Globo no país -, decorre
que permitiram o surgimento de uma decisivamente das circunstâncias da morte
nova realidade midiática no país, com o de Assis Chateaubriand em 1968, à qual se
esplendor da Rede Globo de Televisão. seguiu a crise no sistema de condomínio por
Entre os fatores desse sucesso, pode-se ele criado.
identificar a emergência do aludido “mila- Tal crise iria gerar um desmantelamen-
gre econômico”, cujo crescimento econômi- to das emissoras de rádio e televisão e jor-
co, aliado aos investimentos estrangeiros nais do grupo pioneiro da mídia eletrônica
em bens de consumo de massa, possibi- no Brasil, os Diários e Emissoras Associa-
litaram o aparecimento de um mercado dos. Hoje, apenas o Correio Braziliense, em
consumidor maior, ao qual podia-se che- Brasília, e O Estado de Minas, em Minas
gar por meio dos anúncios televisivos. Os Gerais, são empresas relativamente rentá-
A imprensa, como 91
anunciantes necessitavam alcançar as veis de um império que já havia tido jornais
uma espécie de
grandes massas das cidades e injetaram e emissoras em todas as principais capitais
grandes somas de dinheiro em comerciais,
porta-voz de seu do país.
que beneficiaram, sobretudo, a expansão tempo, acompanha A TV Globo, revela, entretanto, seu profis-
das redes de televisão. as ambivalências sionalismo administrativo na comercializa-
Um segundo aspecto que determina do momento. ção de segundos definidos, na estruturação
essa mudança decorre dos investimentos Ora adere ou da grade de programação e na consolidação
estatais na Embratel, que permitiram a da rede nacional, apropriando-se da experi-
simplesmente se
difusão por satélite e por microondas dos ência pioneira da TV Rio, dirigida por Wal-
cala, ora reage,
sinais de TV, criando as condições para a ter Clark (Clark: 1991).
sinalizando
chamada “integração nacional”, o surgi- Se a TV vivia seu esplendor - pois era
mento da TV em cores, tecnologia já di-
para o leitor os muito mais fundada no entretenimento do
fundida em outros países, mas nova no acontecimentos, às que na informação; portanto, menos depen-
Brasil, e o acordo Time-Life que permitiu vezes buscando sua dente das conjunturas políticas -, as revis-
o acesso a novas tecnologias e o ingresso cumplicidade. tas e jornais viviam os “anos de chumbo”.
6. Para o lançamento de Veja, jovens de Os jornais, que até 1968 vinham experi-
Se a TV vivia
todo o Brasil foram recrutados para trei- mentando um novo padrão profissio-nal,
seu esplendor
namento em São Paulo durante meses. menos partidário e mais voltado para o in-
- pois era muito
A enorme equipe prepara-se cuidadosa- teresse público da cidadania, vêem-se, com
mente para por nas ruas a primeira re-
mais fundada no a vitória dos militares da linha dura, consa-
vista semanal de informação brasileira. entretenimento do grados pelo governo Médici, de frente com a
Newsweek, mais que Time é a base dessa que na informação; censura. O Jornal do Brasil que produzira
revista, embora Mino Carta, seu criador portanto, menos uma edição histórica com a edição do AI-5,
e primeiro diretor de redação, tenha vi- dependente das com toda a primeira página ludibriando os
sitado praticamente todas as grandes re- censores foi um exemplo de resistência ime-
conjunturas
vistas semanais do mundo quando ainda diata ao arbítrio.
políticas -, as
trabalhava o projeto de Veja. O Estado de São Paulo publica seus edito-
revistas e jornais
Todo o antigo modo de fazer jornalismo riais como verdadeiros libelos pela liberda-
impresso no Brasil será revisto por Veja.
viviam os “anos de de de imprensa, que viria a somar na lista
Nos primeiros anos após sua fundação, as chumbo”. de textos opinativos definitivos da história
matérias não eram assinadas. A leitura da imprensa brasileira.
92
da revista dava a impressão de ter sido Semelhante ao “Basta” e “Chega”, dois
escrita por uma única pessoa. Isso, por- editoriais do Correio da Manhã, no final de
que a redação mantinha uma equipe de março de 1964, o editorial “Instituições em
copidesques, redatores e editores que ti- Frangalhos”, de O Estado de São Paulo tor-
nham um cuidado especial com o texto. nar-se-ia o marco da repulsa da opinião pú-
É certo que já com Realidade, expe-ri- blica (ainda não se usava a expressão socie-
mentou-se no Brasil a “editoria de texto”, dade civil, mas já era ela que se manifesta-
conforme relata Sérgio de Souza (Faro: va) ao endurecimento definitivo do governo
1999). Mas em Realidade houve apenas perpetrado a 13 de dezembro de 1968.
experiência, até porque a revista tinha to- O Ato Institucional no 5 que motivaria o O
dos as suas grandes reportagens assina- Estado a produzir este editorial significava
das. Será em Veja que o modelo se conso- o golpe dentro do golpe e a ditadura total e
lida como padrão para revista semanal. absoluta.
Esses marcos, que indicam as reações ini-
A censura à imprensa ciais à ditadura, serão muitas vezes relem-
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7. brados como referências, pois a imprensa, repressão, que já atingira níveis além da
a partir da nova conjuntura política, terá barbárie.
ainda muito a enfrentar para driblar a Outro exemplo da resistência da impren-
censura (nos poucos veículos que ousaram sa pode ser observada na atitude da revis-
resistir). A resistência e a acomodação ta Veja que, aproveitando uma frase de um
convivem simultaneamente. Mostravam ministro do presidente Médici condenando
que os caminhos tinham se tornado muito a tortura, faz duas edições seguidas tendo a
mais difíceis e tortuosos. tortura como tema de capa e matéria prin-
No episódio da ação guerrilheira da cipal.
ALN - que seqüestrara o embaixador dos
Estados Unidos, Charles Burke Elbrick -, A Folha, bem comportada
o noticiário da imprensa, como se imagi- Até 1968, o grupo Frias-Caldeira produ-
na, foi amplo e bastante destacado, mas zia jornais para todos os gostos políticos.
completamente controlado ou censurado. Da anódina e inexpressiva Folha de S. Pau-
O Jornal Nacional - que entrara no ar no lo à engajada Folha da Tarde; do Notícias
início do mês -, se vê diante de um fato Populares ao Última Hora; as rotativas da
Esses marcos, que 93
jornalístico digno de uma boa cobertura. Barão de Limeira chegaram a rodar sete tí-
indicam as reações tulos diferentes. A Folha São Paulo, até
E descobre, com fontes militares, o bairro de
onde se localiza o cativeiro do embaixador:
iniciais à ditadura, então um jornal anódino, inexpressivo, com-
Santa Tereza, no Rio de Janeiro. Jornalis- serão muitas vezes porta-se da maneira mais educada possível
tas e câmaras se deslocaram para o local, relembrados como durante os anos mais duros da ditadura e
mas a movimentação militar impediu a lo- referências, pois a da censura. Segundo vários testemunhos,
calização da casa pela imprensa e a cober- imprensa, a partir aceita, de forma passiva e dócil, todas as
tura jornalística (Rede Globo: 1985). determinações militares.
da nova conjuntura
Mesmo assim, todos os estudos e relatos Sua submissão inequívoca aos ditadores
política, terá ainda
ignoram o fato de que, jornalisticamen- de plantão – ao contrário de seu tradicional
muito a enfrentar concorrente na capital paulista – represen-
te, o cativeiro quase foi descoberto pela
TV Globo na quarta edição do novíssimo
para driblar a ta até certo ponto o bom senso daqueles que
Jornal Nacional, que estreara dia 1o de censura (nos tem consciência de que o jornal ainda não
setembro de 1969. O seqüestro, como se poucos veículos que se credenciara como instituição da socieda-
supunha, provoca um recrudescimento da ousaram resistir). de civil. O que faria poucos anos mais tar-
8. de. A censura torna-se possuía nenhum desses atributos decisivos
visível, perceptível para um jornal influente.
Censura arbitrária e censitária
e detectável.
O Estado de S. Paulo – e seu filhote, o A resistência
O governo,
Jornal da Tarde -, já terá uma posição Em São Paulo, o grupo O Estado de São
muito mais digna. Depois do editorial do oficialmente, Paulo resiste. Se não é possível enfrentar a
dia do AI-5, o jornal se aquieta, porque a negava a existência censura, que ela se torne ostensiva, então.
ditadura se aquieta em relação a ele, mas de censura. Em agosto de 1972, a censura retorna ao
no apogeu do governo Médici enfrenta o Formalmente. jornal com toda a força, depois da presença
poder militar abertamente e de todas as ostensiva que ocorrera logo após a promul-
De modo que
formas. gação do AI-5. Os diretores decidiram que,
evidenciar no
O jornal recusa-se a fingir normalida- no espaço destinado às matérias censura-
jornal que este é das, sairiam poemas de Camões (Os Lusí-
de, como faz a Folha de S. Paulo e todos
censurado é um ato adas) em O Estado S. Paulo e receitas
os demais jornais brasileiros o fizeram. A de
censura torna-se visível, perceptível e de- de coragem e de culinárias (que não necessariamente resul-
tectável. O governo, oficialmente, negava resistência. tavam em bons pratos) no Jornal da Tarde.
94 No Rio de Janeiro, os primeiros anos da
a existência de censura. Formalmente. De
década de 70 consolidam o Jornal do Brasil
modo que evidenciar no jornal que este é
como um jornal moderno, inteligente, com-
censurado é um ato de coragem e de re-
patível com as novas tendências do jornalis-
sistência.
mo diário e com as circunstâncias do Brasil
Em outras palavras, O Estado de S.
da época. A sintonia fina entre o Jornal do
Paulo tinha cacife para enfrentar a dita-
Brasil e seus eleitores era impressionante.
dura; a Folha de S. Paulo, não. Esta dis-
Fora do eixo Rio-São Paulo, o modelo a ser
tinção é fundamental para qualquer aná-
copiado, imitado, plagiado, era o do Jornal
lise do período, posto que os atributos que
do Brasil.
os jornais constroem no decorrer de sua
O golpe de Augusto Pinochet no Chile der-
história vão definir sua respeitabilidade,
ruba o governo constitucional de Salvador
sua credibilidade, sua força política, sua
Allende no dia 11 de setembro de 1973. A
importância como porta-voz de segmentos
censura proíbe que a informação seja man-
sociais ou da própria sociedade civil. E a chete. O Jornal do Brasil, que já fizera uma
Folha de S. Paulo, naquele momento, não edição histórica no dia mesmo da decreta-
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9. ção do AI-5 lança uma edição sem man- meses. O hebdomadário abre uma trilha de
chete. Um único bloco de texto ocupa toda imprensa alternativa, consa-grando uma
a primeira página relatando os episódios das marcas da resistência típica da impren-
dramáticos no Chile. Pouco depois, Alber- sa nos “anos de chumbo” devido a sua inde-
to Dines é demitido do Jornal do Brasil. pendência em relação aos grandes grupos
midiáticos do país.
Sem resistências O Pasquim vai produzir um enorme im-
Octávio Frias de Oliveira e Carlos Cal-
pacto cultural no jornalismo brasileiro. Sua
deira tocam seus jornais e cuidam tam-
linguagem debochada e direta, suas entre-
bém da Estação Rodoviária de São Paulo.
vistas, transcritas literalmente, tudo isso
Um cartório obtido no passado e que – a
era novidade e foi extremamente bem rece-
despeito da absoluta inconve-niência ur-
bida pelo público. Boa parte de suas novi-
bana e técnica –, preservava-se nos Cam-
dades na linguagem estava incorporada no
pos Elíseos, centro da capital, graças ao
padrão da linguagem jornalística em todo o
apoio do prefeito Paulo Salim Maluf, é um
país.
estratégico negócio para a circulação dos Os diretores É possível especular que o impacto da lin-
jornais do grupo. 95
decidiram que, no guagem de O Pasquim no resto da imprensa
O fato, na realidade, é que o Grupo Fo-
espaço destinado seja de dimensão semelhante, ou talvez até
lhas dispunha de um esquema de distri-
maior do que o da difusão do lead, pelo Di-
buição, com kombis, caminhonetes e ca-
às matérias
ário Carioca, em 1950. O fato é que ambas
minhões, com hora e tiragem certa para censuradas, sairiam
as mudanças de texto em pouco tempo se
chegarem antes do concorrente em todas poemas de Camões
disseminaram e passaram a constituir pa-
as principais cidades de São Paulo. Para o (Os Lusíadas) drão de linguagem jornalística.
jornal, o horário de fechamento era sagra- em O Estado de S.
do, pois dele dependia o cumprimento do Paulo e receitas Dualismo quebrado com Opinião
horário de impressão e de distribuição. O marasmo desses primeiros anos da dé-
culinárias (que não
cada é quebrado com o lançamento do se-
A imprensa alternativa necessariamente
manário Opinião. No dizer de Fernan-do
O Pasquim, que tinha sido lançado em resultavam em bons
Gasparian, “a juventude brasileira só tinha
1969, tornara-se um jornal de grande su- pratos) no Jornal da
duas opções: a luta armada ou as drogas”.
cesso e suas vendas chegariam a alcançar Tarde. Depois do Pasquim e antes do Opinião surgi-
os 200 mil exemplares em alguns poucos
10. ra Fato Novo e Politika. Mas ambos não O Pasquim vai O “vazio cultural”
conseguiram chegar perto do impacto que produzir um enorme Nos anos que antecederam o endu-reci-
significou o lança-mento de Opinião. (Di- mento da ditadura, a produção cultural bra-
impacto cultural
nes: 2000 – Vol 1) sileira atingiu um padrão bastante elevado,
no jornalismo
Fato Novo reunia um grupo de nacio- na música, no cinema, nas artes plásticas,
nalistas, simpatizantes da candidatura
brasileiro. Sua
no teatro, enfim em todas as manifestações
do general Albuquerque Lima, que dis- linguagem
culturais. A efervescência cultural era enor-
putou a Presidência, conforme já narra- debochada e direta, me. E tudo, inclusive e principalmente a
do. O jornal chegou a pedir em manchete suas entrevistas, cultura, era extrema-mente politizado. Não
a aplicação do AI-5 em defesa de causas transcritas à toa, o mais famoso espetáculo teatral ain-
nacionalistas. Não era propriamente um literalmente, tudo da do ano de 1964 mas já posterior ao golpe
jornal oposi-cionista, embora jornalistas foi o Opinião, com Zé Kéti e Nara Leão.
isso era novidade e
de oposição como Milton Coelho da Graça, Com a promulgação do AI-5, aparen-te-
foi extremamente
militante do PCB, dele participassem. mente, essa produção diminui. Hoje se sabe
Politika também era um jornal naciona-
bem recebida pelo
que a produção teatral manteve-se alta,
lista, mas expressava, sobretudo, a perso- público.
mas com dificuldades devido à censura, o
96
nalidade de Sebastião Nery, que mais tar- mesmo ocorrendo com a música. Músicos
de ficaria conhecido por suas coletâneas hoje consagrados, como Chico Buarque,
de folclore político. Gilberto Gil e tantos outros viviam de sho-
Opinião surge nos moldes dos modelos ws patrocinados por centros acadêmicos de
ingleses de jornalismo semanal, fleumá- universidades. A imprensa chamava esses
ticos, sérios, sisudos que marcariam a his- espetáculos de “roteiro universitário”.
tória do semanário. Fernando Gaspa-rian, A discussão sobre o vazio cultural, na épo-
seu proprietário, consegue contratos de ca foi um dos grandes debates produzidos
reprodução de grandes jornais europeus, pela revista Visão, uma revista quinzenal,
como o Le Monde, The Guardian e outros. que procurava enfren-tar os grandes temas
Localmente, monta um projeto gráfico do momento e, aparentemente, não tinha
simples, bastante elegante e marcante. problemas com a censura, embora boa parte
Como diz Bernardo Kucinski, cada capa é de seus jornalistas fossem simpatizantes ou
um marco como imagem. (Kucinski: 1991) militantes do Partido Comunista Brasi-lei-
ro, o PCB.
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Vol. I Nº 2 - 2º Semestre de 2004
11. Ficou famosa a edição de Visão sobre o tes, com as atividades de Cláudio Abramo
vazio cultural, com textos não assinados como coordenador de produção. Abramo tra-
de Vladimir Herzog, Zuenir Ventura e ou- balhava na sombra. Ia montando a equipe
tros. Pouco depois, enquanto a ditadura da Folha de S. Paulo, ia preparando o jor-
feste-java, em setembro de 1972, o sesqui- nal para a grande reforma que viria, mas já
centenário da Independência, Visão viria cuidava de montar uma estrutura de repor-
com uma edição especial bastante crítica tagem de qualidade.
da independência brasileira. A censura impediu que esse trabalho apa-
recesse durante a cobertura da epidemia de
Folha inicia renovação meningite em São Paulo em 1973 – e Cláu-
Com a iminência de início do gover- dio Abramo sabia que uma boa cobertura
no Geisel, o grupo Frias-Caldeira libera jornalística era fundamental para o próprio
Cláudio Abramo para tocar abertamente o controle da mesma, que cresceu e se disse-
projeto de renovação da Folha de São Pau- minou assustadoramente, sobretudo, graças
lo. Cláudio Abramo recruta Alberto Dines, à desinformação dos cidadãos.
que saíra do Jornal do Brasil e ficara um Por outro lado, nos episódios dos enormes
97
ano nos EUA acompanhando o desempe- e monstruosos incêndios dos edifícios An-
Com a promulgação
nho da imprensa neste período pós-Water- draus, em 1972; e Joelma, em 1974, o jornal
do AI-5,
gate. pode mostrar sua capacidade de reportar
aparentemente,
O jornal cria a página 2, com editoriais, os fatos e apresentá-los de forma clara ao
charge e três pequenos artigos, um origi- essa produção leitor. A cobertura desses incêndios foram
nário de Brasília, um do Rio de Janeiro e diminui. Hoje dois momentos em que a Folha de S. Pau-
um de São Paulo. Em sua essência, a mes- se sabe que a lo apresentou-se ao leitorado diferenciada
ma página de hoje. produção teatral dela mesma naqueles tempos.
Poucos meses depois, vem a chamada manteve-se
op-ed (Página oposta aos editoriais), com Estado, centenário e crise
alta, mas com
o nome de Tendências e Debates, igual- No dia da comemoração do seu centená-
dificuldades devido
mente, em essência mantida até hoje. rio, O Estado de São. Paulo vê a censura
à censura, o mesmo
A reforma da Folha aparentemente co- prévia ir embora do jornal. Mas junto com
meça com o surgimento das páginas 2 e 3. ocorrendo com a a perda da censura, o jornal ganha uma cri-
Mas as primeiras medidas começam an- música. se econômica decorrente do enorme investi-
12. mento em dólares que a empresa realizou Abramo trabalhava * Victor Gentilli
para construir sua nova sede na marginal na sombra. Ia O autor é jornalista, doutor pela USP
do Tietê. A mudança para a nova sede im- professor da Universidade Federal do Es-
montando a equipe
plica logo num primeiro momento um con- pírito Santo, editor da área acadêmica do
da Folha de S. Paulo,
flito entre jornalistas e engenheiros, sobre Observatório da Imprensa e diretor-admi-
as normas e procedimentos editoriais.
ia preparando
nistrativo da Sociedade Brasileira de Pes-
Mas o Estado deste período é um jornal o jornal para a
quisadores em Jornalismo
forte, um jornal de opinião, um jornal de grande reforma
reportagem. Ao contrário da Folha, os edi- que viria, mas já Bibliografia
toriais do Estado sempre impactam. E, se cuidava de montar ABRAMO, Cláudio. – A Regra do Jogo, São Pau-
neste período o país inicia o debate esta- lo, Companhia das Letras, 1988, 270 pgs.
uma estrutura de
tização versus privatização – debate que BARDAWIL, José Carlos. – O Repórter e o Poder
reportagem de – Uma autobiografia. Entrevista a Luciano Suas-
em certa medida prevalece como tema
qualidade. suna, São Paulo, Editora Alegro, 1999.
forte até hoje – será o Estado que trará a
BRAGA, José Luiz.- O Pasquim e os anos 70:
questão para a opinião pública.
mais pra epa que pra oba, Brasília, Editora UnB,
O assunto virá em editoriais, em en-
98 1991.
trevistas com personalidades, em artigos CHAGAS, Carmo; MAYRINK, José Maria; PI-
– em especial os de Fernando Pedreira – e NHEIRO, Luiz Adolfo. – 3X30 Os Bastidores
também na reportagem. da Imprensa Brasileira, São Paulo, Best Seller,
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Kotscho – que mais tarde viria a ser o as- CLARK, Walter. – O Campeão de Audiência.
Uma Autobiografia. Com Gabriel Priolli. São
sessor de Lula em suas campanhas eleito-
Paulo, Editora Best Seller, 1991..
rais – ganha o principal Prêmio Esso de
DINES, Alberto. – O Papel do Jornal: uma relei-
1975 com uma série de reportagens mos-
tura, São Paulo, Summus Editorial, 1986, 158
trando o desperdício de gastos de minis-
pgs.
tros e dirigentes de empresas estatais em FARO, José Salvador. – Revista Realidade 1966-
Brasília nesse período. A expressão “mor- 1968, Tempo de reportagem na imprensa brasi-
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