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Copyright © vários autores
                             Edição e revisão: Hélio Consolaro

                             Capa: Simone Leite Gava
                          Editoração gráfica: Arlen Pontes
                  CTP e Impressão: Editora Somos - (18) 3636.7790

                         Secretaria Municipal da Cultura
                     Rua Anita Garibaldi, 75 - CEP 16010-280
                                  Araçatuba - SP
                  www.secretariacult@gmail.com - (18) 3636.1270




Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

         Contos selecionados 2012. -- 1. ed. -- Araçatuba, SP : Editora Somos, 2012.
         	 Vários autores.
         	 “25º Concurso de Contos Cidade de Araçatuba”.

         	 ISBN: 978-85-60886-55-5

         	 1. Contos brasileiros - Coletâneas.
         	
         12-10979 					                                                     CDD-869.9308

Índices para catálogo sistemático: 1. Contos : Coletâneas : Literatura brasileira 869.9308
Vários autores




   Contos
selecionados
   2012

    Araçatuba, 2012
Prefácio




O
         tradicional Concurso de Contos Cidade de Araçatuba, mais uma
         vez nos presenteou com histórias surpreendentes e com a satisfa-
         ção de ler textos de abrangência territorial: desde 2011, além dos
contos regionais e de nível nacional, o concurso estendeu-se para as terras
estrangeiras que têm como sua língua, a portuguesa. Em meio aos mais de
seiscentos contos recebidos, entramos em contato com belas produções lite-
rárias, pois desse concurso participaram excelentes escritores, o que mais
eleva o evento araçatubense.
        O trabalho de leitura e seleção de textos é árduo. Porém, para os que
fazem da leitura um ato prazeroso, o contato com a diversidade regional,
nacional e internacional passa a ser mais um processo de enriquecimento
cultural.
        Pela amplitude de vocabulário e abundância de construções para
se escrever os pensamentos, a Língua Portuguesa é um rico instrumento de
trabalho. Assim, dentro de seu universo vocabular, seu estilo, seu conheci-
mento sobre as técnicas de se escrever um conto e o domínio da língua pá-
tria, suas vivências, suas leituras de mundo e sua criatividade, cada autor
colaborou com o sucesso deste concurso de 2012.
        Os contos apresentados enfocaram ângulos diferenciados da expe-
riência humana, sintetizando costumes, mitos, sentimentos; também di-
versificando linguagens, lugares, tempo, situações, e, às vezes, até mesmo
mexendo com as máscaras das tragédias, das comédias, dos dramas, ora
apresentando-os como realmente são, ora manipulando-os ao bel-prazer
do autor.
        Os contos nacionais e estrangeiros apresentaram-se como o espera-
do: uns surpreenderam pelo enredo, outros pela construção literária, outros
pela simplicidade e infinitos fatores de fundo e forma.
        Destacaram-se, porém, os contos regionais interioranos, mesclados
4
de coisas da nossa terra, da nossa história. Concluímos que a nossa lite-
ratura, antes chamada interiorana, caminha a extensos passos para uma
produção que merece reconhecimento nacional.
       E assim, entregamos a você, que aprecia a boa leitura, este livro que
traz os contos premiados e outros selecionados entre os melhores. Espera-
mos que esse ler seja um incentivo para que nossa cultura se expanda e se
faça com a alegria de viver no mundo dos contos aqui apresentados.



      Marilurdes Martins Campezi
      Membro da comissão julgadora
      Vencedora da 1.ª edição do concurso
      Escritora da Academia Araçatubense de Letras




                                                                          5
Índice

                             Categoria internacional


1.º lugar - Intermezzo
Liliana S. Ribeiro - Leça da Palmeira – Portugal............................................... 10

2.º lugar - Hamelin
Miguel Cruz Fernandes - Lisboa - Portugal...................................................... 13

3.º lugar - Morder-me os sonhos
Valentina Silva Ferreira - Ilha da Madeira – Portugal......................................... 22

a) Menção honrosa - A bola Lola
Ana Rita Santos Brandão – S. João da Madeira – Portugal............................... 29

b) Menção honrosa - O peixe encantado
Victor Manuel Capela Batista - Barreiro – Portugal........................................... 30

c) Menção honrosa - O saber
Dinis Reis Subtil Muacho - Avis – Portugal....................................................... 35

d) Menção honrosa - O vale dos sentimentos
Umoi Melo de Souza - Parede – Portugal....................................................... 39

e) Menção honrosa - Uma dependência invulgar
Antônio Carloto - Lousã – Portugal.................................................................. 46




6
Categoria nacional


1.º lugar - A sesta
Suzana Maggioni Bertuol - Farroupilha – RS................................................... 54

2.º lugar - O amor no tempo da solidão
Cláudia Albers Avóglio - Pirassununga – SP..................................................... 57

3.º lugar - O ovo
Sara Meinard Begname - Mariana – MG......................................................... 60

a) Menção honrosa - A árvore
Rafael Vieira da Cal - Cachambi – RJ............................................................. 63

b) Menção honrosa - Duas cruzes
Cândido Brasil - Cachoeirinha – RS................................................................ 66

c) Menção honrosa - Em braile
Éder Rodrigues - Belo Horizonte – MG............................................................ 68

d) Menção honrosa - O lamento de Ingrid
Alex Sens Fuziy - Delfim Moreira – MG........................................................... 72

e) Menção honrosa - Passa azeite, se não racha!
Arnaldo Devianna - Sete Lagoas – MG............................................................ 77




                                                                                                   7
Categoria regional

1.º lugar - Lussanvira
Francisco Carlos Pereira - Araçatuba-SP......................................................... 83

2.º lugar - O beijo da serpente
Rita Lavoyer – Araçatuba-SP......................................................................... 87

3.º lugar - O loiro e o “Ouro Negro”
Larissa Firmo Alves Marzinek - Araçatuba – SP.............................................. 94

a) Menção honrosa – Iluminados
Júnior Viana – Araçatuba- SP...................................................................... 101

b) Menção honrosa – Incondicional
Laís Simone Sandrigo - Birigui-SP................................................................ 104

c) Menção honrosa – O milagre
Paulo Coelho - Araçatuba-SP........................................................................ 111

d) Menção honrosa – Uma história de grilagem
Ademar Bispo da Silva - Araçatuba-SP........................................................ 116

e) Menção honrosa - Vidas Mortas
Marcelo Otávio de Souza - Birigui-SP.......................................................... 121



                      Contos da comissão julgadora

Tio Lucas
Mário César Rodrigues – Araçatuba - SP....................................................... 126

Um urso à minha mesa
Emília Goulart – Araçatua - SP...................................................................... 128

8
Categoria
internacional



                9
Intermezzo
Liliana S. Ribeiro* - 1.º lugar – categoria internacional
Leça da Palmeira - Portugal




A
        vó?								
        A neta entrou no quarto. Passos lentos e bicudos. Pousou a mão na pa-
        rede. Certificou-se de que o seu peso era mínimo. A janela entreaberta
deixava passar a luz do fim de tarde. A janela paralela à cama, ao lado, a mesa de
cabeceira, um copo de água, um relógio. A cômoda em linha reta dispondo assi-
metricamente os guarda-joias, um retrato e um candeeiro. A toda a volta, o papel
de parede cinzento. Cheirava a naftalina e aquele cheiro trazia movimento como se
avó andasse pelo corredor, de rosário no bolso a cumprir uma prece.

       Avó?
       A neta chamou baixo.
       Mais uma vez pensou que ela tinha morrido. O corpo quieto, as pernas
estopadas por não se conseguirem mexer já.

        Avó? Estás a ouvir-me?
        Os braços da avó saíam da dobra vincada do lençol amarelo. A neta sentou-
-se na beira da cama. Começou a entreter os dedos no casaco, fazendo crer a
quem passava que estava ciente das mãos, ciente de que não queria assomar às
suas as mãos da avó. Mas queria, queria muito. Conteve-se no gesto.
        A neta observou aquele corpo ali despojado. Um movimento, uma respiração
lenta e quase rala. A avó declinou a cabeça em direção à neta, foi um acento muito bre-
ve. Uns espasmos de olhos que se mantiveram fechados. Não era quase nada já. Pouco
se manifestava, não denunciava a dor. Era uma ideia que balouçava em si. Um pêndulo.
        Os cabelos da avó surgiam brancos, de uma cor só. Era a velhice e o can-
saço do pelo. A avó mantinha-se viva naquela cama há muito tempo e entretanto a
neta já tinha dobrado a esquina para adolescência. O corpo crescia como uma plan-
ta em busca do seu ar. O corpo maior que ela própria. Tratavam-na como mais velha

10
e isso era coisa boa. Enganava os olhares de quem a via. Crescia como se corresse.

        Avó, hoje comi peixe ao almoço. Um peixe gordo e com um olho caído para
fora do prato. A mãe disse que se chamava dourada. Comi peixe dourado com um
olho preto caído para fora do prato. Um olho preto e vivo. Como aquelas mulheres
da televisão que olham acertadamente para o ecrã. A mãe diz que é maquilhagem.
Um traço preto que rasga a visão e torna os olhos maiores do que o que são.
Mulheres-peixes-douradas. Um dia vou ser como elas e ver de olhos grandes.

       A avó respirava rasteira. As pálpebras pousadas. A neta encostou o ouvido
ao seu peito. Ouviu-lhe o coração, deixou-se ficar. Sentiu o seu corpo aquecer,
havia calor entre elas. Deixou-se ficar e roubar aquele afeto para si. O rio Tâmega
entrava escuro no quarto, algum lodo. As duas, corpo contra corpo, protegendo-se
para não se afundarem. À volta, as tardes quentes à beira-rio. Os trilhos repassa-
dos. O sol alto, a casa no giestal muda e fechada. O terreiro, a cadeira vazia do
marido onde a morte o apanhou sentado. Os filhos deixados à vida como se da vida
fossem. Deus enorme cantando-lhe e fazendo as uvas amadurecer.
       Um outro abraço, corpo contra corpo, passando a memória para não se afundarem.

      Deixa a tua avó. Fazes peso.
      Disse a mãe passando no corredor. A mãe circunspeta, doméstica e confor-
mada. A mãe filha avisando a filha. A mãe sem maquilhagem.

        A filha sentiu algum embaraço por ter sido apanhada desprevenida e cedida
no peito da avó. O rio Tâmega esvaziou, algumas ervas definhavam juntamente
com o pasto. A avó recolhia as cabras de volta à corte. O sol ao longe. O regresso à
casa fria, sem mãe e sem pai. A casa sem comida. A avó pequena e criança de pés
atados à cama para contrariar a fome e a morder os braços para calar os gritos. A
avó saltando da janela, a correr pelos sobreiros, a avó do tamanho do grito a gritar
a fome calada.
        A neta deixou-se ficar. Peso vivo sobre peso morto.

       Avó… ouço passos de noite. És tu pela casa?
       Eram passos breves e arrastados. Por vezes, assustavam-na. Mantinha-se
atenta para saber onde iam. Não gostava de ser surpreendida no escuro. Sentava-se
                                                                                  11
na cama à escuta. Deveria ser a morte. A morte com avó ao colo, ou ao contrário.
Se não fosse tão nova, talvez não se deixasse vencer com estes truques onomato-
peicos. Havia algum medo e sobretudo respeito por esses passos serem a delicada
anunciação de que a sua avó partiria. Queria ver a procissão passar. Estar preparada
era o que melhor fazia. Horas sem conta de olhos pretos abertos no escuro.

        As tias dizem que temos as mãos parecidas. Saíste à avó, estão sempre a
dizer. Saíste à avó. Nem pai, nem mãe. De onde saí, avó? E como se volta ao lugar
de onde se saiu se o lugar deixar de existir? Será que vou ser uma mulher-peixe-
-dourada sem olhos, avó?
        Um declínio de cabeça como início da juventude. Nenhuma resposta. A
cama oblíqua ao encontro delas. A neta com a vida por fazer.

        Vai lá para fora.
        A mãe chegou à porta. Panelas suspensas na mão, pano da loiça em busto,
dedos torcidos ao detergente e à lixívia. Mãe sem maquilhagem, olho azul fora do
prato. Talvez as coisas precisem de estar quietas para morrer.

      As três, sucessivas, imóveis por breves momentos. A rapariga entre elas
como um trecho menor desafinado.

       A filha recolhia o gesto do peito, o coração trazido às mãos. Olhava as
pálpebras pousadas, descobria-lhe os olhos por baixo. Olhos como berlindes para
jogarem a infância. Ali, aquela mulher pausada e paciente era uma falsa trajetória.
Um falso afeto, uma falsa salvação.
       Um avô velho na infância é uma aproximação precoce à morte.

        A mãe repassando no corredor.

      A neta apertou a mão desenformada da avó. Um beijo à face e saiu pé ante
pé com medo de chamar a morte. Sentia-se quieta por dentro, muito quieta.

*Liliana S. Ribeiro, Portugal , Leça da Palmeia, 33 anos, psicóloga, trabalha na Sociedade
Portuguesa de Psicodrama. Dinamiza o blog: www.ascoisasimperfeitas.com. Já participou de
várias antologias e participa de concursos literários. E-mail: liliana.silva.ribeiro@gmail.com

12
Hamelin
Miguel Cruz Fernandes* – 2.º lugar – categoria internacional
Lisboa, Portugal



        «Anno 1284 am dage Johannis et Pauli war der 26. Junii Dorch einen pi-
per mit allerlei farve bekledet gewesen CXXX kinder verledet binnen Hamelen
gebo[re]n to calvarie bi den koppen verloren»1
        1 «No ano de 1284, no dia de São João e São Paulo, a 26 de junho, 130
crianças nascidas em Hamelin foram seduzidas por um flautista, vestido de todos
os tipos de cor, e perderam-se no lugar da execução, perto de koppen.»
        Manuscrito de Lüneburg, c. 1440-50




O
        comboio começou a abrandar. Um jovem de vinte anos ia sentado, numa
        das últimas carruagens, a ler um livro com aspeto notavelmente velho. À
        sua direita encontrava-se um senhor com o cabelo muito branco e os olhos
de um azul impressionantemente claro. Lia o jornal. À sua frente uma senhora de
meia-idade, muito loira, que ia a dormir. O jovem destoava um pouco do ambiente,
bem germânico, que o rodeava.
        Chamava-se Afonso. Era moreno, magro e alto. Estava com um cachecol
e dois ou três casacos vestidos. O livro que trazia era um volume dos contos dos
irmãos Grimm, e durante a viagem já lera várias vezes o mesmo conto. Por vezes
interrompia e contemplava a vista. Passava-se por paisagens deslumbrantes, na-
quele comboio.
        Ouviu-se o apito, e o comboio parou. Tinham chegado a Hamelin. Ao sair da
estação, inseriu a mão direita no bolso e após remexer bastante, retirou um papel
algo amachucado com uma morada escrita. Depois de ter perguntado a um polícia
qual seria o melhor caminho para lá, seguiu as suas indicações.
        Daí as uns minutos encontrava-se perante uma livraria com aspeto pito-
resco. Uma porta de madeira velha, vidraças incrivelmente sujas, e um letreiro
amarelado que dizia: “Antiquariat Peters”. Entrou, fazendo soar a campaínha de
latão. A livraria, ou alfarrabista, não era muito grande, mas as paredes estavam
cobertas de livros de alto a baixo, muitos deles visivelmente antigos. Havia também

                                                                                13
várias estantes altas e bem recheadas. Dentro da loja, estavam só três pessoas: um
sujeito alto e macilento, encostado a uma estante a folhear um livro de História, um
senhor baixinho, completamente calvo claramente à procura de
         algo nas prateleiras do fundo, e o próprio alfarrabista, por detrás do balcão,
com os seus óculos grossos na ponta do nariz a ler atentamente um volume de
tamanho considerável com capa dura.
         Afonso dirigiu-se precisamente a este último, o Sr. Peters.
         – Sr. Peters, como está? – disse Afonso – sabe quem sou eu?
         – O rapaz português que ligou há dias?
         – Ora nem mais.
         O Sr. Peters esboçou um sorriso bem grande, e estendeu o braço dando um
aperto de mão forte a Afonso. E Afonso, que nem conhecia bem o Sr. Peters, sentiu
imediatamente uma grande simpatia pelo homem. Que cortesia, que amabilidade...
O Sr. Peters devia ser com certeza uma pessoa fascinante. Devia saber muito:
afinal, passava a vida a ler e a aconselhar livros, devia ser também muito paciente,
e agora notava-se que era uma pessoa alegre, simpática, afável, bem ao contrário
do que Afonso esperava. Ele preparava-se para enfrentar um homem sábio, sem
dúvida, mas carrancudo, amargo. A verdade é que esta não era uma expectativa
bem fundamentada, mas antes um preconceito errado sobre o povo alemão.
         – Venha comigo. – disse Peters, e abriu uma portinhola que havia por detrás
do balcão.
         Entraram para uma sala pequena, escassamente mobilada, muitas pilhas
de livros no chão, duas poltronas, e uma mesinha redonda.
         – Esteja à vontade. – disse o alfarrabista – Quer tomar alguma coisa?
         – Ah, não se preocupe, Sr. Peters. Estou ótimo.
         – Muito bem... vamos já direitos ao assunto? Terei todo o gosto em ajudá-lo.
         – Oh muito obrigado, Sr. Peters – após uns breves instantes de silêncio,
para saber por onde começaria, Afonso iniciou a explicação do motivo da sua visita
– Ahh... eu... o meu nome é Afonso, tenho uma paixão pela Literatura, e já consegui
publicar alguns poemas em
         jornais, mas o que é fato, é que não sou ainda... enfim... propriamente
famoso no meu país. Recentemente, enquanto procurava inspiração, resolvi ler
uns contos dos irmãos Grimm, e parei no famoso conto do flautista de Hamelin.
Encantou-me a história. Achei-a muito curiosa... A versão que ouvira quando era
pequeno era bastante mais inocente, e a original parece ser... Cruel, não é? Uma
14
praga de ratazanas ataca a cidade de Hamelin, e surge um homem misterioso que
promete salvar a cidade da praga por troca de uma certa quantia. Mas quando
acaba de matar todas as ratazanas, graças àquela flauta mágica, os homens não
pagam o prometido. Então, como vingança, leva todas as crianças para a montanha
e nunca ninguém mais as vê. Bem.. exceto uma criança coxa que ficou para trás.
O que também é terrível. É deixado um para trás.
        – Não só um. Na história verdadeira, ficaram três crianças para trás, um
coxo, um cego e um surdo-mudo. É impressionante. Mas não acha justo?
        – Como? De modo nenhum. Como não lhe pagam uns quantos xelins, leva-
-lhes todas as crianças? Ainda por cima, com certeza, não precisava do dinheiro,
já que era mágico...
        – Ora, precisamente, não precisava do dinheiro! E por isso quis dar uma
lição aos cidadãos. Uma lição que eles precisavam de receber.
        – Mas as crianças! Que culpa tinham? – perguntou Afonso.
        – As crianças? Não se lembra do que lhes aconteceu? Ao chegarem à mon-
tanha, conduzidas pelo flautista e pelo som mágico da sua flauta, abriu-se uma
rocha, e dentro da caverna surgiu uma paisagem maravilhosa, com prados verde-
jantes, rios transparentes, um sol esplêndido. Fosse o que fosse aquilo, acho que
aí ficaram melhor do que numa cidade habitada por hipócritas. – comentou o Sr.
Peters – enfim... Mas com isto desviamo-nos do assunto. Interessou-se pelo conto,
e depois?
        – Depois... ora, esse interesse levou-me a querer reescrever o conto. E
quando comecei a investigar sobre Hamelin e as raízes históricas do conto, tive a
ideia, uma estupenda ideia,
        de fazer uma viagem até cá, o cenário real aonde se teria passado o enredo
original, para tentar imaginar melhor a cena toda.
        – Muito interessante, a sua ideia. Mas... porque veio ter comigo?
        – Bem, como alfarrabista, pensei que talvez fosse a pessoa indicada para
me ajudar a conhecer a cidade – disse Afonso – e sobretudo, a montanha. Deve
saber imenso...
        Mas Peters não ligou ao elogio de Afonso:
        – A montanha... A montanha... Sabe, não sou a pessoa ideal para o ajudar.
Posso apenas dizer que em primeiro lugar, a história do flautista de Hamelin pode
ter sido mais real do que pensa. Em segundo lugar, a montanha é um lugar temido
nesta terra: terá dificuldade em arranjar guia. Finalmente, tenho a dizer-lhe que a
                                                                                15
cidade está muito diferente do que era no século treze. Para o que pretende, basta-
-lhe visitar a igreja. Não há muito mais da época. E a igreja é muito bonita.
        – Muito obrigado.
        – Ah. Tenho um amigo que o poderá ajudar. Ele gosta muito de ler, como
eu, e sabe muito sobre as histórias e lendas da região. Com certeza saberá mais
do que eu sobre o flautista. Chama-se Clemens Schulz. A morada... tem algum
papel? – levantou-se e retirou um pedaço papel de dentro de um daqueles livros
que enchiam a sala. – Aqui tem. – disse, escrevendo a morada no papel com uma
caneta de tinta permanente, e entregando-o a Afonso.
        – Muito obrigado. – agradeceu Afonso, levantando-se.
        – Ora essa – disse Peters, abrindo a porta – tenha cuidado, rapaz. Quando
tiver escrito o seu conto, envie para cá. Terei todo o gosto em lê-lo!
        – Muito agradecido, Sr. Peters.
        E com um aperto de mão, Afonso saiu da loja.
        Visitou de seguida a igreja. Era grande e bonita, mas simples. Um grande
órgão de tubos que impunha respeito. Tentou imaginar-se naquela igreja séculos
atrás. Dia 26 de junho de 1284. Os adultos de Hamelin estariam assistindo ali à
missa de S. Pedro e S. João, que seria, com certeza, um belíssima celebração, com
incenso e canto gregoriano. Ainda se parecia sentir o ecoar do canto e do órgão
naquelas paredes pétreas. Mas ao mesmo tempo que os adultos aí estavam, entra-
va na cidade um sujeito alto e magro, com um sorriso no rosto, e vestido de uma
maneira invulgar. Traria nas mãos uma pequena flauta. Talvez algumas crianças
que estivessem a brincar na rua o tenham reconhecido imediatamente como sendo
o flautista que os tinha libertado dos ratos... É então que ele eleva a flauta à boca
e começa a soprar. Primeiro baixinho, e depois, gradualmente, cada vez mais alto.
E tocaria uma música alegre, e ritmada. As crianças sentem-se irresistivelmente
atraídas por aquele som poderoso e começam a correr e a saltitar atrás do flautista.
Mas o encantamento era ainda superior ao dos ratos. Porque desta vez, nenhum
adulto pôde ouvir o som mágico da flauta. Um desfile com cento e trinta crianças, a
transpirar alegria, e a afastarem-se da cidade, em direção à montanha... E Afonso
imaginou o que teriam sentido as pessoas ao saírem da igreja. O que teriam cho-
rado amargamente as famílias. Que desgraça esta. Quanto tempo terá demorado
a ganhar alguma alegria aquela cidade? Durante quanto tempo esteve de luto? Era
uma história triste, mas não deixava de fascinar Afonso.
        Seguidamente deu uma volta pela cidade, mas não se quis demorar muito.
16
De alguns pontos via-se a montanha, não era demasiado alta, mas ostentava uma
certa majestade, e parecia atraí-lo com alguma força. Dirigiu-se para a casa do
amigo do alfarrabista, o Sr. Clemens Schulz.
       Esta era uma pequena moradia, já um pouco isolada, e perto da floresta que
antecedia a montanha. Daqui a montanha parecia mais grandiosa. Já começava a
entardecer, e Afonso tinha dúvidas se partia para a montanha ainda naquela tarde,
ou se esperava pelo dia
       seguinte. Mas ele queria explorá-la. E esse desejo parecia estar a ganhar
cada vez mais força. Parecia que havia um ímã a puxá-lo para lá, sentia uma ânsia
de aventura crescente.
       Bateu à porta e abriu-a um velhote francamente baixo, e gordo, meio-care-
ca. Afonso imediatamente, com um sorriso, disse:
       – Boa noite. Estive há pouco na livraria do seu amigo, o Sr. Peters, e ele
falou-me de si. Disse-me que saberia com certeza de coisas sobre o famoso conto
O Flautista de Hamelin.
       – Disse? – perguntou Clemens, e soltou uma gargalhada – entre. Sei, sim.
       Sem dúvida, que este senhor era também uma pessoa encantadora, à se-
melhança do amigo Peters. Que terra extraordinária que era Hamelin. Afonso esta-
va estupefato. Trazia mesmo uma ideia errada em relação aos alemães...
       – Muito obrigado – disse Afonso.
       Clemens conduziu Afonso para uma pequena sala de estar muito acolhedo-
ra. Um sofá e uma poltrona voltados para uma lareira acesa. A sala estava escura,
iluminada apenas pela luz quente do fogo. O crepitar da madeira era para Afonso,
muito agradável.
       – Sente-se, homem! – exclamou o velho Clemens – Tenho chá. Vai querer?
       – Pode ser, muito obrigado. – respondeu Afonso.
       – Temos a casa por nossa conta, por isso esteja à vontade! – disse Cle-
mens, entregando uma chávena de chá a Afonso – Quer açúcar?
       – Não muito obrigado, Sr. Clemens. – respondeu Afonso, um pouco surpre-
endido com toda aquela hospitalidade.
       – A minha mulher está fora, foi internada anteontem, imagine. – disse Cle-
mens, sentando-se – Mas o médico diz que não é grave, e que em princípio depois
de amanhã estará cá em casa.
       – Que chatice – comentou Afonso, sem saber bem o que haveria de repon-
der.
                                                                              17
– Enfim, pergunte lá o que tem a perguntar!
        Então, Afonso contou todas as circunstâncias que o haviam levado até ali,
de forma semelhante à de como tinha contado a Peters. Chegando ao fim, Clemens
comentou:
        – Aquela flauta, rapaz, aquela flauta... o som que produzia devia ser ter-
rivelmente... terrível! É inimaginável. Todos os ratos que o ouviram morreram. E
todas as crianças que o ouviram ficaram profundamente afetadas. Só sobreviveu
um cego, um coxo...
        – E um surdo-mudo. – interrompeu Afonso.
        – Sabe o que lhes aconteceu?
        – Não.
        – Os três regressaram à cidade. O surdo-mudo cresceu e tornou-se o sa-
cristão da igreja. Foi sacristão até morrer, e morreu velho. Tinha seguido os outros
por curiosidade, mas não tinha ouvido a flauta, de modo que continuou a sua vida,
para a frente.
        – E os outros dois? – perguntou Afonso.
        – Passado poucos meses desde o acontecimento, numa noite, o cego e o
coxo fugiram juntos das suas casas e dirigiram-se à montanha. O coxo conduziu o
cego. Diz-se que a dada altura se separaram, e o cego perdeu-se, e nunca mais foi
visto. – Clemens fez uma pausa e suspirou – Já o coxo, continuou a procurar a gru-
ta e os companheiros durante anos e anos. Diz-se que viveu na montanha durante
séculos, que a sua vontade inflexível e a sua esperança inestinguível o mantinham
vivo. E há quem diga que ele ainda vive.
        – Ninguém os foi lá procurar? Não houve buscas?
        – Não... Para as pessoas, a montanha tornou-se um local amaldiçoado.
Toda a espécie de lendas foram surgindo. Havia quem dissesse que se ouviam os
risos e o canto das crianças, havia quem jurasse ter visto um velho coxo a vaguear
por entre as rochas. Não. Uma sombra de morte cobriu esta montanha. Pouca
gente se aventura a sair da estrada.
        – Ainda hoje?

        * Miguel José da Fontoura da Cruz Fernandes
        – A montanha deixou uma ferida demasiado profunda em Hamelin. E estas
feridas não se saram nem com séculos.
        Fez-se uma pausa. Afonso olhava pela janela, e via a montanha alta e bela.
18
Tinha, de fato, algo de sinistro. E nesse momento, de forma singular, apoderou-se
dele um desejo irreprimível de aventura, mais forte do que todos os anteriores. Foi
como que instantâneo. E impelido por esse impulso, levantou-se e disse:
         – Pois eu vou para lá.
         – Quando?
         – Agora. – afirmou resolutamente Afonso.
         – Mas já é tarde.
         – Eu sei. Mas quero mesmo ir. Ela chama-me. – disse, olhando mais uma
vez pela janela.
         – Não faça isso. – Clemens levantou-se, olhando à volta – Se quiser pode
dormir aqui. A casa é pequena, mas tenho espaço para si.
         – Agradeço-lhe muito, mas a minha decisão é final. Vou para lá já.
         – Não tem medo?
         – Não. Eu vim a Hamelin para isto. Só sairei de Hamelin depois de conhecer
a montanha.
         – Agasalhe-se bem, então. – fez uma pausa – admiro a sua coragem.
         – Boa noite, e muitíssimo obrigado.
         – Boa sorte. – disse o velho Clemens, olhando fixamente para Afonso e
franzindo a testa – que os santos o acompanhem.
         Afonso saiu da casa, deixando a chávena a meio, e iniciou a caminhada.
Rapidamente a estrada começou a subir, e a expedição a tornar-se cansativa. Mas
o desejo que o guiava era mais forte que a sede, o cansaço e o frio. A noite estava
fria, e havia pouco luar. As estrelas não se viam por causa das nuvens. À medida
que ia ganhando cota, havia cada vez mais vento, e a estrada tornava-se mais
inclinada.
         A estrada estava rodeada de árvores, que rangiam sempre que surgia uma
rajada mais forte. Mas Afonso não sentia medo e prosseguia. Não lhe parecia louco
aquilo que estava a fazer. Ele era um aventureiro. Era um artista. Sabia apreciar a
solidão e a escuridão.
         Passaram horas de caminhada. Abriram-se um pouco as nuvens, deixando
a lua espreitar. Era um espetáculo digno de se ver. Agora, já havia muito poucas
árvores, e cada vez mais rochas salpicadas com arbustos e vegetação rasteira.
         Começava também a notar-se que a aparência era um pouco enganadora
quando vista da cidade: a montanha parecia mais alta do que era na realidade. Por
não ser assim tão alta, talvez nem se devesse chamar montanha. Era, na opinião
                                                                                19
de Afonso antes um monte, um monte alto, mas a terminologia pouco importava. O
que lhe importava mais era a beleza e a grandiosidade.
        Começou a trepar rochas e a abrir caminho entre os arbustos. E cerca de
uma hora depois, abrandou e pôs-se à procura de um local alto, onde se podesse
sentar a contemplar a vista.
        Na quietude do monte, completamente só, Afonso sentiu-se insignificante,
dada a sua pequenez perante a imponência das rochas que se erguiam para o céu
escuro. Ao fundo, no meio da escuridão, distinguiam-se as luzes da cidade de Ha-
melin. Ali em cima, enfrentando o vento, Afonso quis subir ainda mais, e sentou-se
sobre uma pedra muito elevada como que sobre o vazio. Sentou-se e contemplou.
Nenhum pensamento inoportuno conseguiu interromper aqueles momentos de
pura experiência estética. Não havia palavra para descrever tudo aquilo.
        Um vento frio e cortante soprava fortemente, tentando derrubar Afonso, mas
ele não sentiu nem um pouco a baixa temperatura. Repentinamente, o vento ces-
sou. E caiu sobre a montanha um profundo silêncio. E Afonso quis ouvir o silêncio.
        Podem ter passado minutos, talvez horas. Para Afonso, o tempo que passou
foi algo indescritível. Por um lado pareceu-lhe um instante, por outro, pareceu-lhe
ter passado a
        eternidade inteira à frente. Muito lentamente, de forma gradual, a quietude
foi-se diluindo, mas o sabor de perpetuidade manteve-se. Afonso demorou muito a
aperceber-se. Um zumbido distante e contínuo, um som quase inaudível começou
emergir do silêncio, e foi ganhando força, até envolver Afonso completamente. Era
um som estranho. Agudo, semelhante a uma voz cristalina, mas ao mesmo tempo
muito pouco humano. Entranhava-se na pedra e na vegetação, e fazia tudo vibrar
vagarosamente. Trazia consigo uma poderosa nostalgia, transpirava amargura, mas
paradoxalmente parecia ao mesmo tempo produzir uma alegria louca. Um miste-
rioso gozo começou a apoderar-se de Afonso, à medida que o som se tornava mais
percetível.
        Quase sem notar, levantou-se e pôs-se de pé sobre a pedra. O seu olhar
fixou o infinito. Agora ia além do horizonte, ultrapassava as nuvens e as estrelas,
percorria o Universo inteiro, e prolongava-se indefinidamente. E o som continuou a
crescer e a crescer. Era o som de uma flauta. Mas que flauta... Desceu a rocha e
deixou-se conduzir por ele. Parecia estar a ser puxado cada vez com mais força, e
docilmente correspondia. Desceu mais, e seguiu por entre as pedras e os arbustos.
Começou a correr. Não sabia para onde se dirigia, mas não tinha dúvidas de que
20
estava a ir para o destino certo. Foi então que, quando aquele singular ruído atingiu
um auge de esplendor, Afonso estacou. O som desvaneceu-se instantaneamente.
À sua frente erguia-se um fissura profunda na rocha.
        Dentro dela era tudo trevas.
        Sem qualquer espécie de medo, Afonso mergulhou na escuridão. Encontra-
ra aquilo que procurava.
        Fez-se silêncio no monte.
        Lá em baixo, no limiar da cidade, Clemens olhava pela janela e via a mon-
tanha. Estava a sorrir, e notavam-se lágrimas nas bochechas.
        Virou-se de costas e coxeando, ele era coxo, foi-se deitar.




* Miguel José da Fontoura da Cruz Fernandes nasceu em Lisboa, Portugal, 19 anos. Des-
de pequeno estuda música, e também pinta e desenha. Há três ou quatro anos descobriu
a escrita, e atualmente escreve contos. E-mail: miguelcruzf@gmail.com




                                                                                   21
Morder-me os sonhos
Valentina Silva Ferreira* - 3.º lugar – categoria internacional
Funchal, Ilha da Madeira – Portugal




M
           aio de 2003							
           Todos me olham por debaixo de um ponto de interrogação. Como se fosse
           errado estar aqui, no funeral do meu marido. As pessoas dispõem-se à
volta do buraco. O padre soletra o que já sabe de cor, de outros funerais. Escondo-
-me por detrás dos óculos de sol. É a necessidade selvagem que sinto em fugir
da verdade que se desenrola diante de mim. Por fim, ele desce pelas tábuas de
madeira que dois homens controlam com a ajuda de cordas grossas. Jogam-lhe
flores e, em pouco tempo, aquilo que era uma caixa da morte transforma-se num
jardim colorido. Espero todos irem embora e permaneço, estática, diante da terra
remexida que o guarda. Com cerimónia, dispo o meu dedo da aliança. Admiro-a,
deixando os raios mornos de sol trespassarem a circunferência e dourarem o ouro.
Num suspirar mais profundo jogo o anel e ele aterra, sem som, sem me doer o
coração. Viro as costas e dirijo-me ao carro.

        Maio de 1986
        Viro as costas e dirijo-me ao carro. A meio do caminho paro e engulo o
ar doce da Primavera. Arrisco um rodar dos calcanhares e alcanço o olhar dele,
despedindo-me, apressadamente, com um olhar tímido, um gosto muito de ti joga-
do ao vento. O menino de olhos verdes e coração na boca: a minha alma gémea.
        Metade de mim chega a casa. O meu corpo desce do assento e corre esca-
das acima. O coração e a cabeça ficam lá, com ele, com os reflexos pretos que os
seus cabelos castanhos escondem, com as sardas que salpicam a sua pele branca,
com a pulseira que eu roubei da loja e ofereci, cheia de emoção. Deito-me na cama
e inspiro fundo. Estou apaixonada, irremediavelmente apaixonada. Encosto a cabe-
ça à almofada e respiro o silêncio.



22
Maio de 2003
        Encosto a cabeça à almofada e respiro o silêncio. As paredes são de um
cinzento desmaiado. A cama é coberta por um trapo castanho e a almofada não
preenche a elevação do meu pescoço. Do teto pende uma lâmpada. A janela é
demasiado alta para que eu possa entreter a vista com uma paisagem. Não tarda,
o céu vestirá o seu vestido negro e, se não me engano, hoje a lua será redonda
como um queijo. O corredor encontra-se mergulhado num sossego deprimente,
uma calma que, de vez em quando, é engolida por um gemido que foge da boca
de alguém. Ao terceiro suspiro encaro a minha parceira de cela e ela responde-
-me com um sorriso malicioso. São as Torres, diz. Franzo o sobrolho e ela, logo,
tira a minha dúvida. As Torres são casadas. Sinto-me emudecer. Ajeito-me melhor
à cama e encosto o ouvido ao cimento frio. Parece que a cena se desenrola no
meu pescoço. Consigo desvendar todo o percurso das mãos de uma e a melodia
prazerosa da boca da outra. Podia não conseguir ver e, muito menos, sentir, mas
aprendia, agora, a ouvir e a separar cada sonância e a colocá-las ao lado de uma
imagem. Mesmo encarcerada podia continuar a ver o mundo. Fecho os olhos e
deixo a lágrima cair: a primeira vez é sempre emocionante.

        Janeiro de 1995
        Fecho os olhos e deixo a lágrima cair: a primeira vez é sempre emocionan-
te. Ele posiciona os lábios no meu ombro, já despido, e provoca uma ebulição na
minha pele. Encosto-me a ele, ao meu namorado de há nove anos, o meu menino
de olhos verdes e sardas castanhas que é agora um jovem atraente. Ficamos abra-
çados durante a eternidade de um minuto; eu engolindo a vergonha do próximo
passo, ele controlando o vulcão que o seu baixo-ventre suporta. A minha pele não
toca em mais nada a não ser o corpo dele. Os nossos pelos enlaçam-se; as nossas
bocas colam-se; os nossos corações aninham-se, conhecedores antigos um do
outro. Estamos nus e envolvidos numa seda de encantamento. Sem avisos, ele
aperta o meu pequeno corpo e deslizamos, os dois, em direção a um lugar sagrado.
Do lado de fora é possível ouvir os murmúrios de outras crianças: sons de pureza
e ingenuidade. Aqui dentro, ecoam, embora quase surdos, os latidos da paixão. Ele
força um caminho que será só seu daqui por diante. O céu ribomba luzes. Faz-se
noite; uma noite permitida pelas nuvens quase pretas que cobrem o sol envergo-
nhado de Inverno. As crianças, lá fora, gritam assustadas. Eu gemo sofridamente. A
chuva derrama-se furiosamente. Finalmente, recebo um abraço meigo e mergulho
                                                                               23
a cabeça naquele peito que me conforta.

       Maio de 2003
       Finalmente, recebo um abraço meigo e mergulho a cabeça naquele peito
que me conforta. Como estás, querida?, pergunta-me. Estou bem, mãe. Ela deixa-
-me encaixada no seu abraço por mais uns momentos e, depois, afasta o corpo
para olhar no interior dos meus olhos. Tu não fizeste aquilo, diz-me serenamente.
Empurro a cadeira velha e sento-me. Estou aqui, digo e aponto em volta. Ela
encara-me com os dois olhos escuros. Coitada, envelheceu em tão pouco tempo.
Afundo-me na cadeira e recebo um beijo na testa. Vai correr tudo bem, sussurra-
-me perto do ouvido.

        Abril de 1995
        Vai correr tudo bem, sussurra-me perto do ouvido. Como podes ter tanta
certeza?, pergunto. Uma gravidez não é o fim do mundo, responde-me, com o
semblante pouco carregado, o que significa que não diz aquilo só para me sosse-
gar. Eu suspiro: um filho. Sinto-me demasiado pequena para suportar uma criança
no meu ventre. E depois? As noites mal dormidas, o ser mãe, namorada, filha, es-
tudante: o crescente número de papéis e funções. Serei capaz disso? Terei de ser.
Sempre me ensinaram a assumir as responsabilidades pelos meus atos.

       Maio de 2003
       Sempre me ensinaram a assumir as responsabilidades pelos meus atos.
Sabe, Dr., não me resta muita coisa na vida. Sei que sou nova e que poderia
refazer o meu futuro mas a verdade é que o destino traiu-me. Julguei que toda
a minha vida tinha sido feita para acompanhar a vida do meu marido. Achei
que o fato de nos termos conhecido muito novos e de termos namorado toda
a nossa juventude só poderia querer dizer que éramos almas gémeas. Engulo
uma saliva que sabe a vidro cortado. Depois engravidei e, mais uma vez, encarei
isso como um sinal de que nada nos poderia separar. Fecho os olhos e sereno
diante do escuro que me preenche a visão. E depois?, pergunta-me o advogado.
Liberto-me do negro e respondo-lhe secamente. Depois aprendi que não existem
almas gémeas. E, por isso, o matou?, questiona-me antes de eu levantar-me
para ser levada pelo guarda até à minha cela. Sim, Dr., por isso o matei. Saio. Um
homem bonito acompanha-me.
24
Maio de 1995
        Um homem bonito acompanha-me. O meu querido pai, vestido de cinzento
e com os olhos molhados de alegria, leva-me até ao altar, onde ele me espera. Não
foi uma decisão fácil mas, depois do resultado da gravidez dar positivo, nada mais
certo que casar. A igreja não está cheia: apenas a família e poucos amigos. Não
estou nervosa pois sei, há muito tempo, que este seria o caminho a ser tomado,
mais cedo ou mais tarde. O padre começa a missa. Eu entrego, discretamente, a
minha mão à dele e ficamos assim durante toda a cerimónia. No momento exato,
ele diz que sim, eu digo que sim e pedem que nos beijemos. Está um lindo dia de
sol - o dia perfeito para receber a minha nova vida.

        Junho de 2003
        Está um lindo dia de sol - o dia perfeito para receber a minha nova vida. A
sala de audiências quase vazia não me mete medo. Sento-me, ao lado do advoga-
do, e espero pelo juiz que, entretanto, chega. Fazem-me perguntas para as quais
o advogado preparou-me. A acusação aponta-me o dedo com náusea e, diante
de mim, desenrola-se uma cena dolorosa: os meus pais abraçados, amparando a
tristeza um do outro; os meus sogros lambendo as lágrimas um do outro; os pais
da outra soluçando no ombro um do outro. Sinto uma angústia escalar as minhas
tripas e uma dor aguda instala-se no meu ventre.

        Junho de 1995
        Sinto uma angústia escalar as minhas tripas e uma dor aguda instala-se
no meu ventre. Leva-me ao hospital, suplico. Que tens?, pergunta-me ele. Uma
dor, uma dor muito forte. Aqui, digo, apontando para a minha barriga. O rosto
dele transforma-se em sufoco. Chegamos às urgênciase colocam-me numa ca-
deira de rodas. A médica pede-me que abra as pernas. Sinto-me escorregar para
fora do mundo. Fique connosco, oiço. Mas a voz é demasiado distante e só me
apetece deixar-me levar por esta magia sonolenta que me embala os cabelos. Os
meus olhos cedem. Deixo de ver pessoas estranhas e luzes fortes. Vejo a escuridão
mesclada com sons de bebés. O meu filho está a nascer. Mas, depois, aquilo que
surge no meio do manto negro que me cobre os olhos, deixa-me assustada: um
bebé ainda em formação, quase sem pele, coberto por vasos sanguíneos, pequeno,
tão pequeno que me cabe na ponta do dedo. Não quero!, grito. Não quero esse
monstro. Ele desaparece ao mesmo tempo que o desprezo. O meu coração abran-
                                                                                25
da. Oiço, novamente, vozes que me trazem de volta à realidade.

        Junho de 2003
        Oiço, novamente, vozes que me trazem de volta à realidade. Matou o seu
marido? Responda! O advogado de acusação grita na minha cara e eu desperto da
inércia. Sim, matei. Uma sinfonia de choro preenche a sala. E matou a senhorita
Susi? Engulo em seco. Matei. As pessoas exaltam-se, chamam-me de assassina.
O juiz pede meia hora de intervalo e, quando regressa, coloco-me em pé para ouvir
a minha sentença: pena de morte. Sinto um sopro agitar os meus pelos. É a morte
que me abraça uma vez mais. No entanto, respiro fundo e sorrio. Há muito tempo
que não me sinto tão leve; leve e livre.

         Junho de 1995
         Há muito tempo que não me sinto tão leve; leve e livre. Que sono restau-
rador. Ajeito o corpo à cama, suspiro e levo as mãos à barriga. O ambiente gela
à minha volta. O meu filho. Aperto a barriga e tudo o que sinto é pele e carne e
ar. Da minha garganta saem gritos de dor. Duas enfermeiras entram no quarto e
seguram-me nos braços que tentam arrancar os tubos que se filtram nas minhas
veias. A minha mãe entra logo em seguida, acompanhada pelo meu marido. É
visível a tristeza nas suas caras. O meu filho?, pergunto. Ninguém responde e eu
sei, instintivamente, o que aconteceu. Mergulho a cara na almofada e choro. Aquele
sonho, aquele sonho do bebé-monstro que eu recusei. Ele morreu por minha causa.
Sou uma assassina.

        Junho de 2003
        Sou uma assassina. Assassina da minha própria vida porque acreditei em
falsos contos de fada e em juras de amor eterno. Deito-me na cama e deslizo os
olhos pelo teto. Acabou a dor misturada com a fúria, e a pena de mim própria e dos
outros que vivem o mesmo. Acabou. Agora sou só eu. Sou eu que decido a minha
vida. Decidi o caminho a partir do momento que eles tombaram, ensanguentados,
aos meus pés. Acabou. Estou sozinha.

      Setembro de 2000
      Estou sozinha. Deixei a depressão vencer o casamento e roubar-me o ho-
mem. Perder um filho, seja em que idade for, é a maior dor que se pode sustentar
26
no coração. E mesmo sem conhecê-lo, sem experimentar o seu cheiro, tenho sau-
dades. Saudades de tê-lo na minha barriga, saudades do que não tive depois disso,
saudades do meu marido. A morte do meu filho trouxe a separação dos nossos
sentimentos enquanto homem e mulher, como se ele tivesse levado todo o amor
que guardávamos dentro de nós. Estou vazia.

       Junho de 2003
       Estou vazia, diz-me a minha mãe. Estamos abraçadas há mais de cinco
minutos. A cadeira engole o meu pai. Mãe, eu amo-te. Ela aperta-me com toda a
sua dor. As lágrimas sufocam-me. Apesar de querer a liberdade da morte, corrói-
-me fazê-los sofrer. Pai, vem cá, peço. Ele levanta-se com dificuldade. O desgosto
toldara-lhe os movimentos. Abraça-me, pai. Repito as palavras que disse à minha
mãe e permanecemos em silêncio. O guarda chama-os. A minha mãe mostra-me
um rosto deformado pelo tormento; o meu pai definha-se à medida que caminha
para a porta. Lançam-me beijos no ar que eu recolho com as minhas mãos e
guardo nos bolsos para mais tarde. A porta fecha-se atrás de mim e, finalmente,
encaro a verdade.

        Abril de 2003
        A porta fecha-se atrás de mim e, finalmente, encaro a verdade. O rabo
branco do meu homem balança diante dos meus olhos e uma loira esbraceja por
debaixo dele: ele, de meias, e com gorduras que eu nunca vira antes; ela, nem
melhor nem pior que eu, talvez mais nova. O som da minha respiração moída pela
surpresa desagradável desperta-os para a presença de mais alguém no quarto. Ele
retira-se do aconchego dela e embrulha-se no lençol. Como se isso fosse cobrir a
traição. Ela abre a boca e encolhe-se na cama. Eu não digo nada. Fecho os olhos e
deixo o destino que sempre me enganara seguir o seu caminho.

       Junho de 2003
       Fecho os olhos e deixo o destino que sempre me enganara seguir o seu
caminho. Os homens apertam-me os pulsos e os tornozelos na cadeira forte da
morte. Um médico coloca-me a seringa na veia mais saliente. O veneno penetra o
meu sangue e eu sinto a respiração dizer que está na hora de ir descansar. O corpo
pesa-me. Nos meus bolsos estão os beijos dos meus pais: vão comigo. No meu
coração levo o meu filho. Na minha alma levo o peso de um destino: um destino
                                                                               27
que fez castelos de areia com a minha vida e, depois, destruiu-os com os pés.Eram
grutas de medo que eu guardava no coração. Foi assim depois da morte dele. Na
verdade, foi assim depois de o conhecer: um destino que me mordeu os sonhos.

         Abril de 2003
         Jonas corre, embrulhado no lençol até onde Bea permanece de olhos fecha-
dos. Desculpa, querida, desculpa. Ela abre as pestanas longas e encara o marido
que se ajoelha diante de si. Querida, vamos voltar a ser felizes; vamos esquecer
a morte do nosso filho; vamos começar de novo. Susi sente o peso das palavras
esmagarem-na contra a cama. Ferida, levanta-se. Abre a sua mala e retira a arma
que a sua profissão a obrigava a transportar. Vocês não vão ficar juntos!, grita,
completamente nua - de roupa e de juízo. Susi, tem calma, diz Jonas. Calma?,
tu prometeste que íamos ficar juntos. O dedo prime o gatilho e o chumbo voa na
direção do peito de Jonas. Ele tomba instantaneamente. Bea leva as mãos à boca.
Susi, envergando a cara de uma demente, encosta a arma ao coração e mata-se.
Bea desliza para perto do marido e chora no seu ombro. Depois, com a frieza ca-
raterística de quem está habituado a dores profundas, levanta-se, pega na arma,
guarda-a na sua bolsa e sai.
         Em breve, a polícia chegará e encontrará as suas impressões digitais por
todo o quarto.




Valentina Silva Ferreira, Funchal, Ilha da Madeira, Portugal.
Licenciou-se em Direito e tem mestrado em Ciências Jurídico-Criminais. Autora de Distúr-
bio e A Morte é uma Serial Killer (Ed. Estronho). Começou na Revista Magazon. Participa
em mais de vinte antologias portuguesas e brasileiras. E-mail: vpsf88@hotmail.com




28
A bola Lola
Ana Brandão* - menção honrosa – categoria internacional
São João da Madeira- Portugal




E
        ra uma vez uma bola, que sonhava ser um quadrado, pois passava a vida a
        rolar, e nunca tombava de lado.					
        Era uma vez uma bola, que queria ser triângulo, porque passava a vida a
procurar, e nunca encontrava um canto.
         Era uma vez uma bola, que gostava de ser rectângulo, para em comprimen-
to crescer, e nunca ter de se encolher.
         Pobre bola Lola, não conseguia parar de sonhar, andava com a cabeça à
roda, sempre a imaginar, em que figuras especiais, se podia transformar.
         Certo dia, Lola teve de ir à padaria, e pela estrada fora, girava tanto que até
corria.
         Mas que grande alegria. Afinal ser bola, também tem o que se lhe diga.
         Outro dia também, foi para a relva saltar, encontrou uma formiguinha, que
a pós a rebolar.
         Que maravilha é poder brincar todo o dia.
         E numa bela noite, em que voltara a sonhar, olhou para o céu estrelado e
viu algo redondo a brilhar.
         - Lola, para que queres tu mudar, se és linda como o Luar?




* Ana Brandão, economista e técnica oficial de contas, gosta de trocar os números pelas
letras nas horas vagas. E é nas pequenas histórias que descobriu como escrever o cami-
nho da felicidade. E-mail: b_ana@hotmail.com




                                                                                     29
O Peixe Encantado
Vitor Batista* - menção honrosa – categoria internacional
Barreiro, Portugal




A
         prole descendente dos meus pais, além de mim, tem mais duas pessoas.
         Significa dizer, sem que para tal fosse necessário fazer qualquer referência,
         que somos três os filhos do antiquado casal Valadares, que sendo pessoas
cuja idade está na parte final dos setenta, têm a sua pouco pensante cabecinha
situada na década de quarenta, do século passado.
        Claro está que a vida que nós os três filhos fazemos, é uma enorme pre-
ocupação para os pais, porque o nosso “modus vivendi” está totalmente fora dos
padrões pelos quais balizam a sua sebastianista maneira de pensar.
        Não percebem como, nem porque razão a minha irmã, por acaso a mais
velha do grupo, vive com o pai dos seus três filhos sem serem casados. Também
lhes custa imenso aceitar que sou casado, já em segundas núpcias, sem que em
alguma das vezes eu tenha passado, mesmo que por perto, pela porta da igreja.
        Quanto ao mais novo, que ainda está no princípio dos trinta, nem vale por
falar nele ou do seu modo de vida com os pais, que o apelidam de sem-vergonha,
de desmiolado, de perdido da noite e por aí fora. Ele vive com os nossos pais,
porque ainda é um rapaz novo, naturalmente solteiro. De qualquer maneira, os
velhos Valadares só o aceitam, ainda que com alguma frieza, porque é filho, pelo
curso tirado e pelo seu bom emprego, o que quer dizer, de acordo com os arcaicos
valores defendidos pela parentela Valadares.
        A maldade e o vício chegam depois, quando entra em casa fora de horas
e, pior um um pouco, quando ele sem aparente razão troca de namorada com a
mesma facilida-de como uma outra qualquer pessoa troca de camisa, segundo os
pais Valadares.
        Aqui é que a porca torce o rabo!
        Contudo e sendo ele um rapaz novo, faz muito bem se agarrar todas as boas
oportunidades que lhe vão surgindo, pois, como é natural, para a bela idade que
atravessa tem que aproveitar os prazeres que a vida lhe concede no dia a dia. Por

30
essa razão e em geral, à conversa dos pais diz nada.
        Nunca discorda dos bolorentos e gastos conselhos que o velho Valadares
teima em emitir, mas são palavras que já não o incomodam. De qualquer modo
nós até já conversamos sobre o assunto, na medida em que ele precisa ser mais
cuidadoso em determinadas situações que se lhe deparam. Tem que retirar delas
o proveito possível, mas deve ser bem mais comedido. Pode correr riscos, que não
sendo bem medidos, acabam por dar razão à litania do pai Valadares, a quem a
mãe, muito naturalamente, dá sempre o seu amém.
        Tudo isto vem a propósito do miúdo, como eu muitas vezes me refiro ao
meu irmão, ter ido à menos de um mês visitar o norte de África. E então, fez-se
acompanhar de uma nova candidata a minha cunhada, que ele julgava já conhecer
bem, por ser a empregada da loja de modas onde costuma comprar a roupa da
excelente e conhecida marca que veste.
        Contudo e pelo que me contou, quase tudo lhe correu mal durante a se-
mana que por lá andou. A origem da maioria dos percalços e das desagradáveis
ocorrências que marcaram a viagem, ficou a dever-se à sua acompanhante, neste
momento já ex-candidata a cunhada da minha irmã. A madame, é um adequado
apodo, entendeu ser ela a escolher o que deviam visitar durante o período da es-
tadia no local.
        O miúdo acedeu e só depois deu pelo tremendo erro que cometeu.
        Foram visitar a parte velha da cidade, lugar labiríntico e demasiado con-
fuso, onde é aconselhável entrar na companhia dum guia experimentado e bom
conhecedor da zo-na, para evitar que as pessoas se percam naquele emaranhado
de ruelas escuras e sujas. A decisão que ela tomou foi de tal maneira fortuita e
inopinada, que além de se terem perdido no interior da medina, foram assaltados e
despojados de todos os valores que tinham em posse.
        Também foram ver os encantadores de serpentes, mas aqui por imposição do
meu irmão, que desde criança sempre se deixou fascinar por aquele espetáculo. Ele
ansiava por ver ao vivo as serpentes, os tocadores de flauta, ouvir a música encanta-
da, enfim, queria ter o supremo gozo de ver as cobras a sairem das cestas, enfeitiça-
das pela música tocada pelos seus hábeis encantadores. Só a determinada injunção
do miúdo permi-tiu que pudesse assistir a um brilhante show. Aqui correu quase tudo
bem. Só que ela conseguiu de tal maneira endrominar o meu irmão, que o convenceu
a trazer uma serpente, bem como tudo o resto que seria necessário para encantar o
animal, não podendo aqui confirmar-se qual, se o humano se o réptil.
                                                                                  31
Por sorte, ao passarem na alfândega e quando lhes pediram para abrirem
a cesta, esta estava vazia. A serpente tinha fugido. Foi o que lhes valeu, pois, por
certo, teriam eles ficado encantados com o que aquilo que os esperava.
        O miúdo está de novo sózinho. Mas, pelo que me apercebi, não lhe sai da ideia
o divertimento que teve, a agradável sensação que sentiu ao ouvir a música do feitiço
e ver as cobras a soerguerem-se vagarosamente, bailando. Era um sonho de criança!
        Realizado!
        E de tal maneira assim foi que neste momento o miúdo, usando o mesmo
tipo de música, mas não sendo possuidor de serpentes, está tentando encantar
dois peixes vermelhos de água fria, que tem num aquário lá em casa. Gasta várias
horas ao dia tocando uma flauta igual à dos encantadores do norte de África, a tal
que não ficou apreendida na alfândega, numa tentativa de os fazer saltar da água.
Ele anda muito entusiasmado e já me disse que as coisas até nem estão a correr
nada mal. Apenas precisa de dar um pouco mais de tempo, ao tempo.
        Os pais Valadares é que não estão a gostar nada do que ele está a fazer e até já
dizem que o preferiam ter como sempre foi, um sem vergonha e um perdido da noite.
        Têm receio que possa vir a desmiolar!
        Entretanto, estão passados mais de dois anos desde quando o miúdo dei-
tou mãos à obra e começou o difícil trabalho de enfeitiçar os peixes, que ele bem
viu fazer no norte de África, mas apenas com serpentes. Estive à conversa com o
meu encantador irmão, para com ele trocar algumas impressões sobre o modo
como estava a decorrer a sua já longa e bem avançada experiência. Queria saber
como se estavam a comportar os peixes face à música que ele lhes dava todos os
dias. De assarapantado, com o que comecei por escutar, a admirado, espantado e
boquiaberto com as explicações que ele me fornecia com o passar dos dias, origi-
naram as principais sensacões recolhidas durante a cavaqueira com o miúdo. Mas
e acima de tudo, fiquei convencido que o mano caçu-la ainda vai ter pela frente,
imenso, direi mesmo um enorme trabalho, para atingir os seus propósitos, porque
é bem diferente o trabalho que é preciso desenvolver para as duas diferentes es-
pécies animais. Muito mais difícil para os peixes.
        Disse-me ainda o meu irmão, que os peixes já saltavam e voltavam a mer-
gulhar com alguma facilidade, havendo até um deles que já ficava fora da água um
razoável pedaço de tempo. Gostaria de adiantar aqui, e faço-o em nome do miúdo,
que um dos peixes morreu, dado não ter suportado o tempo que era “obrigado” a
passar fora de água, por força da música encantada que lhe era dada a ouvir. Na-
32
turalmente, o miúdo sentiu um grande desgosto pela perda deste peixe.
        O outro peixe é um caso invulgar, direi mesmo raro, raríssimo. Basta-lhe
ouvir o soar das primeiras notas de música vindas da flauta encantada, para de
imediato saltar do aquário para a mesa e aqui se bambolear a seu belprazer.
        Posso entretanto acrescentar que passaram mais dois anos de intenso tra-
balho do meu mágico irmão e que o tal peixe, o invulgar, já fica bastante mais
tempo fora de água. E
        que, por uma ou duas vezes, até já foi com ele ao café, seguindo-o sempre
ao som da música de encantar serpentes africanas, entretanto adaptada para os
peixes vermelhos de àgua fria.
        O acesso ao café é fácil, por ficar mesmo ao lado da porta da casa dos pais,
mas nem por isso deixa de ser relevante ver um peixe vermelho deslocar-se fora do
seu habitat natural, visto ser grande e quase impensável o que a novidade encerra.
        Mas o casal Valadares tinha razão quando não gostava de ver o filho mais
novo sempre à volta, sempre agarrado aos peixes. Foi das poucas vezes que acer-
taram sobre o que pensavam a respeito do filho. Com efeito, os nossos velhos pais
temeram o que esteve para acontecer; o meu irmão quase amalucou. É a realidade!
        Contudo, convém realçar que não era para menos. Ele gastou anos de tra-
balho, anos de intensa labuta para enfeitiçar os peixes. Atingiu o objectivo que
perseguia, conseguindo que o peixe que ficou vivo, o raro peixe, ao ouvir a música
de encantar, logo saltasse do aquário para a mesa, saracoteando-se e bailando
pronto para o acompanhar, para irem os dois fazer mais uma passeata, para sair
de casa. Por isso não admira que ele, o miúdo, andasse sempre emproado e com
razão, pois o peixe até já passava mais tempo fora do aquário que dentro de água.
        Mas, quando menos se espera, aparecem as ocasiões propícias a determi-
nados e inesperados sucessos. Foi o caso, o imprevisível aconteceu.
        O peixe que o meu irmão tanto estimava e adorava, o seu fiel companheiro,
o que restava do par inicial, também se passou. Morreu!
        A situação, que parecia estar por ele, aparentemente, bem controlada, afinal
apanhou-o de surpresa. O miúdo ficou arrasado com o acontecido. Nesta ocasião,
pior coisa não havia que pudesse ocorrer. Ele ficou, sei lá, como que sem forças e
sem ânimo ao ponto de estar de fato, um tudo nada passado de ideias.
        Acima de tudo, porque o peixe teve uma morte inesperada e insólita.
        Foi para ele uma grande surpresa!
        Naquele dia, bem no pino do verão, o miúdo mais o seu companheiro peixe
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foram ao café, depois do almoço. O sol parecia queimar. Abrasava.
        Na volta, ao fazer o pequeno percurso que separava o café da casa do pai
Valadares, o peixe vermelho encontrou algumas dificuldades, por estar com imenso
calor. Ele queria, precisava a todo o custo de se refrescar. E então, ao entrar em
casa deu de caras com o seu velho aquário, que continuava no mesmo lugar e
cheiinho de água. De imediato o vermelhusco se apercebeu e sentiu ter ali mesmo
à mão de semear um bom lugar, talvez mesmo, o lugar ideal para suavizar o bem
forte escaldão que apanhara.
        Se nisso pensou melhor o fez!
        Então, já muito aflito, o peixe saltou para o interior daquele que sempre fora
o seu habitat, na ocasião um verdadeiro chamariz aquífero. Foi então que aconte-
ceu o inopinado. O imprevisto!
        O peixe vermelho, por andar constantemente na ramboia atrás do dono,
sempre ao sabor da música enfeitiçada que o miúdo não se cansava de tocar, já
estava pouco habituado ao meio aquático onde sempre vivera.
        O meu irmão sentia um grande orgulho por todo aquele seu trabalho ter
atingido o fim a que se propusera. Contudo e apesar de se mostrar bem feliz com
o que fizera, o miúdo sempre considerou que era inevitável continuar, visto que um
trabalho deste calibre, nunca está terminado. Palavras certas e justas, para uma re-
alidade diferente.De fato, se por um lado o miúdo deu a tão falada continuidade ao
seu trabalho, pelo outro deixou aliviar um pouco a segurança do seu dançarino, de
maneira que algumas vezes ele próprio se esquecia dos incómodos que uma onda
de calor podia provocar ao seu vermelhusco peixe. Uma verdade que se confirmou!
        Com efeito, com a intenção única de arranjar um local bem mais fresco, de
modo a que pudesse ficar bem melhor, o peixe raro e vermelho, deu um pincho
para o interior do seu velho aquário, que lhe foi funesto. Inelutável mesmo.
        Certo certo, é que o peixe encantado não resistiu a tanta água, acabando
mesmo por morrer afogado. Foi uma tristeza! Foi uma pena!
        Talvez porque um dia tal teria que acontecer. Talvez!
        Acontece, é a vida!

* Vitor Manuel Capela Batista, 62 anos, português de Barreiro, Portugal.
Engenheiro químico, já foi radialista, possui atividades holísticas, participou de vários
concursos literários, gosta de participar de coletâneas, foi premiado em 2011 por este
concurso na mesma categoria, 2.º lugar. E-mail: vitorbatista@netvisao.pt

34
O Saber…
Dinis Muacho*- menção honrosa – categoria internacional
Avis - Portugal




U
         ma tasca como tantas outras. A venda da família Saboeiros é ao mesmo
         tempo tasca e venda. É um local rústico único. É único como todas as tas-
         cas e como todas as vendas existentes nas fortes planícies Transtaganas.
Pintada de um azulão forte da cor do céu limpo na pele exterior e de neve caiada na
pele interior é assim a sua essência mais objectiva. O telhado é de telhas cerâmicas
de canudo dos barros vermelhos do Redondo, de uma cor de fogo que se entranha
na alma das gentes. Por baixo das telhas existe um ripado de madeira de pinheira
mansa, que serve de teto falso, e abriga a casa do muito frio e do muito calor, meio-
-termo térmico não existe por estas bandas. Portas pequenas, uma para a venda,
outra para a tasca e ainda outra para a habitação da família. Um portão grande de
ferro com espigões rendilhados dá as boas-vindas a quem se assoma à torre de
tijolo burro, altaneira, do forno da padaria, que fica nos fundos do quintal. Móveis
pintados de amarelo muito clarinho servem de colo aos mais variados produtos
que tanta falta fazem ao povo das redondezas. O pão acabado de cozer – a pedir
tiborna de azête – em forno de lenha de sobro vende-se ali. Vende-se por senhas,
as mulheres chegam a estar um dia à espera na bicha para apanharem um quarto
de pão para alimentar oito bocas durante sete longos dias. O açúcar é igualmente
racionado, apenas uma quarta de açúcar para uma casa inteira prenhe de gente.
        	 A tasca é pois o local de eleição e socialização dos homens. Ali não faltam
todo o tipo de pseudoeruditos, malteses, fadistas e até bêbados! Fica na parte baixa
da velha aldeia, centro nevrálgico de conversas e ajuntamentos populares. Popu-
lares sim, que os senhores da terra não se misturam com a arraia e criadagem,
preferem ir até à vila beber chá ao Grémio ou ir a casa de parentes mais ou menos
afastados. Na venda dos Saboeiros é um corrupio de homens, uns a bater o ás da
cartada em cima das mesas com tampo de pedra, outros em amena cavaqueira,
ouros encostados à ombreira para que a parede não caia! Venha de lá mais um
copo de vinho e um bagaço, que o vinho é que instrói e o fado é que induca! É já

                                                                                  35
um dizer antigo, logo fado e fadistas, bêbados e vinho, é algo que nunca falta. Pipas
sempre cheias para os fregueses mais sequiosos. É um local em que as grossas
paredes são confidentes dos segredos mais infames, dos boatos do amante desta e
daquela, do filho que não é filho de fulano mas sim de sicrano… Elas é que sabem
tudo, mas em seu claustro de fidelidade ouvem e calam. Os indivíduos cantam uns
com os outros certas modas da região, ou então cantam à desgarrada, sempre à
capela, muitas vezes ao som da concertina do Zé da Enxara ou do Joaquim Barto-
lomeu. Desta maneira matam por momentos as agruras da vida difícil levada de sol
a sol nos campos arroteados à força de braços e animais.
        	 Todas as sextas-feiras e domingos é dia certo de o Ti Manel Maravilhas
aparecer ali pela tasca para beber o seu copinho e por vezes ser chacota das más-
-línguas do costume. O velho Maravilhas desde novo que não era como os demais
da sua geração. Já em cachopo gostava de falar com os velhos e de aprender as
suas sábias lições de vida. Com eles aprendeu tudo: a afiar navalhas e machadas
na pedra grossa de amolar, a fazer cestas e cadeiras de junca – que o junco não
presta para isso – bem entrançadas, a fazer enxertias na altura das luas, e o regalo
dos olhos de toda a gente eram os seus batatais semeados à manta, que davam as
melhores batatas da aldeia. “Que maravilha”, diziam todos a respeito do cachopo
feito homem desde muito novo, que tudo aprendera com primor. E por isso ficou o
Manel “Maravilhas”. Aprendeu a ler com um velho que vivia num monte ali perto,
que o ensinou também a escrever no pequeno quadrinho de xisto. Era como um pai
para si, ensinara-lhe tudo, e o resto aprendeu sozinho. Aos sete anos já era zagal,
depois foi ajuda de porqueiro, onde aprendeu também com os animais o valor e
a noção de família. Quando as marrãs pariam era a sua maior alegria, batizava
todos os quichos um a um, com nomes de tudo e mais alguma coisa. Os pais do Ti
Maravilhas morreram novos, pelo que ficara órfão de mãe e pai com três e quatro
anos respectivamente. Mas seguiu em frente, sempre quis saber mais e mais, não
virou a cara à luta e ao saber. Como lhe dizia o mestre Chico da Pedreira “Rapaz,
saber não ocupa lugar!” e esse era o seu lema, seguido à risca por influência desse
velho que lhe ensinara a ler e a escrever, tantas vezes já a plenos pulmões da luz
da candeia de azeite. Era pobre, comia uma pobre açorda de pão duro regada com
um fio do néctar puro das oliveiras e alhos, e assim enganava a fome, sabe Deus!
Quando era no tempo das boletas lá andava ao rabisco e metia mais alguma coisita
no bucho, para além de couves e batatas! Cresceu e fez-se homem de barba feita!
A melhor horta das redondezas era a do Maravilhas, que sempre humilde dizia que
36
o seu saber era pouco, tudo o que sabia era por graça de Deus Nosso Senhor. Por
não ser um homem alto, sempre que o arreliavam com isso na mangação respon-
dia com uma espécie de verso que continha o nome de uma serra, que aprendera
com o velho Chico da Pedreira. De serras sabia o nome de todas de cor e salteado,
mas da que gostava mais era da serra de Maltim – que era perto da sua aldeia –
e da serra do Marão… soava-lhe bem o nome! Dizia então aos galfarrões que o
apoquentavam o adágio: “Olha lá, grande é o Marão e não dá palha nem dá pão!”.
Com esta é que calava logo toda a maledicência. Cantava mal o fado mas era
um exímio repentista de prosas de quarenta pontos. Um dos motes que mais lhe
ouviam dizia: “Eu cá quero saber mais / Quero a todos e a ninguém / Lá por mor-
rerem meus pais / Não deixo de ser alguém”. Levou uma vida pacata, casou com
o seu único amor, de quem teve três filhos e duas filhas e ainda criou mais uma
criança de berço que lhe deixaram aos portados do Monte da Figueira Negra numa
noite de invernia, andava a sua Adelaide prenha da sua da última cachopita. Não
pestanejou, “No prato onde comem cinco, hadem comer seis, sabem tanto de amor
ao próximo como eu sei cantar o fado” arrematava muitas vezes, sobre os ricaços
que haviam feito aquele belo serviço, qual roda dos enjeitados das gentes finas,
talvez de uma filha que se envolvera com algum jovem ganhão que servia o pai! Já
homem velho, depois dos filhos todos criados, sem nunca ter deixado de trabalhar
nos trabalhos do campo, já que as oportunidades eram nulas para os pobres do
seu país rico mas oprimido por ditadores, lá ia todas as sextas-Feiras e somingos
religiosamente à tasca dos Saboeiros para umas desgarradas de poesia. Ao Ti
Maravilhas até havia quem lhe chamasse o Borda D’Água das poesias, já que em
mestria não ficava atrás do primor dos grandes bailarinos de fandango ribatejanos.
Qualquer assunto era tema para longa conversa, servindo de conselheiro a muitos
dos seus camaradas de confraternização, e aos novos até escrevia cartas por eles
a alguma cachopa de que eles gostassem. Toda a gente se admirava de o homem
toda a vida ter sabido e ainda saber de tanta coisa, e coisas tão distintas, mas alto
lá que em política não se tocava! Só de pensar já doía, o país não deixava! “Ah
filho duma real puta, que é mesmo um homem que sabe a valer”, dizia o Jaquim
Morcela, que ouvira dizer mais ou menos o mesmo na telefonia acerca do Eusébio.
Mas o que disseram ao Eusébio não era por malcriadagem, era sim o maior louvor
em palavras que se podia dizer a alguém, dito por quem não sabia ler nem escrever.
Só quem sabia fazer coisas fora do normal, quase como que fenômenos do Entron-
camento, é que era merecedor de tal elogio (para alguns doutos era mera falta de
                                                                                  37
educação).
        	 Num outro aforismo, o do amigo que não empata amigo, lá na tasca lan-
çava o mote: “Ora quem vai, vai / Ora quem está, está / Morreu-me mãe e pai / Não
choro por eles já!”. Os Homens não choram e o Ti Manel Maravilhas já não tinha
vida nem idade pra chorar, mas ao mesmo tempo que assacudia aqueles que não
lhe interessavam, jamais esquecia a sua mãe e o seu pai que tão precocemente
tinham partido deste mundo. Ele sabia que a família era o pilar da sociedade, era
pois um homem muito à frente no seu tempo, e soube bem passar essa mensa-
gem aos filhos e netos. Quem sabe, sabe e o Ti Maravilhas sabia, o que era o bem
e o mal, a verdade, a honra, a seriedade, o valor da palavra dada. E para saber e
discutir isto tudo e muito mais nunca precisou de se encharcar em vinho nem em
bagaço. Bebia os seus tintinhos em púcaro de lata carcomida e quando se sentia já
bem, mais não bebia. O saboeiro, dono da tasca e da venda é que ficava a perder
com o negócio, era menos um bocado da pipa que esvaziava e menos uns tostões
amealhados ao fim da noite. Mas era menos um bêbado que aturava, e o Ti Maravi-
lhas era sempre pessoa que dava gosto ter na sua pequena taberna. Para bêbados
já lhe bastavam o Finfas e o Tonel que dia sim, dia sim, eram clientes habituais da
embriaguez. Depois de bem pingados estes dois armavam de tourada com uns e
outros e o resultado era sempre o mesmo: o jogo do pouco tino!
        	 Morreu velhinho o Ti Manel Maravilhas, mas ainda hoje nas estreitas e
tortuosas ruas empedradas da velha aldeia, dizem que o saber da sua alma está
perpetuado em cada esquina, em cada pedra, em cada parede. O saber de um
homem que resistiu à guerra civil do país vizinho, à ditadura do seu próprio país, e
viveu alguns dos anos de liberdade que se seguiram, prova de que quem sabe com
humildade, e não guarda o saber só para si, faz crescer a humanidade, nem que
seja a de uma pequena aldeia, que hoje chora de saudade este ser humano tão
sábio e maravilhoso…




*Dinis Reis Subtil Muacho, 32 anos, mora em Avis-Portugal, tem um livro de poesia
editado, é escritor premiado nacional e internacionalmente (poesia e prosa), alia a faceta
literária à sua profissao de engenheiro mecatrônico. E-mail: dinismuacho@hotmail.com



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O Vale dos Sentimentos
Umoi Souza* - menção honrosa - categoria internacional
Parede, Portugal




J
      anaína era nova, bela e sensível. Nascera numa família de pessoas nobres
      pela bondade dos seus corações. Morava num vale - uma vaidade da natu-
      reza que resolvera criar aquele local, longe de tudo o que pudesse ser feio
e desprezível, enchendo-o de uma beleza luxuriante com suas montanhas de um
verde capaz de humilhar a mais bela das esmeraldas e de um sol sempre atento
às necessidades da vegetação, igualmente, rica em alimentos para os moradores
e pasto para o gado.

       Janaína era feliz. Não conhecia o sentimento da tristeza ou do sofrimento,
pois tudo o que a cercava fazia sentido, era belo e puro. Mesmo nos dias em que
alguém seguia em viagem sem volta para o vale eterno.

       Corria solta por esse pequeno paraíso e conhecia cada árvore, cada rocha e
cada nascente de águas claras e doces. Às vezes tinha a nítida impressão de que
podia falar com as árvores, com os pássaros e com toda espécie de criatura viva ao
seu redor, tamanha era sua cumplicidade natural com o que a cercava.

        De vez em quando, atravessava todo o vale para ir à cabana do velho Man-
du. Ele era como um avô, um professor de uma ciência simples chamada vida. Mas,
acima de tudo, ele era seu amigo.

      Junto a Mandu, passava horas ouvindo o velho sábio divagar sobre coisas
de um mundo, tão distante quanto sua imaginação pudesse alcançar.

      Mandu se divertia ao ver a expressão “cabulosa” , como ele chamava, es-
tampada no rosto de Janaína, sempre que ele falava do mundo dos sonhos, o reino
de Morfeu e os mundos além da nossa imaginação.

                                                                               39
Mandu falava a ela, com certa autoridade, que durante os sonhos, nossos
espíritos eram libertos da cela da realidade e viajavam livres como cavalos nas
pradarias e velozes como a luz ou o pensamento para mundos desconhecidos
e podiam brincar com outros espíritos em estrelas de outras dimensões, cortar
os mares que cobriam a terra e vislumbrar toda a divindade existente em cada
centímetro quadrado do imensurável universo. Mas, acima de tudo, podiam, na
liberdade dos sonhos, enfrentar seus medos e seus temores, quer fossem de um
remoto passado, do presente ou do inexorável futuro.

        Certa vez Janaína perguntou a Mandu de onde vinha a chuva. Era frequente
o vale ser lavado por uma chuva fina e, de vez em quando, salgada como água do
mar.

       Mandu olhou para os vivos olhos negros da pequena Janaína e, embora
pudesse achar a pergunta ingênua, coçou a grisalha cabeça lhe perguntando sem
rodeios:

      - Quer mesmo saber a origem da chuva salgada, Janaína? A que ela,
prontamente, respondeu que sim.
      - Ouça com atenção. Disse Mandu, estranhamente sério.

      Do lado norte no nosso vale fica nossa maior montanha. Também cha-
mada de Guardiã. Por trás dela existe um mar tão bravio e selvagem em sua
ondulação que nem mesmo as grandes criaturas marinhas se atrevem a explo-
rar aquelas águas.

       A chuva salgada que temos de vez em quando é o resultado da luta
entre o mar e nossa Guardiã.
       A constante tentativa do mar em atravessá-la faz com que o embate
entre suas rochas e as águas produza uma verdadeira explosão de água que é
atirada tão alto que se torna capaz de ultrapassar os picos mais altos da nossa
montanha protetora.

       Mas o que poucos não sabem é que todo aquele que se banha nessa
40
chuva experimenta o mesmo sentimento que no momento é trazido pela chu-
va. Já vi grupos inteiros de pessoas começarem a chorar, inexplicavelmente,
quando, juntos, resolveram se “lavar” nas águas da chuva. Não entenderam o
porquê e apenas concordaram que todos sentiram exatamente a mesma coisa
e resolveram não mais falar no assunto.

      Outros já relataram que o banho da chuva os fez experimentar outros
sentimentos: de alegria, tristeza, nostalgia entre outros.

       Mas, não é sempre que a luta da Guardiã com o mar produz a chuva. É
preciso que o mar liberte sua onda maior. Ela é gigante, desafiadora e esfome-
ada. Sua fome é de sentimentos.

       Ela se fortalece ao se alimentar dos sentimentos de quem é pego por ela.
Ao se alimentar dos sentimentos de alguém a onda multiplica seu poder e isso
faz com que ela use essa força adquirida para tentar ultrapassar a guardiã.
Não conseguindo, explode e ultrapassa a muralha, caindo no vale em forma
de chuva salgada. Os sentimentos experimentados por todos são o mesmo, rou-
bado pela onda a alguém que partiu para a grande viagem em suas águas,
dando, a onda, força e sentimento em mais um combate com a guardiã que,
como uma mãe, tem nos protegido da fúria da grande onda. Apenas a chuva
consegue, de vez em quando, passar e cair no vale.

      - Mas porque as pessoas resolvem ir para perto desse mar tão bravio?
Perguntou Janaína, num misto de curiosidade e certa ansiedade pela resposta.

       - Janaína – continuou Mandu – mesmo o mais belo dos paraísos pode, em
dado momento, representar uma prisão para quem tem o desejo de uma liberdade
desconhecida. Pense comigo, pequena Janaína. O que é a liberdade? – é fazer o
que se tem vontade. – Respondeu a menina.

       - De certa forma sim – Atalhou Mandu.
       - E como uma pessoa sabe mesmo o que realmente deseja? Perguntou
Janaína.
       - Essa, minha cara, é a pergunta correta! Podemos perguntar a todo
                                                                            41
habitante do nosso vale o que é liberdade que teremos uma resposta diferente
de cada um. Todavia, a essência do significado estará presente nas diferentes
respostas.
        Janaína coçou a cabeça fazendo uma careta que mostrava sua incapaci-
dade em entender a filosofia de Mandú. Sabia que seu amigo estava filosofando e
talvez, até, sabendo a verdade. E estava apenas provocando nela o despertar da
mente para uma visão mais clara.

        Pegando ingredientes para fazer pão, Mandu continuou, mas sorrindo ao
sentir a euforia de Janaína ao vê-lo se preparar para fazer pão. Janaína adorava
aqueles momentos de conversa com Mandu, que invariavelmente, terminavam em
piquenique improvisado e comendo algum bolo, doce ou pão, feitos pelas mãos
hábeis e dóceis de seu amigo.

        Mas mesmo com os olhos brilhando pela promessa de pão, quis saber mais,
ao mesmo tempo em que preparava lenha para o forno. Já sabia toda a “missa”
do pão e já conhecia o seu “trabalho”. Não demorou muito para que toda a cabana
fosse invadida pelo característico, quente e delicioso cheiro de pão no forno.
        	
        - Fala mais sobre a onda, Mandu – pediu Janaína, ao por, sobre a mesa,
manteiga, doce e leite, imaginando o sabor conhecido daquele pão.

       Mandu olhava com carinho a pequena Janaína. Comparava-a a uma peque-
na raposa órfã descobrindo, pela experiência, sua natureza experta.

       - A onda, Janaína, nada mais é do que uma das formas de expressão
do imenso mar. Seu poder destrutivo não é necessariamente a vontade do mar.
Ela é apenas água em movimento com forças naturais que a impelem contra a
rocha. A onda não quer vencer a rocha e a rocha não quer defender nada. Eles
apenas existem e cumprem seu papel na ordem das coisas e “sabem” dessa for-
ma porque “nasceram” onda e rocha. Exercem apenas seu direito a existência,
atuando como deve ser.

      - Mas se a montanha não existisse poderíamos ser mortos pela onda.
Então ela nos guarda. E a onda faria uma coisa má ao inundar o vale. Disse
42
Janaína, mexendo no fogo com um tição.

       - Sim, você tem razão, mas não devemos nos esquecer de que o único
desejo da onda é seguir seu caminho que tem, na guardiã, um obstáculo. Da
mesma forma não é desejo da guardiã nos proteger de nada. Ela apenas vê
na onda algo que a recorda da própria existência ao lhe trazer a consciência
da sua força e majestade. Legitimam-se mutuamente pela própria natureza
de existência. Para nós, que vivemos aqui, a montanha é um anjo protetor em
constante sentinela. Uma atalaia que mira fundo o horizonte a espera que ela,
a onda, volte em mais uma batalha.

       Entre conversas sobre ondas, montanhas e mistérios, passaram o dia em
mais um piquenique improvisado reforçando a amizade.
       Longe do vale, bem longe dos olhos e da compreensão humana, um outro
diálogo se realizava numa linguagem impossível à compreensão dos homens.
       A onda falava com a montanha...

      - Montanha, porque não me deixa passar? Tenho em minhas águas,
sentimentos retirados de quem me alimentou e tenho que levá-los por esse
caminho.
      - Onda, minha amiga, se te deixo passar significa que não sou mais
montanha, o vale não será mais vale e aquelas pequenas criaturas deixarão
de me cultuar como protetora.

       - Mas, ao não me deixar passar, montanha, meu destino de onda se
altera e volto a ser apenas água ordinária e sem poder. Aí tenho que voltar
a me fortalecer através de outras criaturas humanas que sempre tenho que
procurar, roubar-lhes os sentimentos, me tornar onda gigante e tentar, como
sempre, seguir o caminho que me foi destinado e onde você se encontra, tam-
bém cumprindo seu destino de montanha.

       - Seu destino, onda, é passar e o meu é não permitir. Seja sensata e
continue a tentar para continuar a existir, pois tentando, estarei também de-
fendendo com minha existência e legitimando minha razão de ser montanha.
Nossa luta, amiga, é o que nos fortalece e nos faz existir. Talvez estejamos, com
                                                                              43
essa conversa, descobrindo nossa verdadeira sina. A de se opor uma para a
outra. Você não nasceu para atravessar o vale e eu não nasci para protegê-lo.
Nós nascemos para nos complementar e garantir a existência pela perpétua
batalha de luta que não pedimos para ter, mas que existe.

       - Eu compreendo montanha. Volto agora para me fortalecer. Viajarei
por continentes, ceifarei vidas e me alimentarei dos seus sentimentos. Tornar-
-me-ei onda gigante mais uma vez e meu poder será tão grande que até em
sonhos alguém há de me temer. Continue aí montanha, mas saiba que voltarei.

       - Vá, em paz, onda. Atravesse os continentes e se alimente de outras
vidas. Ficarei de prontidão à espera da sua volta, pois assim o destino me
confiou o poder de ser montanha.

        Totalmente alheios a esse diálogo, Mandu e Janaína comiam pão fresco,
filosofavam sobre chuvas salgadas e sentimentos.

       A eufórica Janaína, debruçada na janela, olhava para a imponente monta-
nha e imaginava-se escalando-a, de mãos nuas, chegando até o seu topo, mirando
o mar e gritando:
       - Venha onda! Estou aqui e não temo você. Sou Janaína.

        Ela veria a onda se aproximar e antes que essa batesse na montanha, Ja-
naina, sorrindo, saltaria em suas águas revoltas, se fundindo à existência das águas
revoltas e a conduzindo para longe dali, na tentativa de uma salvação permanente
para o vale e, principalmente, para seu amigo Mandú.

        Com seu poder, Janaína se tornaria a própria onda, mas não amedrontaria
ninguém. Nem mesmo em sonho. Não mais ceifaria vidas e daria nova realidade à
sua existência.
        A montanha choraria. Não pela perda de Janaína, mas pelo fim do combate
eterno.

         Diminuiria e se nivelaria ao solo fértil do vale, se tornando, também, solo fér-
til e abrindo uma janela por onde se poderia vislumbrar o mais azul e belo dos ma-
44
res e sem ondas ameaçadoras. Apenas dando a todos os moradores o espetáculo
diário do mais belo e sereno pôr do sol... A chuva salgada não voltaria a cair, jamais.




*Umoi Melo de Souza, 48 anos, brasileiro naturalizado português.
Nasceu em Goiânia e se criou em Brasília. Hoje com dupla nacionalidade: brasileira e por-
tuguesa. É licenciado em Animação Sociocultural pela Escola Superior de Educação Jean
Piaget - Almada - Portugal e tem verdadeira paixão pela escrita de contos.
E-mail: umoisouza@hotmail.com




                                                                                       45
Uma dependência
                 invulgar
Antônio Carloto* - menção honrosa – categoria internacional
Lousã, Portugal




-D
              iga-me lá então doutor, qual é o diagnóstico?			
              O médico coçou a têmpora, ajustou os óculos de armação metálica, fo-
              lheou as análises e fixou os seus olhos cinzentos no paciente sentado
à sua frente.
        - Sr. Joel, seja sincero, quando me disse que gostava de beber o seu copito
de Vinho do Porto, estava a falar de que quantidades?
        Joel assumiu uma posição mais ereta na cadeira e entrelaçou as mãos no
colo para disfarçar as arreliadoras tremuras que o começavam a afligir logo pela
manhã.
        - Bem, como sabe doutor, o Vinho do Porto tem propriedades tônicas e
nutritivas que combatem as astenias e as depressões e como me tenho sentido em
baixo, pela manhã...
        - Pela manhã...
        - Tomo dois ou três cálices.
        - Normais?
        - Hã...duplos.
        O médico coçou a testa.
        - E depois?
        - Ao almoço, claro está, como aperitivo, vai outro, bem fresquinho. Note que
durante a refeição acompanho com água, não gosto de outros vinhos e muito me-
nos de cerveja. Tomo é depois um Branco seco com a sobremesa e se a conversa
está boa mais um ou outro Tawny como digestivo. E ao jantar...
        - Já percebi, Sr. Joel, e já agora, ao lanche, com um queijinho picante...
        - Nem sempre doutor, nem sempre...
        - Sr. Joel, os seus sintomas de desnutrição, dores abdominais, anemia,

46
tremura nas mãos - Joel apertou mais firmemente as mãos entrelaçadas - são
reforçados pelas análises: o senhor está com uma hepatite alcoólica com sérios
riscos de descambar para uma cirrose. Vou-lhe receitar uns medicamentos mas o
principal é o Senhor...
        - Moderar o consumo? - alvitrou, esperançoso, Joel.
        - Não, cortar completamente. Para si, Sr. Joel Alfaiate, acabou-se o Vinho
do Porto. Para sempre.
        	
        Quando voltou ao escritório, depois da consulta, vinha ainda abalado pela
sentença. Sentou-se à secretária ainda em transe – “Meu Deus, meu Deus, não vou
conseguir, estou perdido!” Foi com grande esforço que abriu a pasta do relatório de
contas em que estava a trabalhar. Dentro, alguém tinha colocado um cartão, desses
oferecidos pelas beatas. De um lado estava a figura de São Onofre, padroeiro dos
alcoólicos, com o corpo esquelético de eremita vestido apenas com os seus longos
cabelos e barbas e uma tanga de ervas entrançadas. Do outro lado, uma oração:

       Ó Santo Onofre, que pela fé, penitência e força de vontade
       vencestes o vício do álcool, concedei-me a força e a graça
       de resistir à tentação da bebida do Vinho do Porto.
       Livrai do vício, que é uma verdadeira doença, também
       os meus familiares e os meus amigos.
       Virgem Maria, mãe compassiva dos pecadores, socorrei-nos!
       Santo Onofre, rogai por nós!

         Joel olhou desconfiado para os colegas nas secretárias vizinhas, tentando
identificar o engraçadinho ou engraçadinhos. Pareciam, sem exceção, dedicar-se
ao trabalho com mais concentração e zelo do que o habitual, prova segura de que
estavam todos envolvidos. Ostensivamente, rasgou a oração para o balde do lixo
mas não pôde impedir-se de a recitar mentalmente enquanto o fazia.

        	 Quando chegou à hora do almoço avisou os colegas de que não se jun-
taria a eles como habitualmente, pois tinha de ir tratar uns assuntos ao banco.
Precisava de estar só para pensar como ia abdicar do Vinho do Porto, seu fiel
companheiro desde os quinze anos e, por ironia, o seu ganha-pão, visto que traba-
lhava numa empresa de exportação do Divino Néctar, sediada perto das suas caves
                                                                                47
de armazenamento e por essa via no local com maior concentração de álcool por
metro quadrado do Mundo: Vila Nova de Gaia.
         	 Escolheu para almoçar uma casa de petiscos na Baixa de Gaia que sa-
bia não ser frequentada por ninguém conhecido. Sentou-se ao balcão e logo ao
consultar a ementa veio-lhe a necessidade do aperitivo. Não resistiu - "É para a
despedida", racionalizou - e pediu um Ruby fresquinho.
         - O cavalheiro emprestar seu vinho para eu provar?
         O autor deste pedido descabido estava sentado à esquerda de Joel. Era
corpulento, trajava um fato completo algo fora de moda. mas o que o destacava,
para além do sotaque britânico, era o seu penteado: um risco de lado a partir do
qual se lançavam em sentido contrário dois volumosos cachos de cabelo negro
encrespado.
         - Era o que faltava! Peça um para si!
         Parecendo não ter ouvido a negativa de Joel, o "bife" deitou a manápula ao
cálice e bebeu-o de um trago. Não gostou pois cuspiu-o de imediato, bradando:
         - Mas este vinho ser fortificado! Toda minha vida lutar contra Vinho do Douro
fortificado. Que porcaria!
         Privado da sua dose, transido de cólera, Joel cometeu o erro de insultá-lo:
         - Que a filoxera e o oídio te consumam até à raiz, meu animal!
         Levou de imediato uma chapada monumental que o projetou do banco até
uma mesa onde duas empregadas da retrosaria da esquina tomavam tranquila-
mente a sua bica. A confusão que se seguiu foi grande. Alguns clientes e empre-
gados tentaram imobilizar o agressor mas este, ao mesmo tempo que batia em
retirada, sacou do seu cinto e fê-lo voltear por cima da cabeça. O cinto parecia
invulgarmente pesado e abriu-se imediatamente uma clareira. Escapou sem deixar
rasto.

         	 Quando voltou ao escritório, Joel vinha ainda mais alterado do que de
manhã, depois da consulta: tinha o estômago vazio, pois como era natural, tinha
perdido todo o apetite depois da agressão; a cabeça ainda lhe retinia com o estalo
que tinha levado; mas sobretudo, todo o surrealismo da cena o atormentava. No
entanto, o indivíduo era-lhe vagamente familiar...A figura, o sotaque britânico, o
rejeitar a adição de aguardente vínica durante o processo de fermentação do Vinho
do Porto, ou seja, a sua fortificação...
         - O BARÃO DE FORRESTER! ERA O BARÃO DE FORRESTER! TENHO A CER-
48
TEZA! SÓ PODIA SER ELE!
        E largou um violento murro no tampo da secretária.
        Os colegas tentaram acalmá-lo:
        - Epá, põe-te manso, olha o Borges!
        Mas tarde demais. O Patrão Borges emergiu do seu cubículo e, numa voz
autoritária, chamou-o:
        - Sr. Joel Alfaiate, chegue-se imediatamente ao meu gabinete que eu pre-
ciso de falar consigo!
        O Patrão Borges era um indivíduo com toda uma vida dedicada ao comércio
do Vinho do Porto. Com muitos poucos estudos, tinha começado por baixo, na
estiva das pipas. À custa duma vontade férrea e de muita esperteza tinha subido
até ao cargo de dirigente intermédio. Bem nutrido, de aspecto e feitio bonacheirão,
sabia, no entanto, quando "pôr os pontos nos Is":
        - Sr. Joel Alfaiate, não gosto de me meter na vida particular dos meus fun-
cionários. Como sabe, eu também não sou nenhum "bebe água" mas tudo tem os
seus limites. Não posso admitir que Vossa Excelência se encharque ao ponto de
se meter à pancada na hora do almoço - não me contradiga porque ainda tem as
marcas na cara - e de desatar aos berros e aos murros à secretária durante as
horas de expediente. Mas ainda pior, é que tenha começado a ter alucinações e a
imaginar encontros com senhores falecidos em meados do século XIX! O senhor é
um contabilista, carago! Por definição deveria ser um ser desprovido de qualquer
imaginação, quanto mais deste tipo! Ou se organiza ou vou ter de tomar medidas
radicais. Como sabe, a legislação laboral tem vindo a flexibilizar-se...Estamos en-
tendidos?
        - Perfeitamente, pa… Sr. Borges.
        - Então vá para casa descansar, siga os conselhos do seu médico e amanhã
quero vê-lo em forma para trabalhar, fresco como uma alface.
        - Cá estarei, Sr. Borges.

       Enquanto caminhava até ao seu modesto apartamento - tinha decidido
prescindir do autocarro e ir a pé para desanuviar a cabeça - Joel começou a pôr
em causa a sua sanidade mental. Não se sentia louco, mas só podia estar. Era a
única explicação. De resto, os loucos não se tomam como loucos, funcionam com
a sua própria lógica interna, distinta das outras pessoas. Por outro lado, ao admitir
a hipótese de loucura, demonstrava a sua racionalidade…Arre!
                                                                                  49
Ao passar pelo Café Vesúvio sentiu fome. Entrou e pediu uma tosta mista.
Conhecedor dos seus hábitos, o empregado trouxe-lhe imediatamente um cálice
duplo. Ainda teve um assomo de recusa, mas logo mudou de ideias - "Que se
dane! Se calhar o meu problema é que ainda hoje não tomei uma única gota!" - De
fato, por causa da consulta médica, tinha até prescindido da sua dose matinal.
Antes de levar o copo à boca lançou um olhar receoso às mesas vizinhas. O Barão
de Forrester não se encontrava à vista, mas na mesa ao lado, uma senhora de
ar austero encarava-o fixamente. Estava trajada como uma professora reformada,
tinha o cabelo apanhado num carrapito e aparentava uns 60 anos. Era miudinha de
corpo, toda pele e osso, mas o olhar profundo, acentuado por umas olheiras bem
marcadas emanava força e poder. Desta vez, Joel não foi apanhado de surpresa - o
"incidente Forrester" tinha-o preparado. Compreendeu que agora tinha pela frente
outra figura lendária da história do Vinho do Porto: nada mais, nada menos, que D.
Antônia Adelaide Ferreira, a mítica "Ferreirinha". Foi ela que iniciou as hostilidades:
        	 - Jovem, o seu rosto é-me familiar e isso desagrada-me. Faz-me lembrar
o valdevinos do meu filho Antônio Bernardo. Foram as más companhias, mas so-
bretudo o vinho que o perderam. Por favor não beba esse copo.
        	 - Minha senhora, lamento desapontá-la mas isso é problema seu.
        E ia beber de qualquer maneira, não tivesse a Ferreirinha começado a cho-
rar. Chorava em silêncio, sem soluçar. Corriam grossas lágrimas pela sua face arre-
panhada numa máscara de profunda dor. Isso era mais do que Joel podia suportar.
Ele venerava a Senhora. Na parede da cabeceira da sua cama, onde outras pessoas
tinham a imagem de Cristo, tinha ele o retrato de D. Antônia. Bateu em retirada
desabrido, sem esperar pela tosta mista e sem pagar a conta. "Estou a ser perse-
guido, estou a ser perseguido" - o seu coração bombava como se tivesse subido
ao cimo da Torre dos Clérigos a correr - "mas não me vão vencer, não vão não!"
E dirigiu-se à tasca mesmo por detrás do seu prédio. Antes de transpor as portas
batentes do estabelecimento, controlou a clientela. Parecia seguro. Nada de figuras
históricas do Douro, só três velhotes a jogarem ao dominó numa mesa de canto,
partilhando uma garrafa. Foi ao balcão e pediu um Porto - desta vez é que ia ser.
        	 - Lamento, amigo. A garrafa que tinha foi comprada por aqueles senhores.
        Joel virou-se e os três velhotes - só então reparou nas suas farfalhudas
suíças – voltaram-se para ele com um sorriso malandro e fizeram-lhe um brinde.
        	 Ser perseguido por gente já falecida era terrível, mas o assédio de figu-
ras publicitárias que nunca tinham tido existência corpórea era ainda pior. Só lhe
50
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  • 3. Vários autores Contos selecionados 2012 Araçatuba, 2012
  • 4. Prefácio O tradicional Concurso de Contos Cidade de Araçatuba, mais uma vez nos presenteou com histórias surpreendentes e com a satisfa- ção de ler textos de abrangência territorial: desde 2011, além dos contos regionais e de nível nacional, o concurso estendeu-se para as terras estrangeiras que têm como sua língua, a portuguesa. Em meio aos mais de seiscentos contos recebidos, entramos em contato com belas produções lite- rárias, pois desse concurso participaram excelentes escritores, o que mais eleva o evento araçatubense. O trabalho de leitura e seleção de textos é árduo. Porém, para os que fazem da leitura um ato prazeroso, o contato com a diversidade regional, nacional e internacional passa a ser mais um processo de enriquecimento cultural. Pela amplitude de vocabulário e abundância de construções para se escrever os pensamentos, a Língua Portuguesa é um rico instrumento de trabalho. Assim, dentro de seu universo vocabular, seu estilo, seu conheci- mento sobre as técnicas de se escrever um conto e o domínio da língua pá- tria, suas vivências, suas leituras de mundo e sua criatividade, cada autor colaborou com o sucesso deste concurso de 2012. Os contos apresentados enfocaram ângulos diferenciados da expe- riência humana, sintetizando costumes, mitos, sentimentos; também di- versificando linguagens, lugares, tempo, situações, e, às vezes, até mesmo mexendo com as máscaras das tragédias, das comédias, dos dramas, ora apresentando-os como realmente são, ora manipulando-os ao bel-prazer do autor. Os contos nacionais e estrangeiros apresentaram-se como o espera- do: uns surpreenderam pelo enredo, outros pela construção literária, outros pela simplicidade e infinitos fatores de fundo e forma. Destacaram-se, porém, os contos regionais interioranos, mesclados 4
  • 5. de coisas da nossa terra, da nossa história. Concluímos que a nossa lite- ratura, antes chamada interiorana, caminha a extensos passos para uma produção que merece reconhecimento nacional. E assim, entregamos a você, que aprecia a boa leitura, este livro que traz os contos premiados e outros selecionados entre os melhores. Espera- mos que esse ler seja um incentivo para que nossa cultura se expanda e se faça com a alegria de viver no mundo dos contos aqui apresentados. Marilurdes Martins Campezi Membro da comissão julgadora Vencedora da 1.ª edição do concurso Escritora da Academia Araçatubense de Letras 5
  • 6. Índice Categoria internacional 1.º lugar - Intermezzo Liliana S. Ribeiro - Leça da Palmeira – Portugal............................................... 10 2.º lugar - Hamelin Miguel Cruz Fernandes - Lisboa - Portugal...................................................... 13 3.º lugar - Morder-me os sonhos Valentina Silva Ferreira - Ilha da Madeira – Portugal......................................... 22 a) Menção honrosa - A bola Lola Ana Rita Santos Brandão – S. João da Madeira – Portugal............................... 29 b) Menção honrosa - O peixe encantado Victor Manuel Capela Batista - Barreiro – Portugal........................................... 30 c) Menção honrosa - O saber Dinis Reis Subtil Muacho - Avis – Portugal....................................................... 35 d) Menção honrosa - O vale dos sentimentos Umoi Melo de Souza - Parede – Portugal....................................................... 39 e) Menção honrosa - Uma dependência invulgar Antônio Carloto - Lousã – Portugal.................................................................. 46 6
  • 7. Categoria nacional 1.º lugar - A sesta Suzana Maggioni Bertuol - Farroupilha – RS................................................... 54 2.º lugar - O amor no tempo da solidão Cláudia Albers Avóglio - Pirassununga – SP..................................................... 57 3.º lugar - O ovo Sara Meinard Begname - Mariana – MG......................................................... 60 a) Menção honrosa - A árvore Rafael Vieira da Cal - Cachambi – RJ............................................................. 63 b) Menção honrosa - Duas cruzes Cândido Brasil - Cachoeirinha – RS................................................................ 66 c) Menção honrosa - Em braile Éder Rodrigues - Belo Horizonte – MG............................................................ 68 d) Menção honrosa - O lamento de Ingrid Alex Sens Fuziy - Delfim Moreira – MG........................................................... 72 e) Menção honrosa - Passa azeite, se não racha! Arnaldo Devianna - Sete Lagoas – MG............................................................ 77 7
  • 8. Categoria regional 1.º lugar - Lussanvira Francisco Carlos Pereira - Araçatuba-SP......................................................... 83 2.º lugar - O beijo da serpente Rita Lavoyer – Araçatuba-SP......................................................................... 87 3.º lugar - O loiro e o “Ouro Negro” Larissa Firmo Alves Marzinek - Araçatuba – SP.............................................. 94 a) Menção honrosa – Iluminados Júnior Viana – Araçatuba- SP...................................................................... 101 b) Menção honrosa – Incondicional Laís Simone Sandrigo - Birigui-SP................................................................ 104 c) Menção honrosa – O milagre Paulo Coelho - Araçatuba-SP........................................................................ 111 d) Menção honrosa – Uma história de grilagem Ademar Bispo da Silva - Araçatuba-SP........................................................ 116 e) Menção honrosa - Vidas Mortas Marcelo Otávio de Souza - Birigui-SP.......................................................... 121 Contos da comissão julgadora Tio Lucas Mário César Rodrigues – Araçatuba - SP....................................................... 126 Um urso à minha mesa Emília Goulart – Araçatua - SP...................................................................... 128 8
  • 10. Intermezzo Liliana S. Ribeiro* - 1.º lugar – categoria internacional Leça da Palmeira - Portugal A vó? A neta entrou no quarto. Passos lentos e bicudos. Pousou a mão na pa- rede. Certificou-se de que o seu peso era mínimo. A janela entreaberta deixava passar a luz do fim de tarde. A janela paralela à cama, ao lado, a mesa de cabeceira, um copo de água, um relógio. A cômoda em linha reta dispondo assi- metricamente os guarda-joias, um retrato e um candeeiro. A toda a volta, o papel de parede cinzento. Cheirava a naftalina e aquele cheiro trazia movimento como se avó andasse pelo corredor, de rosário no bolso a cumprir uma prece. Avó? A neta chamou baixo. Mais uma vez pensou que ela tinha morrido. O corpo quieto, as pernas estopadas por não se conseguirem mexer já. Avó? Estás a ouvir-me? Os braços da avó saíam da dobra vincada do lençol amarelo. A neta sentou- -se na beira da cama. Começou a entreter os dedos no casaco, fazendo crer a quem passava que estava ciente das mãos, ciente de que não queria assomar às suas as mãos da avó. Mas queria, queria muito. Conteve-se no gesto. A neta observou aquele corpo ali despojado. Um movimento, uma respiração lenta e quase rala. A avó declinou a cabeça em direção à neta, foi um acento muito bre- ve. Uns espasmos de olhos que se mantiveram fechados. Não era quase nada já. Pouco se manifestava, não denunciava a dor. Era uma ideia que balouçava em si. Um pêndulo. Os cabelos da avó surgiam brancos, de uma cor só. Era a velhice e o can- saço do pelo. A avó mantinha-se viva naquela cama há muito tempo e entretanto a neta já tinha dobrado a esquina para adolescência. O corpo crescia como uma plan- ta em busca do seu ar. O corpo maior que ela própria. Tratavam-na como mais velha 10
  • 11. e isso era coisa boa. Enganava os olhares de quem a via. Crescia como se corresse. Avó, hoje comi peixe ao almoço. Um peixe gordo e com um olho caído para fora do prato. A mãe disse que se chamava dourada. Comi peixe dourado com um olho preto caído para fora do prato. Um olho preto e vivo. Como aquelas mulheres da televisão que olham acertadamente para o ecrã. A mãe diz que é maquilhagem. Um traço preto que rasga a visão e torna os olhos maiores do que o que são. Mulheres-peixes-douradas. Um dia vou ser como elas e ver de olhos grandes. A avó respirava rasteira. As pálpebras pousadas. A neta encostou o ouvido ao seu peito. Ouviu-lhe o coração, deixou-se ficar. Sentiu o seu corpo aquecer, havia calor entre elas. Deixou-se ficar e roubar aquele afeto para si. O rio Tâmega entrava escuro no quarto, algum lodo. As duas, corpo contra corpo, protegendo-se para não se afundarem. À volta, as tardes quentes à beira-rio. Os trilhos repassa- dos. O sol alto, a casa no giestal muda e fechada. O terreiro, a cadeira vazia do marido onde a morte o apanhou sentado. Os filhos deixados à vida como se da vida fossem. Deus enorme cantando-lhe e fazendo as uvas amadurecer. Um outro abraço, corpo contra corpo, passando a memória para não se afundarem. Deixa a tua avó. Fazes peso. Disse a mãe passando no corredor. A mãe circunspeta, doméstica e confor- mada. A mãe filha avisando a filha. A mãe sem maquilhagem. A filha sentiu algum embaraço por ter sido apanhada desprevenida e cedida no peito da avó. O rio Tâmega esvaziou, algumas ervas definhavam juntamente com o pasto. A avó recolhia as cabras de volta à corte. O sol ao longe. O regresso à casa fria, sem mãe e sem pai. A casa sem comida. A avó pequena e criança de pés atados à cama para contrariar a fome e a morder os braços para calar os gritos. A avó saltando da janela, a correr pelos sobreiros, a avó do tamanho do grito a gritar a fome calada. A neta deixou-se ficar. Peso vivo sobre peso morto. Avó… ouço passos de noite. És tu pela casa? Eram passos breves e arrastados. Por vezes, assustavam-na. Mantinha-se atenta para saber onde iam. Não gostava de ser surpreendida no escuro. Sentava-se 11
  • 12. na cama à escuta. Deveria ser a morte. A morte com avó ao colo, ou ao contrário. Se não fosse tão nova, talvez não se deixasse vencer com estes truques onomato- peicos. Havia algum medo e sobretudo respeito por esses passos serem a delicada anunciação de que a sua avó partiria. Queria ver a procissão passar. Estar preparada era o que melhor fazia. Horas sem conta de olhos pretos abertos no escuro. As tias dizem que temos as mãos parecidas. Saíste à avó, estão sempre a dizer. Saíste à avó. Nem pai, nem mãe. De onde saí, avó? E como se volta ao lugar de onde se saiu se o lugar deixar de existir? Será que vou ser uma mulher-peixe- -dourada sem olhos, avó? Um declínio de cabeça como início da juventude. Nenhuma resposta. A cama oblíqua ao encontro delas. A neta com a vida por fazer. Vai lá para fora. A mãe chegou à porta. Panelas suspensas na mão, pano da loiça em busto, dedos torcidos ao detergente e à lixívia. Mãe sem maquilhagem, olho azul fora do prato. Talvez as coisas precisem de estar quietas para morrer. As três, sucessivas, imóveis por breves momentos. A rapariga entre elas como um trecho menor desafinado. A filha recolhia o gesto do peito, o coração trazido às mãos. Olhava as pálpebras pousadas, descobria-lhe os olhos por baixo. Olhos como berlindes para jogarem a infância. Ali, aquela mulher pausada e paciente era uma falsa trajetória. Um falso afeto, uma falsa salvação. Um avô velho na infância é uma aproximação precoce à morte. A mãe repassando no corredor. A neta apertou a mão desenformada da avó. Um beijo à face e saiu pé ante pé com medo de chamar a morte. Sentia-se quieta por dentro, muito quieta. *Liliana S. Ribeiro, Portugal , Leça da Palmeia, 33 anos, psicóloga, trabalha na Sociedade Portuguesa de Psicodrama. Dinamiza o blog: www.ascoisasimperfeitas.com. Já participou de várias antologias e participa de concursos literários. E-mail: liliana.silva.ribeiro@gmail.com 12
  • 13. Hamelin Miguel Cruz Fernandes* – 2.º lugar – categoria internacional Lisboa, Portugal «Anno 1284 am dage Johannis et Pauli war der 26. Junii Dorch einen pi- per mit allerlei farve bekledet gewesen CXXX kinder verledet binnen Hamelen gebo[re]n to calvarie bi den koppen verloren»1 1 «No ano de 1284, no dia de São João e São Paulo, a 26 de junho, 130 crianças nascidas em Hamelin foram seduzidas por um flautista, vestido de todos os tipos de cor, e perderam-se no lugar da execução, perto de koppen.» Manuscrito de Lüneburg, c. 1440-50 O comboio começou a abrandar. Um jovem de vinte anos ia sentado, numa das últimas carruagens, a ler um livro com aspeto notavelmente velho. À sua direita encontrava-se um senhor com o cabelo muito branco e os olhos de um azul impressionantemente claro. Lia o jornal. À sua frente uma senhora de meia-idade, muito loira, que ia a dormir. O jovem destoava um pouco do ambiente, bem germânico, que o rodeava. Chamava-se Afonso. Era moreno, magro e alto. Estava com um cachecol e dois ou três casacos vestidos. O livro que trazia era um volume dos contos dos irmãos Grimm, e durante a viagem já lera várias vezes o mesmo conto. Por vezes interrompia e contemplava a vista. Passava-se por paisagens deslumbrantes, na- quele comboio. Ouviu-se o apito, e o comboio parou. Tinham chegado a Hamelin. Ao sair da estação, inseriu a mão direita no bolso e após remexer bastante, retirou um papel algo amachucado com uma morada escrita. Depois de ter perguntado a um polícia qual seria o melhor caminho para lá, seguiu as suas indicações. Daí as uns minutos encontrava-se perante uma livraria com aspeto pito- resco. Uma porta de madeira velha, vidraças incrivelmente sujas, e um letreiro amarelado que dizia: “Antiquariat Peters”. Entrou, fazendo soar a campaínha de latão. A livraria, ou alfarrabista, não era muito grande, mas as paredes estavam cobertas de livros de alto a baixo, muitos deles visivelmente antigos. Havia também 13
  • 14. várias estantes altas e bem recheadas. Dentro da loja, estavam só três pessoas: um sujeito alto e macilento, encostado a uma estante a folhear um livro de História, um senhor baixinho, completamente calvo claramente à procura de algo nas prateleiras do fundo, e o próprio alfarrabista, por detrás do balcão, com os seus óculos grossos na ponta do nariz a ler atentamente um volume de tamanho considerável com capa dura. Afonso dirigiu-se precisamente a este último, o Sr. Peters. – Sr. Peters, como está? – disse Afonso – sabe quem sou eu? – O rapaz português que ligou há dias? – Ora nem mais. O Sr. Peters esboçou um sorriso bem grande, e estendeu o braço dando um aperto de mão forte a Afonso. E Afonso, que nem conhecia bem o Sr. Peters, sentiu imediatamente uma grande simpatia pelo homem. Que cortesia, que amabilidade... O Sr. Peters devia ser com certeza uma pessoa fascinante. Devia saber muito: afinal, passava a vida a ler e a aconselhar livros, devia ser também muito paciente, e agora notava-se que era uma pessoa alegre, simpática, afável, bem ao contrário do que Afonso esperava. Ele preparava-se para enfrentar um homem sábio, sem dúvida, mas carrancudo, amargo. A verdade é que esta não era uma expectativa bem fundamentada, mas antes um preconceito errado sobre o povo alemão. – Venha comigo. – disse Peters, e abriu uma portinhola que havia por detrás do balcão. Entraram para uma sala pequena, escassamente mobilada, muitas pilhas de livros no chão, duas poltronas, e uma mesinha redonda. – Esteja à vontade. – disse o alfarrabista – Quer tomar alguma coisa? – Ah, não se preocupe, Sr. Peters. Estou ótimo. – Muito bem... vamos já direitos ao assunto? Terei todo o gosto em ajudá-lo. – Oh muito obrigado, Sr. Peters – após uns breves instantes de silêncio, para saber por onde começaria, Afonso iniciou a explicação do motivo da sua visita – Ahh... eu... o meu nome é Afonso, tenho uma paixão pela Literatura, e já consegui publicar alguns poemas em jornais, mas o que é fato, é que não sou ainda... enfim... propriamente famoso no meu país. Recentemente, enquanto procurava inspiração, resolvi ler uns contos dos irmãos Grimm, e parei no famoso conto do flautista de Hamelin. Encantou-me a história. Achei-a muito curiosa... A versão que ouvira quando era pequeno era bastante mais inocente, e a original parece ser... Cruel, não é? Uma 14
  • 15. praga de ratazanas ataca a cidade de Hamelin, e surge um homem misterioso que promete salvar a cidade da praga por troca de uma certa quantia. Mas quando acaba de matar todas as ratazanas, graças àquela flauta mágica, os homens não pagam o prometido. Então, como vingança, leva todas as crianças para a montanha e nunca ninguém mais as vê. Bem.. exceto uma criança coxa que ficou para trás. O que também é terrível. É deixado um para trás. – Não só um. Na história verdadeira, ficaram três crianças para trás, um coxo, um cego e um surdo-mudo. É impressionante. Mas não acha justo? – Como? De modo nenhum. Como não lhe pagam uns quantos xelins, leva- -lhes todas as crianças? Ainda por cima, com certeza, não precisava do dinheiro, já que era mágico... – Ora, precisamente, não precisava do dinheiro! E por isso quis dar uma lição aos cidadãos. Uma lição que eles precisavam de receber. – Mas as crianças! Que culpa tinham? – perguntou Afonso. – As crianças? Não se lembra do que lhes aconteceu? Ao chegarem à mon- tanha, conduzidas pelo flautista e pelo som mágico da sua flauta, abriu-se uma rocha, e dentro da caverna surgiu uma paisagem maravilhosa, com prados verde- jantes, rios transparentes, um sol esplêndido. Fosse o que fosse aquilo, acho que aí ficaram melhor do que numa cidade habitada por hipócritas. – comentou o Sr. Peters – enfim... Mas com isto desviamo-nos do assunto. Interessou-se pelo conto, e depois? – Depois... ora, esse interesse levou-me a querer reescrever o conto. E quando comecei a investigar sobre Hamelin e as raízes históricas do conto, tive a ideia, uma estupenda ideia, de fazer uma viagem até cá, o cenário real aonde se teria passado o enredo original, para tentar imaginar melhor a cena toda. – Muito interessante, a sua ideia. Mas... porque veio ter comigo? – Bem, como alfarrabista, pensei que talvez fosse a pessoa indicada para me ajudar a conhecer a cidade – disse Afonso – e sobretudo, a montanha. Deve saber imenso... Mas Peters não ligou ao elogio de Afonso: – A montanha... A montanha... Sabe, não sou a pessoa ideal para o ajudar. Posso apenas dizer que em primeiro lugar, a história do flautista de Hamelin pode ter sido mais real do que pensa. Em segundo lugar, a montanha é um lugar temido nesta terra: terá dificuldade em arranjar guia. Finalmente, tenho a dizer-lhe que a 15
  • 16. cidade está muito diferente do que era no século treze. Para o que pretende, basta- -lhe visitar a igreja. Não há muito mais da época. E a igreja é muito bonita. – Muito obrigado. – Ah. Tenho um amigo que o poderá ajudar. Ele gosta muito de ler, como eu, e sabe muito sobre as histórias e lendas da região. Com certeza saberá mais do que eu sobre o flautista. Chama-se Clemens Schulz. A morada... tem algum papel? – levantou-se e retirou um pedaço papel de dentro de um daqueles livros que enchiam a sala. – Aqui tem. – disse, escrevendo a morada no papel com uma caneta de tinta permanente, e entregando-o a Afonso. – Muito obrigado. – agradeceu Afonso, levantando-se. – Ora essa – disse Peters, abrindo a porta – tenha cuidado, rapaz. Quando tiver escrito o seu conto, envie para cá. Terei todo o gosto em lê-lo! – Muito agradecido, Sr. Peters. E com um aperto de mão, Afonso saiu da loja. Visitou de seguida a igreja. Era grande e bonita, mas simples. Um grande órgão de tubos que impunha respeito. Tentou imaginar-se naquela igreja séculos atrás. Dia 26 de junho de 1284. Os adultos de Hamelin estariam assistindo ali à missa de S. Pedro e S. João, que seria, com certeza, um belíssima celebração, com incenso e canto gregoriano. Ainda se parecia sentir o ecoar do canto e do órgão naquelas paredes pétreas. Mas ao mesmo tempo que os adultos aí estavam, entra- va na cidade um sujeito alto e magro, com um sorriso no rosto, e vestido de uma maneira invulgar. Traria nas mãos uma pequena flauta. Talvez algumas crianças que estivessem a brincar na rua o tenham reconhecido imediatamente como sendo o flautista que os tinha libertado dos ratos... É então que ele eleva a flauta à boca e começa a soprar. Primeiro baixinho, e depois, gradualmente, cada vez mais alto. E tocaria uma música alegre, e ritmada. As crianças sentem-se irresistivelmente atraídas por aquele som poderoso e começam a correr e a saltitar atrás do flautista. Mas o encantamento era ainda superior ao dos ratos. Porque desta vez, nenhum adulto pôde ouvir o som mágico da flauta. Um desfile com cento e trinta crianças, a transpirar alegria, e a afastarem-se da cidade, em direção à montanha... E Afonso imaginou o que teriam sentido as pessoas ao saírem da igreja. O que teriam cho- rado amargamente as famílias. Que desgraça esta. Quanto tempo terá demorado a ganhar alguma alegria aquela cidade? Durante quanto tempo esteve de luto? Era uma história triste, mas não deixava de fascinar Afonso. Seguidamente deu uma volta pela cidade, mas não se quis demorar muito. 16
  • 17. De alguns pontos via-se a montanha, não era demasiado alta, mas ostentava uma certa majestade, e parecia atraí-lo com alguma força. Dirigiu-se para a casa do amigo do alfarrabista, o Sr. Clemens Schulz. Esta era uma pequena moradia, já um pouco isolada, e perto da floresta que antecedia a montanha. Daqui a montanha parecia mais grandiosa. Já começava a entardecer, e Afonso tinha dúvidas se partia para a montanha ainda naquela tarde, ou se esperava pelo dia seguinte. Mas ele queria explorá-la. E esse desejo parecia estar a ganhar cada vez mais força. Parecia que havia um ímã a puxá-lo para lá, sentia uma ânsia de aventura crescente. Bateu à porta e abriu-a um velhote francamente baixo, e gordo, meio-care- ca. Afonso imediatamente, com um sorriso, disse: – Boa noite. Estive há pouco na livraria do seu amigo, o Sr. Peters, e ele falou-me de si. Disse-me que saberia com certeza de coisas sobre o famoso conto O Flautista de Hamelin. – Disse? – perguntou Clemens, e soltou uma gargalhada – entre. Sei, sim. Sem dúvida, que este senhor era também uma pessoa encantadora, à se- melhança do amigo Peters. Que terra extraordinária que era Hamelin. Afonso esta- va estupefato. Trazia mesmo uma ideia errada em relação aos alemães... – Muito obrigado – disse Afonso. Clemens conduziu Afonso para uma pequena sala de estar muito acolhedo- ra. Um sofá e uma poltrona voltados para uma lareira acesa. A sala estava escura, iluminada apenas pela luz quente do fogo. O crepitar da madeira era para Afonso, muito agradável. – Sente-se, homem! – exclamou o velho Clemens – Tenho chá. Vai querer? – Pode ser, muito obrigado. – respondeu Afonso. – Temos a casa por nossa conta, por isso esteja à vontade! – disse Cle- mens, entregando uma chávena de chá a Afonso – Quer açúcar? – Não muito obrigado, Sr. Clemens. – respondeu Afonso, um pouco surpre- endido com toda aquela hospitalidade. – A minha mulher está fora, foi internada anteontem, imagine. – disse Cle- mens, sentando-se – Mas o médico diz que não é grave, e que em princípio depois de amanhã estará cá em casa. – Que chatice – comentou Afonso, sem saber bem o que haveria de repon- der. 17
  • 18. – Enfim, pergunte lá o que tem a perguntar! Então, Afonso contou todas as circunstâncias que o haviam levado até ali, de forma semelhante à de como tinha contado a Peters. Chegando ao fim, Clemens comentou: – Aquela flauta, rapaz, aquela flauta... o som que produzia devia ser ter- rivelmente... terrível! É inimaginável. Todos os ratos que o ouviram morreram. E todas as crianças que o ouviram ficaram profundamente afetadas. Só sobreviveu um cego, um coxo... – E um surdo-mudo. – interrompeu Afonso. – Sabe o que lhes aconteceu? – Não. – Os três regressaram à cidade. O surdo-mudo cresceu e tornou-se o sa- cristão da igreja. Foi sacristão até morrer, e morreu velho. Tinha seguido os outros por curiosidade, mas não tinha ouvido a flauta, de modo que continuou a sua vida, para a frente. – E os outros dois? – perguntou Afonso. – Passado poucos meses desde o acontecimento, numa noite, o cego e o coxo fugiram juntos das suas casas e dirigiram-se à montanha. O coxo conduziu o cego. Diz-se que a dada altura se separaram, e o cego perdeu-se, e nunca mais foi visto. – Clemens fez uma pausa e suspirou – Já o coxo, continuou a procurar a gru- ta e os companheiros durante anos e anos. Diz-se que viveu na montanha durante séculos, que a sua vontade inflexível e a sua esperança inestinguível o mantinham vivo. E há quem diga que ele ainda vive. – Ninguém os foi lá procurar? Não houve buscas? – Não... Para as pessoas, a montanha tornou-se um local amaldiçoado. Toda a espécie de lendas foram surgindo. Havia quem dissesse que se ouviam os risos e o canto das crianças, havia quem jurasse ter visto um velho coxo a vaguear por entre as rochas. Não. Uma sombra de morte cobriu esta montanha. Pouca gente se aventura a sair da estrada. – Ainda hoje? * Miguel José da Fontoura da Cruz Fernandes – A montanha deixou uma ferida demasiado profunda em Hamelin. E estas feridas não se saram nem com séculos. Fez-se uma pausa. Afonso olhava pela janela, e via a montanha alta e bela. 18
  • 19. Tinha, de fato, algo de sinistro. E nesse momento, de forma singular, apoderou-se dele um desejo irreprimível de aventura, mais forte do que todos os anteriores. Foi como que instantâneo. E impelido por esse impulso, levantou-se e disse: – Pois eu vou para lá. – Quando? – Agora. – afirmou resolutamente Afonso. – Mas já é tarde. – Eu sei. Mas quero mesmo ir. Ela chama-me. – disse, olhando mais uma vez pela janela. – Não faça isso. – Clemens levantou-se, olhando à volta – Se quiser pode dormir aqui. A casa é pequena, mas tenho espaço para si. – Agradeço-lhe muito, mas a minha decisão é final. Vou para lá já. – Não tem medo? – Não. Eu vim a Hamelin para isto. Só sairei de Hamelin depois de conhecer a montanha. – Agasalhe-se bem, então. – fez uma pausa – admiro a sua coragem. – Boa noite, e muitíssimo obrigado. – Boa sorte. – disse o velho Clemens, olhando fixamente para Afonso e franzindo a testa – que os santos o acompanhem. Afonso saiu da casa, deixando a chávena a meio, e iniciou a caminhada. Rapidamente a estrada começou a subir, e a expedição a tornar-se cansativa. Mas o desejo que o guiava era mais forte que a sede, o cansaço e o frio. A noite estava fria, e havia pouco luar. As estrelas não se viam por causa das nuvens. À medida que ia ganhando cota, havia cada vez mais vento, e a estrada tornava-se mais inclinada. A estrada estava rodeada de árvores, que rangiam sempre que surgia uma rajada mais forte. Mas Afonso não sentia medo e prosseguia. Não lhe parecia louco aquilo que estava a fazer. Ele era um aventureiro. Era um artista. Sabia apreciar a solidão e a escuridão. Passaram horas de caminhada. Abriram-se um pouco as nuvens, deixando a lua espreitar. Era um espetáculo digno de se ver. Agora, já havia muito poucas árvores, e cada vez mais rochas salpicadas com arbustos e vegetação rasteira. Começava também a notar-se que a aparência era um pouco enganadora quando vista da cidade: a montanha parecia mais alta do que era na realidade. Por não ser assim tão alta, talvez nem se devesse chamar montanha. Era, na opinião 19
  • 20. de Afonso antes um monte, um monte alto, mas a terminologia pouco importava. O que lhe importava mais era a beleza e a grandiosidade. Começou a trepar rochas e a abrir caminho entre os arbustos. E cerca de uma hora depois, abrandou e pôs-se à procura de um local alto, onde se podesse sentar a contemplar a vista. Na quietude do monte, completamente só, Afonso sentiu-se insignificante, dada a sua pequenez perante a imponência das rochas que se erguiam para o céu escuro. Ao fundo, no meio da escuridão, distinguiam-se as luzes da cidade de Ha- melin. Ali em cima, enfrentando o vento, Afonso quis subir ainda mais, e sentou-se sobre uma pedra muito elevada como que sobre o vazio. Sentou-se e contemplou. Nenhum pensamento inoportuno conseguiu interromper aqueles momentos de pura experiência estética. Não havia palavra para descrever tudo aquilo. Um vento frio e cortante soprava fortemente, tentando derrubar Afonso, mas ele não sentiu nem um pouco a baixa temperatura. Repentinamente, o vento ces- sou. E caiu sobre a montanha um profundo silêncio. E Afonso quis ouvir o silêncio. Podem ter passado minutos, talvez horas. Para Afonso, o tempo que passou foi algo indescritível. Por um lado pareceu-lhe um instante, por outro, pareceu-lhe ter passado a eternidade inteira à frente. Muito lentamente, de forma gradual, a quietude foi-se diluindo, mas o sabor de perpetuidade manteve-se. Afonso demorou muito a aperceber-se. Um zumbido distante e contínuo, um som quase inaudível começou emergir do silêncio, e foi ganhando força, até envolver Afonso completamente. Era um som estranho. Agudo, semelhante a uma voz cristalina, mas ao mesmo tempo muito pouco humano. Entranhava-se na pedra e na vegetação, e fazia tudo vibrar vagarosamente. Trazia consigo uma poderosa nostalgia, transpirava amargura, mas paradoxalmente parecia ao mesmo tempo produzir uma alegria louca. Um miste- rioso gozo começou a apoderar-se de Afonso, à medida que o som se tornava mais percetível. Quase sem notar, levantou-se e pôs-se de pé sobre a pedra. O seu olhar fixou o infinito. Agora ia além do horizonte, ultrapassava as nuvens e as estrelas, percorria o Universo inteiro, e prolongava-se indefinidamente. E o som continuou a crescer e a crescer. Era o som de uma flauta. Mas que flauta... Desceu a rocha e deixou-se conduzir por ele. Parecia estar a ser puxado cada vez com mais força, e docilmente correspondia. Desceu mais, e seguiu por entre as pedras e os arbustos. Começou a correr. Não sabia para onde se dirigia, mas não tinha dúvidas de que 20
  • 21. estava a ir para o destino certo. Foi então que, quando aquele singular ruído atingiu um auge de esplendor, Afonso estacou. O som desvaneceu-se instantaneamente. À sua frente erguia-se um fissura profunda na rocha. Dentro dela era tudo trevas. Sem qualquer espécie de medo, Afonso mergulhou na escuridão. Encontra- ra aquilo que procurava. Fez-se silêncio no monte. Lá em baixo, no limiar da cidade, Clemens olhava pela janela e via a mon- tanha. Estava a sorrir, e notavam-se lágrimas nas bochechas. Virou-se de costas e coxeando, ele era coxo, foi-se deitar. * Miguel José da Fontoura da Cruz Fernandes nasceu em Lisboa, Portugal, 19 anos. Des- de pequeno estuda música, e também pinta e desenha. Há três ou quatro anos descobriu a escrita, e atualmente escreve contos. E-mail: miguelcruzf@gmail.com 21
  • 22. Morder-me os sonhos Valentina Silva Ferreira* - 3.º lugar – categoria internacional Funchal, Ilha da Madeira – Portugal M aio de 2003 Todos me olham por debaixo de um ponto de interrogação. Como se fosse errado estar aqui, no funeral do meu marido. As pessoas dispõem-se à volta do buraco. O padre soletra o que já sabe de cor, de outros funerais. Escondo- -me por detrás dos óculos de sol. É a necessidade selvagem que sinto em fugir da verdade que se desenrola diante de mim. Por fim, ele desce pelas tábuas de madeira que dois homens controlam com a ajuda de cordas grossas. Jogam-lhe flores e, em pouco tempo, aquilo que era uma caixa da morte transforma-se num jardim colorido. Espero todos irem embora e permaneço, estática, diante da terra remexida que o guarda. Com cerimónia, dispo o meu dedo da aliança. Admiro-a, deixando os raios mornos de sol trespassarem a circunferência e dourarem o ouro. Num suspirar mais profundo jogo o anel e ele aterra, sem som, sem me doer o coração. Viro as costas e dirijo-me ao carro. Maio de 1986 Viro as costas e dirijo-me ao carro. A meio do caminho paro e engulo o ar doce da Primavera. Arrisco um rodar dos calcanhares e alcanço o olhar dele, despedindo-me, apressadamente, com um olhar tímido, um gosto muito de ti joga- do ao vento. O menino de olhos verdes e coração na boca: a minha alma gémea. Metade de mim chega a casa. O meu corpo desce do assento e corre esca- das acima. O coração e a cabeça ficam lá, com ele, com os reflexos pretos que os seus cabelos castanhos escondem, com as sardas que salpicam a sua pele branca, com a pulseira que eu roubei da loja e ofereci, cheia de emoção. Deito-me na cama e inspiro fundo. Estou apaixonada, irremediavelmente apaixonada. Encosto a cabe- ça à almofada e respiro o silêncio. 22
  • 23. Maio de 2003 Encosto a cabeça à almofada e respiro o silêncio. As paredes são de um cinzento desmaiado. A cama é coberta por um trapo castanho e a almofada não preenche a elevação do meu pescoço. Do teto pende uma lâmpada. A janela é demasiado alta para que eu possa entreter a vista com uma paisagem. Não tarda, o céu vestirá o seu vestido negro e, se não me engano, hoje a lua será redonda como um queijo. O corredor encontra-se mergulhado num sossego deprimente, uma calma que, de vez em quando, é engolida por um gemido que foge da boca de alguém. Ao terceiro suspiro encaro a minha parceira de cela e ela responde- -me com um sorriso malicioso. São as Torres, diz. Franzo o sobrolho e ela, logo, tira a minha dúvida. As Torres são casadas. Sinto-me emudecer. Ajeito-me melhor à cama e encosto o ouvido ao cimento frio. Parece que a cena se desenrola no meu pescoço. Consigo desvendar todo o percurso das mãos de uma e a melodia prazerosa da boca da outra. Podia não conseguir ver e, muito menos, sentir, mas aprendia, agora, a ouvir e a separar cada sonância e a colocá-las ao lado de uma imagem. Mesmo encarcerada podia continuar a ver o mundo. Fecho os olhos e deixo a lágrima cair: a primeira vez é sempre emocionante. Janeiro de 1995 Fecho os olhos e deixo a lágrima cair: a primeira vez é sempre emocionan- te. Ele posiciona os lábios no meu ombro, já despido, e provoca uma ebulição na minha pele. Encosto-me a ele, ao meu namorado de há nove anos, o meu menino de olhos verdes e sardas castanhas que é agora um jovem atraente. Ficamos abra- çados durante a eternidade de um minuto; eu engolindo a vergonha do próximo passo, ele controlando o vulcão que o seu baixo-ventre suporta. A minha pele não toca em mais nada a não ser o corpo dele. Os nossos pelos enlaçam-se; as nossas bocas colam-se; os nossos corações aninham-se, conhecedores antigos um do outro. Estamos nus e envolvidos numa seda de encantamento. Sem avisos, ele aperta o meu pequeno corpo e deslizamos, os dois, em direção a um lugar sagrado. Do lado de fora é possível ouvir os murmúrios de outras crianças: sons de pureza e ingenuidade. Aqui dentro, ecoam, embora quase surdos, os latidos da paixão. Ele força um caminho que será só seu daqui por diante. O céu ribomba luzes. Faz-se noite; uma noite permitida pelas nuvens quase pretas que cobrem o sol envergo- nhado de Inverno. As crianças, lá fora, gritam assustadas. Eu gemo sofridamente. A chuva derrama-se furiosamente. Finalmente, recebo um abraço meigo e mergulho 23
  • 24. a cabeça naquele peito que me conforta. Maio de 2003 Finalmente, recebo um abraço meigo e mergulho a cabeça naquele peito que me conforta. Como estás, querida?, pergunta-me. Estou bem, mãe. Ela deixa- -me encaixada no seu abraço por mais uns momentos e, depois, afasta o corpo para olhar no interior dos meus olhos. Tu não fizeste aquilo, diz-me serenamente. Empurro a cadeira velha e sento-me. Estou aqui, digo e aponto em volta. Ela encara-me com os dois olhos escuros. Coitada, envelheceu em tão pouco tempo. Afundo-me na cadeira e recebo um beijo na testa. Vai correr tudo bem, sussurra- -me perto do ouvido. Abril de 1995 Vai correr tudo bem, sussurra-me perto do ouvido. Como podes ter tanta certeza?, pergunto. Uma gravidez não é o fim do mundo, responde-me, com o semblante pouco carregado, o que significa que não diz aquilo só para me sosse- gar. Eu suspiro: um filho. Sinto-me demasiado pequena para suportar uma criança no meu ventre. E depois? As noites mal dormidas, o ser mãe, namorada, filha, es- tudante: o crescente número de papéis e funções. Serei capaz disso? Terei de ser. Sempre me ensinaram a assumir as responsabilidades pelos meus atos. Maio de 2003 Sempre me ensinaram a assumir as responsabilidades pelos meus atos. Sabe, Dr., não me resta muita coisa na vida. Sei que sou nova e que poderia refazer o meu futuro mas a verdade é que o destino traiu-me. Julguei que toda a minha vida tinha sido feita para acompanhar a vida do meu marido. Achei que o fato de nos termos conhecido muito novos e de termos namorado toda a nossa juventude só poderia querer dizer que éramos almas gémeas. Engulo uma saliva que sabe a vidro cortado. Depois engravidei e, mais uma vez, encarei isso como um sinal de que nada nos poderia separar. Fecho os olhos e sereno diante do escuro que me preenche a visão. E depois?, pergunta-me o advogado. Liberto-me do negro e respondo-lhe secamente. Depois aprendi que não existem almas gémeas. E, por isso, o matou?, questiona-me antes de eu levantar-me para ser levada pelo guarda até à minha cela. Sim, Dr., por isso o matei. Saio. Um homem bonito acompanha-me. 24
  • 25. Maio de 1995 Um homem bonito acompanha-me. O meu querido pai, vestido de cinzento e com os olhos molhados de alegria, leva-me até ao altar, onde ele me espera. Não foi uma decisão fácil mas, depois do resultado da gravidez dar positivo, nada mais certo que casar. A igreja não está cheia: apenas a família e poucos amigos. Não estou nervosa pois sei, há muito tempo, que este seria o caminho a ser tomado, mais cedo ou mais tarde. O padre começa a missa. Eu entrego, discretamente, a minha mão à dele e ficamos assim durante toda a cerimónia. No momento exato, ele diz que sim, eu digo que sim e pedem que nos beijemos. Está um lindo dia de sol - o dia perfeito para receber a minha nova vida. Junho de 2003 Está um lindo dia de sol - o dia perfeito para receber a minha nova vida. A sala de audiências quase vazia não me mete medo. Sento-me, ao lado do advoga- do, e espero pelo juiz que, entretanto, chega. Fazem-me perguntas para as quais o advogado preparou-me. A acusação aponta-me o dedo com náusea e, diante de mim, desenrola-se uma cena dolorosa: os meus pais abraçados, amparando a tristeza um do outro; os meus sogros lambendo as lágrimas um do outro; os pais da outra soluçando no ombro um do outro. Sinto uma angústia escalar as minhas tripas e uma dor aguda instala-se no meu ventre. Junho de 1995 Sinto uma angústia escalar as minhas tripas e uma dor aguda instala-se no meu ventre. Leva-me ao hospital, suplico. Que tens?, pergunta-me ele. Uma dor, uma dor muito forte. Aqui, digo, apontando para a minha barriga. O rosto dele transforma-se em sufoco. Chegamos às urgênciase colocam-me numa ca- deira de rodas. A médica pede-me que abra as pernas. Sinto-me escorregar para fora do mundo. Fique connosco, oiço. Mas a voz é demasiado distante e só me apetece deixar-me levar por esta magia sonolenta que me embala os cabelos. Os meus olhos cedem. Deixo de ver pessoas estranhas e luzes fortes. Vejo a escuridão mesclada com sons de bebés. O meu filho está a nascer. Mas, depois, aquilo que surge no meio do manto negro que me cobre os olhos, deixa-me assustada: um bebé ainda em formação, quase sem pele, coberto por vasos sanguíneos, pequeno, tão pequeno que me cabe na ponta do dedo. Não quero!, grito. Não quero esse monstro. Ele desaparece ao mesmo tempo que o desprezo. O meu coração abran- 25
  • 26. da. Oiço, novamente, vozes que me trazem de volta à realidade. Junho de 2003 Oiço, novamente, vozes que me trazem de volta à realidade. Matou o seu marido? Responda! O advogado de acusação grita na minha cara e eu desperto da inércia. Sim, matei. Uma sinfonia de choro preenche a sala. E matou a senhorita Susi? Engulo em seco. Matei. As pessoas exaltam-se, chamam-me de assassina. O juiz pede meia hora de intervalo e, quando regressa, coloco-me em pé para ouvir a minha sentença: pena de morte. Sinto um sopro agitar os meus pelos. É a morte que me abraça uma vez mais. No entanto, respiro fundo e sorrio. Há muito tempo que não me sinto tão leve; leve e livre. Junho de 1995 Há muito tempo que não me sinto tão leve; leve e livre. Que sono restau- rador. Ajeito o corpo à cama, suspiro e levo as mãos à barriga. O ambiente gela à minha volta. O meu filho. Aperto a barriga e tudo o que sinto é pele e carne e ar. Da minha garganta saem gritos de dor. Duas enfermeiras entram no quarto e seguram-me nos braços que tentam arrancar os tubos que se filtram nas minhas veias. A minha mãe entra logo em seguida, acompanhada pelo meu marido. É visível a tristeza nas suas caras. O meu filho?, pergunto. Ninguém responde e eu sei, instintivamente, o que aconteceu. Mergulho a cara na almofada e choro. Aquele sonho, aquele sonho do bebé-monstro que eu recusei. Ele morreu por minha causa. Sou uma assassina. Junho de 2003 Sou uma assassina. Assassina da minha própria vida porque acreditei em falsos contos de fada e em juras de amor eterno. Deito-me na cama e deslizo os olhos pelo teto. Acabou a dor misturada com a fúria, e a pena de mim própria e dos outros que vivem o mesmo. Acabou. Agora sou só eu. Sou eu que decido a minha vida. Decidi o caminho a partir do momento que eles tombaram, ensanguentados, aos meus pés. Acabou. Estou sozinha. Setembro de 2000 Estou sozinha. Deixei a depressão vencer o casamento e roubar-me o ho- mem. Perder um filho, seja em que idade for, é a maior dor que se pode sustentar 26
  • 27. no coração. E mesmo sem conhecê-lo, sem experimentar o seu cheiro, tenho sau- dades. Saudades de tê-lo na minha barriga, saudades do que não tive depois disso, saudades do meu marido. A morte do meu filho trouxe a separação dos nossos sentimentos enquanto homem e mulher, como se ele tivesse levado todo o amor que guardávamos dentro de nós. Estou vazia. Junho de 2003 Estou vazia, diz-me a minha mãe. Estamos abraçadas há mais de cinco minutos. A cadeira engole o meu pai. Mãe, eu amo-te. Ela aperta-me com toda a sua dor. As lágrimas sufocam-me. Apesar de querer a liberdade da morte, corrói- -me fazê-los sofrer. Pai, vem cá, peço. Ele levanta-se com dificuldade. O desgosto toldara-lhe os movimentos. Abraça-me, pai. Repito as palavras que disse à minha mãe e permanecemos em silêncio. O guarda chama-os. A minha mãe mostra-me um rosto deformado pelo tormento; o meu pai definha-se à medida que caminha para a porta. Lançam-me beijos no ar que eu recolho com as minhas mãos e guardo nos bolsos para mais tarde. A porta fecha-se atrás de mim e, finalmente, encaro a verdade. Abril de 2003 A porta fecha-se atrás de mim e, finalmente, encaro a verdade. O rabo branco do meu homem balança diante dos meus olhos e uma loira esbraceja por debaixo dele: ele, de meias, e com gorduras que eu nunca vira antes; ela, nem melhor nem pior que eu, talvez mais nova. O som da minha respiração moída pela surpresa desagradável desperta-os para a presença de mais alguém no quarto. Ele retira-se do aconchego dela e embrulha-se no lençol. Como se isso fosse cobrir a traição. Ela abre a boca e encolhe-se na cama. Eu não digo nada. Fecho os olhos e deixo o destino que sempre me enganara seguir o seu caminho. Junho de 2003 Fecho os olhos e deixo o destino que sempre me enganara seguir o seu caminho. Os homens apertam-me os pulsos e os tornozelos na cadeira forte da morte. Um médico coloca-me a seringa na veia mais saliente. O veneno penetra o meu sangue e eu sinto a respiração dizer que está na hora de ir descansar. O corpo pesa-me. Nos meus bolsos estão os beijos dos meus pais: vão comigo. No meu coração levo o meu filho. Na minha alma levo o peso de um destino: um destino 27
  • 28. que fez castelos de areia com a minha vida e, depois, destruiu-os com os pés.Eram grutas de medo que eu guardava no coração. Foi assim depois da morte dele. Na verdade, foi assim depois de o conhecer: um destino que me mordeu os sonhos. Abril de 2003 Jonas corre, embrulhado no lençol até onde Bea permanece de olhos fecha- dos. Desculpa, querida, desculpa. Ela abre as pestanas longas e encara o marido que se ajoelha diante de si. Querida, vamos voltar a ser felizes; vamos esquecer a morte do nosso filho; vamos começar de novo. Susi sente o peso das palavras esmagarem-na contra a cama. Ferida, levanta-se. Abre a sua mala e retira a arma que a sua profissão a obrigava a transportar. Vocês não vão ficar juntos!, grita, completamente nua - de roupa e de juízo. Susi, tem calma, diz Jonas. Calma?, tu prometeste que íamos ficar juntos. O dedo prime o gatilho e o chumbo voa na direção do peito de Jonas. Ele tomba instantaneamente. Bea leva as mãos à boca. Susi, envergando a cara de uma demente, encosta a arma ao coração e mata-se. Bea desliza para perto do marido e chora no seu ombro. Depois, com a frieza ca- raterística de quem está habituado a dores profundas, levanta-se, pega na arma, guarda-a na sua bolsa e sai. Em breve, a polícia chegará e encontrará as suas impressões digitais por todo o quarto. Valentina Silva Ferreira, Funchal, Ilha da Madeira, Portugal. Licenciou-se em Direito e tem mestrado em Ciências Jurídico-Criminais. Autora de Distúr- bio e A Morte é uma Serial Killer (Ed. Estronho). Começou na Revista Magazon. Participa em mais de vinte antologias portuguesas e brasileiras. E-mail: vpsf88@hotmail.com 28
  • 29. A bola Lola Ana Brandão* - menção honrosa – categoria internacional São João da Madeira- Portugal E ra uma vez uma bola, que sonhava ser um quadrado, pois passava a vida a rolar, e nunca tombava de lado. Era uma vez uma bola, que queria ser triângulo, porque passava a vida a procurar, e nunca encontrava um canto. Era uma vez uma bola, que gostava de ser rectângulo, para em comprimen- to crescer, e nunca ter de se encolher. Pobre bola Lola, não conseguia parar de sonhar, andava com a cabeça à roda, sempre a imaginar, em que figuras especiais, se podia transformar. Certo dia, Lola teve de ir à padaria, e pela estrada fora, girava tanto que até corria. Mas que grande alegria. Afinal ser bola, também tem o que se lhe diga. Outro dia também, foi para a relva saltar, encontrou uma formiguinha, que a pós a rebolar. Que maravilha é poder brincar todo o dia. E numa bela noite, em que voltara a sonhar, olhou para o céu estrelado e viu algo redondo a brilhar. - Lola, para que queres tu mudar, se és linda como o Luar? * Ana Brandão, economista e técnica oficial de contas, gosta de trocar os números pelas letras nas horas vagas. E é nas pequenas histórias que descobriu como escrever o cami- nho da felicidade. E-mail: b_ana@hotmail.com 29
  • 30. O Peixe Encantado Vitor Batista* - menção honrosa – categoria internacional Barreiro, Portugal A prole descendente dos meus pais, além de mim, tem mais duas pessoas. Significa dizer, sem que para tal fosse necessário fazer qualquer referência, que somos três os filhos do antiquado casal Valadares, que sendo pessoas cuja idade está na parte final dos setenta, têm a sua pouco pensante cabecinha situada na década de quarenta, do século passado. Claro está que a vida que nós os três filhos fazemos, é uma enorme pre- ocupação para os pais, porque o nosso “modus vivendi” está totalmente fora dos padrões pelos quais balizam a sua sebastianista maneira de pensar. Não percebem como, nem porque razão a minha irmã, por acaso a mais velha do grupo, vive com o pai dos seus três filhos sem serem casados. Também lhes custa imenso aceitar que sou casado, já em segundas núpcias, sem que em alguma das vezes eu tenha passado, mesmo que por perto, pela porta da igreja. Quanto ao mais novo, que ainda está no princípio dos trinta, nem vale por falar nele ou do seu modo de vida com os pais, que o apelidam de sem-vergonha, de desmiolado, de perdido da noite e por aí fora. Ele vive com os nossos pais, porque ainda é um rapaz novo, naturalmente solteiro. De qualquer maneira, os velhos Valadares só o aceitam, ainda que com alguma frieza, porque é filho, pelo curso tirado e pelo seu bom emprego, o que quer dizer, de acordo com os arcaicos valores defendidos pela parentela Valadares. A maldade e o vício chegam depois, quando entra em casa fora de horas e, pior um um pouco, quando ele sem aparente razão troca de namorada com a mesma facilida-de como uma outra qualquer pessoa troca de camisa, segundo os pais Valadares. Aqui é que a porca torce o rabo! Contudo e sendo ele um rapaz novo, faz muito bem se agarrar todas as boas oportunidades que lhe vão surgindo, pois, como é natural, para a bela idade que atravessa tem que aproveitar os prazeres que a vida lhe concede no dia a dia. Por 30
  • 31. essa razão e em geral, à conversa dos pais diz nada. Nunca discorda dos bolorentos e gastos conselhos que o velho Valadares teima em emitir, mas são palavras que já não o incomodam. De qualquer modo nós até já conversamos sobre o assunto, na medida em que ele precisa ser mais cuidadoso em determinadas situações que se lhe deparam. Tem que retirar delas o proveito possível, mas deve ser bem mais comedido. Pode correr riscos, que não sendo bem medidos, acabam por dar razão à litania do pai Valadares, a quem a mãe, muito naturalamente, dá sempre o seu amém. Tudo isto vem a propósito do miúdo, como eu muitas vezes me refiro ao meu irmão, ter ido à menos de um mês visitar o norte de África. E então, fez-se acompanhar de uma nova candidata a minha cunhada, que ele julgava já conhecer bem, por ser a empregada da loja de modas onde costuma comprar a roupa da excelente e conhecida marca que veste. Contudo e pelo que me contou, quase tudo lhe correu mal durante a se- mana que por lá andou. A origem da maioria dos percalços e das desagradáveis ocorrências que marcaram a viagem, ficou a dever-se à sua acompanhante, neste momento já ex-candidata a cunhada da minha irmã. A madame, é um adequado apodo, entendeu ser ela a escolher o que deviam visitar durante o período da es- tadia no local. O miúdo acedeu e só depois deu pelo tremendo erro que cometeu. Foram visitar a parte velha da cidade, lugar labiríntico e demasiado con- fuso, onde é aconselhável entrar na companhia dum guia experimentado e bom conhecedor da zo-na, para evitar que as pessoas se percam naquele emaranhado de ruelas escuras e sujas. A decisão que ela tomou foi de tal maneira fortuita e inopinada, que além de se terem perdido no interior da medina, foram assaltados e despojados de todos os valores que tinham em posse. Também foram ver os encantadores de serpentes, mas aqui por imposição do meu irmão, que desde criança sempre se deixou fascinar por aquele espetáculo. Ele ansiava por ver ao vivo as serpentes, os tocadores de flauta, ouvir a música encanta- da, enfim, queria ter o supremo gozo de ver as cobras a sairem das cestas, enfeitiça- das pela música tocada pelos seus hábeis encantadores. Só a determinada injunção do miúdo permi-tiu que pudesse assistir a um brilhante show. Aqui correu quase tudo bem. Só que ela conseguiu de tal maneira endrominar o meu irmão, que o convenceu a trazer uma serpente, bem como tudo o resto que seria necessário para encantar o animal, não podendo aqui confirmar-se qual, se o humano se o réptil. 31
  • 32. Por sorte, ao passarem na alfândega e quando lhes pediram para abrirem a cesta, esta estava vazia. A serpente tinha fugido. Foi o que lhes valeu, pois, por certo, teriam eles ficado encantados com o que aquilo que os esperava. O miúdo está de novo sózinho. Mas, pelo que me apercebi, não lhe sai da ideia o divertimento que teve, a agradável sensação que sentiu ao ouvir a música do feitiço e ver as cobras a soerguerem-se vagarosamente, bailando. Era um sonho de criança! Realizado! E de tal maneira assim foi que neste momento o miúdo, usando o mesmo tipo de música, mas não sendo possuidor de serpentes, está tentando encantar dois peixes vermelhos de água fria, que tem num aquário lá em casa. Gasta várias horas ao dia tocando uma flauta igual à dos encantadores do norte de África, a tal que não ficou apreendida na alfândega, numa tentativa de os fazer saltar da água. Ele anda muito entusiasmado e já me disse que as coisas até nem estão a correr nada mal. Apenas precisa de dar um pouco mais de tempo, ao tempo. Os pais Valadares é que não estão a gostar nada do que ele está a fazer e até já dizem que o preferiam ter como sempre foi, um sem vergonha e um perdido da noite. Têm receio que possa vir a desmiolar! Entretanto, estão passados mais de dois anos desde quando o miúdo dei- tou mãos à obra e começou o difícil trabalho de enfeitiçar os peixes, que ele bem viu fazer no norte de África, mas apenas com serpentes. Estive à conversa com o meu encantador irmão, para com ele trocar algumas impressões sobre o modo como estava a decorrer a sua já longa e bem avançada experiência. Queria saber como se estavam a comportar os peixes face à música que ele lhes dava todos os dias. De assarapantado, com o que comecei por escutar, a admirado, espantado e boquiaberto com as explicações que ele me fornecia com o passar dos dias, origi- naram as principais sensacões recolhidas durante a cavaqueira com o miúdo. Mas e acima de tudo, fiquei convencido que o mano caçu-la ainda vai ter pela frente, imenso, direi mesmo um enorme trabalho, para atingir os seus propósitos, porque é bem diferente o trabalho que é preciso desenvolver para as duas diferentes es- pécies animais. Muito mais difícil para os peixes. Disse-me ainda o meu irmão, que os peixes já saltavam e voltavam a mer- gulhar com alguma facilidade, havendo até um deles que já ficava fora da água um razoável pedaço de tempo. Gostaria de adiantar aqui, e faço-o em nome do miúdo, que um dos peixes morreu, dado não ter suportado o tempo que era “obrigado” a passar fora de água, por força da música encantada que lhe era dada a ouvir. Na- 32
  • 33. turalmente, o miúdo sentiu um grande desgosto pela perda deste peixe. O outro peixe é um caso invulgar, direi mesmo raro, raríssimo. Basta-lhe ouvir o soar das primeiras notas de música vindas da flauta encantada, para de imediato saltar do aquário para a mesa e aqui se bambolear a seu belprazer. Posso entretanto acrescentar que passaram mais dois anos de intenso tra- balho do meu mágico irmão e que o tal peixe, o invulgar, já fica bastante mais tempo fora de água. E que, por uma ou duas vezes, até já foi com ele ao café, seguindo-o sempre ao som da música de encantar serpentes africanas, entretanto adaptada para os peixes vermelhos de àgua fria. O acesso ao café é fácil, por ficar mesmo ao lado da porta da casa dos pais, mas nem por isso deixa de ser relevante ver um peixe vermelho deslocar-se fora do seu habitat natural, visto ser grande e quase impensável o que a novidade encerra. Mas o casal Valadares tinha razão quando não gostava de ver o filho mais novo sempre à volta, sempre agarrado aos peixes. Foi das poucas vezes que acer- taram sobre o que pensavam a respeito do filho. Com efeito, os nossos velhos pais temeram o que esteve para acontecer; o meu irmão quase amalucou. É a realidade! Contudo, convém realçar que não era para menos. Ele gastou anos de tra- balho, anos de intensa labuta para enfeitiçar os peixes. Atingiu o objectivo que perseguia, conseguindo que o peixe que ficou vivo, o raro peixe, ao ouvir a música de encantar, logo saltasse do aquário para a mesa, saracoteando-se e bailando pronto para o acompanhar, para irem os dois fazer mais uma passeata, para sair de casa. Por isso não admira que ele, o miúdo, andasse sempre emproado e com razão, pois o peixe até já passava mais tempo fora do aquário que dentro de água. Mas, quando menos se espera, aparecem as ocasiões propícias a determi- nados e inesperados sucessos. Foi o caso, o imprevisível aconteceu. O peixe que o meu irmão tanto estimava e adorava, o seu fiel companheiro, o que restava do par inicial, também se passou. Morreu! A situação, que parecia estar por ele, aparentemente, bem controlada, afinal apanhou-o de surpresa. O miúdo ficou arrasado com o acontecido. Nesta ocasião, pior coisa não havia que pudesse ocorrer. Ele ficou, sei lá, como que sem forças e sem ânimo ao ponto de estar de fato, um tudo nada passado de ideias. Acima de tudo, porque o peixe teve uma morte inesperada e insólita. Foi para ele uma grande surpresa! Naquele dia, bem no pino do verão, o miúdo mais o seu companheiro peixe 33
  • 34. foram ao café, depois do almoço. O sol parecia queimar. Abrasava. Na volta, ao fazer o pequeno percurso que separava o café da casa do pai Valadares, o peixe vermelho encontrou algumas dificuldades, por estar com imenso calor. Ele queria, precisava a todo o custo de se refrescar. E então, ao entrar em casa deu de caras com o seu velho aquário, que continuava no mesmo lugar e cheiinho de água. De imediato o vermelhusco se apercebeu e sentiu ter ali mesmo à mão de semear um bom lugar, talvez mesmo, o lugar ideal para suavizar o bem forte escaldão que apanhara. Se nisso pensou melhor o fez! Então, já muito aflito, o peixe saltou para o interior daquele que sempre fora o seu habitat, na ocasião um verdadeiro chamariz aquífero. Foi então que aconte- ceu o inopinado. O imprevisto! O peixe vermelho, por andar constantemente na ramboia atrás do dono, sempre ao sabor da música enfeitiçada que o miúdo não se cansava de tocar, já estava pouco habituado ao meio aquático onde sempre vivera. O meu irmão sentia um grande orgulho por todo aquele seu trabalho ter atingido o fim a que se propusera. Contudo e apesar de se mostrar bem feliz com o que fizera, o miúdo sempre considerou que era inevitável continuar, visto que um trabalho deste calibre, nunca está terminado. Palavras certas e justas, para uma re- alidade diferente.De fato, se por um lado o miúdo deu a tão falada continuidade ao seu trabalho, pelo outro deixou aliviar um pouco a segurança do seu dançarino, de maneira que algumas vezes ele próprio se esquecia dos incómodos que uma onda de calor podia provocar ao seu vermelhusco peixe. Uma verdade que se confirmou! Com efeito, com a intenção única de arranjar um local bem mais fresco, de modo a que pudesse ficar bem melhor, o peixe raro e vermelho, deu um pincho para o interior do seu velho aquário, que lhe foi funesto. Inelutável mesmo. Certo certo, é que o peixe encantado não resistiu a tanta água, acabando mesmo por morrer afogado. Foi uma tristeza! Foi uma pena! Talvez porque um dia tal teria que acontecer. Talvez! Acontece, é a vida! * Vitor Manuel Capela Batista, 62 anos, português de Barreiro, Portugal. Engenheiro químico, já foi radialista, possui atividades holísticas, participou de vários concursos literários, gosta de participar de coletâneas, foi premiado em 2011 por este concurso na mesma categoria, 2.º lugar. E-mail: vitorbatista@netvisao.pt 34
  • 35. O Saber… Dinis Muacho*- menção honrosa – categoria internacional Avis - Portugal U ma tasca como tantas outras. A venda da família Saboeiros é ao mesmo tempo tasca e venda. É um local rústico único. É único como todas as tas- cas e como todas as vendas existentes nas fortes planícies Transtaganas. Pintada de um azulão forte da cor do céu limpo na pele exterior e de neve caiada na pele interior é assim a sua essência mais objectiva. O telhado é de telhas cerâmicas de canudo dos barros vermelhos do Redondo, de uma cor de fogo que se entranha na alma das gentes. Por baixo das telhas existe um ripado de madeira de pinheira mansa, que serve de teto falso, e abriga a casa do muito frio e do muito calor, meio- -termo térmico não existe por estas bandas. Portas pequenas, uma para a venda, outra para a tasca e ainda outra para a habitação da família. Um portão grande de ferro com espigões rendilhados dá as boas-vindas a quem se assoma à torre de tijolo burro, altaneira, do forno da padaria, que fica nos fundos do quintal. Móveis pintados de amarelo muito clarinho servem de colo aos mais variados produtos que tanta falta fazem ao povo das redondezas. O pão acabado de cozer – a pedir tiborna de azête – em forno de lenha de sobro vende-se ali. Vende-se por senhas, as mulheres chegam a estar um dia à espera na bicha para apanharem um quarto de pão para alimentar oito bocas durante sete longos dias. O açúcar é igualmente racionado, apenas uma quarta de açúcar para uma casa inteira prenhe de gente. A tasca é pois o local de eleição e socialização dos homens. Ali não faltam todo o tipo de pseudoeruditos, malteses, fadistas e até bêbados! Fica na parte baixa da velha aldeia, centro nevrálgico de conversas e ajuntamentos populares. Popu- lares sim, que os senhores da terra não se misturam com a arraia e criadagem, preferem ir até à vila beber chá ao Grémio ou ir a casa de parentes mais ou menos afastados. Na venda dos Saboeiros é um corrupio de homens, uns a bater o ás da cartada em cima das mesas com tampo de pedra, outros em amena cavaqueira, ouros encostados à ombreira para que a parede não caia! Venha de lá mais um copo de vinho e um bagaço, que o vinho é que instrói e o fado é que induca! É já 35
  • 36. um dizer antigo, logo fado e fadistas, bêbados e vinho, é algo que nunca falta. Pipas sempre cheias para os fregueses mais sequiosos. É um local em que as grossas paredes são confidentes dos segredos mais infames, dos boatos do amante desta e daquela, do filho que não é filho de fulano mas sim de sicrano… Elas é que sabem tudo, mas em seu claustro de fidelidade ouvem e calam. Os indivíduos cantam uns com os outros certas modas da região, ou então cantam à desgarrada, sempre à capela, muitas vezes ao som da concertina do Zé da Enxara ou do Joaquim Barto- lomeu. Desta maneira matam por momentos as agruras da vida difícil levada de sol a sol nos campos arroteados à força de braços e animais. Todas as sextas-feiras e domingos é dia certo de o Ti Manel Maravilhas aparecer ali pela tasca para beber o seu copinho e por vezes ser chacota das más- -línguas do costume. O velho Maravilhas desde novo que não era como os demais da sua geração. Já em cachopo gostava de falar com os velhos e de aprender as suas sábias lições de vida. Com eles aprendeu tudo: a afiar navalhas e machadas na pedra grossa de amolar, a fazer cestas e cadeiras de junca – que o junco não presta para isso – bem entrançadas, a fazer enxertias na altura das luas, e o regalo dos olhos de toda a gente eram os seus batatais semeados à manta, que davam as melhores batatas da aldeia. “Que maravilha”, diziam todos a respeito do cachopo feito homem desde muito novo, que tudo aprendera com primor. E por isso ficou o Manel “Maravilhas”. Aprendeu a ler com um velho que vivia num monte ali perto, que o ensinou também a escrever no pequeno quadrinho de xisto. Era como um pai para si, ensinara-lhe tudo, e o resto aprendeu sozinho. Aos sete anos já era zagal, depois foi ajuda de porqueiro, onde aprendeu também com os animais o valor e a noção de família. Quando as marrãs pariam era a sua maior alegria, batizava todos os quichos um a um, com nomes de tudo e mais alguma coisa. Os pais do Ti Maravilhas morreram novos, pelo que ficara órfão de mãe e pai com três e quatro anos respectivamente. Mas seguiu em frente, sempre quis saber mais e mais, não virou a cara à luta e ao saber. Como lhe dizia o mestre Chico da Pedreira “Rapaz, saber não ocupa lugar!” e esse era o seu lema, seguido à risca por influência desse velho que lhe ensinara a ler e a escrever, tantas vezes já a plenos pulmões da luz da candeia de azeite. Era pobre, comia uma pobre açorda de pão duro regada com um fio do néctar puro das oliveiras e alhos, e assim enganava a fome, sabe Deus! Quando era no tempo das boletas lá andava ao rabisco e metia mais alguma coisita no bucho, para além de couves e batatas! Cresceu e fez-se homem de barba feita! A melhor horta das redondezas era a do Maravilhas, que sempre humilde dizia que 36
  • 37. o seu saber era pouco, tudo o que sabia era por graça de Deus Nosso Senhor. Por não ser um homem alto, sempre que o arreliavam com isso na mangação respon- dia com uma espécie de verso que continha o nome de uma serra, que aprendera com o velho Chico da Pedreira. De serras sabia o nome de todas de cor e salteado, mas da que gostava mais era da serra de Maltim – que era perto da sua aldeia – e da serra do Marão… soava-lhe bem o nome! Dizia então aos galfarrões que o apoquentavam o adágio: “Olha lá, grande é o Marão e não dá palha nem dá pão!”. Com esta é que calava logo toda a maledicência. Cantava mal o fado mas era um exímio repentista de prosas de quarenta pontos. Um dos motes que mais lhe ouviam dizia: “Eu cá quero saber mais / Quero a todos e a ninguém / Lá por mor- rerem meus pais / Não deixo de ser alguém”. Levou uma vida pacata, casou com o seu único amor, de quem teve três filhos e duas filhas e ainda criou mais uma criança de berço que lhe deixaram aos portados do Monte da Figueira Negra numa noite de invernia, andava a sua Adelaide prenha da sua da última cachopita. Não pestanejou, “No prato onde comem cinco, hadem comer seis, sabem tanto de amor ao próximo como eu sei cantar o fado” arrematava muitas vezes, sobre os ricaços que haviam feito aquele belo serviço, qual roda dos enjeitados das gentes finas, talvez de uma filha que se envolvera com algum jovem ganhão que servia o pai! Já homem velho, depois dos filhos todos criados, sem nunca ter deixado de trabalhar nos trabalhos do campo, já que as oportunidades eram nulas para os pobres do seu país rico mas oprimido por ditadores, lá ia todas as sextas-Feiras e somingos religiosamente à tasca dos Saboeiros para umas desgarradas de poesia. Ao Ti Maravilhas até havia quem lhe chamasse o Borda D’Água das poesias, já que em mestria não ficava atrás do primor dos grandes bailarinos de fandango ribatejanos. Qualquer assunto era tema para longa conversa, servindo de conselheiro a muitos dos seus camaradas de confraternização, e aos novos até escrevia cartas por eles a alguma cachopa de que eles gostassem. Toda a gente se admirava de o homem toda a vida ter sabido e ainda saber de tanta coisa, e coisas tão distintas, mas alto lá que em política não se tocava! Só de pensar já doía, o país não deixava! “Ah filho duma real puta, que é mesmo um homem que sabe a valer”, dizia o Jaquim Morcela, que ouvira dizer mais ou menos o mesmo na telefonia acerca do Eusébio. Mas o que disseram ao Eusébio não era por malcriadagem, era sim o maior louvor em palavras que se podia dizer a alguém, dito por quem não sabia ler nem escrever. Só quem sabia fazer coisas fora do normal, quase como que fenômenos do Entron- camento, é que era merecedor de tal elogio (para alguns doutos era mera falta de 37
  • 38. educação). Num outro aforismo, o do amigo que não empata amigo, lá na tasca lan- çava o mote: “Ora quem vai, vai / Ora quem está, está / Morreu-me mãe e pai / Não choro por eles já!”. Os Homens não choram e o Ti Manel Maravilhas já não tinha vida nem idade pra chorar, mas ao mesmo tempo que assacudia aqueles que não lhe interessavam, jamais esquecia a sua mãe e o seu pai que tão precocemente tinham partido deste mundo. Ele sabia que a família era o pilar da sociedade, era pois um homem muito à frente no seu tempo, e soube bem passar essa mensa- gem aos filhos e netos. Quem sabe, sabe e o Ti Maravilhas sabia, o que era o bem e o mal, a verdade, a honra, a seriedade, o valor da palavra dada. E para saber e discutir isto tudo e muito mais nunca precisou de se encharcar em vinho nem em bagaço. Bebia os seus tintinhos em púcaro de lata carcomida e quando se sentia já bem, mais não bebia. O saboeiro, dono da tasca e da venda é que ficava a perder com o negócio, era menos um bocado da pipa que esvaziava e menos uns tostões amealhados ao fim da noite. Mas era menos um bêbado que aturava, e o Ti Maravi- lhas era sempre pessoa que dava gosto ter na sua pequena taberna. Para bêbados já lhe bastavam o Finfas e o Tonel que dia sim, dia sim, eram clientes habituais da embriaguez. Depois de bem pingados estes dois armavam de tourada com uns e outros e o resultado era sempre o mesmo: o jogo do pouco tino! Morreu velhinho o Ti Manel Maravilhas, mas ainda hoje nas estreitas e tortuosas ruas empedradas da velha aldeia, dizem que o saber da sua alma está perpetuado em cada esquina, em cada pedra, em cada parede. O saber de um homem que resistiu à guerra civil do país vizinho, à ditadura do seu próprio país, e viveu alguns dos anos de liberdade que se seguiram, prova de que quem sabe com humildade, e não guarda o saber só para si, faz crescer a humanidade, nem que seja a de uma pequena aldeia, que hoje chora de saudade este ser humano tão sábio e maravilhoso… *Dinis Reis Subtil Muacho, 32 anos, mora em Avis-Portugal, tem um livro de poesia editado, é escritor premiado nacional e internacionalmente (poesia e prosa), alia a faceta literária à sua profissao de engenheiro mecatrônico. E-mail: dinismuacho@hotmail.com 38
  • 39. O Vale dos Sentimentos Umoi Souza* - menção honrosa - categoria internacional Parede, Portugal J anaína era nova, bela e sensível. Nascera numa família de pessoas nobres pela bondade dos seus corações. Morava num vale - uma vaidade da natu- reza que resolvera criar aquele local, longe de tudo o que pudesse ser feio e desprezível, enchendo-o de uma beleza luxuriante com suas montanhas de um verde capaz de humilhar a mais bela das esmeraldas e de um sol sempre atento às necessidades da vegetação, igualmente, rica em alimentos para os moradores e pasto para o gado. Janaína era feliz. Não conhecia o sentimento da tristeza ou do sofrimento, pois tudo o que a cercava fazia sentido, era belo e puro. Mesmo nos dias em que alguém seguia em viagem sem volta para o vale eterno. Corria solta por esse pequeno paraíso e conhecia cada árvore, cada rocha e cada nascente de águas claras e doces. Às vezes tinha a nítida impressão de que podia falar com as árvores, com os pássaros e com toda espécie de criatura viva ao seu redor, tamanha era sua cumplicidade natural com o que a cercava. De vez em quando, atravessava todo o vale para ir à cabana do velho Man- du. Ele era como um avô, um professor de uma ciência simples chamada vida. Mas, acima de tudo, ele era seu amigo. Junto a Mandu, passava horas ouvindo o velho sábio divagar sobre coisas de um mundo, tão distante quanto sua imaginação pudesse alcançar. Mandu se divertia ao ver a expressão “cabulosa” , como ele chamava, es- tampada no rosto de Janaína, sempre que ele falava do mundo dos sonhos, o reino de Morfeu e os mundos além da nossa imaginação. 39
  • 40. Mandu falava a ela, com certa autoridade, que durante os sonhos, nossos espíritos eram libertos da cela da realidade e viajavam livres como cavalos nas pradarias e velozes como a luz ou o pensamento para mundos desconhecidos e podiam brincar com outros espíritos em estrelas de outras dimensões, cortar os mares que cobriam a terra e vislumbrar toda a divindade existente em cada centímetro quadrado do imensurável universo. Mas, acima de tudo, podiam, na liberdade dos sonhos, enfrentar seus medos e seus temores, quer fossem de um remoto passado, do presente ou do inexorável futuro. Certa vez Janaína perguntou a Mandu de onde vinha a chuva. Era frequente o vale ser lavado por uma chuva fina e, de vez em quando, salgada como água do mar. Mandu olhou para os vivos olhos negros da pequena Janaína e, embora pudesse achar a pergunta ingênua, coçou a grisalha cabeça lhe perguntando sem rodeios: - Quer mesmo saber a origem da chuva salgada, Janaína? A que ela, prontamente, respondeu que sim. - Ouça com atenção. Disse Mandu, estranhamente sério. Do lado norte no nosso vale fica nossa maior montanha. Também cha- mada de Guardiã. Por trás dela existe um mar tão bravio e selvagem em sua ondulação que nem mesmo as grandes criaturas marinhas se atrevem a explo- rar aquelas águas. A chuva salgada que temos de vez em quando é o resultado da luta entre o mar e nossa Guardiã. A constante tentativa do mar em atravessá-la faz com que o embate entre suas rochas e as águas produza uma verdadeira explosão de água que é atirada tão alto que se torna capaz de ultrapassar os picos mais altos da nossa montanha protetora. Mas o que poucos não sabem é que todo aquele que se banha nessa 40
  • 41. chuva experimenta o mesmo sentimento que no momento é trazido pela chu- va. Já vi grupos inteiros de pessoas começarem a chorar, inexplicavelmente, quando, juntos, resolveram se “lavar” nas águas da chuva. Não entenderam o porquê e apenas concordaram que todos sentiram exatamente a mesma coisa e resolveram não mais falar no assunto. Outros já relataram que o banho da chuva os fez experimentar outros sentimentos: de alegria, tristeza, nostalgia entre outros. Mas, não é sempre que a luta da Guardiã com o mar produz a chuva. É preciso que o mar liberte sua onda maior. Ela é gigante, desafiadora e esfome- ada. Sua fome é de sentimentos. Ela se fortalece ao se alimentar dos sentimentos de quem é pego por ela. Ao se alimentar dos sentimentos de alguém a onda multiplica seu poder e isso faz com que ela use essa força adquirida para tentar ultrapassar a guardiã. Não conseguindo, explode e ultrapassa a muralha, caindo no vale em forma de chuva salgada. Os sentimentos experimentados por todos são o mesmo, rou- bado pela onda a alguém que partiu para a grande viagem em suas águas, dando, a onda, força e sentimento em mais um combate com a guardiã que, como uma mãe, tem nos protegido da fúria da grande onda. Apenas a chuva consegue, de vez em quando, passar e cair no vale. - Mas porque as pessoas resolvem ir para perto desse mar tão bravio? Perguntou Janaína, num misto de curiosidade e certa ansiedade pela resposta. - Janaína – continuou Mandu – mesmo o mais belo dos paraísos pode, em dado momento, representar uma prisão para quem tem o desejo de uma liberdade desconhecida. Pense comigo, pequena Janaína. O que é a liberdade? – é fazer o que se tem vontade. – Respondeu a menina. - De certa forma sim – Atalhou Mandu. - E como uma pessoa sabe mesmo o que realmente deseja? Perguntou Janaína. - Essa, minha cara, é a pergunta correta! Podemos perguntar a todo 41
  • 42. habitante do nosso vale o que é liberdade que teremos uma resposta diferente de cada um. Todavia, a essência do significado estará presente nas diferentes respostas. Janaína coçou a cabeça fazendo uma careta que mostrava sua incapaci- dade em entender a filosofia de Mandú. Sabia que seu amigo estava filosofando e talvez, até, sabendo a verdade. E estava apenas provocando nela o despertar da mente para uma visão mais clara. Pegando ingredientes para fazer pão, Mandu continuou, mas sorrindo ao sentir a euforia de Janaína ao vê-lo se preparar para fazer pão. Janaína adorava aqueles momentos de conversa com Mandu, que invariavelmente, terminavam em piquenique improvisado e comendo algum bolo, doce ou pão, feitos pelas mãos hábeis e dóceis de seu amigo. Mas mesmo com os olhos brilhando pela promessa de pão, quis saber mais, ao mesmo tempo em que preparava lenha para o forno. Já sabia toda a “missa” do pão e já conhecia o seu “trabalho”. Não demorou muito para que toda a cabana fosse invadida pelo característico, quente e delicioso cheiro de pão no forno. - Fala mais sobre a onda, Mandu – pediu Janaína, ao por, sobre a mesa, manteiga, doce e leite, imaginando o sabor conhecido daquele pão. Mandu olhava com carinho a pequena Janaína. Comparava-a a uma peque- na raposa órfã descobrindo, pela experiência, sua natureza experta. - A onda, Janaína, nada mais é do que uma das formas de expressão do imenso mar. Seu poder destrutivo não é necessariamente a vontade do mar. Ela é apenas água em movimento com forças naturais que a impelem contra a rocha. A onda não quer vencer a rocha e a rocha não quer defender nada. Eles apenas existem e cumprem seu papel na ordem das coisas e “sabem” dessa for- ma porque “nasceram” onda e rocha. Exercem apenas seu direito a existência, atuando como deve ser. - Mas se a montanha não existisse poderíamos ser mortos pela onda. Então ela nos guarda. E a onda faria uma coisa má ao inundar o vale. Disse 42
  • 43. Janaína, mexendo no fogo com um tição. - Sim, você tem razão, mas não devemos nos esquecer de que o único desejo da onda é seguir seu caminho que tem, na guardiã, um obstáculo. Da mesma forma não é desejo da guardiã nos proteger de nada. Ela apenas vê na onda algo que a recorda da própria existência ao lhe trazer a consciência da sua força e majestade. Legitimam-se mutuamente pela própria natureza de existência. Para nós, que vivemos aqui, a montanha é um anjo protetor em constante sentinela. Uma atalaia que mira fundo o horizonte a espera que ela, a onda, volte em mais uma batalha. Entre conversas sobre ondas, montanhas e mistérios, passaram o dia em mais um piquenique improvisado reforçando a amizade. Longe do vale, bem longe dos olhos e da compreensão humana, um outro diálogo se realizava numa linguagem impossível à compreensão dos homens. A onda falava com a montanha... - Montanha, porque não me deixa passar? Tenho em minhas águas, sentimentos retirados de quem me alimentou e tenho que levá-los por esse caminho. - Onda, minha amiga, se te deixo passar significa que não sou mais montanha, o vale não será mais vale e aquelas pequenas criaturas deixarão de me cultuar como protetora. - Mas, ao não me deixar passar, montanha, meu destino de onda se altera e volto a ser apenas água ordinária e sem poder. Aí tenho que voltar a me fortalecer através de outras criaturas humanas que sempre tenho que procurar, roubar-lhes os sentimentos, me tornar onda gigante e tentar, como sempre, seguir o caminho que me foi destinado e onde você se encontra, tam- bém cumprindo seu destino de montanha. - Seu destino, onda, é passar e o meu é não permitir. Seja sensata e continue a tentar para continuar a existir, pois tentando, estarei também de- fendendo com minha existência e legitimando minha razão de ser montanha. Nossa luta, amiga, é o que nos fortalece e nos faz existir. Talvez estejamos, com 43
  • 44. essa conversa, descobrindo nossa verdadeira sina. A de se opor uma para a outra. Você não nasceu para atravessar o vale e eu não nasci para protegê-lo. Nós nascemos para nos complementar e garantir a existência pela perpétua batalha de luta que não pedimos para ter, mas que existe. - Eu compreendo montanha. Volto agora para me fortalecer. Viajarei por continentes, ceifarei vidas e me alimentarei dos seus sentimentos. Tornar- -me-ei onda gigante mais uma vez e meu poder será tão grande que até em sonhos alguém há de me temer. Continue aí montanha, mas saiba que voltarei. - Vá, em paz, onda. Atravesse os continentes e se alimente de outras vidas. Ficarei de prontidão à espera da sua volta, pois assim o destino me confiou o poder de ser montanha. Totalmente alheios a esse diálogo, Mandu e Janaína comiam pão fresco, filosofavam sobre chuvas salgadas e sentimentos. A eufórica Janaína, debruçada na janela, olhava para a imponente monta- nha e imaginava-se escalando-a, de mãos nuas, chegando até o seu topo, mirando o mar e gritando: - Venha onda! Estou aqui e não temo você. Sou Janaína. Ela veria a onda se aproximar e antes que essa batesse na montanha, Ja- naina, sorrindo, saltaria em suas águas revoltas, se fundindo à existência das águas revoltas e a conduzindo para longe dali, na tentativa de uma salvação permanente para o vale e, principalmente, para seu amigo Mandú. Com seu poder, Janaína se tornaria a própria onda, mas não amedrontaria ninguém. Nem mesmo em sonho. Não mais ceifaria vidas e daria nova realidade à sua existência. A montanha choraria. Não pela perda de Janaína, mas pelo fim do combate eterno. Diminuiria e se nivelaria ao solo fértil do vale, se tornando, também, solo fér- til e abrindo uma janela por onde se poderia vislumbrar o mais azul e belo dos ma- 44
  • 45. res e sem ondas ameaçadoras. Apenas dando a todos os moradores o espetáculo diário do mais belo e sereno pôr do sol... A chuva salgada não voltaria a cair, jamais. *Umoi Melo de Souza, 48 anos, brasileiro naturalizado português. Nasceu em Goiânia e se criou em Brasília. Hoje com dupla nacionalidade: brasileira e por- tuguesa. É licenciado em Animação Sociocultural pela Escola Superior de Educação Jean Piaget - Almada - Portugal e tem verdadeira paixão pela escrita de contos. E-mail: umoisouza@hotmail.com 45
  • 46. Uma dependência invulgar Antônio Carloto* - menção honrosa – categoria internacional Lousã, Portugal -D iga-me lá então doutor, qual é o diagnóstico? O médico coçou a têmpora, ajustou os óculos de armação metálica, fo- lheou as análises e fixou os seus olhos cinzentos no paciente sentado à sua frente. - Sr. Joel, seja sincero, quando me disse que gostava de beber o seu copito de Vinho do Porto, estava a falar de que quantidades? Joel assumiu uma posição mais ereta na cadeira e entrelaçou as mãos no colo para disfarçar as arreliadoras tremuras que o começavam a afligir logo pela manhã. - Bem, como sabe doutor, o Vinho do Porto tem propriedades tônicas e nutritivas que combatem as astenias e as depressões e como me tenho sentido em baixo, pela manhã... - Pela manhã... - Tomo dois ou três cálices. - Normais? - Hã...duplos. O médico coçou a testa. - E depois? - Ao almoço, claro está, como aperitivo, vai outro, bem fresquinho. Note que durante a refeição acompanho com água, não gosto de outros vinhos e muito me- nos de cerveja. Tomo é depois um Branco seco com a sobremesa e se a conversa está boa mais um ou outro Tawny como digestivo. E ao jantar... - Já percebi, Sr. Joel, e já agora, ao lanche, com um queijinho picante... - Nem sempre doutor, nem sempre... - Sr. Joel, os seus sintomas de desnutrição, dores abdominais, anemia, 46
  • 47. tremura nas mãos - Joel apertou mais firmemente as mãos entrelaçadas - são reforçados pelas análises: o senhor está com uma hepatite alcoólica com sérios riscos de descambar para uma cirrose. Vou-lhe receitar uns medicamentos mas o principal é o Senhor... - Moderar o consumo? - alvitrou, esperançoso, Joel. - Não, cortar completamente. Para si, Sr. Joel Alfaiate, acabou-se o Vinho do Porto. Para sempre. Quando voltou ao escritório, depois da consulta, vinha ainda abalado pela sentença. Sentou-se à secretária ainda em transe – “Meu Deus, meu Deus, não vou conseguir, estou perdido!” Foi com grande esforço que abriu a pasta do relatório de contas em que estava a trabalhar. Dentro, alguém tinha colocado um cartão, desses oferecidos pelas beatas. De um lado estava a figura de São Onofre, padroeiro dos alcoólicos, com o corpo esquelético de eremita vestido apenas com os seus longos cabelos e barbas e uma tanga de ervas entrançadas. Do outro lado, uma oração: Ó Santo Onofre, que pela fé, penitência e força de vontade vencestes o vício do álcool, concedei-me a força e a graça de resistir à tentação da bebida do Vinho do Porto. Livrai do vício, que é uma verdadeira doença, também os meus familiares e os meus amigos. Virgem Maria, mãe compassiva dos pecadores, socorrei-nos! Santo Onofre, rogai por nós! Joel olhou desconfiado para os colegas nas secretárias vizinhas, tentando identificar o engraçadinho ou engraçadinhos. Pareciam, sem exceção, dedicar-se ao trabalho com mais concentração e zelo do que o habitual, prova segura de que estavam todos envolvidos. Ostensivamente, rasgou a oração para o balde do lixo mas não pôde impedir-se de a recitar mentalmente enquanto o fazia. Quando chegou à hora do almoço avisou os colegas de que não se jun- taria a eles como habitualmente, pois tinha de ir tratar uns assuntos ao banco. Precisava de estar só para pensar como ia abdicar do Vinho do Porto, seu fiel companheiro desde os quinze anos e, por ironia, o seu ganha-pão, visto que traba- lhava numa empresa de exportação do Divino Néctar, sediada perto das suas caves 47
  • 48. de armazenamento e por essa via no local com maior concentração de álcool por metro quadrado do Mundo: Vila Nova de Gaia. Escolheu para almoçar uma casa de petiscos na Baixa de Gaia que sa- bia não ser frequentada por ninguém conhecido. Sentou-se ao balcão e logo ao consultar a ementa veio-lhe a necessidade do aperitivo. Não resistiu - "É para a despedida", racionalizou - e pediu um Ruby fresquinho. - O cavalheiro emprestar seu vinho para eu provar? O autor deste pedido descabido estava sentado à esquerda de Joel. Era corpulento, trajava um fato completo algo fora de moda. mas o que o destacava, para além do sotaque britânico, era o seu penteado: um risco de lado a partir do qual se lançavam em sentido contrário dois volumosos cachos de cabelo negro encrespado. - Era o que faltava! Peça um para si! Parecendo não ter ouvido a negativa de Joel, o "bife" deitou a manápula ao cálice e bebeu-o de um trago. Não gostou pois cuspiu-o de imediato, bradando: - Mas este vinho ser fortificado! Toda minha vida lutar contra Vinho do Douro fortificado. Que porcaria! Privado da sua dose, transido de cólera, Joel cometeu o erro de insultá-lo: - Que a filoxera e o oídio te consumam até à raiz, meu animal! Levou de imediato uma chapada monumental que o projetou do banco até uma mesa onde duas empregadas da retrosaria da esquina tomavam tranquila- mente a sua bica. A confusão que se seguiu foi grande. Alguns clientes e empre- gados tentaram imobilizar o agressor mas este, ao mesmo tempo que batia em retirada, sacou do seu cinto e fê-lo voltear por cima da cabeça. O cinto parecia invulgarmente pesado e abriu-se imediatamente uma clareira. Escapou sem deixar rasto. Quando voltou ao escritório, Joel vinha ainda mais alterado do que de manhã, depois da consulta: tinha o estômago vazio, pois como era natural, tinha perdido todo o apetite depois da agressão; a cabeça ainda lhe retinia com o estalo que tinha levado; mas sobretudo, todo o surrealismo da cena o atormentava. No entanto, o indivíduo era-lhe vagamente familiar...A figura, o sotaque britânico, o rejeitar a adição de aguardente vínica durante o processo de fermentação do Vinho do Porto, ou seja, a sua fortificação... - O BARÃO DE FORRESTER! ERA O BARÃO DE FORRESTER! TENHO A CER- 48
  • 49. TEZA! SÓ PODIA SER ELE! E largou um violento murro no tampo da secretária. Os colegas tentaram acalmá-lo: - Epá, põe-te manso, olha o Borges! Mas tarde demais. O Patrão Borges emergiu do seu cubículo e, numa voz autoritária, chamou-o: - Sr. Joel Alfaiate, chegue-se imediatamente ao meu gabinete que eu pre- ciso de falar consigo! O Patrão Borges era um indivíduo com toda uma vida dedicada ao comércio do Vinho do Porto. Com muitos poucos estudos, tinha começado por baixo, na estiva das pipas. À custa duma vontade férrea e de muita esperteza tinha subido até ao cargo de dirigente intermédio. Bem nutrido, de aspecto e feitio bonacheirão, sabia, no entanto, quando "pôr os pontos nos Is": - Sr. Joel Alfaiate, não gosto de me meter na vida particular dos meus fun- cionários. Como sabe, eu também não sou nenhum "bebe água" mas tudo tem os seus limites. Não posso admitir que Vossa Excelência se encharque ao ponto de se meter à pancada na hora do almoço - não me contradiga porque ainda tem as marcas na cara - e de desatar aos berros e aos murros à secretária durante as horas de expediente. Mas ainda pior, é que tenha começado a ter alucinações e a imaginar encontros com senhores falecidos em meados do século XIX! O senhor é um contabilista, carago! Por definição deveria ser um ser desprovido de qualquer imaginação, quanto mais deste tipo! Ou se organiza ou vou ter de tomar medidas radicais. Como sabe, a legislação laboral tem vindo a flexibilizar-se...Estamos en- tendidos? - Perfeitamente, pa… Sr. Borges. - Então vá para casa descansar, siga os conselhos do seu médico e amanhã quero vê-lo em forma para trabalhar, fresco como uma alface. - Cá estarei, Sr. Borges. Enquanto caminhava até ao seu modesto apartamento - tinha decidido prescindir do autocarro e ir a pé para desanuviar a cabeça - Joel começou a pôr em causa a sua sanidade mental. Não se sentia louco, mas só podia estar. Era a única explicação. De resto, os loucos não se tomam como loucos, funcionam com a sua própria lógica interna, distinta das outras pessoas. Por outro lado, ao admitir a hipótese de loucura, demonstrava a sua racionalidade…Arre! 49
  • 50. Ao passar pelo Café Vesúvio sentiu fome. Entrou e pediu uma tosta mista. Conhecedor dos seus hábitos, o empregado trouxe-lhe imediatamente um cálice duplo. Ainda teve um assomo de recusa, mas logo mudou de ideias - "Que se dane! Se calhar o meu problema é que ainda hoje não tomei uma única gota!" - De fato, por causa da consulta médica, tinha até prescindido da sua dose matinal. Antes de levar o copo à boca lançou um olhar receoso às mesas vizinhas. O Barão de Forrester não se encontrava à vista, mas na mesa ao lado, uma senhora de ar austero encarava-o fixamente. Estava trajada como uma professora reformada, tinha o cabelo apanhado num carrapito e aparentava uns 60 anos. Era miudinha de corpo, toda pele e osso, mas o olhar profundo, acentuado por umas olheiras bem marcadas emanava força e poder. Desta vez, Joel não foi apanhado de surpresa - o "incidente Forrester" tinha-o preparado. Compreendeu que agora tinha pela frente outra figura lendária da história do Vinho do Porto: nada mais, nada menos, que D. Antônia Adelaide Ferreira, a mítica "Ferreirinha". Foi ela que iniciou as hostilidades: - Jovem, o seu rosto é-me familiar e isso desagrada-me. Faz-me lembrar o valdevinos do meu filho Antônio Bernardo. Foram as más companhias, mas so- bretudo o vinho que o perderam. Por favor não beba esse copo. - Minha senhora, lamento desapontá-la mas isso é problema seu. E ia beber de qualquer maneira, não tivesse a Ferreirinha começado a cho- rar. Chorava em silêncio, sem soluçar. Corriam grossas lágrimas pela sua face arre- panhada numa máscara de profunda dor. Isso era mais do que Joel podia suportar. Ele venerava a Senhora. Na parede da cabeceira da sua cama, onde outras pessoas tinham a imagem de Cristo, tinha ele o retrato de D. Antônia. Bateu em retirada desabrido, sem esperar pela tosta mista e sem pagar a conta. "Estou a ser perse- guido, estou a ser perseguido" - o seu coração bombava como se tivesse subido ao cimo da Torre dos Clérigos a correr - "mas não me vão vencer, não vão não!" E dirigiu-se à tasca mesmo por detrás do seu prédio. Antes de transpor as portas batentes do estabelecimento, controlou a clientela. Parecia seguro. Nada de figuras históricas do Douro, só três velhotes a jogarem ao dominó numa mesa de canto, partilhando uma garrafa. Foi ao balcão e pediu um Porto - desta vez é que ia ser. - Lamento, amigo. A garrafa que tinha foi comprada por aqueles senhores. Joel virou-se e os três velhotes - só então reparou nas suas farfalhudas suíças – voltaram-se para ele com um sorriso malandro e fizeram-lhe um brinde. Ser perseguido por gente já falecida era terrível, mas o assédio de figu- ras publicitárias que nunca tinham tido existência corpórea era ainda pior. Só lhe 50