O documento resume as ideias de Theodor Adorno sobre a possibilidade da formação da subjetividade autônoma pela educação após Auschwitz. Adorno argumenta que a educação deve se concentrar na auto-reflexão crítica e na primeira infância para formar o caráter e evitar a repetição da barbárie. Ele também aponta desafios como a "claustrofobia das pessoas no mundo administrado" e a dificuldade de resistir à pressão dos coletivos cegos.
Possibilidade da formação da subjetividade autônoma na perspectiva de Adorno
1. POSSIBILIDADE DA FORMAÇÃO DA SUBJETIVIDADE AUTONOMA PELA
VIA DA EDUCAÇÃO NA PERSPECTIVA DE ADORNO 1
Solange Toldo Soares2
INTRODUÇÃO
Wolfgang Leo Maar na Guisa de Introdução do livro “Educação e
Emancipação” de Theodor W. Adorno (2006) destaca que a consideração do
referido autor de que a educação não é obrigatoriamente um fator de
emancipação pode soar melancólica, mas significa “a necessidade da crítica
permanente” (p. 11). Maar afirma que Adorno recorre a Auschwitz3 e procura
demonstrar “as dificuldades da formação da subjetividade autônoma pela via
da educação e da cultura nos parâmetros da sociedade burguesa, sem o apoio
de uma crítica objetiva da própria formação social” (p.27).
Partindo destas considerações de Maar optou-se por estudar e relatar
neste pequeno esboço, como Adorno (2006) aborda a questão da “formação da
subjetividade autônoma pela via da educação” no texto Educação após
Auschwitz do livro Educação e Emancipação.
1
Este texto foi elaborado com base nas discussões no Seminário Educação e Sociedade nas
perspectivas de T. Adorno, M. Horkheimer e H. Marcuse no Programa de Pós-Graduação
em Educação da Universidade Federal do Paraná e fundamentou a elaboração da
dissertação de mestrado da referida autora em processo de publicação, intitulada como “O
processo de construção das Diretrizes Curriculares Nacionais para o curso de Pedagogia no
Brasil (1996-2006): ambiguidades nas propostas de formação do pedagogo”.
2
Pedagoga (UFPR), especialista em Formação Pedagógica do Professor Universitário
(PUC/PR) e mestre em Educação pela UFPR.
3 Theodor W. Adorno dedicou-se a analisar as causas que levaram a Alemanha culta e
esclarecida a gerar Adolf Hitler que, segundo dados da Wikipédia, a partir de 1940 construiu
vários campos de concentração e um campo de extermínio no território dos municípios de
Auschwitz e Birkenau, na Polônia ocupada. Os campos eram dirigidos pela SS (Schtztaffel –
Seção de Segurança) comandada por Heirich Himmler. À entrada de Auschwitz I lia-se
“Arbeit macht frei” (O trabalho liberta), contraditoriamente a frase os prisioneiros judeus
morriam devido às severas condições de trabalho e desnutrição. Auschwitz II (Birkenau) era
um campo de extermínio e Auschwitz III (Monowitz) foi utilizado como campo de trabalho
escravo pela empresa IG Farben.
2. EDUCAÇÃO APÓS AUSCHWITZ: SÓ FAZ SENTIDO EDUCAR CONTRA A
BARBÁRIE
Segundo Adorno (2006) são extremamente limitadas as condições para
mudar os pressupostos sociais e políticos, as condições objetivas, que geram
acontecimentos como Auschwitz, por isso, segundo ele, as tentativas de
oposição são direcionadas para o lado subjetivo, no sentido de investir no
sujeito, na formação da subjetividade autônoma e por isso é de extrema
importância a formação da subjetividade autônoma pela via da educação, pois
“a exigência que Auschwitz não se repita é a primeira de todas para a
educação” (ADORNO, 2006, p. 119).
Para o autor é necessário descobrir os mecanismos que tornam os
perseguidores capazes de cometerem atos de barbárie, pois:
(...)Os culpados não são os assassinados, nem mesmo naquele
sentido caricato e sofista que ainda hoje seria do agrado de alguns.
Culpados são os que, desprovidos de consciência, voltaram contra
aqueles seu ódio e sua fúria agressiva (...) (ADORNO, 2006, p.121).
Há um agravante para a formação da subjetividade autônoma, seja pela
via da educação ou da cultura, segundo Adorno (2006) “a claustrofobia das
pessoas no mundo administrado”. Este sentimento de pressão sufoca os
indivíduos, pois:
(...) A pressão do geral dominante sobre tudo que é particular, os
homens individualmente e as instituições singulares, tem uma
tendência a destroçar o particular e individual juntamente com seu
potencial de resistência. Junto com sua identidade e seu potencial de
resistência, as pessoas também perdem suas qualidades, graças a
qual tem a capacidade de se contrapor ao que em qualquer tempo
novamente seduz ao crime. Talvez elas mal tenham condições de
resistir quando lhes é ordenado pelas forças estabelecidas que
repitam tudo de novo, desde que apenas seja em nome de quaisquer
idéias de pouca ou nenhuma credibilidade (p. 122)
Partindo desta analise, Adorno afirma que educação precisa estar
voltada a auto-reflexão crítica e se concentrar prioritariamente na 1ª infância,
pois conforme os ensinamentos da psicologia todo caráter forma-se neste
período da vida humana. Além disso, a educação em geral precisa voltar-se ao
esclarecimento, para produzir um clima intelectual, cultural e social que evite a
3. repetição da barbárie ocorrida em Auschwitz, segundo o autor “... um clima em
que os motivos que conduziram ao horror tornem-se de algum modo
conscientes” (p. 123) e ainda:
É necessário contrapor-se a uma tal ausência de consciência, é
preciso evitar que as pessoas golpeiem para os lados sem refletir a
respeito de si próprias. A educação tem sentido unicamente como
educação dirigida a uma auto-reflexão crítica (...) (p. 121)
Contudo, Adorno (2006) afirma que não tem a pretensão de esboçar um
projeto de educação, mas quer indicar alguns pontos nefrálgicos referentes aos
mecanismos subjetivos em geral, sem os quais Auschwitz dificilmente
aconteceria e que levam a compreender as dificuldades da formação da
subjetividade autônoma pela via da educação. Adorno (2006) reforça que o
retorno ou não do fascismo se constitui uma questão social e não uma questão
psicológica, mas ele se refere ao lado psicológico porque “(...) os demais
momentos, mais essenciais, em sua grande medida escapam à ação da
educação, quando não se subtraem inteiramente à interferência dos indivíduos”
(p.124). Sucintamente destacam-se a seguir alguns destes pontos nefrálgicos
mencionados por Adorno (2006).
O autor alerta que o fascismo está relacionado ao fato de que as antigas
autoridades do império se esfacelaram, mas os indivíduos não se encontravam
preparados para a autodeterminação, as pessoas “... não se revelaram à altura
da liberdade com que foram presenteadas de repente” (ADORNO, 2006, p.123)
e a autoridade de Hitler assumiu dimensão destrutiva. Além disso, outro
agravante é que não se admite o contato com a barbárie que ocorreu em
Auschwitz: “O perigo de que tudo aconteça de novo está em que não se admite
o contato com a questão, rejeitando até mesmo quem apenas a menciona,
como se, ao fazê-lo sem rodeios, este se tornasse o responsável, e não os
verdadeiros culpados” (ADORNO, 2006, p. 125).
O autor registra também que no campo, provavelmente, a
desbarbarização foi ainda maior do que na cidade, por isso “(...) a
desbarbarização do campo constitui-se um dos objetivos educacionais mais
importantes” (p. 126), porém segundo Adorno (2006) pessoas violentas existem
4. tanto na cidade como no campo devido a relação perturbada e patogênica dos
seres humanos com o corpo devido a consciência mutilada, coisificada:
(...) Em cada situação em que a consciência é mutilada, isto se reflete
sobre o corpo e a esfera corporal de uma forma não-livre e que é
propícia à violência. Basta prestar atenção em um certo tipo de
pessoa inculta como até mesmo a sua linguagem – principalmente
quando algo é criticado ou exigido – se torna ameaçadora, como se
os gestos da fala fossem de uma violência corporal quase
incontrolada (...).
Outro fato é a disponibilidade dos sujeitos “... em ficar do lado do poder,
tomando exteriormente como norma curvar-se ao que é mais forte, constitui
aquela índole dos algozes que nunca mais deve ressurgir” (ADORNO, 2006,
p.124).
Assim, segundo Adorno (2006) para que Auschwitz não se repita a única
possibilidade seria a autonomia, “o poder para a reflexão, a autodeterminação,
a não-participação” (p.125). A subjetividade autônoma é importante para
contrapor-se ao poder cego dos coletivos, que segundo o ele é o perigo mais
importante a ser enfrentado para que Auschwitz não se repita.
Adorno (2006) também alerta que a formação da subjetividade
autônoma pela via da educação se dificulta diante de um papel que a educação
tem desempenhado: a severidade. Através deste papel a educação premia a
dor e a capacidade de suportá-la, e o medo é reprimido (ADORNO, 2006).
Adorno destaca, para finalizar, que a indiferença foi o fator psicológico
que possibilitou a barbárie ocorrida em Auschiwitz:
(...) se as pessoas não fossem profundamente indiferentes em
relação ao que acontece com todas as outras, excetuando o punhado
com que mantém vínculos estreitos e possivelmente por intermédio
de alguns interesses concretos, então Auschwitz não teria sido
possível, as pessoas não o teriam aceito (p. 134).
A coisificação da consciência permite às pessoas tornar-se indiferente
ao outro, mas uma consciência dotada de subjetividade autônoma raramente,
portanto a importância da formação da subjetividade autônoma fica evidente:
5. (...) será difícil evitar o reaparecimento de assassinos de gabinete,
por mais abrangentes que sejam as medidas educacionais. Mas que
haja pessoas que, em posições subalternas, enquanto serviçais,
façam coisas que perpetuam sua própria servidão, tornando-se
4
indignas; que continue a haver Bogers e Kaduks , contra isto é
possível empreender algo mediante a educação e o esclarecimento
(p. 138).
Adorno (2006) alerta que a falta de subjetividade autônoma tornou
Auschwitz real e possibilita a sua repetição a qualquer momento, por isso “(...)
o centro de toda educação política deveria ser que Auschwitz não se repita”
(ADORNO, 2006, p. 137).
REFERENCIAS
ADORNO, T. W. Educação após Auschwitz. In: ___ Educação e
Emancipação. São Paulo: Editora Paz e Terra, 2006.
Auschwitz – Birkenau. Wikipédia. http://pt.wikipedia.org/wiki/Auschwitz-
Birkenau. Acesso em 12 de maio de 2005.
MARR, W. L.. Á Guisa de Introdução: Adorno e a experiência formativa. In:
ADORNO, T. W. Educação e Emancipação. São Paulo: Editora Paz e Terra,
2006.
MAREK, M. Calendário histórico 1963: Começa “Julgamento de Auschwitz”.
Disponível em: http://www.dw-world.de/dw/article/0,,708064,00.html. Acesso
em 12 de maio de 2009.
SOARES, S. T. O processo de construção das diretrizes Curriculares Nacionais
para o curso de Pedagogia no Brasil: ambiguidades nas propostas de formação
do pedagogo. 2010. Dissertação (Mestrado em Educação). Universidade
Federal do Paraná.
4 Adorno cita Bogers e Kaduks se referindo a Wilhelm Boger e Oswald Kaduk (apelidado pelos
prisioneiros de “Satanás de Auschwitz”) que ingressaram voluntariamente na SS (Schtztaffel
– Seção de Segurança), juntamente com outros. Estes foram julgados, com outros 20 ex-
guardas do campo de extermínio nazista, em 1963 e nenhum dos réus demonstrou qualquer
tipo de arrependimento diante do tribunal. Em 1965 o juiz proclamou 17 condenações e 3
absolvições (MAREK, s.d).
6. QUESTÕES PARA DEBATE:
1. Para Adorno a possibilidade de mudar os pressupostos objetivos
(sociais e políticos) que geram acontecimentos como Auschwitz é
extremamente limitada. As tentativas, segundo ele, são impelidas
necessariamente para o lado subjetivo. Qual função social assume a
escola nesta perspectiva?
2. Adorno afirma ser fundamental poder impedir da melhor maneira
possível a formação do “caráter manipulador” pela transformação das
condições para tanto, para impedir que Auschwitz não se repita.
Como a educação poderia contribuir na transformação das condições
para a formação do caráter manipulador, conforme Adorno?
3. Ao referir-se à identificação cega aos coletivos, Adorno afirma: “A
brutalidade de hábitos trais como trotes de qualquer ordem, ou
quaisquer outros costumes arraigados desse tipo, é precursora
imediata da violência nazista. Não foi por acaso que os nazistas
enalteceram e cultivaram tais brutalidades como o nome de
costumes” (p. 128). Adorno afirma que a ciência poderia inverter essa
tendência. De que forma a ciência pedagógica poderia fazer esta
inversão e refrear estes divertimentos populares? Como a ciência e a
escola tratam tal questão no Brasil?