Não é emocional. Discretas mutações em genes que regulam um processo celular básico estão por trás de mais de 3 milhões de casos de gagueira em todo o mundo. Com a identificação dos primeiros genes associados à gagueira, os cientistas estão tendo a possibilidade inédita de compreender os fundamentos bioquímicos do distúrbio e de descobrir grupos de neurônios especialmente sensíveis ao defeito metabólico causado pelas alterações genéticas. Saiba mais: http://gagueira.wordpress.com
Mutaciones genéticas revelan origen biológico de la tartamudez
1. NEWS FEATURE 1
NEUROBIOLOGIA DA FALA A partir da
identificação dos primeiros genes associados à
gagueira, os cientistas estão tendo a possibili-
dade inédita de compreender os fundamentos
bioquímicos do distúrbio e de descobrir grupos
de neurônios especialmente sensíveis ao defeito
metabólico causado pelas mutações.
Identificar estes neurônios e detalhar sua
função é agora o próximo passo da pesquisa,
que pode fornecer novos insights sobre a
gagueira e também sobre a produção de fala
no cérebro.
“Nenhum respeito”
Apesar de fornecer uma janela única para a
compreensão detalhada de uma das funções
mais complexas realizadas pelo cérebro hu-
mano, a gagueira tem sido por muito tempo
um assunto cientificamente menosprezado.
“Infelizmente, como distúrbio, a gagueira
não tem nenhum respeito”, diz Dennis
Drayna, pesquisador chefe do estudo e gene-
ticista do Instituto Nacional de Distúrbios de
Comunicação, em Bethesda, Maryland (EU-
A). “Acho que o resultado da nossa pesquisa
Não é emocional
deve mudar isso e finalmente convencer os
céticos de que a gagueira é de fato um trans-
torno biológico.”
O estudo, publicado no The New England
Journal of Medicine1, a mais prestigiada revis-
ta médica do mundo, baseou-se em um traba-
Discretas mutações em genes que regulam um lho anterior, de 20052, no qual Drayna identi-
processo celular básico estão por trás de mais de ficou no cromossomo 12 uma região de inte-
resse que parecia abrigar um gene relaciona-
3 milhões de casos de gagueira em todo o mundo do ao fenótipo da gagueira. No novo estudo,
que analisou cerca de 400 pessoas com ga-
Por Cassandra Willyard, Janet Fang, Julia Strait, Nathan Seppa e Robin Latham
gueira, ele e seus parceiros de pesquisa escru-
tinaram a região de interesse e identificaram
uitas vezes tratada com desdém e 1%, o que representa um total de aproxima- mutações específicas em um gene no braço
M vista como um mero problema de
fundo emocional, a gagueira na
verdade pode ser resultado de mutações
damente dois milhões de pessoas no Brasil,
três milhões nos EUA e 70 milhões de pes-
soas em todo o mundo.
longo do cromossomo 12 (GNPTAB) que
ocorriam em pessoas com gagueira – mas
quase nunca em pessoas fluentes do grupo
genéticas afetando genes envolvidos em um Estudos com gêmeos e crianças adotadas controle. A partir desta primeira descoberta,
processo metabólico fundamental da célula, mostraram que existem subtipos do distúr- foi possível encontrar mais mutações em
mostrou um estudo realizado por cientistas bio altamente hereditários, e este novo es- outros dois genes relacionados ao primeiro
do Instituto Nacional de Distúrbios da Co- tudo do NIH encontrou 10 mutações dife- (GNPTG e NAGPA), localizados no braço
municação dos EUA, órgão vinculado ao rentes que podem estar envolvidas na ori- curto do cromossomo 16, e que integram a
NIH (National Institute of Health). gem de muitos casos. Essas mutações estão mesma via metabólica do GNPTAB.
A Organização Mundial de Saúde (OMS) localizadas em genes responsáveis por fazer Nem todas as pessoas com gagueira podem
define a gagueira, ou tartamudez, como um o direcionamento de enzimas para o interior atribuir a origem do distúrbio a essas muta-
distúrbio da fluência da fala em que a pessoa dos lisossomos, organelas que atuam na ções, dizem os pesquisadores. Embora estu-
sabe exatamente o que quer dizer, mas sofre digestão e na reciclagem de componentes dos com gêmeos demonstrem que a contri-
repetições e prolongamentos involuntários desgastados das células do corpo. Os cientis- buição genética na origem da gagueira seja
de sons, além de bloqueios frequentes no tas supõem que existam células no cérebro, tão grande quanto 80%, as dez mutações
fluxo normal da fala. Trata-se de um distúr- exclusivamente dedicadas à produção de encontradas até agora explicam apenas 5%
bio relativamente comum – sua prevalência fala, que são especialmente sensíveis ao de- dos casos, o que claramente sugere a existên-
estimada na população adulta é de cerca de feito metabólico causado pelas mutações. cia de outros subtipos genéticos3. “As mu-
Como distúrbio, a gagueira não tem nenhum respeito. Nossa pesquisa deve mudar isso
e finalmente convencer os céticos de que ela é de fato um transtorno biológico.
— Dennis Drayna, geneticista, Ph.D., pesquisador do NIH
2. NEWS FEATURE 2
Representação esquemática da via metabólica afetada pelas primeiras mutações genéticas associadas à gagueira. O erro ocasionado pelas mutações com-
promete levemente a eficiência do processo de marcação e transporte de enzimas para o interior dos lisossomos. Na primeira etapa desse processo, a enzima GNPT
(GlcNAc-fosfatotransferase), cujas subunidades alfa, beta e gama são codificadas pela dupla de genes GNPTAB e GNPTG, catalisa a ligação covalente entre o resíduo
GlcNAc-1-fosfato remanescente de sua cauda UDP-GlcNAc e o resíduo terminal de manose (em azul) ligado à enzima que está sendo processada (em laranja) para
ser encaminhada ao lisossomo. Na segunda etapa do processo, a enzima NAGPA (N-acetilglicosamina-1-fosfodiéster alfa-N acetilglicosaminidase), também conheci-
da como enzima de “descobertura”, remove o grupo GlcNAc, expondo o sinalizador manose-6-fosfato (M6P), que atua como uma espécie de etiqueta de transporte
para a enzima. Enzimas com este marcador são, então, encaminhadas através do aparelho de Golgi para o interior do lisossomo. Pequenas alterações nas proteínas
que atuam nessa via metabólica reduzem a quantidade de enzimas transportadas para dentro do lisossomo e, consequentemente, diminuem a capacidade da célula
em digerir componentes desgastados de sua estrutura que precisam ser degradados pelas enzimas lisossômicas para posterior reciclagem. A forma como perdas
discretas de eficiência nessa via metabólica provocam alterações muito sutis na estrutura do cérebro, tornando uma pessoa vulnerável a desenvolver gagueira persis-
tente, está sendo agora objeto de estudo dos pesquisadores1, 5, 6, 7.
Esta descoberta inicial revelou uma face totalmente desconhecida da gagueira. Uma
falha metabólica hereditária nunca tinha sido proposta antes como causa do distúrbio.
— Dennis Drayna, geneticista, Ph.D., pesquisador do NIH
tações que descobrimos são responsáveis por distúrbio ainda tão pouco estudado e tão com esse processo, enviando as enzimas
apenas uma fração modesta de casos”, diz pouco conhecido. “Quanto mais identificar- lisossômicas para um local diferente do dese-
Drayna, “mas dentro do universo de 70 mi- mos genes específicos relacionados ao dis- jado e deixando o lisossomo impossibilitado
lhões de pessoas com gagueira em todo o túrbio e o que eles codificam, melhores con- de degradar adequadamente o lixo celular5.
mundo, isso já é muita gente”. dições teremos de entender por que a ga- Se o processo de reciclagem nos lisossomos
“Dada a total falta de conhecimento que gueira tem sido um mistério por tanto tem- sofrer um colapso em grande escala, o resul-
tínhamos sobre as causas subjacentes à ga- po”, diz Nan Ratner, especialista em distúr- tado pode ser fatal: uma cascata de apoptose
gueira até pouco tempo atrás, nosso objetivo bios da fala e professora de fonoaudiologia celular, dano tecidual, falência de órgãos e
inicial era identificar pelo menos uma causa na Universidade de Maryland. morte. Nas mucolipidoses, doenças também
precisa do distúrbio”, diz Drayna. “Agora, já causadas por mutações nos genes GNPTAB e
identificamos três diferentes genes envolvi- Problemas de reciclagem GNPTG, é assim. Poucos portadores conse-
dos, e esta descoberta inicial revelou uma Os três genes associados à gagueira (GNP- guem chegar à idade adulta. No entanto, ne-
face totalmente desconhecida da gagueira. TAB, GNPTG e NAGPA) dividem uma tarefa nhuma das pessoas com gagueira que testa-
Uma falha metabólica hereditária nunca comum na célula: as enzimas codificadas por ram positivo para as mutações apresentou
tinha sido proposta anteriormente como eles ajudam a direcionar outras enzimas (hi- sinais de qualquer doença letal. Segundo os
causa do distúrbio. Agora temos um grande drolases) que vão atuar no interior de orga- pesquisadores, isso se deve a duas razões
número de novos caminhos de pesquisa nelas intracelulares chamadas lisossomos, principais: primeiro, porque as mucolipido-
abertos para explorar”, afirma o pesquisador. cuja função é continuamente digerir partes ses são doenças recessivas e são necessárias
Muitos especialistas concordam que o tra- desgastadas da célula e enviá-las para recicla- duas cópias do mesmo gene mutante para
balho é um passo importante para o enten- gem. Qualquer uma das 10 mutações identi- haver a manifestação da condição (nas pes-
dimento da contribuição genética em um ficadas pela equipe Drayna pode interferir soas com gagueira, só havia uma cópia mu-
Quem imaginou que algum dia chegaríamos a fazer a enzimologia da fala?
A possibilidade de estudar bioquimicamente a fala humana é muito surpreendente.
— Dennis Drayna, geneticista, Ph.D., pesquisador do NIH
3. NEWS FEATURE 3
tante desses genes); segundo, e mais impor-
tante: as mutações identificadas na gagueira
são do tipo missense, o tipo mais sutil, e não cromossomo 12
mutações de deleção ou translocação como
as que são observadas nas mucolipidoses e
que têm um efeito mais grave sobre a função braço curto (p) braço longo (q)
da proteína. Nenhuma das mutações missen-
se observadas nos genes GNPTAB e GNPTG
em pessoas com gagueira são encontradas
em pessoas com mucolipidose.
gene GNPTAB (12q23.2)
Enzimologia da fala
(também implicado nas mucolipidoses tipo II e III)
Os pesquisadores ainda não entendem por
cromossomo 16
que essas mutações missense levariam à ga-
gueira, mas Drayna intui que há neurônios
específicos envolvidos no processamento da
braço curto (p) braço longo (q)
fala no cérebro que são especialmente vulne-
ráveis a essas anormalidades. A identificação
desses neurônios passa pela determinação
das regiões do cérebro que apresentam mai-
or expressão gênica e, portanto, maior de-
gene NAGPA (16p13.3) (a gagueira é o único efeito conhecido em humanos)
pendência das enzimas codificadas pela tría-
de GNPTAB, GNPTG e NAGPA. “Quem ima- gene GNPTG (16p13.3) (também implicado na mucolipidose tipo III)
ginou que algum dia chegaríamos a fazer a
enzimologia da fala?”, pergunta Drayna. “A
Dois cromossomos abrigam os três primeiros genes associados à gagueira. A primeira mutação associ-
possibilidade de estudar bioquimicamente a
ada à gagueira foi encontrada no gene GNPTAB*, situado no locus 12q23.2 do cromossomo 12. Esse gene é
fala humana é muito surpreendente.” um velho conhecido dos geneticistas, por seu papel na origem das mucolipidoses II e III – doenças metabó-
“Uma característica notável deste estudo é licas letais da primeira infância. Inicialmente, os pesquisadores duvidaram da associação e acreditaram não
a natureza da via biológica implicada – um ser plausível que um gene para uma doença metabólica letal pudesse ter alguma coisa a ver com a gagueira,
processo bioquímico até então muito pouco até se depararem com algo intrigante: crianças com formas moderadas de mucolipidose, que conseguiam
provável para explicar a gagueira”, diz o neu- sobreviver à primeira infância, tinham alterações graves no desenvolvimento da fala. Como os pesquisadores
sabiam que o GNPTAB trabalha em conjunto com outros dois genes – GNPTG e NAGPA (ambos localizados
rocientista Simon Fisher, do Wellcome Trust no cromossomo 16) – eles os sequenciaram e encontraram mais mutações presentes em pessoas com ga-
Centre para Genética Humana da Universi- gueira e em suas famílias, mas não em pessoas do grupo controle. Mutações no GNPTG também já haviam
dade de Oxford, Inglaterra, autor do editorial sido associadas anteriormente à mucolipidose tipo III, mas mutações no NAGPA nunca tinham sido relacio-
que acompanhou a publicação da descoberta nadas a qualquer desordem humana. Seu único efeito conhecido até agora é a gagueira1, 5, 6, 7.
no The New England Journal of Medicine8. “As *Um refinamento posterior mostrou que esta é uma mutação fundadora. Ela surgiu há 572 gerações, aparecendo
mutações descobertas podem reduzir apenas pela 1a vez por volta de 14.300 anos atrás em um antepassado comum a todos aqueles que hoje a possuem.4
parcialmente a atividade das enzimas”, ele
resume. “Mais pesquisas sobre a atividade Legitimando a gagueira desistir de suas carreiras”, diz ele. Dada a
bioquímica dessas enzimas defeituosas po- O resultado do estudo sugere que a terapia importância da comunicação no dia a dia,
dem esclarecer o quadro e, finalmente, expli- de reposição enzimática pode algum dia ser não é difícil imaginar o quanto a gagueira
car por que as mutações parecem afetar de usada no tratamento da gagueira. Enzimas pode prejudicar o nível de realização do indi-
forma tão seletiva apenas os circuitos neurais não mutacionadas, produzidas em laborató- víduo em vários aspectos da vida, sobretudo
relacionados à fluência da fala”, diz ele. rio, poderiam ser injetadas na corrente san- na idade adulta. Ainda que nem todas as
Syuichi Ooki, médico da Universidade Ishi- guínea de uma pessoa com gagueira, de mo- crianças com gagueira transformem-se em
kawa, no Japão, não ficou surpreso com o do que as células afetadas de seu tecido ce- adultos gagos, para cerca de 20% delas o
fato de que as mutações associadas à gaguei- rebral pudessem capturá-las e utilizá-las nor- distúrbio é permanente.
ra estejam em genes envolvidos em um pro- malmente, substituindo assim as enzimas Com a identificação de genes específicos
cesso tão fundamental do metabolismo celu- defeituosas. implicados na origem da gagueira, espera-se
lar. “Genes mutantes podem induzir mudan- Drayna espera que sua pesquisa não só que os cientistas possam finalmente com-
ças biológicas em muitos outros processos transforme a gagueira em um assunto de preender de que forma o cérebro é afetado e
hierarquicamente dependentes, produzindo interesse médico e científico – trazendo-a como essas alterações produzem a forma
um efeito cascata”, diz Ooki. “Portanto, a para a área da biomedicina clínica –, mas que persistente do distúrbio. “Agora, estamos
mutação de genes envolvidos em um proces- também ajude a legitimar definitivamente o aptos a rastrear o distúrbio no nível dos
so metabólico básico pode inesperadamente distúrbio. “Muitas pessoas que têm gagueira neurônios individuais e descobrir exatamen-
afetar aspectos muito específicos do com- dizem que esse distúrbio teve um impacto te que partes do cérebro são mais sensíveis a
portamento humano.” enorme em suas vidas e levou-as inclusive a essas mutações”, conclui Drayna.
Uma característica notável deste estudo é a natureza da via biológica implicada – um
processo bioquímico até então muito pouco provável para explicar a gagueira.
— Simon Fisher, neurocientista, diretor do Instituto Max Planck de Psicolinguística
4. NEWS FEATURE 4
REFERÊNCIAS CITADAS
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