Este trabalho investiga a relação entre histórias em quadrinhos, filmes e games, focando nos super-heróis e seu salto entre mídias. Analisa a estrutura e linguagem das HQs, a mitologia dos super-heróis, e conceitos como transmídia para entender como essas narrativas se expandem. Usa os super-heróis como estudo de caso para demonstrar o fenômeno do salto transmidiático entre HQs, cinema e games.
3. PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Thiago Sanches Costa
O Salto Transmidiático dos Super-Heróis: HQ - Filme - Game
MESTRADO EM TECNOLOGIAS DA INTELIGÊNCIA E DESIGN DIGITAL
SÃO PAULO
2012
5. O SALTO TRANSMIDIÁTICO DOS SUPER-HERÓIS: HQ-FILME-GAME
MESTRADO EM TECNOLOGIAS DA INTELIGÊNCIA E DESIGN DIGITAL
Dissertação apresentada à Banca Examinadora da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como
exigência parcial para obtenção do título de Mestre
em Tecnologias da Inteligência e Design Digital sob a
orientação do Prof. Dr. Luís Carlos Petry.
5
9. resumo
A pesquisa investiga a relação entre os fenômenos digitais da transposição e transmídia no contexto da mútua influência entre a
cultura dos HQs e games e suas repercussões nas estruturas narrativas digitais. Metodologicamente propõe a leitura e o aprofun-
damento das relações entre os conceitos buscando o seu entendimento de processo enquanto fenômeno da cultura digital, identifi-
cando-os em uma ação história anterior à narrativa transmídia: o salto transmidiático. Para tanto, utiliza-se do movimento e história
dos super-heróis, personagens nascidos nas histórias em quadrinhos (HQs) no início do século XX, para demonstrar este caminho e
passagem do conceito de transformação do salto transmidiático para o fenômeno da transposição e o objeto transmídia. Mostra
ainda que o objeto modelar (HQs) possui características filosóficas, psicológicas, culturais e ontológicas que os tornaram protago-
nistas da moderna indústria do entretenimento, a qual não existe senão na pluralidade transmídia. A pesquisa realizada é teórica,
pois se trata de um estudo com vistas a reconstruir conceitos, para a melhoria de fundamentos teóricos. O método utilizado é a
pesquisa bibliográfica, utilizando os materiais existentes acerca do tema, sendo: Scott McCloud e Will Eisner as principais referên-
cias sobre a estrutura e linguagem das HQs; os estudos de Gerard Jones a fonte mais utilizada no tocante à História dos super-
heróis e de seus criadores; Joseph Campbell indicando o caminho mitológico e Richard Reynolds conectando essa visão aos super-
heróis, fundamental para compreender as narrativas que seguem de um suporte midiático a outro; com Janet Murray sendo o com-
plemento perfeito para o entendimento do funcionamento dessas estruturas no ambiente do game digital. Forma-se assim a base
para a discussão do salto transmidiático dos super-heróis: HQ-Filme-Game.
Palavras-chave: História em Quadrinhos, Cinema, Games, Transmídia, Super-Heróis.
9
11. ABSTRACT
This research investigates the existent relations between digital transposition phenomenon and transmedia on a mutual influence
context of comic book and game culture and its repercussions on digital storytelling structures. The methodological proposal is to
read and deepen the relations between different concepts in search of its understanding process as a digital culture phenomenon,
identifying as an historical action previous to transmedia storytelling: the transmediatic jump. For this, it uses superheroes, charac-
ters born in comic books at the beginning of the twentieth century, to show this path and the passage from the concept of transfor-
mation by the transmediatic jump to the transposition phenomenon and the transmedia object. It also show that the model object
has philosophical, psychological, cultural and ontological features that made them leading figures on the modern entertainment in-
dustry – that only exists on transmedia plurality. The research done is theoretical, as it’s a study that looks forward to concept re-
building and to enhance theoretical fundaments. The utilized method is bibliographic research, using prevailing materials about the
theme, such as: Scott McCloud and Will Eisner as the main references about comic books structure and language; Gerard Jones re-
search as the most used source about superheroes and its creators’ History; Joseph Campbell points the mythological way and Rich-
ard Reynolds connect it to superhero, central to comprehend storytelling that flows from a media support to other; and Janet
Murray is the perfect complement to understand how this structures works at the digital game environment. This is how the superhe-
roes transmedia jump, comics-movie-game, discussion base is formed.
Keywords: Comic Books, Movies, Digital Game, Transmedia, Superheroes.
11
13. Este trabalho é dedicado à minha primeira professora, à pessoa que colocou meu primeiro gibi em minhas mãos e
assim me deu de presente a maravilha da imaginação, fazendo tudo isso ser possível: minha mãe.
Tercília Bernadete Sanches Costa
* 1951 - †2012
In memoriam
13
15. agradecimentos
Esta dissertação não poderia ter sido realizada Às irmãs Barbará, Tita e Dani, por
sem o apoio incondicional de minha esposa, Ale- fazerem a minha parte na EVCOM, me
xandra Santos, que foi leitora, editora, conse- dando tempo para dedicar-me ao
lheira e revisora. Seu olhar crítico, firmeza de Mestrado, o meu muito obrigado.
discurso e conhecimento das minhas capacida-
Registro ainda meus agradecimentos
des, elevou a qualidade do trabalho e trouxe pa-
aos colegas e professores do TIDD,
ra fora o melhor de mim.
pelas ideias trocadas, pelo conheci-
Nunca será suficiente o agradecimento ao meu mento expandido e pelo ótimo ambi-
orientador e amigo, Luís Carlos Petry, por todo ente, que estimula a pesquisa e o de-
acompanhamento e apoio no decorrer do Mes- senvolvimento acadêmico.
trado. Sua criatividade foi o estopim que desen-
Aos desenhistas e escritores: Brad
cadeou o processo que gerou este trabalho e
Meltzer, Alex Ross, Mike Deodato,
seu apoio quando pensei em desistir foi funda-
Mark Waid, Karl Kesel, Frank Quitely,
mental.
Ivan Reis, Geoff Johns, Kurt Busiek,
Agradeço também aos meus grandes amigos, Jim Lee, John Byrne, Chris Claremont, Keith Giffen, Jerry Siegel e Joe Shuster: se vocês não tives-
Marcelo Cury e Marcel de Souza, pelos insights, Kevin Maguire, Mark Miller, Alan Moore, Grant Mor- sem sonhado, o meu sonho não existiria. Para o
conversas infinitas sobre quadrinhos, filmes e rison, Neil Gaiman, Jim Aparo, José Luis Garcia- alto e avante!
games, e por gostarem de tudo isso tanto López, Jerry Ordway, J.M. DeMatteis, Dan Jurgens, Finalmente, agradeço a toda ajuda e força re-
quanto eu. Ao Cury, especialmente, pela crítica George Pérez, Marv Wolfman, John Ostrander, Tom cebida da espiritualidade de Luz que sempre me
sem meias palavras no início deste trabalho, que Grummett, Adam Hughes, Gail Simone, Kevin Smith, acompanha. Salve o Caboclo Cobra Coral, salve
me deu forças para avançar e melhorar. Joe Kubert, Will Eisner, Jack Kirby e Stan Lee: meu pai Caboclo Pena Azul.
obrigado por manterem meus heróis vivos.
15
19. Introdução
S
espalham pela cultura ocidental. Essas per-
u rgidas ao final do século sonagens, ainda que tenham nascido nos Es-
XIX, as Histórias em Quadri- tados Unidos da América, tornaram-se uma
nhos (HQs) se consolidaram força reconhecível em qualquer lugar do mun-
como uma das expressões artísticas, do: o Homem-Aranha já teve um seriado japo-
culturais e midiáticas mais marcantes nês, com direito a robô gigante e veículos es-
da metade final do século XX e assim peciais. E o Superman foi agraciado com um
continuam no século XXI. filme realizado totalmente em Bollywood.
Dentre os diferentes tipos de HQs, um E desde seu advento, entre as duas
gênero se destaca em relação aos outros no Grandes Guerras, esses seres fantásticos
sentido de exposição e contato com o público: vêm se expandindo para além da mídia que
o de super-heróis. Recheado de característi- lhe gerou, as revistas em quadrinhos. Essa
cas mitológicas e, por isso mesmo, com ínti- fluidez midiática transforma os super-heróis
mas relações com as fantasias pessoais dos em modelos ideais para o estudo de um fe-
seus espectadores, os super-heróis atraem nômeno que vem sendo alvo de discussões
uma legião de fãs que, mensalmente, adquire desde meados da década de 1980 (ainda que
as revistas contendo aventuras de seres ex- não recebesse este nome): o transmídia.
traordinários como Super-Homem, Homem-
Com o intuito de entender os mecanis-
Aranha, Batman, X-Men, entre outros.
mos que possibilitam o salto de uma produ-
Desde o final dos anos 1930 que os su- ção cultural de uma mídia para outra, este
per-heróis povoam mentes e corações e se trabalho utiliza-se das histórias em quadri- “The Avengers - Os Vingadores” (2012) já é um dos filmes mais
assistidos de todos os tempos.
19
20. Introdução
nhos e, especificamente, dos mais impactan- vendeu aproximadamente 2,5 milhões de unidades tamente na Área de Concentração "Processos
tes personagens nascidos nelas, os super- (somando todas as plataformas) em todo mun- Cognitivos e Ambientes Digitais" do Programa
heróis, para realizar um estudo interdiscipli- do em apenas um mês. de Pós-Graduação em Tecnologias da Inteli-
nar, que vai desde o estudo estrutural das gência e Design Digital da PUC-SP, especifica-
O trabalho aqui apresentado se insere dire-
HQs, passando pela mitologia, até a discus- mente na linha de pesquisa “Design Digital e
são acerca das atribuições do sujeito no am- Inteligência Coletiva”, em função de levantar
biente dos jogos digitais. questionamentos ligados à hipernarrativa,
Justifica-se tal pesquisa, em primeiro sua metodologia e desenvolvimento, seus as-
lugar, pela ausência de estudo nacional que pectos conceituais e conexão com a forma de
relacione HQs, Cinema e Games sob a ótica do recepção do leitor/espectador/usuário.
transmídia. Além disso, o próprio tema trans- Para melhor entendimento por parte do
mídia merece mais aprofundamento – o que leitor e complexidade do estudo, o pesquisa-
esta dissertação também realiza. dor optou pela divisão dos temas, finalizando
Outro fator de destaque nesse âmbito é que, com a interconexão entre eles. Assim, no Capí-
nas últimas décadas do século XX e nas primeiras do tulo 1, é feita uma revisão histórica das HQs,
século XXI, os super-heróis dominaram a indústria do em busca de entender seus princípios forma-
entretenimento. Os dois filmes finais da trilogia dores: a união entre texto e imagem, um ver-
Batman de Christopher Nolan e o arrasa- dadeiro casamento mágico entre razão e
quarteirão “Os Vingadores” arrecadaram mais emoção.
de US$ 1 bilhão somente em bilheteria nos ci- Apresenta-se ainda a estrutura especí-
nemas, e o jogo “Batman – Arkham Asylum” A série iniciada por “Batman—Arkham Asylum” (2009) é considera-
da a que melhor utilizou super-heróis nos games.
20
21. Introdução
fica das histórias de super-heróis, que mos- universalidade e o interesse gerado por es- poder de decisão, sentido de ação e sen-
tram possui características peculiares – e que sa categoria de personagem. do agraciado com muito mais prazer por
se revelam como fundamentais no salto des- conta disso.
É dessa relevância que nascem as discus-
sas personagens para outras mídias.
sões apresentadas no Capítulo 3, no qual o Essa evolução traz mudanças para
É dada uma visão temporal da evolu- transmídia ganha enfoque por meio de diversos os próprios quadrinhos, mas impacta
ção mercadológica dos super-heróis nos autores, como Henry Jenkins, Umberto Eco e Ja- mais ainda o próprio sujeito, que ganha
quadrinhos, indicando como isso deve a- net Murray, o que torna possível a apresentação a possibilidade, no ambiente digital da
fetar sua expansão por outros meios, o do conceito de salto transmidiático – que pode Cultura da Convergência, de resgatar
que abre caminho para o Capítulo 2, em ser vista como a principal contribuição deste tra- seu herói primordial, ele mesmo.
que se aprofunda a questão do impacto e balho para a sociedade.
A viagem é longa e passa por caminhos
representatividade dessas personagens complexos. Então coloque sua capa, vista sua
Iniciando no Capítulo 3 e se completando no
na cultura contemporânea. Mais uma vez, máscara e prepare-
Capítulo 4 está a aplicação dos super-heróis nes-
tudo se inicia historicamente: apresen- se: chegou a hora da
se contexto, como verdadeiro estudo de caso do
tando os primeiros idealizadores dos su- aventura!
universo plástico e líquido do trinômio HQ-Filme-
per-heróis, suas motivações e frustra-
Game. É feita uma comparação entre as três pla-
ções, o contexto sociocultural em que se
taformas midiáticas, suas semelhanças e dife-
encontravam.
renças, para ser possível avançar mais e enten-
A partir daí, com o auxilio da mitologia, é der as reações do sujeito.
feita a comparação entre as narrativas de su-
Sujeito esse que nos gibis e no cinema é es-
per-heróis e o Monomito ou Jornada do Herói
pectador, com maior ou menor grau de interação,
– conceitos que explicam, em grande parte, a
mas que passa a ser usuário no game, ganhando
21
25. CAPÍTULO 1
Histórias em Quadrinhos: magia real, realidade mágica
“Animal Man: 'Listen, just tell me one thing: am I REAL or what?'
Grant Morrison: 'Of COURSE you're real! We wouldn't be here talking if you weren't real’.
‘You existed long before I wrote about you and, if you're lucky, you'll still be young when
I'm old or dead’.
'You're more real than I am’.”
Grant Morrison, Animal Man, Book 3: Deus Ex Machina
S
coletivo da modernidade, tornando-se símbolos in- tar histórias e as intensas reações que cau-
uperman, Batman, Homem dispensáveis para a compreensão da cultura pop e, sam em seus espectadores.
de Ferro, Homem Aranha. por consequência, da própria maneira de entender o 1.1 Mas afinal, o que são Histórias em Quadrinhos?
Esses são apenas alguns mundo atual e futuro.
dos personagens de uma
Esses seres fantásticos nascem em um mei- Para tentar definir as HQs é necessário
categoria única e, com o perdão do trocadilho, o bastante específico, as histórias em quadrinhos buscar sua origem. O mais comum, nesses ca-
superpoderosa: os super-heróis. (HQs), para dali expandir-se para todas as demais sos, é associar o nascimento das histórias em
Mas seu poder não repousa apenas nos mídias: rádio, cinema, TV, web, games... Não há um quadrinhos com a virada do século XIX para o
feitos extraordinários que executam na ficção. É espaço da produção humana em que não se encon- XX. Foi naquela época que chegou às bancas
no mundo dito real que eles se mostram mais tre uma referência, uma imagem ligada à estética “The Yellow Kid” (1895), uma história com temá-
fortes e impressionantes, pois desde seu ad- dos super-heróis. Não há um país do mundo em que tica humorística que é considerada a primeira
vento, no início do século XX, não deixaram de se um desenho de morcego sob fundo preto ou cinza
HQ. Sua publicação ocorria no jornal nova-
espalhar por diferentes meios, em diversas nar- não apareça em camisetas, bonés e canecas. Eles
iorquino World (Moya, 1996). Mas uma análise
rativas. Incorporaram-se assim ao imaginário são parte da mitologia dos nossos dias. E para
mais criteriosa é capaz de demonstrar que os
compreendê-los, é necessário entender as HQs, sua
quadrinhos já estavam disponíveis há muito,
1
Histórias em Quadrinhos no Brasil, Banda Desenhada em Por- linguagem própria, sua forma encantadora de con-
tugal, Comics em Inglês, Comic em Alemão e Bande Dessinée em muito mais tempo.
Francês, são algumas das formas diversificadas de se vernacu-
larizar o mesmo objeto.
25
26. CAPÍTULO 1
Histórias em Quadrinhos: magia real, realidade mágica
Scott McCloud (1993), em Understan- ses dois elementos, o verbal e o imagético, um
ding Comics: The Invisible Art, explica que os sentido de interdependência e complementari-
quadrinhos são “imagens pictóricas e de ou- dade.
tros tipos justapostas em sequência delibe-
Nesse sentido, os trabalhos de Rodolphe
rada, com intenção de transmitir informação
Töpffer, no século XIX, podem ser considerados
e/ou produzir uma resposta estética em seu
como o nascimento da linguagem contemporâ-
espectador”.
nea dos quadrinhos. Ele se utilizava de painéis
A partir dessa definição, um novo nos quais dividia a ação de sua narrativa e, pela
mundo se abre e inúmeras produções huma- primeira vez, as palavras entram na mistura e
nas podem ser encaixadas na categoria “HQ”. se tornam parte indispensável para o entendi-
O próprio McCloud (1993) dá como exemplos mento daquele todo (McCloud, 1993).
os hieróglifos egípcios e a tapeçaria medie-
Saber como surgem e se desenvolvem os
val. Em ambos os casos, seguindo uma deter-
quadrinhos auxilia na busca por uma definição
minada sequência e com uma clara intencio-
nalidade, imagens são colocadas lado a lado,
contando uma história. Podem não se pare-
cer com os quadrinhos como os conhecemos
hoje, mas é evidente a semelhança estrutural.
A mudança evolutiva que faz com que che-
guemos ao modelo atualmente estabelecido
de quadrinhos está em deixar de usar apenas
as imagens para contar histórias, agregando
ao processo as palavras e criando entre es-
Figura 2
Reprodução de obra de Rodolphe Töpffer (retirado da internet)
Figura 1
Reprodução de The Yellow Kid (retirado da internet) 26
27. CAPÍTULO 1
Histórias em Quadrinhos: magia real, realidade mágica
2
Em “Os arquétipos e o inconsciente coletivo” (original de 1954.
do que são as HQs, mas não responde plena- tanto, tem um efeito ritualístico, de trazer à reali- Edição de referência, 2002), Carl Gustav Jung define inconsci-
ente coletivo da seguinte maneira: “O inconsciente coletivo é
mente a pergunta que inicia este tópico: afinal, dade algo que a priori não faz parte dela. Porém, as uma parte da psique que pode distinguir-se de um inconsciente
pessoal pelo fato de que não deve sua existência à experiência
o que são histórias em quadrinhos? É preciso imagens não são a realidade. Ou, melhor di- pessoal, não sendo, portanto, uma aquisição pessoal. Enquan-
to o inconsciente pessoal é constituído essencialmente de
então procurar entender o lado do leitor. Ou, zendo, são apenas um aspecto dela, como na conteúdos que já foram conscientes e, no entanto, desaparece-
ram da consciência por terem sido esquecidos ou reprimidos,
melhor dizendo, do espectador. definição de Ismail Xavier (2005), citando ar- os conteúdos do inconsciente coletivo nunca estiveram na
consciência e, portanto não foram adquiridos individualmente,
Na definição apresentada por McCloud tigo de Maya Deren (1960): mas devem sua existência apenas à hereditariedade”.
(1993), o sujeito da leitura é chamado de
O termo imagem (originalmente baseado em imitação) significa, em
“espectador”. Essa é uma questão importante,
porque “espectador” é muito diferente de sua primeira acepção, algo visualmente semelhante a um objeto ou
“leitor”. Espectador ou, ainda melhor, como colo- pessoa real; no próprio ato de especificar a semelhança, tal termo
cado no original em inglês, viewer, é alguém que distingue e estabelece um tipo de experiência visual que não é a ex-
vê, que é colocado em frente a um objeto e dele periência de um objeto ou pessoa real. (1960, apud XAVIER, 2005:17).
obtém uma visão. Ele pode ou não interpretar
essa visão, mas busca-se desse viewer algum Os quadrinhos são, portanto, espelhos côn-
tipo de reação. E uma reação estética, cheia de cavos e convexos da realidade. São feitos para as
sensibilidade, muito em função das reações massas e representam desejos delas e projetam,
causadas pelas imagens contidas nesse objeto. em certa medida, aquilo que já existe no corpo da
Como aponta Eisner (2008) as HQs, por cultura, mas com nuances próprias. As HQs lidam
meio de suas imagens, lidam com senti- com imagens comuns, no sentido de que são facil-
mentos primitivos do espectador, pois es- mente reconhecíveis, já fazem parte daquilo que
ta é uma arte representacional devotada a Jung (2002) chamou de inconsciente coletivo 2. É
emular a experiência do real. A imagem, por- essa universalidade imagética que garante a ade-
Maya Deren
27
28. CAPÍTULO 1
Histórias em Quadrinhos: magia real, realidade mágica
rência e conexão junto ao espectador. A ideia de Os quadrinhos, independente do tipo de his- bo, o homem moderno tem a necessidade de
que uma imagem possa evocar uma resposta tória que contenham, se caracterizam por espelhar lidar com todos os aspectos de sua complexa
emocional ou sensível (relacionada aos senti- a realidade em seus diferentes aspectos: presente, vida. Assim, o novo fenômeno recupera a força
dos) no espectador é vital para a arte dos qua- passado e futuro (desejado). A leitura de uma HQ é da tradição histórica reinventado em estrutu-
drinhos (McCloud, 1993). Como bem coloca M- um ato estético e também uma busca intelectual, ras materiais e narrativas que são potenciali-
cLuhan: pois o mundo dos quadrinhos é um mundo do jogo, zadas por meio dos recursos técnicos de uma
de modelos, da projeção de situações que se sociedade pós-industrial.
Na década de 30, quando milhões de revistas em
passam em outras partes da vida dos espec- Não é de se espantar, portanto, que a
quadrinhos estavam despejando sangue sobre as
tadores (McLuhan, 2005). imagem associada ao fã de gibis4
cabeças dos jovens, ninguém parecia perceber que,
Somando esses aspectos à visão de Mc- (especialmente o de super-heróis, foco deste
emocionalmente, a violência de milhões de carros
Cloud (1993) têm-se um quadro que pode ex- estudo), seja a do solitário que, neste exato
em nossas ruas era incomparavelmente mais his-
plicar os motivos dos quadrinhos ainda hoje momento, em um quarto mal iluminado deste
térica do que qualquer coisa impressa (2005:248).
serem consumidos e estudados. Ao se utiliza- planeta, sente o peito pressionado pela dureza
rem de um modelo imagético para seu storytelling3, de sua vida, profundamente incomodado com a
as HQs remetem a uma memória genética, à essên- ininterrupta condição de inadequação que sen-
cia tribal do homem – que aprendia como sobreviver te, e encontra em páginas impressas com his-
ao seu ambiente pelas informações gravadas na tórias feitas de imagens acompanhadas de tex-
pedra. tos em caixas e balões a força necessária para
seguir em frente. Os quadrinhos são uma das
Essa mesma lógica continua valendo e, ainda
4
Gibi é o modo popular de designação das HQs no Brasil, que
Marshall que não seja mais necessário aprender a como ma- foi popularizada pela revista homônima. Tratou-se de uma im-
portante referência editorial na área, e que formou uma cultura
tar um búfalo para garantir a sobrevivência da tri-
Mcluhan
nacional e a mentalidade de milhares de fãs. Sua divulgação se
deu como suplemento do jornal O Globo, lançado em 1939
3
Pode ser traduzido como “ato ou ação de contar histórias”. (Gonçalo Júnior, 2004).
28
29. CAPÍTULO 1
Histórias em Quadrinhos: magia real, realidade mágica
melhores formas de escapismo que o homem já Para que tudo isso fosse possível, a ferra- Isto explica em grande parte porque as
foi capaz de criar. menta empregada pela arte sequencial foi o uso de narrativas que são alvo deste estudo, do gêne-
Pode-se dizer, assim, que os gibis podem estereótipos para a representação imagética e
5
ro dos super-heróis, possuem tamanha proemi-
caracterização. Para que o espectador se reconhe- nência entre as HQs. Os gibis de super-heróis
hoje ser vistos como ferramentas para escapar
cesse e se identificasse era preciso generalizar, era resgatam a essência mitológica das narrativas
da realidade, arte e bases para produções em
outros meios, ao longo de seu desenvolvimento assim que se tratava da essência do humano. E é da Antiguidade. Reynolds (1992) aponta que o
foram diversas as funções atribuídas aos gibis. esse modelo que perdura até hoje nos quadrinhos. desenvolvimento do gênero super-herói a partir
da década de 1980, quando muitas obras esti-
As pinturas rupestres e os hieróglifos, que po- Isto explica em grande parte porque as nar-
dem ser chamados de proto-quadrinhos, servi- caram os limites dessa categoria6, veio justa-
rativas que são alvo deste estudo, do gênero dos
am ao propósito historiográfico e educacional, super-heróis, possuem tamanha proeminência en- mente do entendimento em “utilizar o mito do
super-herói para fazer uma declaração calcula-
registrando eventos de toda sorte para refe- tre as HQs. Os gibis de super-heróis resgatam a
rência das gerações vindouras. Colocavam-se essência mitológica das narrativas da Antiguidade. da sobre a cultura que o mito tenta compreen-
também como veículos de reforço mitológico, Reynolds (1992) aponta que o desenvolvimento do der”. Assim, essas produções acabam funcio-
resgatando e formalizando a cultura das popu- nando como um eco de outrora, que ressoa di-
gênero super-herói a partir da década de 1980,
lações. Na Idade Média, o foco da arte sequen- quando muitas obras esticaram os limites dessa retamente no Eu Histórico dos espectado-
cial se voltou para temas religiosos e com dire- categoria, veio justamente do entendimento em res, submergindo-os no grande lago da
memória humana. Mais sobre isso será
cionamento claramente moralizante – um agen- “utilizar o mito do super-herói para fazer uma de-
discutido no Capítulo 2.
te de dominação das massas iletradas, que por claração calculada sobre a cultura que o mito ten-
meio das proto-HQs, recebiam as informações ta compreender”. Assim, essas produções acabam McLuhan (2005) conta como muitos inte-
que dominariam seus imaginários e estabeleci- funcionando como um eco de outrora, que ressoa
6
Os exemplos mais representativos da expansão de possibili-
am um controle invisível sobe suas vidas. 5
Pode-se definir estereótipo como sendo generalizações, ou pressu- dades dos super-heróis da década de 1980 estão em “Batman
postos, que as pessoas fazem sobre as características ou compor- – O Cavaleiro das Trevas” (DC Comics, 1986), de Frank Miller,
tamentos de grupos sociais específicos ou tipos de indivíduos. Klaus Janson e Lynn Varley; e “Watchmen” (DC Comics, 1986), de
http://www.infoescola.com/sociologia/estereotipo/ Alan Moore e Dave Gibbons.
29
30. CAPÍTULO 1
Histórias em Quadrinhos: magia real, realidade mágica
lectuais, de Picasso a Joyce, se apaixonaram e complexo demais, o que não corresponde à verda- por sua vez, deve conhecer ou, melhor dizendo,
pelas HQs, por verem ali “uma autêntica reação de. Trata-se apenas do entendimento de algumas partilhar, da mesma linguagem e referência do
criativa às iniciativas oficiais” e, dessa forma, regras, como a sequência a ser seguida para leitura espectador. Essa comunhão entre as partes
como sendo uma legítima arte popular, que “nos dos quadros, as falas e pensamentos que estão permite que o espectador complete os espaços
desperta para toda aquela vida e todas aquelas (na maioria dos casos) contidas em balões que in- em branco entre quadros com seu entendimen-
faculdades que deixamos de desenvolver na vida dicam qual personagem está falando e, especial- to, sua imaginação. É na mente do espectador
de todos os dias”. mente, a cumplicidade entre espectador e a obra que o “movimento” acontece, que uma persona-
que ele tem em mãos (seja em papel ou digitalmen- gem se move. Assim, por meio da síntese – na
Quadrinhos são um recipiente, um vaso no
te) – pois ali todas as dimensões do tempo estão qual sua mente completa algo que é apenas su-
qual cabe qualquer líquido – do mais denso ao
mais raso, e que se coloca pronto para ser der- ao seu dispor. O espectador pode ir e vir livremente gerido na HQ – que ele torna-se também sujeito
ramado nas retinas dos espectadores e só não o faz por respeitar um “contrato tácito” daquela ação.
(McCloud, 1993). Ou seja, as HQs são um meio. com o criador da narrativa, pois no coração da co- É também na mente do espectador, por
Uma mídia em que histórias são contadas e locação sequencial de imagens com a intenção de esse mesmo mecanismo de síntese, que os de-
que, também, possui regras próprias. demonstrar o tempo está o senso comum da per- mais sentidos, além da visão, passam a inte-
cepção (McCloud, 1993). grar a experiência de leitura dos quadrinhos,
1.2. Estrutura própria Essa “educação” do espectador, porém, é visto que esta é uma mídia mono-sensorial. O
quase instintiva. Ao ter contato com uma HQ, o es- “som dos quadrinhos” vem dos balões de fala e
Essa forma particular de ser dos quadri- das onomatopeias. Os gibis representam, as-
pectador entende muito rapidamente quais são as
nhos exige do seu espectador o domínio desse sim, a arte do invisível e do inaudível, pois o que
regras daquele jogo. Sem muito pensar, imerge em
vocabulário, uma certa “alfabetização quadri- está colocado é apenas parte daquilo que o es-
um mundo no qual o quadro captura o instante,
nística”, como aponta Vergueiro (2006). Mas, pectador apreendeu, é somente um aspecto de
confina em seu espaço uma parte da ação imaginá-
colocado dessa maneira, parece ser algo formal sua experiência (McCloud, 1993).
ria das personagens concebida pelo autor – que,
30
31. CAPÍTULO 1
Histórias em Quadrinhos: magia real, realidade mágica
Nessa estrutura, o quadro (ou painel, drinhos permitiram seu leitor dirigir sua própria
como também é chamado) atua como um indi- experiência da história”.
cador geral de tempo e espaço e como uma ten-
Os quadrinhos têm também a vantagem da
tativa de demonstrar visualmente a passagem
portabilidade. Em qualquer local é possível mergu-
de ambos. Porém, nos quadrinhos tempo e es-
lhar na narrativa e ser mentalmente transportado
paço são o mesmo, indivisíveis, por estarem co-
para outras realidades. Porém, diferente do cine-
locados na mesma dimensão plana – seja no
ma, por exemplo, as HQs dependem totalmente da
suporte papel ou no digital. Essa condição da
emoção que geram, sentimentos nascidos da uni-
linguagem das HQs, que leva seu espectador de
ão de imagem e texto.
quadro a quadro, dá a este sujeito um poder
único em comparação com os outros meios. 1.3 HQ é texto e imagem: um casamento mágico
Pois somente nos quadrinhos é possível avançar Se o cinema trabalha com imagens em mo-
na narrativa na velocidade que se queira, dar vimento, e a literatura gera imagens na mente dos
zoom em qualquer detalhe da cena, retroceder e leitores, o que é então um meio em que imagens e
pular a frente: tudo a qualquer momento, textos são colocados lado a lado com a intenção
com um simples passar de olhos ou folhear de construir uma narrativa com algum tipo de
de páginas. sentido? O nome disso é história em quadrinhos:
Eisner (2008) coloca que a leitura de um termo que começa com “história”, pressupon-
quadrinhos é “em todos os sentidos, uma forma do a narrativa, e termina com “quadrinhos” – que,
de leitura singular”. E seu discípulo Morrison como vimos, são imagens justapostas de maneira
(2011) complementa: “O ritmo de um filme ou um deliberada buscando reações no sujeito especta- Figura 3 - Reprodução de “Batman and Robin #6, Vol. 2 (2012), pág. 2.
show de TV era ditado por seu diretor. Os qua- dor. McCloud (1993) diz também que os quadri- Podem ser observadas as transições de quadros demonstrando a
passagem de tempo e o uso de onomatopeias sugerindo o som.
31
32. CAPÍTULO 1
Histórias em Quadrinhos: magia real, realidade mágica
nhos são “um receptáculo que pode absorver um al é enfraquecida. Mas o contrário também acon- na interdependência, quando um só faz sentido
sem número de ideias e imagens”. tece, já que a poesia se apresenta como palavras ao lado do outro, unindo forças na busca de
Com tanta ênfase nas imagens, como fi- buscando e expressando sentimentos. De outro uma reação maior e mais imersiva do especta-
cam as palavras? A resposta é ao mesmo tem- lado, a imagem de um esquema técnico para a dor. Ao unir texto e imagem, os gibis fundem
po óbvia e complexa: palavras são, elas próprias, montagem de uma máquina nada mais é que um esses dois elementos criando uma situação
imagens. Quando despimos as palavras de seus desenho completamente lógico e racional. Ao es- singular, no qual as narrativas fluem com lógica
sentidos apreendidos e, como crianças sendo crever, ou seja, lidando apenas com palavras, um e fantasia, razão e emoção.
alfabetizadas as separamos, primeiro em síla- autor dirige a imaginação do leitor. Nos gibis, o Os quadrinhos expressam, unindo verbal
bas e depois em apenas letras, o que temos é autor oferece a imagem e é tarefa do espectador e não-verbal, texto e imagem, a comunicação
um conjunto de símbolos, de desenhos, aos encontrar o ritmo daquela narrativa, que lhe foi básica entre as pessoas, que combina estilos
quais foi atribuído um sentido, um valor. apenas sugerido pela forma pela qual as palavras diferentes de fala, linguagem corporal e postu-
e os desenhos foram colocados. ra. Pois ainda que seja seguida a norma culta
Porém, ainda que palavras e imagens se
equivalham, o processamento de uma e outra O texto e a imagem, esses irmãos gêmeos na escrita, a imagem transmite informações
pelo espectador se dá de maneira distinta, fru- nascidos da evolução humana, reencontram-se de que complementam o sentido da narrativa. Po-
to de toda a educação recebida que coloca em diferentes formas nas HQs. Por vezes as palavras de-se afirmar que reside aí um dos elementos
lados separados texto e imagem, cada uma cui- apenas descrevem as imagens, em outros momen- que mais contribuem para a popularização des-
dando de uma área: palavras dominando a razão tos provém a elas uma espécie de trilha sonora. ta produção. Ao “falar” como o espectador, as
e imagens responsáveis pela emoção. Podem ainda amplificar sentimentos e sensações, HQs criam vínculos com seu receptor, em uma
ou serem colocados sem conexão explícita um com relação na qual a empatia sobressai como ele-
Flusser (1985) ensina que se a produção
o outro, dando ao espectador a tarefa de buscar mento predominante.
de imagens cai em desuso, a imaginação diminui;
significado. Para Eisner (2008), a leitura de quadri-
e se o texto perde força, a capacidade conceitu-
A verdadeira mágica, no entanto, acontece nhos se dá por uma expansão do texto, pois a
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33. CAPÍTULO 1
Histórias em Quadrinhos: magia real, realidade mágica
leitura tradicional (como num livro) resultaria Ao forçar o espectador a entender uma se- te diversas entre si, como uma tira de humor
numa conversão de palavras para imagens, feita quência ordenada de maneira intencional de pala- publicada em um jornal e uma história mais lon-
na mente do leitor. Os quadrinhos então acele- vras e, principalmente, de imagens, cria-se uma ter- ga editada na forma de graphic novel 8.
ram esse processo, por já apresentarem o fator ceira identidade prevalecente, um todo unificado.
Trata-se de uma visão coerente e alinha-
imagético. Wolk (2007) examina a questão da Assim, é possível dizer que os quadrinhos são uma
da com a realidade, como é possível atestar ao
seguinte maneira: Gestalt 7, mais do que texto e imagem somados,
visitar qualquer banca de jornal ou livraria. Nes-
mas sim algo único, que possui uma linguagem pró-
ses espaços encontra-se desde os gibis infan-
pria e coerente. E que enquanto veículo (meio), os
Quadrinhos não são prosa. Quadrinhos não quadrinhos possuem a capacidade de expressar tis, como a consagrada Turma da Mônica e os
são filmes. Eles não são um meio direcionado toda a complexidade de sentimentos, sons, ações e clássicos Pato Donald e Mickey, passando pe-
pelo texto com imagens adicionadas; eles não ideias que a imaginação humana for capaz de criar. los mangás 9
de temas diversos, chegando até
são o equivalente visual de uma narrativa em às HQs eróticas, de autores como Milo Manara
prosa ou a versão estática de um filme. Eles 1.4. Gêneros múltiplos e Paolo Serpieri. Isso sem contar as tiras publi-
são sua própria coisa: um meio com seus pró- Se a pluralidade humana é espelhada nos cadas diariamente em praticamente todos os
prios dispositivos, seus próprios inovadores, quadrinhos, isso significa que todo tipo de história jornais de grande circulação.
seus próprios clichês, seus próprios gêneros, pode ser contada ali. Ramos (2010) segue a linha de Para a categoria de personagem foco
armadilhas e liberdades. O primeiro passo em denominar quadrinhos como um grande rótulo o deste estudo, o super-herói, o tipo de HQ estu-
direção a uma leitura atenta e a apreciar qual pode ser aplicado a produções extremamen- dada será o de histórias longas, que podem ser
completamente os Quadrinhos é entender is-
publicadas em revistas
so. (WOLK, 2007:14) 7
Gestalt é uma palavra alemã sem tradução exata para o por-
tuguês. De acordo com a teoria gestáltica, não se pode ter seriadas mensais ou
conhecimento do "todo" por meio de suas partes, pois o todo é
maior que a soma de suas partes: "(...) "A+B" não é simples- na forma de coleções
mente "(A+B)", mas sim um terceiro elemento "C", que possui
características próprias" (Revista Mente e Cérebro, 179, pgs. 88 encadernadas (graphic
-93. Editora Duetto. São Paulo, 2007). http://pt.wikipedia.org/
Douglas Wolk wiki/Gestalt novel). Dessa maneira,
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34. CAPÍTULO 1
Histórias em Quadrinhos: magia real, realidade mágica
8
O termo graphic novel é comumente utilizado no Brasil sem ser
traduzido e remete, usualmente, a edições mais luxuosas, que sas propriedades intelectuais. Assim, Superman, até o advento da colorização por computador
seguem estética dos livros.
Batman, Mulher-Maravilha, o veloz Flash e o rei dos dominaram as narrativas – fixaram de maneira
9
Mangá é o nome originalmente dado aos quadrinhos de origem
japonesa. Atualmente configuram um estilo de desenho e nar- mares Aquaman compartilham um mesmo conti- decisiva as personagens, alçando-as ao estado
rativa. Existem mangás produzidos no Brasil e nos EUA, por
exemplo. nuum espaço-temporal na DC Comics. Enquanto de ícones. Ao se repetirem seguidamente, as
Super-Herói passa a ser o gênero, por possuir Homem-Aranha, Capitão América, o selvagem Wol- cores passam a representar as próprias perso-
características bastante marcantes na compa- verine e o Incrível Hulk convivem na Marvel Comics. nagens. A combinação de azul, vermelho e ama-
ração com outras produções também encontra- Continuidade: os eventos apresentados nas relo recorda o Superman, bem como o cinza,
das nos quadrinhos, tanto em termos estrutu- histórias de super-heróis continuam válidos, edição azul escuro e amarelo evocam o Batman, e as-
rais, quanto temáticos. Entre esses itens dife- após edição. Um exemplo que ilustra bem essa si- sim sucessivamente com os outros super-
renciadores, pode-se destacar: tuação é o seguinte: se em uma edição de Cebolinha heróis clássicos.
a personagem-título terminar uma história levando
Maniqueísmo: Ainda que na década de Conflito: as personagens dessas histó-
uma surra da Mônica que o deixe de olho roxo, esse
1960, Stan Lee e a Marvel Comics tenham revolu- rias estão em oposição constante. Pode ser
fato não será citado na revista do mês seguinte.
cionado o gênero Super-Herói apresentando (na maior parte das vezes é) contra um vilão
Já numa revista Batman, se o Homem-Morcego ti-
personagens mais “humanas” e menos que ameaça o estado vigente e/ou ameaça ino-
ver a coluna quebrada por um de seus inimigos, ele
“mitológicas”, nas histórias de Super-Herói o centes, pode ser contra outros heróis (uma
irá andar de cadeira de rodas, pelo menos por um
Bem e o Mal estão sempre bem definidos. Isso narrativa bastante tradicional no gênero) ou
tempo.
pode até não ser declarado de início ao especta- mesmo conflitos internos, com suas próprias
Cor: ainda que existam versões de histórias
dor, mas no decorrer da narrativa deixa-se claro consciências.
de super-heróis em preto-e-branco, a cor é elemen-
quem são os mocinhos e quem são os bandidos. Uniformes: as fantasias vestidas pelas
to constante desde a primeira revista de super-
Universo compartilhado: as personagens personagens são presença infalível no gênero.
heróis, Action Comics nº 1. Como aponta McCloud
coexistem em um mesmo universo ficcional com- Reforçam seu posicionamento icônico ao repre-
(1994), no caso específico, as cores primárias – que
partilhado pertencente às editoras donas des- sentarem não apenas a personagem em si, mas
34
35. CAPÍTULO 1
Histórias em Quadrinhos: magia real, realidade mágica
todo conceito que os autores pretendem pas-
sar em suas narrativas. Um homem que se veste
de morcego quer ser visto como um ser da noi-
te, amedrontador, capaz de impedir que crimes
sejam realizados. Bem como um soldado vestido
com as cores de seu país está pronto para re-
presentá-lo, inclusive de maneira ideológica, nas
linhas de frente contra as tropas inimigas.
Fantástico: a temática do gênero super-
herói pressupõe sempre o fantástico. Em geral,
isso se apresenta por meio dos protagonistas,
que possuem alguma característica sobre-
humana. Esse atributo pode ser advindo de e-
xaustivo treinamento, infortúnios diversos
(como ser mordido por uma aranha radioativa
ou ser atingido por uma bomba), origem em pla-
netas distantes da Terra ou mesmo uso de um
uniforme que lhe confira algum poder. O fantás-
tico se mostra pela possibilidade de realização
de feitos que não poderiam ser alcançados no
mundo real. Figura 4 - Reprodução das capas de “Batman“#497, Vol. 1 (1993) e “Legends of the Dark Knight” #60 (1994).
Demonstração do universo compartilhado, em que as narrativas circulam por vários títulos e a continuidade faz com que fatos ocorridos em uma edi-
ção continuem valendo em nas subsequentes: a espinha quebrada no mês de julho/1993 resulta em cadeira de rodas em maio/1994
35
36. CAPÍTULO 1
Histórias em Quadrinhos: magia real, realidade mágica
É evidente que possam existir (e certa- A versão livro, nos dias atuais, é muito utili- tos deles resgatados dos pulps 10, romances
mente existem) histórias desse gênero que não zada especialmente nas HQs de super-heróis. As rápidos vendidos em bancas de jornal, barbeari-
possuam uma ou mais dessas características. histórias que são publicadas mensalmente no for- as, farmácias dos Estados Unidos da América
Bem como nem toda HQ colorida é de super- mato revista são posteriormente agregadas em (EUA) no início do século XX. Assim, o nascimen-
herói, por exemplo. Mas esses elementos pontu- encadernados, com capa em papel mais nobre e um to dessa produção ocorre na América do Norte,
am o modelo de gibi que serve de base para este aspecto mais próximo dos livros do que de revistas. mas logo se espalha pelo mundo.
estudo e possibilitam o aprofundamento em de-
Ambos os formatos foram aprimorados pe- É o foco comercial dado pelos editores
mais questões pertinentes ao entendimento
las técnicas de impressão, mas essencialmente, dos EUA que consolida as HQs enquanto meio e
completo do tema.
continuam os mesmos desde seu início. No caso possibilitam sua expansão, em função da popu-
1.5. Para chegar ao público das revistas, sua popularização maior ocorre na larização atingida. Isso, de forma alguma, dimi-
No início, as HQs eram distribuídas pelos década de 1930, quando muitas empresas utiliza- nui as capacidades artísticas dessa produção,
jornais, como um chamariz para o público geral vam essas “revistinhas” como um item promocional muito menos seu potencial influenciador da cul-
e, com um pouco mais de atenção, para as cri- a ser distribuído a quem enviasse cupons juntados tura. Pelo contrário, apenas reforça esses as-
anças – que influenciavam seus pais na compra por compras sucessivas de um determinado produ- pectos, pois seria míope negar ou mesmo igno-
de um ou outro periódico noticioso em função to ou marca. Ou simplesmente como um brinde em rar o que representa para a essência do Oci-
de encontrar nele suas tiras favoritas. função de alguma aquisição em uma loja específica. dente contemporâneo tudo que é e foi produzi-
Tratava-se, em todos os sentidos, de um produto do culturalmente nos Estados Unidos da Amé-
Observando essa impulsão nas vendas
cultural muito bem acabado, o que perdura até hoje. rica desde o início do século XX.
causadas pelos quadrinhos, já no início do sécu-
lo XX editores passam a reunir as tiras de su- Em seu desenvolvimento, os gibis iniciam com Naqueles romances que inspiram os pri-
cesso na forma de revistas e livros para vendê- a sátira política e social para, posteriormente, re- Os pulps recebem esse nome por serem publicações feitas
10
com papel de baixa qualidade, criado a partir da polpa, um sub-
los em bancas e até mesmo livrarias. tratar narrativas de humor mais leve e muitas a- produto da produção de papel. Esses livros ganharam o merca-
do dos EUA no início do século XX. Mais sobre o assunto em
venturas fantásticas com assuntos diversos, mui- http://pt.wikipedia.org/wiki/Pulp
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37. CAPÍTULO 1
Histórias em Quadrinhos: magia real, realidade mágica
meiros gibis eram contadas histórias de guerra, evoluíram. Se no início as bancas e outros locais, quenos comércios de bairro, nos quais os qua-
crimes, horror e aventuras com heróis. Essas que já vendiam pulps, eram onde se podiam encon- drinhos eram encontrados fartamente, perdem
narrativas são transferidas para os quadrinhos trar gibis novos toda semana, na década de 1970 cada vez mais espaço para as grandes lojas de
começam a surgir nos EUA as primeiras comic
e, em ambos os casos, os temas resgatam pro- departamentos e para os shopping centers. A
shops, que se tornam mais do que simples pontos
jeções de vontades e anseios, de buscar a cria- de venda: são o ambiente perfeito para a nascente televisão também começa a atrair mais e mais
ção de uma realidade diferente da existente. Ou cultura de fãs. a atenção do público, que escolhe um meio mais
seja, de imaginar. “quente” para dedicar seu tempo. O clima era de
Nos EUA, os quadrinhos como um todo havi- racionalismo, não havia espaço para fantasia –
Dessa maneira, as histórias em quadri-
am passado por altos e baixos, do início do século pois uma nova guerra, ainda que fria, se iniciava
nhos consolidam-se como produto cultural ple-
XX até a década de 1970. O auge, em termos de tira- e era preciso trabalhar forte para ficar à frente
no, ainda que de baixa resolução, no papel. Ta-
gem, havia sido nas décadas de 1930 e 1940. Aven- da ameaça vermelha. E assim os gibis, em linhas
manho é o seu impacto, que continuam existindo
tura, Romance, Western, Humor e Super-Heróis e- gerais, perdem leitores.
há mais de um século e ainda estão ativas atu-
ram os gêneros que dominavam as produções e a-
almente. Além disso, as narrativas (imagéticas Entre os diferentes gêneros, os gibis de
traíam o público, não só de crianças e jovens, mas
e textuais, como sempre nos quadrinhos) nasci- super-heróis perdem espaço para os gêneros
também de adultos. Isso segue até a II Grande de Terror, Western e Romance. Esses continuam
das neste meio, muito em função de sua carac-
Guerra, quando os quadrinhos servem como propa- interessando ao público, ainda que com um nível
terística híbrida, se prestam a ser base para de vendas menor, comparando com as décadas
ganda de guerra dos Aliados, elevando o moral das
produtos culturais em diversos outros meios: de 1930 e 1940. Mas nenhum deles deixa de exis-
tropas e aliviando a realidade de quem ficou em ca-
no início do século XX, o rádio; nas últimas déca- tir, mesmo com intensa campanha contrária. O
sa. Vive-se a chamada “Era de Ouro” das HQs.
das do século XX e primeiras do XXI, o cinema, a desafio, porém, não estava apenas na conquis-
Pós-guerra, o contexto cultural muda. Os pe- ta do público.
televisão e os games.
Para que continuassem chegando ao públi- Como os gibis são chamados em inglês de comic books, as lojas em que
11
esses itens são vendidos são chamadas de comic shops. Esse termo é
co, os modelos de distribuição de HQs também também utilizado no Brasil.
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38. CAPÍTULO 1
Histórias em Quadrinhos: magia real, realidade mágica
1.6. Gibis como inimigos do sistema início a “uma cadeia de pensamentos indesejáveis e
perigosos”. Tudo de ruim para aquela época hipócri-
Em 1954 chega ao mercado o livro
ta e sensível do pós-guerra nos EUA estaria expos-
“Seduction of the Innocent”, de Fredric Wer-
to nos quadrinhos, influenciando as jovens mentes:
tham, psiquiatra alemão radicado nos EUA. A
comunismo, sexo, crime, drogas e homossexualismo.
publicação, em linhas gerais, indicava que as
Os conceitos de Wertham podem ser sintetizados
histórias em quadrinhos incitavam comporta-
no pensamento de que mesmo o Superman era um
mentos errados nos jovens leitores, entre eles o
perigo, pois ensinava as crianças que todos os
homossexualismo, cuja representação maior es-
seus problemas poderiam ser resolvidos com força
taria com a dupla de personagens Batman e Ro-
física.
bin (Moya, 1996; Trindade, 2010).
Como resultado dessa iniciativa, um merca-
O livro foi amplamente divulgado e bem
do que já não andava muito bem acabou não aguen-
aceito na época marcada pelo Macarthismo 12
tando a pressão e diversas publicações saíram do
quando qualquer coisa parecia trazer algum ti-
mercado, especialmente nos gêneros Policial, Super
po de ameaça. Com os gibis não foi diferente.
-Heróis e Terror. Outra consequência foi a criação,
As afirmações do “Sinistro Doutor W.”, por parte da associação americana de editores, do
como o autor Grant Morrison (2011) carinhosa- Comics Code Authority, um escritório de censores
mente o apelida, são de que os quadrinhos dão responsável por “agraciar” com um selo aprobatório
Do fim da década de 1940 até quase o final da década de 1960
12
os quadrinhos que se enquadrassem à sua linha de
uma onda de caça ao comunismo tomou conta dos Estados
Unidos atingindo especialmente a área cultural, num processo conduta (Jones, 2004).
conhecido como “caça as bruxas”. Autores, cineastas, atores e
outros artistas foram acusados de ligações com a “ameaça
vermelha” vinda da antiga União Soviética. Leva o nome Macar- Entre os pontos que o código ditava esta- Figura 6 - Excerto do livro, publicado na popular revista
thismo em função de seu principal difusor, o senador norte- "Reader's Digest". É possível ler o título: "Comic Books - Blue-
americano Joseph McCarthy. vam: print for Delinquency": Revistas em Quadrinhos - Modelos para
a Delinquência
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39. CAPÍTULO 1
Histórias em Quadrinhos: magia real, realidade mágica
- Crimes não devem nunca ser apresentados de ser eliminados.
maneira a criar simpatia pelos criminosos, pro-
No início, o Código realmente funcionou co-
mover a desconfiança das forças da Lei e Justi-
mo uma espécie de censura, ainda que não fosse
ça, ou simplesmente inspirar outros a terem o
esse seu posicionamento declarado. A lógica era:
desejo de imitar criminosos.
submeta sua HQ, se ela cumprir todos os requisi-
- Em todas as instâncias o bem deve triunfar tos, receberá o selo. Naquele contexto, isso gerou
sobre o mal e os criminosos serem punidos por um posicionamento dos anunciantes, que faziam
seus atos errôneos. propaganda apenas nas revistas que estavam em
- Mulheres devem ser desenhadas realistica- conformidade com o Comics Code.
mente, sem exagero de nenhuma qualidade físi- Do ponto de vista criativo, as histórias que
ca. surgem a partir da vigência do Código passam a
- Cenas de violência excessiva são proibidas. Ce- ser mais infantis. Personagens como Batman, por
nas de tortura exemplo, que sempre foi um combatente do crime
brutal, uso exces- urbano (muito baseado no Sombra, dos pulps, co-
sivo e desneces- mo veremos nos capítulos seguintes), passa a en-
sário de facas e frentar vilões de outros planetas e dimensões, fa-
revólveres, agonia zer viagens no tempo, entre outras invencionices
física, crimes san- que o afastavam do risco de não ser aprovado.
guinolentos e re- Esse processo continua até pelo menos
pulsivos devem meados da década de 1960, quando autores un-
Figura 8— Reprodução da capas de “Batman“#93, Vol. 1 (1955)
derground passam a desafiar e Na edição, Batman e Robin viajam no tempo, até a pré-história,.
Figura 7 - Selo de aprovação colocado na capa das Onde encontram o^”Batman Homem das Cavernas”. Na capa vê-
revistas em quadrinhos a partir de 1954 se claramente o selo do Comics Code.
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40. CAPÍTULO 1
Histórias em Quadrinhos: magia real, realidade mágica
colocar suas produções na rua sem se preocu- possibilidade de reembolso. As revistas não vendi- cado de HQs desse gênero poderia se extinguir.
par se elas possuíam ou não o selo de aprova- das eram devolvidas para o distribuidor, que por Tudo muda com a iniciativa de um pro-
ção na capa. E isso só ocorre por conta da mu- sua vez as devolvia para a editora, que reembolsava fessor de inglês e vendedor de gibis chamado
dança no sistema de distribuição. os valores de toda a cadeia. Aliás, com um agravan- Phil Seuling. É ele que percebe que aquele mode-
As primeiras comic shops nascem de lo- te: as revistas nem precisavam ser fisicamente re- lo de negócios iria acabar com o mercado mais
jas de produtos naturais, de discos, roupas, tornadas. Era só dizer que se perderam ou não fo- cedo ou mais tarde. Seuling então se aproxima
entre outros produtos. Eram tempos de contra- ram vendidas para receber o reembolso. Funcionan- das editoras e oferece um novo negócio. Nada
cultura, de desafiar o establishment com o Flo- do assim, as fraudes eram constantes e era bas- mais de pagar por revistas devolvidas. Por um
wer Power, de questionar a autoridade. tante comum encontrar revistas ainda novas sendo desconto de 50% no preço de capa (que, poste-
vendidas abaixo do preço de capa, como encalhe. riormente chegou a 60%), ele diria exatamente
1.7. Independência ou morte
Esse sistema também distribuía de maneira quantas revistas seriam vendidas e ficaria com
Para a distribuição de gibis, a autoridade errática as revistas. Como não havia um controle todas, mesmo as não comercializadas, para
eram as empresas responsáveis pela distribui- mais forte por parte das editoras e nem pressão vender aos fãs que perdessem algum número.
ção de revistas nos EUA. Essas companhias fa- por parte do público, as distribuidoras deixavam A mudança para as editoras era muito
ziam a ponte entre as editoras e os pontos de praças sem receber material ou não entregavam forte. Elas poderiam estimar melhor sua produ-
venda, entregando semanalmente cargas de todos os títulos em todos os locais possíveis. ção, teriam um ganho financeiro considerável
quadrinhos para bancas, farmácias, postos de
Para as revistas de humor, por exemplo, isso evitando pagar reembolsos e teriam a garantia
gasolina, barbearias, entre outros pequenos co-
não era um grande problema. Mas para as de super de que seu público-alvo efetivamente receberia
mércios, que vendiam HQs 13.
-heróis, que tinham na continuidade um de seus pi- seus produtos.
O sistema se baseava totalmente na lares, essa distribuição falha era um golpe fortíssi- Assim nasce o Direct Market (mercado
Conforme mostra matéria do The Comics Journal, edição 277
13 mo. Na década de 1970, a situação chegava ao pon- direto), que é a base até hoje do sistema de
(Julho de 2006), disponível em http://classic.tcj.com/history/a-
comics-journal-history-of-the-direct-market-part-one/ to de quem trabalhava na área acreditar que o mer-
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41. CAPÍTULO 1
Histórias em Quadrinhos: magia real, realidade mágica
distribuição de HQs nos EUA 14. Começou com as tos a ousar. Por outro lado, o sistema de distri-
revistas de super-heróis, mas acabou sendo o buição via comic shops criou um tipo de intera-
Assim, o mercado de quadrinhos de super-
modelo de distribuição padrão de todos os gê- ção entre consumidores e produtores de conte-
heróis que agonizava nos anos 1970 ganha um novo
neros de quadrinhos. údo que alterou profundamente a maneira de
ânimo na década seguinte, com um número cres-
ser das HQs de Super-Heróis: sabendo que ha-
Baseadas firmemente nesse sistema é cente de compradores de revistas surgindo a cada
veria um público fiel e interessado na continui-
que proliferam as comic shops, lojas especiali- dia, auxiliado pela imensa rede de lojas surgida e
dade, pois esse era um elemento de identidade,
zadas em quadrinhos e demais produtos rela- também por uma renascença no gênero, que evolui
catalisador daqueles fãs, os editores cada vez
cionados, como pôsteres, camisetas e brinque- para a além das histórias rasas de seres superpo-
mais aprofundavam suas narrativas – ao ponto
dos. Nessas lojas, os fãs tinham a certeza de derosos inevitavelmente vencendo engenhosos
que encontrariam as revistas que desejavam, vilões. Obras como “The Dark Knight Re-
visto que as mesmas faziam pedidos às edito- turns” (1986)15 de Frank Miller, e
ras confiando justamente na presença desses “Watchmen” (1986) de Alan Moore e Dave Gib-
compradores fiéis. bons, já citados aqui, resignificam os gibis de
Para os donos dessas lojas (a imensa super-heróis, trazendo-os para a atualidade e
maioria deles fãs de quadrinhos como seus cli- dando a eles mais uma vez a relevância que
entes), o importante era fazer as produções possuíam em outros tempos, colocando-os na
chegarem ao público. Por isso, ter ou não um trilha que percorrem até os dias de hoje.
selo de aprovação de um órgão censor na capa 14
Processo similar ocorre no ano de 2012 no Brasil. A principal
editora de quadrinhos de super-heróis, a Panini Comics, para
da revista pouco importava. O importante era o relançamento do Universo DC no país, dentro da iniciativa
chamada de “Os Novos 52”, comercializa alguns títulos apenas
satisfazer o desejo constante dos espectado- nas comic shops brasileiras, para ter maior controle da tiragem e
distribuição.
Figura 9 — Capas de Watchmen #1 e “Batman—The Dark Knight
res – o que acabava auxiliando, ao mesmo Informações disponíveis em http://www.osnovos52panini.com.br
Returns” #1, ambas de 1986. Nas imagens, já se denota a te-
15
No Brasil, “O Cavaleiro das Trevas”. mática mais adulta: o sangue em Watchmen e a noite tempes-
tempo, aos criadores que estavam dispos- tuada de Batman.
41
42. CAPÍTULO 1
Histórias em Quadrinhos: magia real, realidade mágica
de nas décadas de 1990 e 2000 ser praticamen- bi, não só de super-herói, mas principalmente deste Essa situação começa a mudar apenas
te impossível para alguém que quisesse come- gênero. quando a indústria cinematográfica busca a
çar a acompanhar as aventuras de um super- fonte super-heróica dos quadrinhos para ten-
Assim, o que antes eram algo extremamente
herói qualquer fazê-lo sem ter que procurar pelo tar encantar as massas sedentas por figuras
popular, distribuído até como brinde de lojas de de-
menos algumas histórias dos cinco anos anteri- que preenchessem o vazio mitológico de suas
partamento começa a se fechar em um mundo pró-
ores. Somente assim era possível entender o existências.
prio, acessível apenas aos seus iniciados. É verdade
que estava acontecendo àquela determinada Os super-heróis despertam o homem
que na década de 1990 houve um aumento do inte-
personagem. moderno para o confronto com sua fragilidade
resse do público fora desse “mundinho”. A edição
Como será visto no Capítulo 3, o fã é número 1 da revista “X-Men” (1991) escrita por Chris frente à realidade da Máquina e do Sistema,
fundamental para o processo transmidiático, Claremont e desenhada por Jim Lee vendeu espan- tão característicos no pós Revolução Industrial.
pois é ele que abre o caminho para os demais tosos 8 milhões de cópias, tornando-se recorde ab- É por meio de super-homens de capa e
espectadores no consumo das produções em soluto na História do gênero. Esse sucesso faz sur- cueca por cima da calça que o fantástico se
outras mídias, notadamente quando concorda gir para além da DC Comics e da Marvel, as maiores apresenta, multiplicando capacidades e possi-
com a tradução realizada sobre seu objeto de referências em produção de narrativas nesse tema, bilidades. O super-herói consagra o conceito de
adoração quando da transposição para outros a Image Comics, editora fundada por artistas dis- heroísmo e o amplifica tornando-se, pela via da
meios. E essa cultura de fãs é reforçada com- sidentes dessas duas casas (entre eles o próprio cultura de massa emergente, o ícone da moder-
pletamente com as comic shops. Ali surge o que Jim Lee). nidade, na qual o tempo imaginário que compre-
alguns chamam de superhero ghetto . Quem 16
ende tanto o tempo histórico como o dos qua-
Mas ainda que aquele momento fosse bom
não era um visitante assíduo das lojas especia- drinhos e as experiências decorridas dentro de-
comercialmente, em termos de acessibilidade, as
lizadas, raramente colocava as mãos em um gi- les ganham uma amplitude global.
narrativas continuaram demasiadamente intrinca-
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Como visto em matéria do The Comics Journal¸ disponível em das e, dessa maneira, afastando as pessoas em Chega o tempo de voar: para o alto e a-
http://classic.tcj.com/history/a-comics-journal-history-of-the-
direct-market-part-one/8/ geral daquelas personagens. vante!
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