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De uma perspectiva
     relevante

Acabei aceitando. Depois de dezenove
vezes seguidas, aceitei. Ela não parava de
me aporrinhar. Era de dia, era de noite, era
nos intervalos, era no recreio, era na
internet, eram nos bate papos, era por sms,
era por pombo correio, era por telegrama,
era por carro de mensagem, era em
qualquer tempo que tivéssemos tempo.
Me acumulava de “vamos sair, meu
amor?”, como se já não estivesse me
transbordando daquela pergunta. Era como
se eu fosse um balão e as vezes que ela me
perguntasse fosse o gás. Uma hora eu iria
estourar. Mas não deixei.

Ela tentou combinar comigo o lugar que
iríamos se não houvesse jogo do meu time
ou qualquer outro pequeno motivo para eu
desmarcar, mesmo que esta fosse minha
vontade soberana.

- Mô, onde vamos? – disse ela depois de eu
ignorar mais de dez ligações.

- Decide aí. Não estou nem aí para o lugar
que seja.

- Que tal aquele restaurante ao ar livre
perto do chafariz e do teatro, onde uma
banda de folk toca ao vivo e as mesas são
todas banhadas em rosas vermelhas? Acho
lá tão lindo e apaixonante.

- Prefiro pegar um misto no trailer do Betão
e depois uma cerveja no Bar do Miltinho.
Se bobear até uma sinuca depois.

- Que fofo amor. Você que sabe. Qualquer
escolha sua será a minha. Te amo.

Ela combinou no sábado à noite, data que
fiz questão de não me importar. Por sorte,
meu time jogaria no domingo. Farra,
linguicinha na chapa, torresmo e futebol
são as ornas desse dia.

Cedi à pressão e fomos nesse restaurante.
Nos assentamos mais longe para que
pudéssemos conversar melhor. Ao lado de
nossa mesa, um casal de senhores que
exalavam mais de 50 anos juntos. Ela,
encantada, disse:

- Olha nós daqui a alguns anos, amor.

- Tomara Deus que não.

- Como você é lindo. – disse apertando
minha bochecha.

O garçom trouxe o cardápio. Pedi um prato
pesado, sem frescuras. Ela, com suas
saladinhas. Não sei como conseguia se
manter viva fazendo uma alimentação
semelhante ao de uma vaca. Odiava salada;
ela adorava. Dizia que era porque não
queria engordar. Apenas retrucava dizendo
que não era para se preocupar, pois poucas
pessoas são privilegiadas com o poder de
poder usar calças da mesma largura de
uma roda de trator assim como ela o fazia.
Ela me enchia de abraços com essas
afirmações.

Minutos depois o garçom trouxe meu
vatapá com jerimum, frango a molho
pardo, uma lasanha de camarão e algumas
mandiocas. Para ela, uma salada de agrião,
tomates, rabanete e algumas cebolinhas
picadas.

- Quer um pouquinho, amor?

- É claro que eu aceito.

- Toma, meu bebê. – disse enquanto
direcionava o garfo até minha boca.

Peguei o garfo e joguei toda aquela merda
no lixo.

- Acho que vou querer mais um pouco.

- Nossa, meu bem, assim eu vou ficar sem.
- Me dá logo.

Novamente peguei e joguei mais uma
porção no lixo. Fiz um favor a ela.

- Metade do meu prato foi pelo lixo. Nossa,
como você é carinhoso, meu lindo.

A banda de folk começou a tocar. Nem quis
saber o nome. Odiava toda aquela
baboseira entediante. Ela estava toda
empolgada, sorridente e até batendo
palminha feito uma foca.

Após algumas músicas, o vocalista começou
a procurar por casais no restaurante.

- Vou precisar de um casal para vir até aqui
e improvisar uma situação romântica
enquanto cantamos a música bem
baixinho. É tipo um clipe ou um filme.
Cortesia da casa. Quem se candidata?

Ninguém levantou a mão. Ninguém seria
estúpido o suficiente a ponto de se
entregar a essa vergonha alheia. Estava
quase me escondendo debaixo da mesa
para que não me visse. Mas ela fez
questão. Ergueu os braços tão alto a ponto
de quase furar as telhas do local com a
ponta dos dedos. Ele nos escolheu. Quis
fazer como um avestruz e cavar e esconder
minha cabeça no solo.

- Vocês podem dizer o que quiserem um
para o outro. Nós da banda apenas
tocaremos a música enquanto isso. Sintam-
se à vontade.

Ela, esbanjando aquele sorriso de meio
metro de clareamento dental, pegou nas
minhas duas mãos e começou a balançar.
Inclinou a cabeça para a esquerda e deixou
os olhos brilharem junto dos reflexos da
luz. Colocou as mãos nos meus ombros e
começou a desembuchar.

- Um dia eu peguei umas sementes de
laranja e me assentei perto de um quintal.
Pensei que era questão de plantá-las e
esperar que nascesse um pé lindo e cheio
de frutos. Isso tudo me remeteu ao nosso
amor. As sementes seriamos nós. A água
para nos fortificar, o tempo. Cresceríamos
juntos e um dia seriamos um lindo pomar
representando uma família, uma união e
uma felicidade compartilhada.

- Um dia eu peguei uma conta de um
restaurante sofisticado que fomos, olhei
com olhares sufocados num amor em
êxtase pela surpresa e pelo agrado do alívio
de imediatamente pensar no amor. No
nosso amor. O amor tomando parte
completa pela conta e fazendo ela sumir,
sem ser indesejável. O amor é você.

- O tanto que eu te amo, o tanto que eu te
quero, não há medidas ou espaços de
tempo. É infinito, é pra sempre romântico.

- O meu amor por você é como gasolina: o
meu carro é a álcool.
No palco, a banda encerrou a música.
Agradeceu a nós dois e desejou felicidades.
Para mim, a felicidade significava voltar a
mesa e comer a ótima sobremesa
prometida pelo restaurante à todos que
consumissem mais do que R$50,00 em
refeições. Nos lambuzamos com os doces e
fomos embora para casa.

- Não vou te levar em casa. Você pode se
virar sozinha, né?

- Claro. Adoro ir a pé, sozinha no meio da
escuridão da noite e livre para ser vitima de
estupro para marginais do meu perigoso
bairro.

- Se encontrar com eles, faça bom proveito
da suruba.

- Pode deixar, meu querido. Te amo.

Dei-lhe um tapa e depois uma
sanfonadinha na bunda. Logo depois, um
empurrão. De barriga cheia e satisfeito,
pensei em ter cumprido meus objetivos no
dia e ter sido um tremendo de um bom
rapaz. Ao menos se perguntarem para ela.




                             Tiago Peçanha.

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Uma noite forçada em um restaurante romântico

  • 1. De uma perspectiva relevante Acabei aceitando. Depois de dezenove vezes seguidas, aceitei. Ela não parava de me aporrinhar. Era de dia, era de noite, era nos intervalos, era no recreio, era na internet, eram nos bate papos, era por sms, era por pombo correio, era por telegrama, era por carro de mensagem, era em qualquer tempo que tivéssemos tempo. Me acumulava de “vamos sair, meu amor?”, como se já não estivesse me transbordando daquela pergunta. Era como se eu fosse um balão e as vezes que ela me perguntasse fosse o gás. Uma hora eu iria estourar. Mas não deixei. Ela tentou combinar comigo o lugar que iríamos se não houvesse jogo do meu time
  • 2. ou qualquer outro pequeno motivo para eu desmarcar, mesmo que esta fosse minha vontade soberana. - Mô, onde vamos? – disse ela depois de eu ignorar mais de dez ligações. - Decide aí. Não estou nem aí para o lugar que seja. - Que tal aquele restaurante ao ar livre perto do chafariz e do teatro, onde uma banda de folk toca ao vivo e as mesas são todas banhadas em rosas vermelhas? Acho lá tão lindo e apaixonante. - Prefiro pegar um misto no trailer do Betão e depois uma cerveja no Bar do Miltinho. Se bobear até uma sinuca depois. - Que fofo amor. Você que sabe. Qualquer escolha sua será a minha. Te amo. Ela combinou no sábado à noite, data que fiz questão de não me importar. Por sorte, meu time jogaria no domingo. Farra,
  • 3. linguicinha na chapa, torresmo e futebol são as ornas desse dia. Cedi à pressão e fomos nesse restaurante. Nos assentamos mais longe para que pudéssemos conversar melhor. Ao lado de nossa mesa, um casal de senhores que exalavam mais de 50 anos juntos. Ela, encantada, disse: - Olha nós daqui a alguns anos, amor. - Tomara Deus que não. - Como você é lindo. – disse apertando minha bochecha. O garçom trouxe o cardápio. Pedi um prato pesado, sem frescuras. Ela, com suas saladinhas. Não sei como conseguia se manter viva fazendo uma alimentação semelhante ao de uma vaca. Odiava salada; ela adorava. Dizia que era porque não queria engordar. Apenas retrucava dizendo que não era para se preocupar, pois poucas
  • 4. pessoas são privilegiadas com o poder de poder usar calças da mesma largura de uma roda de trator assim como ela o fazia. Ela me enchia de abraços com essas afirmações. Minutos depois o garçom trouxe meu vatapá com jerimum, frango a molho pardo, uma lasanha de camarão e algumas mandiocas. Para ela, uma salada de agrião, tomates, rabanete e algumas cebolinhas picadas. - Quer um pouquinho, amor? - É claro que eu aceito. - Toma, meu bebê. – disse enquanto direcionava o garfo até minha boca. Peguei o garfo e joguei toda aquela merda no lixo. - Acho que vou querer mais um pouco. - Nossa, meu bem, assim eu vou ficar sem.
  • 5. - Me dá logo. Novamente peguei e joguei mais uma porção no lixo. Fiz um favor a ela. - Metade do meu prato foi pelo lixo. Nossa, como você é carinhoso, meu lindo. A banda de folk começou a tocar. Nem quis saber o nome. Odiava toda aquela baboseira entediante. Ela estava toda empolgada, sorridente e até batendo palminha feito uma foca. Após algumas músicas, o vocalista começou a procurar por casais no restaurante. - Vou precisar de um casal para vir até aqui e improvisar uma situação romântica enquanto cantamos a música bem baixinho. É tipo um clipe ou um filme. Cortesia da casa. Quem se candidata? Ninguém levantou a mão. Ninguém seria estúpido o suficiente a ponto de se entregar a essa vergonha alheia. Estava
  • 6. quase me escondendo debaixo da mesa para que não me visse. Mas ela fez questão. Ergueu os braços tão alto a ponto de quase furar as telhas do local com a ponta dos dedos. Ele nos escolheu. Quis fazer como um avestruz e cavar e esconder minha cabeça no solo. - Vocês podem dizer o que quiserem um para o outro. Nós da banda apenas tocaremos a música enquanto isso. Sintam- se à vontade. Ela, esbanjando aquele sorriso de meio metro de clareamento dental, pegou nas minhas duas mãos e começou a balançar. Inclinou a cabeça para a esquerda e deixou os olhos brilharem junto dos reflexos da luz. Colocou as mãos nos meus ombros e começou a desembuchar. - Um dia eu peguei umas sementes de laranja e me assentei perto de um quintal. Pensei que era questão de plantá-las e
  • 7. esperar que nascesse um pé lindo e cheio de frutos. Isso tudo me remeteu ao nosso amor. As sementes seriamos nós. A água para nos fortificar, o tempo. Cresceríamos juntos e um dia seriamos um lindo pomar representando uma família, uma união e uma felicidade compartilhada. - Um dia eu peguei uma conta de um restaurante sofisticado que fomos, olhei com olhares sufocados num amor em êxtase pela surpresa e pelo agrado do alívio de imediatamente pensar no amor. No nosso amor. O amor tomando parte completa pela conta e fazendo ela sumir, sem ser indesejável. O amor é você. - O tanto que eu te amo, o tanto que eu te quero, não há medidas ou espaços de tempo. É infinito, é pra sempre romântico. - O meu amor por você é como gasolina: o meu carro é a álcool.
  • 8. No palco, a banda encerrou a música. Agradeceu a nós dois e desejou felicidades. Para mim, a felicidade significava voltar a mesa e comer a ótima sobremesa prometida pelo restaurante à todos que consumissem mais do que R$50,00 em refeições. Nos lambuzamos com os doces e fomos embora para casa. - Não vou te levar em casa. Você pode se virar sozinha, né? - Claro. Adoro ir a pé, sozinha no meio da escuridão da noite e livre para ser vitima de estupro para marginais do meu perigoso bairro. - Se encontrar com eles, faça bom proveito da suruba. - Pode deixar, meu querido. Te amo. Dei-lhe um tapa e depois uma sanfonadinha na bunda. Logo depois, um empurrão. De barriga cheia e satisfeito,
  • 9. pensei em ter cumprido meus objetivos no dia e ter sido um tremendo de um bom rapaz. Ao menos se perguntarem para ela. Tiago Peçanha.