Egberto Gismonti é um multi-instrumentista brasileiro que se dedica principalmente ao violão e piano. Ele explora diversos estilos musicais e influências, do jazz à música erudita. Sua carreira internacional de sucesso começou na década de 1970, quando lançou o álbum "Dança das Cabeças" que recebeu o Grammy. Gismonti continua inovando com novos instrumentos e estilos musicais até hoje.
Egberto Gismonti: entre o refinamento erudito e o acessível tom popular
1. PERSONAGEM
EGBERTO
GISMONTI
Apesar de multiinstrumentista, Gismonti mantém sua paixão pelo violão.
N<Io início dos anos 80, Egberto
Gismonti começou a dedicar-se ao
estudo da cítara indiana. Quando
sentiu que dominava suficientemen-
te o instrumento, decidiu incluir seu
timbre exótico em algumas faixas do
LP que preparava, para mostrar o
resultado de seu trabalho. O nome
do disco — "Bandeira do Brasil"—
acabou sendo censurado na época,
sob o argumento de que é proibida
a utilizaçãode símbolos nacionais em
artigos comerciais. Só que Gismon-
ti acabou encontrando uma alterna-
tiva e, baseando-se numa norma da
Carteira do Comércio Exterior (Ca-
cex), conseguiu realizar, ao menos
em parte, seu desejo. Diza lei: todo
produto de exportação pode levar
em sua embalagem a bandeira bra-
sileira. Portanto, na capa e contra-
capa de seu álbum lançado em
1984, aparecem nada menos do
que vinte bandeirinhasbrasileiras.
Os burocratas do governo não ti-
veram como impedir, já que a arte
de Gismonti é muito apreciada no
exterior, talvez até mais do que no
seu próprio país. Nascido em 5 de
dezembro de 1944, na cidade de
Carmo, Rio de Janeiro, Egberto é
um músico incapaz de se assustar
com as armadilhastécnicas de qual-
quer tipo de instrumento. Apesar
disso, ele dedica ao piano e ao vio-
lão uma atenção especial. Nesses ca-
sos, mais do que aperfeiçoar uma
técnica de execução impecável,Eg-
berto consegue descobrir novos ca-
minhos para esses instrumentos tra-
dicionais, seja através da imensa di-
versidade de timbresoferecidapelos
modernos sintetizadores computa-
dorizados, seja na sonoridade origi-
nal que consegue extrair de violões
acústicos especialmente desenvolvi-
dos por ele, como os modelos de oi-
to e de dez cordas.
"Sou um compositor do século
XIX que recebe encomendas de mú-
sicas dos reis do século XX", afirma
Gismonti, fornecendo uma boa pis-
ta para os críticos que quebram a ca-
beça tentando localizar a área onde
poderiam encaixar o estilo musical
do multiinstrumentista, marcado pe-
la diversidade de inspirações e por
uma rara habilidade de trafegar à
vontade pelas mais diferentes e an-
tagónicas manifestações musicais,
do jazz ao baião, do rock à música
sinfónica. Egberto Gismonti Amin
começou a estudar piano aos cinco
anos de idade. Sua família oferecia
um ambiente bastante propício para
o desenvolvimento de sua musicali-
dade, e seu tio, contratado pela pre-
feitura, era o compositor oficial da
pacata Carmo. Mesmo assim, o mú-
sico juvenil logo teve de deixar sua
cidade natal para tratar de aperfei-
çoar seus conhecimentos. Estudou
no Conservatório Brasileiro de Mú-
sica, no Rio de Janeiro, onde com-
pletou sua formação erudita e teve
a oportunidade de reforçar sua ad-
miração pela obra do compositor
Heitor Villa-Lobos.
Incentivado por Tom Jobim e Ba-
den Powell, Egberto inscreveu uma
composição no IIIFIC — FestivalIn-
ternacional da Canção. Ele mesmo
fez o arranjo para orquestra, exigin-
do a presença de cem figuras. A mú-
sica "O sonho" ganhou um prémio
hors-concours no evento eGismonti
despertou a atenção de vários artis-
tas. Em menos de um ano, sua mú-
sica acabou sendo gravada dezoito
vezes, recebendo versões de nomes
consagrados como Elis Regina,
Henry Mancini e Paul Mauriat. As
portas estavam abertas e o músico
foi convidado a gravar seu primeiro
LP, em 1969. Esse ano seria espe-
cialmente produtivo para Gismonti.
Depois do lançamento do disco, fez
as malas e viajou para Paris, onde
foi chefe da orquestra que acompa-
nhava a cantora Marie Laforêt. A
temporada, prevista para apenas um
mês, acabou se estendendo por um
ano e, nesse tempo, Egberto foialu-
no de Nadia Boulanger e Jean Bar-
raqué, dois dos mais importantes
2. PERSONAGEM
Gismonti: entre o refinamento erudito e o acessível tom popular.
compositores franceses de música
erudita. Apresentou-se no Festival
de San Remo, na Itália, no Festival
de Jazz de Berlim, e registrou o ál-
bum "Orfeu Novo", na Alemanha.
De volta ao Brasil, participou no-
vamente do FIC, com a música "O
mercador de serpentes". Ao mesmo
tempo que desenvolvia uma carrei-
ra paralela no exterior, Gismonti
continuou a gravar no Brasil. For-
mou o grupo Academia de Danças
e fez experiências com sintetizadores
e com os sons eletrificados, o que
aproximou sua arte dos territórios da
fusion e do rock progressivo. Essa fa-
se duraria até 1978, quando gravou
"Nó Caipira", uma reaproximação
com a música brasileira e com os
sons acústicos do violão, do piano
e da orquestra sinfónica.
Gozando já de grande prestígio
entre os músicos de alta expressão,
Gismonti realizou inúmeras excur-
sões com grandes virtuoses. Tocou
com Airto Moreira, numa tempora-
da norte-americana em 1975. Na
Europa, apresentou-se com o pianis-
ta norte-americano Keith Jarrett.
Juntamente com o jazzista Herbie
Hancock, realizou shows nos Esta-
dos Unidos. E formou ainda um
dueto com o saxofonista Paul Horn,
do qual resultou a gravação do dis-
co "Altura do Sol".
Mas foi ao lado do percussionista
Naná Vasconcelos que Egberto ob-
teve o reconhecimento definitivo da
crítica internacional. O LP "Dança
das Cabeças", de 1977, trazia a iné-
dita mistura do berimbau e do vio-
lão, ambos os instrumentos levados
a realizar altos voos sonoros pelas
mãos hábeis da dupla. O trabalho
ganhou o Grammy, a maisprestigia-
da premiação da indústriafonográ-
fica norte-americana, e foi citado co-
mo o mais importante lançamento
daquele ano em cinco países, em
cinco diferentes categorias: música
pop na Alemanha, brasileira no Bra-
sil, folclórica no Japão, experimen-
tal na Inglaterra e jazz nos Estados
Unidos.
Posteriormente, Egberto realizou
outras bem-sucedidas experiências
violonísticas com o álbum duplo
"Solo" (1979) e o disco "Dança dos
Escravos" (1988), ambos registrados
pela gravadora alemã ECM, empre-
sa conceituadíssima no mercado fo-
nográfico internacional, e que tem
em seu elenco de artistas algumas
das figuras mais representativas da
música instrumental contemporâ-
nea. Desde 1983, Gismonti também
administra seu próprio selo de gra-
vação, o Carmo, encarregado de
produzir discos de artistas brasileiros
especializados em executar música
instrumental.
As atividades de Gismonti não
costumam se limitar aos shows e es-
túdios: "Invariavelmente,por ano,
aparecem cerca de oito a dez pro-
postas para que eu faça trilhas sono-
ras, além das propostas de discos
próprios", contabiliza. Ele realizou
trabalhos no cinema, TV, bale e em
exposições de artes plásticas. Em
1985, para homenagear um de seus
grandes mestres, Villa-Lobos, o mul-
tiinstrumentista gravou o LP "O
Trem Caipira" em que, com o auxí-
lio de um arsenal de sintetizadores
e músicos, Gismonti realizou adap-
tações livres de algumas peças do
compositor brasileiroerudito. Como
influências, Egberto também não se
prende unicamenteàs partituras dos
compositores eruditos e às obras dos
grandes jazzistas modernos. Um mo-
mento marcante de sua carreira e
que modificou bastante seu concei-
to de música foi quando viajou à
Amazónia. No meio da selva, no Al-
to do Xingu, teve a chance de che-
gar à aldeia dos índios yawalapiti.
Foi admitido na Casa Sagrada, uma
oca na qual o índio Sapaim tocaria
a Jacuí, a flauta sagrada nativa.
"Antes de ir lá, eu estava com Ra-
vel, Stravinsky e Villa-Lobos na mi-
nha música", recorda Egberto. "Lá
eu senti que era mais, que era alin-
guagem para falar com os deuses."
Percepção musical apurada, Gis-
monti aperfeiçoou ainda mais a co-
municação com sua pequena, mas
fiel, plateia.
Sua arte situa-se num saudável
meio-termo entre o refinamento
erudito e o acessível tom popular. Se
comparados às vendagens dos gran-
des astros pop, seus discos podem
dar a impressão de atingir uma fai-
xa restrita de ouvintes. A influência
de Gismonti, porém, não pode ser
medida unicamente através de nú-
meros. Segundo Egberto, as pró-
prias gravadoras que investem em
seu trabalho têm plena consciência
disso: "As companhias de discos são
obrigadas a prestar contas aos seus
acionistas do que venderam e tam-
bém do que fizeram, sobretudo quan-
do se trata de uma multinacional.Eu
me situo no campo do que fizeram,
não do quanto venderam".