Encontros com o cineasta Gary Kildea e Mostra de seus Filmes Etnográficos
1. Gary Kildea – Encontros com o Autor e Mostra de Filmes
Ana Lúcia Ferraz
As atividades realizadas com o pesquisador convidado Gary Kildea (ANU –
Trømso) consistiram em profícuos diálogos sobre a prática de realização de filmes
etnográficos e a organização de Mostras de seus filmes na USP, na UFF e na Reunião
Nacional da ANPOCS. Desde a preparação do encontro passamos a estudar a obra do
autor, a partir das publicações que discutem a sua obra e do visionamento de seus
filmes. A necessidade da legendagem para o português de alguns de seus trabalhos foi
se concretizando e pode ser realizada no contexto desse Projeto Temático, pela equipe
do LISA/USP .
Gary Kildea, nascido em 1948, faz parte de uma geração de cineastas
australianos que se forma na década de 60, no contato com os debates sobre a
abordagem do cinema observacional, e que se propõe a explorar a linguagem do
documentário de novas maneiras. Nesse contexto, há um esforço de formar equipes de
cinema prontas para o trabalho documental, inspiradas pelo debate em torno de um
cinema direto ou do cinema verdade. O impacto da experimentação em torno da
possibilidade da captação de som sincrônico com a imagem, na película de 16mm,
mobilizava jovens cineastas e antropólogos. No final da década, a Commonwealth
Film Unit australiana organiza na UNESCO uma mesa-redonda sobre o filme
etnográfico, contando, inclusive, com a presença de Colin Young e de Jean Rouch, em
1966.
Os cineastas formados nesse contexto inspiraram-se uns nos outros e
trabalharam juntos em diferentes momentos. Gary Kildea, Dennis O`Rourke, Ian
Dunlop, Bob Conolly, todos eles tem em comum o fato de terem realizado filmes em
Papua Nova Guiné. Gary Kildea realiza com O’Rourke o filme Ileksen (1978), que
apresenta a situação das primeiras eleições em PNG, em que dois mundos se chocam,
as tradições nativas e a forma institucional do Estado democrático.
2. O’Rourke mais tarde realiza Cannibal Tours (1988), retratando o turismo em
Papua Nova Guiné. Falta adicionar a este grupo, as presenças de David e Judit
MacDougall, americanos, alunos de Collin Young, que se formam na Universidade da
California, em Los Angeles (UCLA) no final dos anos 60, indo viver desde 1975 em
Canberra, na Australia.
Kildea trabalhou entre os anos de 1970 e 1974 como diretor e câmera na
Unidade de Cinema do Departamento de Informação e Serviços de Extensão de Papua
Nova Guiné. Em 1975 Papua New Guiné torna-se independente da Australia.
Formados nesse contexto, buscam novas formas para o filme etnográfico. Gary Kildea
explica esse contexto de formação a partir do diálogo com os desenvolvimentos no
campo do cinema, a nouvelle vague francesa, o cinema direto americano, o cinema
observacional. Há em seus filmes um posicionamento em relação à história colonial e
pós-colonial, “uma posição etno-política que vai se constituindo na Australia e na
região do Pacífico” (Crawford, 2004). Trabalhando em Papua Nova Guiné, região em
que vivem seis milhões de pessoas, falantes de 860 línguas diferentes, a mobilização
pelo fim do colonialismo impacta os modos de produção dos filmes e os debates
acerca da “representação visual de outras culturas” (Arango, 2009). Mudanças
históricas vão forjar de novos modos de documentá-las. Nos anos 70 e 80 temos, na
região, o nascimento de um mundo pós colonial.
MacDougall (1994) caracteriza o espírito desse momento: “Nos anos 70, uma
corrente do filme etnográfico em moda preconizava a participação dos cineastas e
seus ‘objetos’, ambos se tornando quase co-autores. É o que Jean Rouch chamava a
‘antropologia compartilhada’. Nossa política, no Australian Institute of Aboriginal
Studies, se baseava no princípio de que todo filme rodado na Austrália deveria
corresponder às solicitações dos aborígenes. Era uma época em que as pressões que
recebiam eram cada vez mais fortes. Seus territórios estavam ameaçados por
interesses de mineiros, suas populações dizimadas pela violência e pelo álcool, e sua
cultura cada vez mais alterada pela cultura branca dominante.
Em 1977, nós nos propusemos a rodar filmes nas comunidades aborígenes de
Northern Queensland, perguntando quais eram os assuntos que eles desejariam ver
3. filmados. Os aborígenes dessa região não eram nada ingênuos em matéria de cinema e
estavam perfeitamente conscientes do poder político da mídia”. Foi assim que os
autores realizaram filmes sobre o problema da terra, vida ritual, crises políticas, e os
antropólogos pensaram sobre transmissão de saberes locais, a relação com a morte,
organização local, e, assim se colocou um passo decisivo que marcou a produção
dessa geração, a elaboração de um cinema de participação, em que os pontos de vista,
o do pesquisador e o dos aborígenes se façam presentes.
Trobriand Cricquet (1974) é expressão dos arranjos possíveis nesse contexto.
O filme elege o jogo como espaço social em que os nativos das ilhas Trobriand
mimetizavam a experiência colonial (Taussig). Introduzido por missionários
religiosos em substituição aos cantos e danças rituais e apropriado e
descontextualizado de seu sentido como esporte, o críquete trobriandês recebe o
conjunto das aldeias que rivalizam e reintroduzem as manifestações inicialmente
proibidas, reinventando espaços para suas práticas. A narrativa fílmica monta com voz
over as imagens dos festivais miméticos em que a população dança o avião, a goma
de mascar. Essas imagens são editadas em conjunto com conversas de grupos de
homens que explicam detalhadamente a produção dos pesados instrumentos em
madeira maciça para o jogo de taco e bola. Acompanhamos o desenvolvimento do
jogo que ganha a dimensão de um festival em que aldeias vizinhas se visitam e
rivalizam entre si. O filme legenda as vozes dos nativos, buscando revelar o seu ponto
de vista, documentando-o. Buscando compreender a outra cultura pelo jogo, conta-se
a história em toda a sua densidade conflitual. Os filmes ganham sua estrutura
narrativa a partir da pesquisa e é a partir dessa experiência que se dá no campo que,
no limite, podemos conhecer.
Em Celso and Cora (1983), Kildea acompanha a vida de um jovem casal nas
Filipinas, e o faz de um modo cinematográfica, estética e dramaturgicamente que se
equipara à ficção. A busca de Kildea é por encontrar o drama no mundo social e
reconstruí-lo no filme. Ainda nas Filipinas, o autor realiza Valencia Diary (1992),
durante as eleições em um pequeno povoado, acompanhando as dimensões cotidianas
da política. Celso and Cora apresenta o drama da vida de dois jovens com suas
4. crianças, procurando casa para morar, trabalhando como vendedores ambulantes em
Manila. A câmera interage com os personagens e acompanha os conflitos familiares, a
situação vivida.
Em Koriam’s law and the death who govern (2006) o autor retorna a Papua
Nova Guiné. Dessa vez, acompanhando uma produção de um canal de televisão
norte-americano que pretendia produzir episódios para um programa sobre
milenarismos. Conhecendo os cargo cults na região a equipe faz contato com o
antropólogo Andrew Latas que interage com o líder espiritual da região da Baía
Jacquinot. A câmera de Gary Kildea nos faz ver a relação que produz o filme.
MacDougall afirma que um estilo de câmera contém uma teoria do conhecimento. A
câmera deve ser um artefato para o encontro físico e social entre o filme e o sujeito. E,
de fato, os filmes de Kildea realizam este trabalho.
Kildea revela a interação entre a equipe de filmagem, o antropólogo e o líder
carismástico. Acompanhamos os membros da comunidade em suas cerimônias, na
preparação dos alimentos oferecidos aos mortos, na força da crença. Da coleta do
taro, o inhame nativo presente dos deuses, à oferta, em praça pública, do dinheiro aos
ancestrais. Testemunhamos o conflito entre a Igreja católica e a presença da crença
nativa, sua mistura, sua reinvenção. Da incorporação da burocracia e do registro das
ofertas aos mortos ao grande festival que reúne autoridades locais e representantes do
Estado de Papua New Guine.
Nessa concepção que vai “além do cinema observacional” temos uma busca
constante dos modos pelos quais o filme pode atuar exploratoriamente na relação com
o fenômeno estudado. O potencial do filme está muito além de uma mera descrição ou
registro. Ele é ao mesmo tempo meio de conhecer, de compreender, de narrar a
experiência daqueles com os quais compartilhamos experiência.
Em Man of Strings (1999), o cineasta acompanha o trabalho do violinista Jan
Sedivka, como professor, concertista e marido da pianista Beryl Sedivka. Em uma
rede de intensidades musicais acompanhamos a aprendizagem da linguagem musical
5. de vários de seus alunos. As dimensões sensíveis - corporalidade, relações
interpessoais e música - aparecem como temas do filme.
Na Mesa Redonda Imagem e Memória: experiências de realização de filmes
etnográficos, Gary Kildea discutiu a dimensão da montagem do filme etnográfico, o
problema de como reconstruir o drama acompanhado na experiência etnográfica. O
contato com as longas horas de material gravado, atualizando as percepções do vivido
em campo, na produção de uma narrativa. Trabalhamos a partir do filme Djeneba A
Minyanka woman of Southern Mali, de Bata Diallo, aluna do Programa de Visual
Cultural Studies, na University of Tromsø, na Dinamarca, onde Kildea atua. Na
Oficina no LISA, pudemos dialogar acerca de seus filmes, os contextos de cada obra,
a filmagens e o processo de edição do filme A Castle in Afrika, de Lisbet Holtedahl
(Universidade de Tromso), como exemplo de elaboração que articula sentidos numa
narrativa.
Filmagem e montagem, como trabalhos complementares, na elaboração do
filme etnográfico, dão a ver a presença do outro em seu universo de crença, numa
história particular, dão a ver ainda a relação que produz o filme, a interação
etnográfica.
Bibliografia citada
Arango, Monica L. Espinosa. “A la caza de ballenas: La exploración
documental. Entrevista com Gary Kildea. Antípoda n. 9, 2009 :89-111.
Crawford, Peter I. “A retrospective of the cinematographic work of Gary
Kildea” World Film Tartu Festo f Visual Culture. 2004.
Deger, Jenifer. “Koriam’s law: film, ethnography and irreconcilable
accountings”. Film Review Essay. The Australian Jounal of Anthropology. Vol. 8 n. 2 :
249-252.
MacDougall, David.Transcultural Cinema. Princeton University Press, 1988.
6. _______________. “Mas afinal, existe uma antropologia visual?” In II Mostra
Internacional do Filme Etnográfico. Rio de Janeiro, 1994.
Taussig, Michael. Mimesis and altherity. A particular history of the senses.
Routledge, 1993.