1. 1
UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB
DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO – CAMPUS XIV
COLEGIADO DE HISTÓRIA
O prefeito do coração
A ascensão de Diovando Carneiro no contexto político tradicional em Conceição
do Coité entre 1992 e 1996.
SAMARA SUÉLEN LIMA DA SILVA
Conceição do Coité
2009
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2. 2
SAMARA SUÉLEN LIMA DA SILVA
O prefeito do coração
A ascensão de Diovando Carneiro no contexto político tradicional em Conceição
do Coité entre 1992 e 1996.
Monografia apresentada a Universidade do Estado da
Bahia – Campus XIV como requisito parcial para
obtenção do título de Graduação em Licenciatura em
História sob a orientação do professor Ms. Eduardo José
Santos Borges.
Conceição do Coité
2009
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3. 3
AGRADECIMENTOS
Agradeço a Deus por ter me dado força espiritual para superar todos os obstáculos
desta caminhada com equilíbrio e disposição.
A minha família, sustentáculo da minha existência, pelo apoio que me foi ofertado,
aos meus pais pela dedicação e paciência que tiveram durante a minha formação e ao meu
esposo por ter estado ao meu lado em todos os momentos.
Aos professores pelo auxílio no meu crescimento acadêmico, em especial a Eduardo
Borges, pelo incentivo e pelos subsídios durante a produção e conclusão deste trabalho, como
também a Rogério Silva e Aldo José que contribuíram no processo de elaboração do projeto.
Aos colegas que compartilharam dores e glórias em especial a Cristian, Gislaine,
Edcarla, Reafaela, Taila e Márcio, com os quais construí laços de amizade que se eternizarão
em minha memória para sempre.
Por fim agradeço a Mário Silva, por ter disponibilizado os jornais, uma das principais
fontes utilizadas neste trabalho, a Carlos Neves quem me cedeu um cordel, documento
fundamental para o estabelecimento dos meus objetivos, a Evania pela abertura em ceder
materiais pessoais, e a todos que compartilharam as suas memórias em especial Joilson
Araújo, Misael Ferreira, Aloísia Pinto e Celidônio Pinto, depoimentos imprescindíveis para a
efetivação da pesquisa.
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4. 4
Se para o senso comum as campanhas são pálidas rememorações do
já conhecido, a passagem dessa orquestra de sons, cores e ritmos
anuncia coisas para se pensar. A construção de lugares, símbolos e
personagens traduz na realidade, uma chuva de signos e
reconhecimentos.
Irlys Barreira
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5. 5
RESUMO
Este trabalho tem como objetivo principal analisar os elementos norteadores do voto nas
disputas eleitorais de 1992 e as transformações ocorridas no município de Conceição do Coité
com a ascensão de Diovando Carneiro Cunha ao poder representando a oposição local. O
município que havia sido dominado durante vinte anos pela Família Rios detentora do poder
fazendo sucessores dentro do mesmo círculo familiar experimentou pela primeira vez uma
opção pelo voto diferente, numa candidatura popular e uma campanha reveladora de
sentimentos e emoções na qual o capital pessoal se sobrepôs ao financeiro. Nesse sentido
pretende-se estudar o caminho desenhado pelas ações de Diovando para se consolidar como o
“prefeito do coração” e o processo que conduziu o fim de seu governo e o retorno das antigas
estruturas. Discute-se o processo de construção do poder da família Rios e a consolidação do
“mito vermelho” dentro da cultura política local, a entrada de Diovando Carneiro na vida
política, o imaginário popular construído em torno de sua figura, o processo eleitoral que
garantiu a vitória de Vando e Misael, as críticas que refletiam os problemas da administração
“diferente” e o restabelecimento das forças tradicionais.
PALAVRAS-CHAVE: Conceição do Coité – eleições – sentimentos – tradição
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6. 6
ABSTRACT
This paper aims at analyzing the factors guiding the vote in the electoral contests of 1992 and
the changes in the municipality of Conceição do Coité with the rise of Diovando Carneiro
Cunha power representing local opposition. The city which had been dominated for twenty
years by the Rios family with the right doing the same successors within the family first
experienced an option to vote differently on an application and a popular campaign reveals
feelings and emotions in which the personal capital overlapped to finance. To this end we
intend to study the path drawn by the actions of Diovando to consolidate itself as the "mayor
of the heart" and the process that led to his government and the return of the old structures.
We discuss the process of building the power of the Rios family and consolidation of 'myth
red "in the local political culture, the entry of Diovando Carneiro in politics, popular
imagination built around the figure, the electoral process that ensured the victory Vando and
Misael, the criticism reflected the problems of administration "different" and the restoration of
traditional forces.
KEYWORDS: Conceição do Coité - elections - feelings - tradition
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7. 7
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.......................................................................................................................8
CAPÍTULO I – O “MITO” VERMELHO..........................................................................12
1.1 Política de Cores................................................................................................................15
1.2 Concretização do “Mito”...................................................................................................18
CAPÍTULO II – “ESCRAVO DO POVO”, HERÓI DA CARIDADE ............................23
2.1 Vando de Deus, dos pobres, de todos ...............................................................................24
2.2 Uma campanha do coração ............................................................................................. 30
CAPÍTULO III – “SEM PRECONCEITO DE CORES” ................................................. 37
3.1 Porta voz das “doenças do coração” .................................................................................39
3.2 “Amizade e política não se misturam” ..............................................................................46
3.3 As marcas da emoção ........................................................................................................52
CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................... 55
BIBLIOGRAFIA ...................................................................................................................56
FONTES...................................................................................................................................59
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8. 8
INTRODUÇÃO
Em uma manhã de outubro, Conceição do Coité amanhece parada, perplexa e
chocada. Comoção, sentimentos e silêncio acompanham uma multidão de quase dez mil
pessoas reunidas para prestar seu último adeus ao “prefeito dos pobres”. Os fiéis seguidores se
questionam o porquê do triste fim, durante a missa que vela o corpo de Diovando Carneiro
Cunha de onde se ouvem murmurinhos de quem nunca viu “um homem igual a esse”. Uma
cidade que há poucos dias encontrava-se num clima de comemoração e festa característico das
disputas eleitorais, estava agora parada e em lamentos. Ninguém sabe o que acontecera com o
homem que foi “escravo do povo” em boa parte da sua vida e que agora se colocava diante da
morte.
As mesmas ondas de sentimento que acompanharam o candidato “Vando” e
motivaram as suas relações pessoais com amigos e adversários, os mesmos princípios de
solidariedade e de serviço ao povo que nortearam a sua atuação como prefeito,
acompanharam a sua partida do meio público para ser eternizado no imaginário popular como
o prefeito do coração. Uma imagem que foi construída durante a sua carreira política e que
permanecera viva, mesmo diante dos problemas oriundos de embates de interesses,
sentimentos e relações de poder, inseridos num contexto tradicional.
A vida política de Conceição do Coité se desenvolveu sob a égide do
tradicionalismo, onde a ligação familiar, o poder de posse, seja de terra ou bens que
assegurem riqueza econômica, a sujeição pessoal e a fidelidade eleitoral calcada sob forte
cultura política, interferem decisoriamente no processo de escolha e na atuação das elites
locais. O município em toda sua história, foi dominado por famílias que se revezavam no
poder, cada uma utilizando seus meios de persuasão em momentos diferenciados, fazendo
sucessores, numa fase onde o baixo prestígio dos partidos políticos associado às práticas de
clientelismo favorecia o círculo vicioso do sistema administrativo.
As oligarquias características da Primeira República continuaram sua atuação mesmo
após a Revolução de 30 e da extensão do direito de voto pelo Presidente Getúlio Vargas em
1934. Nesse mesmo ano, João Paulo Fragoso é eleito primeiro prefeito coiteense através de
voto popular. Longe de se pensar em início de democracia, o Estado Novo retira o direito de
escolha do povo e os prefeitos passam a ser indicados, sendo que as facções lideradas pelos
chefes políticos influentes, Eustógio Pinto Resedá e Wercelêncio Calixto da Mota, conhecido
“Seu Mota”, mantiveram o domínio se revezando no poder.
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9. 9
A pessoalidade nas relações e o domínio da família na política do Brasil são marcantes
desde o período Colonial. Mesmo o Estado não tendo ligação com o espaço doméstico, num
país, onde sempre prevaleceu o modelo de família patriarcal, para os detentores de cargos
públicos com formação nesse ambiente, não era fácil distinguir o público do privado. A partir
de 1946, quando as eleições voltam a ser diretas, os prefeitos são eleitos sucessivamente
dentro do mesmo círculo familiar. Geralmente os empregos e benefícios dirigidos aos
funcionários eram movidos por interesses pessoais e não objetivos, a escolha daqueles que
irão exercer cargos públicos faz-se conforme a confiança pessoal e o merecimento da pessoa.
Entre as décadas 1960 e 1990, o Brasil passou por um processo de grandes mudanças
políticas alterando o cenário estadual e municipal com a emergência de um regime autoritário.
A ascensão da Família Rios em 1972, apesar de inserida em um novo contexto político,
marcado fortemente pela repressão da Ditadura e pela tentativa de centralização do poder, em
C. do Coité, as relações de pessoalidade e de dependência se acentuaram. Durante os anos de
1973 a 1992, fase de hegemonia do grupo de direita conhecido na cultura política local como
“vermelhos”, as práticas eleitoreiras características da Primeira República foram mantidas
como estratégia para se assegurar no poder. O grupo perde o posto, apenas no pleito de 1992
retomando e se elegendo novamente até a última eleição municipal que acontecera em 2008.
Somados são mais de 30 anos na liderança, com exceção da fase compreendida entre os anos
de 1992 e 1996, no qual o líder Hamilton Rios de Araújo perde o comando após ser derrotado
nas urnas por Diovando Carneiro Cunha.
Dentro da História de Conceição do Coité, o período em que os hegemônicos
perderam o posto de imbatível sempre chamou minha atenção por se tratar de uma fase
reveladora de especificidades e pelo efeito público provocado no município com a ruptura do
poder tradicional e o trágico fim carregado de muita simbologia e mistério. A candidatura de
Diovando Carneiro possui um perfil rico em significados simbólicos que o aproximaram do
espaço dos excluídos. A sua origem social, o baixo nível escolar, a ligação com valores
religiosos e o envolvimento com a população mais carente, são regras de assimilação popular
reveladoras de uma candidatura autentica caracterizada pela “supremacia de uma
identificação que está além da dimensão partidária que pode englobar diferentes concepções
ideológicas unificadas por um suposto interesse comum”. (BARREIRA, 1998, p. 177).
Em épocas de campanhas eleitorais no município, o governo Vando sempre foi
destacado por candidatos e eleitores do partido situacionista, como uma das razões para a
perpetuação do mesmo grupo no poder, visto que esta fase é sempre encarada como “a era das
trevas”, onde não houve nenhum progresso e desenvolvimento local. Um fato curioso, é que
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10. 10
o discurso atinge o governo, mas isenta o governante, sempre encarado como um “homem
bom” e mera vítima de sua ingenuidade. O “prefeito do coração” que permaneceu na memória
dos coiteenses foi um dos fatores que motivaram algumas questões, principalmente acerca das
razões emocionais que moveram a opção popular pela mudança nas eleições de 1992.
Pretende-se aqui fazer um trabalho no qual não se privilegia o particular e o episódio
em detrimento do conjunto de personagens que se encontram no meio social, mas uma
história na qual se escutam as variadas vozes dos atores sociais envolvidos no processo. Com
as transformações metodológicas que a história política passou, ampliou-se as possibilidades a
partir do contato que esta, estabeleceu com outras disciplinas, proporcionando uma amplitude
de possibilidades de análises. Através do conceito de Cultura política introduziram-se estudos
no campo das representações, imaginário público e processos eleitorais, em trabalhos nos
quais os atores sociais são representados em suas tradições e comportamentos. Assim de
acordo com Berstein citado por Ferreira (1992, p. 3), a Cultura política “introduz a
diversidade, o social, ritos, símbolos, lá onde se acredita que reina o partido, a instituição, o
imutável. Ela permite sondar os rins e os corações dos atores políticos”, e apesar de sua
importância, no Brasil ainda são poucos os estudos dessa natureza.
A utilização de apelos simbólicos em campanhas eleitorais recentes é um fator nem
sempre considerado em pesquisas políticas. Os rituais atuam como suporte de legitimação,
pois mobilizam emoções e ações dentro do campo social. O período eleitoral assim por dizer
constitui um espaço favorável para fazer emergir sentimentos, reações e conflitos no qual se
constroem personagens-candidatos, valores relativos à representação e símbolos “que os olhos
parecem não ver em tempos normais” (BARREIRA, 1998, p. 12). Neste sentido procurou-se
nesta pesquisa visualizar alguns elementos mobilizadores da opção popular na escolha de um
nome que representaria o povo e a força que esse ideal de identificação tem no
direcionamento do voto que se dá por credibilidade.
Para a realização da pesquisa utilizou-se como fontes principais, um cordel de
autoria anônima escrito em homenagem a Diovando Carneiro, que reflete bem a visão popular
acerca de sua atuação como homem público e o Jornal Tribuna Coiteense, veículo de
comunicação que circulava na cidade e direcionava várias críticas a administração ascendente.
Além disso, também foram analisadas algumas entrevistas, o vídeo da festa da vitória e da
diplomação no fórum, um documentário preparado pelos familiares em homenagem aos dez
anos de sua morte e as cartas deixadas por Diovando ao cometer suicídio.
O texto está organizado em três capítulos, o primeiro intitulado de O “mito”
vermelho, analisa o processo de construção de uma estrutura de poder mantido nas mãos da
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11. 11
família Rios, cujo líder fizera uma série de sucessores no município de C. do Coité num
período que se inicia durante a Ditadura Militar e se perpetuou após a redemocratização, bem
como verifica a emergência das cores na política local como uma construção simbólica,
ocultando os partidos e bipolarizando grupos em torno de personalidades políticas.
No segundo capítulo, “Escravo do povo, herói da caridade” estudaremos a
biografia de Diovando Carneiro Cunha, a sua entrada na vida política e a figura que foi
construída no imaginário popular. Pretende-se discutir os apelos emocionais como estratégia
utilizada no processo eleitoral e a identificação popular mobilizadora do voto no pleito de
1992.
O terceiro e último capítulo “Sem preconceito de cores”, analisa a postura adotada
por Vando ao assumir o cargo de prefeito, seus métodos de ação e as principais críticas
dirigidas à sua administração pela imprensa local. Pretende-se também identificar as
estratégias utilizadas pela oposição para recuperar o poder, e o ambiente conflituoso no qual
ocorreu o fim do “governo do coração”.
Deste modo partindo de tais inquietações, pretendo entender o caráter emocional que
regeram a ascensão de um representante oposicionista na vida política de Conceição do Coité
e as possíveis modificações ocorridas na estrutura tradicional solidificada ao longo da história
política local.
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12. 12
CAPÍTULO 1
O “MITO” VERMELHO
Já não distingo os que se foram
dos que restaram. Percebo apenas
a estranha idéia de família
viajando através da carne.
Carlos Drummond de Andrade (1973, p.7)
O período compreendido entre 1972 e 1992, trata-se de uma fase peculiar na História
de Conceição do Coité, tendo como característica, não a manipulação do poder público por
duas ou mais famílias, mas a manutenção da máquina administrativa municipal por membros
de uma única ascendência: a família Rios. Esta que assume o controle num contexto de
Ditadura Militar e consegue exercer seu domínio mesmo após a redemocratização. Nesse
período, não diferente dos anteriores, os grupos políticos no município, se organizam em
torno de personalidades guiados a partir de critérios informais de afinidade política, onde a
amizade e os laços familiares permeiam a estrutura de poder formal e são os principais
mobilizadores da política local.
Dentro da formulação teórica de Max Weber (1991, p.33), dominação é “a
probabilidade de encontrar obediência para ordens específicas (ou todas) dentro de
determinado grupo de pessoas”, submissão que pode ocorrer de modo inconsciente, guiados
pela afetividade ou por interesses materiais e racionais. Os tipos de dominação tidos como
racionais são baseados na crença de legitimidade de uma ordem que está instituída e do direito
legal de mando que tem aqueles que foram nomeados, deste modo, se obedece ao dominador
pelo poder legal que ele exerce. De maneira oposta, um líder carismático, tem seu domínio
legitimado em virtude da confiança pessoal e da exemplaridade que lhe é atribuída.
Os fundamentos para os tipos de dominação tradicional são construídos a partir da
crença na santidade das tradições e daqueles que exercem o poder, “em virtude da dignidade
pessoal que lhe atribui a tradição”(WEBER, 1991, p.148). O domínio patrimonial, com um
quadro administrativo do dominante composto geralmente de pessoas ligadas ao líder por
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13. 13
vínculos de piedade, familiares ou de clientela, necessita de elementos constitutivos para
assegurar o seu poder e o processo de reprodução do mando tradicional. Deste modo, a
ocupação de cargos importantes por membros da família ou amigos próximos, a indicação de
pessoas sem qualificação profissional para compor o seu quadro de funcionários, criando uma
relação de dependência, e a nomeação de funcionários por controle direto do “senhor” e não
por “competência”, são princípios administrativos essenciais para garantir a fidelidade dos
dominados.
Nas concepções de Weber, o patrimonialismo só pode vigorar em sociedades pré-
capitalistas, pois as relações econômicas não são guiadas pela racionalidade. Deste modo, os
trabalhos relacionados à permanência do exercício pessoal do poder como o de Vitor Nunes
Leal e Maria Isaura Queiroz, defendem a tese de que, tais relações de mando só se configuram
em ordens econômicas de base agrária. Sendo assim, coronel e coronelismo teriam o
momento certo para se extinguir, a partir do processo de industrialização, alfabetização e
expansão urbana, pois tais fatores retirariam o sustentáculo dos poderes tradicionais.
Segundo tais estudos, a base do sistema coronelista era o compromisso clientelista
entre poder público e privado, numa relação de lealdade e troca de favores entre os chefes
estaduais e os líderes locais. Um dos centros da observação de Leal é a figura do coronel,
parte do sistema coronelista, elemento indispensável na manutenção do poder dos chefes
estaduais, pois, mediante a posse de terra exercia enorme força eleitoral comandando um
grande lote de “votos de cabresto”, resultado da organização econômica rural, na qual o
roceiro, em momentos de necessidade recorria aos grandes proprietários, estabelecendo uma
relação de reciprocidade, onde a troca de favores seria garantia de voto no candidato indicado
por ele. O apoio ao governo estadual assegurava autonomia para continuar influindo na
política municipal, controlando a nomeação de autoridades locais e garantindo a realização de
obras públicas. No entanto, na medida em que o cidadão se emancipasse e os governos
estaduais estabelecessem relação direta com o eleitorado o coronelismo iria decrescer.
Apesar do crescimento urbano e industrial que ocorreu no Brasil após a década de
1950, alguns índices de desigualdade, pobreza e diferença no nível de educação
permaneceram quase imutáveis principalmente se compararmos a situação do Nordeste com
as demais regiões do país. A população ainda sofre com analfabetismo num espaço favorável
para a manutenção da dependência de boa parte do eleitorado, no qual se verifica que o
fenômeno do coronelismo foi modificado, mas não extinguindo. Deve-se levar em conta o
surgimento de outras forças políticas,
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14. 14
[...] mas a do “coronel” continua, apoiada aos mesmos fatores que a criaram ou
produziram. Que importa que o coronel tenha passado a doutor? Ou que a fazenda
tenha se transformado em fábrica? Ou que os seus auxiliares tenham passados a
assessores ou técnicos? A realidade subjacente não se altera nas áreas a que ficou
confinada. O fenômeno do “coronelismo” persiste até mesmo como reflexo de uma
situação de distribuição de renda, em que a condição econômica dos proletários mal
chega a distinguir-se da miséria. O desamparo em que vive o cidadão, privado de
todos os direitos e de todas as garantias, concorre para a continuação do coronel,
arvorado em protetor ou defensor natural de um homem sem direitos. (LEAL, 1997,
p.18).
A partir de 1964, grandes mudanças políticas alteraram o cenário nacional, com a
emergência de um regime autoritário. Durante vinte e um anos, os militares introduziram uma
série de reformas constitucionais, de modo que a legislação fosse adaptada aos seus interesses.
Transformou as futuras eleições em indiretas onde o presidente passou a ser escolhido pelo
congresso, os governadores pelas assembléias legislativas e os prefeitos das capitais passaram,
em 1966, a ser indicados pelos governadores. Além de editar o código eleitoral, modificaram
também a lei orgânica dos partidos políticos, impondo o bipartidarismo, onde todos os antigos
partidos surgidos com o fim da ditadura Vargas foram extintos para dar lugar a apenas dois,
um que representaria a oposição, o MDB (Movimento Democrático Brasileiro) e a ARENA
(Aliança Nacional Libertadora), partido governista.
Algumas reformas no Estado aconteceram na tentativa de reprimir o poder privado e
acabar com as suas formas de manipulação na esfera pública. A emergência de novos grupos
sociais, e de novas lideranças em torno do comércio e da indústria, minimizou as áreas de
atuação do velho coronel ligado exclusivamente à posse de terra. No entanto, mesmo no
referido período de autoritarismo, as oligarquias locais tinham o importante papel de
legitimação do poder central, Segundo Maria Auxiliadora Lemenhe (1995, p.29), essa
necessidade, pode explicar em partes a sobrevivência das formas personalísticas de exercício
de poder sendo que “as vitórias eleitorais sucessivas e ampliadas ao longo da ditadura dos
candidatos da ARENA são uma das provas mais evidentes disso”.
Lemenhe chama atenção para a problemática da reiteração do clientelismo na política
do estado do Ceará, como algo que está muito além de mera legitimação do poder central, ou
de interesses estritamente agrários devido ao atraso no desenvolvimento industrial do estado.
No caso estudado por ela, a dominação da política Cearense pelos “coronéis” da família
Bezerra de Menezes, os líderes personalistas representam um conjunto de interesses,
principalmente dos setores que se modernizaram e da burguesia industrial, e encontram
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15. 15
espaço e meios diversificados para exercer uma política de favores e atuar livremente de
forma tradicional.
Jean Blondel citado por Queiroz (1975, p.175), estudou o fenômeno do coronelismo
no estado da Paraíba em sua forma ainda vigente entre 1950 e 1960, e verificou que a
dominação familiar persistia, mas havia ocorrido uma evolução onde emergiram “novos
coronéis” agora dependentes de sua profissão e não mais da posse de terras. No caso aqui
estudado, a liderança em ascensão após 1972, Hamilton Rios de Araújo, encontra sua força
maior para permanecer no poder nos fundamentos de ordem tradicionalista, dentro da
formulação weberiana, no entanto, desenvolveu o segmento empresarial no município 1,
demonstrando habilidades de administração que objetiva a acumulação de capital. Neste
sentido, a dominação tradicional coexiste com práticas racionais voltadas para o
desenvolvimento econômico. Em muitas oportunidades, o poder econômico é essencial para
garantir a dependência do eleitorado, e as relações clientelistas encontram um terreno fértil
em que vicejar (CARVALHO, 2001, p. 4). E foi neste mesmo terreno que a família Rios
construiu seus alicerces, e os pilares da dominação.
1.1 Política de cores
A eleição de 1972, fez emergir no cenário de Coité, dois nomes que posteriormente se
tornariam os maiores rivais políticos, ambos com atividade econômica ligada à produção
agrícola e exportação do sisal e candidatos da então facção governista ARENA que
localmente era representada pelas sublegendas ARENA 1 e ARENA 2. Um deles, Misael
Ferreira de Oliveira, chega ao município na década de 1960, e logo inicia sua carreira política
como vereador em 1962 e 1966, exercendo na câmara a função de liderança. O empresário
Hamilton Rios de Araújo, pertencia ao mesmo grupo apoiado por Misael, sendo que ambos
eram antigos correligionários de Wercelêncio Calixto da Mota2, e a rivalidade só começou,
quando se enfrentaram pela primeira vez nas eleições municipais de 1972.
Vanilson Lopes (2002. p.79), memorialista local, relata as primeiras práticas de
Hamilton Rios para conquistar espaço político:
1
Hamilton Rios é um grande empresário da Indústria Sisaleira.
2
Político que encabeçou a política de Conceição do Coité por cerca de 40 anos.
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16. 16
Assim que Dr. Pinheiro tomou posse, o Sr. Hamilton Rios declarou que “daquele
dia em diante, seria o próximo candidato a prefeito apoiado pelo grupo de Evódio”.
Para conseguir seus objetivos, montou um carro pipa e, interessado em votos,
aproveitando o flagelo da seca de 1970, saiu distribuindo água nas roças e
povoados, pregando que o prefeito, juntamente com seus aliados, não dava
assistência ao povo. Durante dois anos, fez isso e muito mais: doou cestas básicas,
materiais de construção: (cimento, tijolos, blocos, telhas...), passagem de ônibus e
outros benefícios, a ponto das pessoas denominá-lo de “ pai da pobreza”.
A vitória de “Mitinho” na eleição, lhe transformaria num líder político habilidoso e
influente “reunindo muitos defensores fiéis e alguns fanáticos”(SANTOS, 2000, p. 34). O
“pai da pobreza” conseguiu adquirir o poder de fazer as coisas com palavras, num jogo onde
muitas vezes o capital simbólico prevalecia sobre o econômico. Deste modo elegeria por vinte
anos candidatos de sua facção, preferencialmente de seu círculo familiar sendo responsável
pela consagração do que viria a ser o “Mito Vermelho”. Mito, como era carinhosamente
apelidado por sua esposa, e vermelho, apesar de nenhuma sombra de ligação com a esquerda,
em decorrência da cultura política advinda da bipolarização dos grupos locais representados
pelas cores vermelha e azul. Símbolos que constituem uma marca na política local, um
verdadeiro folclore eleitoral, cujas origens permeiam por variadas versões entre os
memorialistas da cidade.
Francisco de Assis expõe em seu trabalho de especialização em estudos literários uma
versão, pouco difundida e aceita entre os coiteenses, de que a escolha das cores aconteceu a
partir de um caminhoneiro que visitou Parintins na Amazônia e se encantou com a rivalidade
folclórica entre os bois Caprichoso e Garantido, simbolizada tradicionalmente pelas cores
vermelha e azul, tendo indicado aos chefes políticos locais que adotassem as mesmas cores
para evitar a confusão de sublegendas partidárias. Outra possível explicação apontada por
Assis é a associação que muitos faziam entre maçonaria (“coisa do demônio”) e comunismo,
tradicionalmente associado à cor vermelha. Segundo ele, na década de 1960, certo político,
reconhecidamente maçom, concorreu a política de Coité sem sucesso, “os adversários do
político em questão, não perderam em sentenciar: “além de maçom ele é comunista, um
‘vermelho’ ”(SANTOS, 2000, p.41). Mesmo o comunismo sendo associado a coisa ruim, a
cor acabou ficando marcada como símbolo de um grupo político conservador.
Em um trabalho de memória, onde Roberto Lopes descreve alguns acontecimentos
que marcaram a sua vida, ele relata além da versão das cores ligada ao comunismo, desta vez
sendo associada à Evódio Resedá3 que também era maçom, uma versão simplificada por ter
3
Político considerado o pai da “vermelhada”, pois sempre fizera oposição ao grupo liderado por “Seu Mota”.
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17. 17
acompanhado de perto toda a movimentação do pleito de 1972. Segundo ele, numa reunião
de mulheres do grupo de Hamilton Rios, foi aprovada a cor vermelha para representar a
campanha, sendo confeccionadas várias bandeiras vermelhas com um desenho de uma estrela
verde e branca estilizado de por D. Maurícia Pinto, mãe de Everton Rios4. O outro grupo que
já costumava se associar à “cor azul, cor do céu” em oposição ao “vermelho, cor do diabo”,
assumiu definitivamente a utilização da cor.
A versão mais conhecida para a introdução e difusão das cores na política está relatada
no livro de Vanilson Oliveira (1993, p. 129):
A denominação de vermelhos e azuis começou a surgir no comício de Hamilton
Rios organizado para o povoado de Juazeirinho. Naquele mesmo dia, Gervásio
Lopes (Vazinho), estava ao lado de Miguel da farmácia juntamente com outros
colegas no povoado de onça, a 03 Km de Juazeirinho, onde seria organizado um
comício em prol de Misael Ferreira (candidato a prefeito pela ARENA 1). Sem que
esperassem surge uma caravana toda trajada de vermelha, conduzindo algumas
mamães sacodes da mesma cor. Surpreso, Gervásio chamou a atenção dos colegas
para assistirem a passagem dos “Vermelhos”. O mais interessante é que naquele
dia, sem perceberem estavam os mesmos trajados de azuis, assombrando os
“vermelhos” com gritarias e algazarras, chamando-os de vermelhos!!! vermelhos!!!
vermelhos!!! Imediatamente eles revidaram, chamando-os de
azuis!!!azuis!!!azuis!!!
As versões acerca da “coloração” dos grupos políticos são diversificadas quanto à
origem e sentido, mas a partir de sua difusão viera a se tornar uma característica fundamental
da cultura política local, conceito empregado aqui no sentido de “um conjunto de atitudes,
crenças e sentimentos que dão origem e significado a um processo político, pondo em
evidência as regras e pressupostos nos quais se baseia o comportamento de seus atores”
(KUSCHNIR, et al, 1999 p.1). Deste modo, a simbologia construída em torno de um
determinado candidato ou grupo apresenta-se como um fator de grande representação visto
que os símbolos não são meros adornos dentro do campo político, o real e o simbólico fazem
parte da mesma totalidade e o que se acredita também é parte da vida social. A política
aparece então como espaço fecundo para a construção do poder simbólico que se efetiva
através de discursos e ritos em diferenciadas campos. Neste sentido “o simbólico provoca a
presença do poder na vida cotidiana das instituições, funcionando como forma de
rememoração.” ( BARREIRA, 1998. p. 42 ).
4
Everton Rios é sobrinho de Hamilton Rios, e posteriormente elegeria -se prefeito por três mandatos.
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18. 18
Em época de campanha eleitoral, principalmente se os candidatos são desprovidos de
um programa com políticas públicas, as imagens apresentadas, somadas a algumas práticas de
clientela são determinantes no processo de escolha dos governantes. Os símbolos foram
explorados estrategicamente nas eleições de 1972, tanto por Hamilton Rios, como por Misael
através dos jingles que eram tocados nos carros de som pela cidade:
“Tengo, tengo , Santo Antônio Chalé !
Esse ano os “azuis” dão no pé! (bis)
É em Hamilton, que eu vou votar.
Hamilton é o candidato
Que a pobreza vai votar!”
“Quem é o candidato,
Que vem de Salgadália,
Montado em um cavalo
Com seu chapéu de palha?
É Misael Ferreira, quem vamos votar (Bis).
É Misael Ferreira que vai ganhar!”(OLIVEIRA, 2002, p.79-80)
A representação da rivalidade política por meio das cores fica evidente na primeira
música, onde se faz referência aos azuis afirmando que estes perderão o poder, visto que o
grupo liderado por “Seu Mota”, controlou a política de Coité por cerca de 40 anos. Ambas as
canções evidenciam a tentativa de aproximação dos candidatos com as camadas mais
populares, através da utilização de termos como “chapéu de palha” e “pobreza”. Tais imagens
durante o período bipartidário estão fortemente ligadas a avaliação que os eleitores fazem das
características pessoais dos candidatos. É o personalismo na estruturação do voto do eleitor
brasileiro resultante dentre outros fatores, da difusão de algumas ideologias antidemocráticas
e da estrutura econômica, onde uma boa parte da população não tem mínimas condições de
subsistência.
1.2 Concretização do “Mito”
A vitória da “vermelhada”, no pleito de 1972, seria apenas o início de uma série de
sucessões. Ligeiramente, “Mitinho” aprendeu as malícias do jogo político, “soube impor-se ao
eleitorado, realizando favores pessoais e participando de festas, bingos, rezas e leilões onde
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19. 19
arrematava todas as ofertas”(LOPES, p.109). Em 1976 lança o sogro de Ewerton Rios, Walter
Ramos Guimarães, como candidato a sua sucessão. Um comerciante que atuava como
vereador e tinha muita influência política no povoado de Aroeira, e juntamente com Evódio
Resedá, compôs a chapa contra os azuis Sinval Mota Mascarenhas, vereador e presidente da
câmara e Clélio Ferreira, comerciante do ramo farmacêutico. A campanha dos vermelhos
tinha o apoio político e financeiro do líder dos Rios que trabalhava na eleição “como se o
candidato fosse ele próprio”, e gastando “rios de dinheiro” conseguiu eleger Walter Ramos.
O mandato que duraria quatro anos foi prorrogado via Emenda Constitucional, pois as
eleições de 1980 para prefeito e vereador haviam sido canceladas estrategicamente pelo
presidente João Batista Figueiredo como um meio de manter a ARENA no poder. Em 1982,
restituiu-se o pluripartidarismo com o objetivo de fragmentar a oposição ao regime Militar. A
maior parte dos membros da ARENA agrupou-se no Partido Democrático Social (PDS), o
MDB transformou – se em PMDB, período em que surge também o Partido Democrático
Trabalhista (PDT) e o Partido dos trabalhadores (PT).
Em 1982 as eleições para prefeito e vereador ocorreram concomitante a de outros
cargos. Os brasileiros puderam eleger os candidatos a governador, o que não acontecia há
cerca de 20 anos, contudo uma lei emitida em 1981 proibia as coligações e estabelecia o voto
por legenda partidária, visando arrastar a votação dada aos governos municipais onde a
ditadura era mais forte, para os cargos majoritários. Contrariando esse princípio, o prefeito
que atuava no município Walter Ramos Guimarães do PDS, apoiou juntamente com Misael
Ferreira, a candidatura de Roberto Santos (PMDB) para governador da Bahia, fazendo
oposição à João Durval (PDS), candidato apoiado por ACM e “Mitinho”, “como uma forma
de reação das lideranças municipais aos métodos autoritários e personalistas do governador”5.
Na maioria das eleições estaduais e nacionais, os líderes locais dividiram o mesmo palanque,
com exceção para os anos de 1982, 1986, 1994, em que Misael apoiou candidatos contra
Antônio Carlos Magalhães.
O novo embate entre azuis e vermelhos, foi um dos mais polêmicos da história do
município. Nessa época Walter Ramos havia rompido com o grupo de Mitinho e apoiava a
candidatura de Misael e Clélio Ferreira para sua sucessão nas eleições municipais contra
Hamilton Rios e Evódio Resedá. Os métodos de conquista eleitoral não divergiam muito de
um candidato a outro, ambos, montaram uma estrutura muito semelhante à dos coronéis da
5
Tribuna da Bahia, Salvador, Nº 4665, 11 de Outubro de 1982. A matéria do jornal refere-se à insatisfação dos
líderes no que diz respeito ao processo de escolha de João Durval para substituir Clériston Andrade, candidato a
governador que morreu vítima de uma queda de helicóptero.
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20. 20
Primeira República, essencialmente calcada por práticas de clientelismo e barganha eleitoral,
visto que o poder político era medido através da quantidade de votos.
[...] Era normal no período das eleições, saírem os chefes políticos e seus cabos
eleitorais em tournées pelo interior, carregados de presentes para os eleitores -
botinas ringideiras para os homens, corte de vistosa chita para as mulheres da
família do eleitor, roupas e brinquedos para as crianças, sendo que, num envelope,
juntamente com a cédula do voto, havia outras de mil-réis... Saboroso folclore
eleitoral até agora pouco conhecido e pouco levado em consideração, mas que tem
um significado patente, pois revela uma verdadeira “compra” de voto. (QUEIROZ,
1975, p 178)
Tais métodos eram essenciais para garantir a fidelidade do eleitorado. A “bondade” do
coronel construía um laço entre ele e seu eleitor, que lhe dava o voto por lealdade, respeito e
veneração. Também é comum, os candidatos custearem os gastos para a população rural no
dia da eleição, bem como fornecer o transporte para levar o eleitorado até a sua zona de
votação numa relação de troca de favor que gera uma aparente consciência, pois o eleitor não
percebe que sua vontade está sujeita a do superior.
Apesar de utilizar os mesmos métodos de ação, os candidatos se distinguiam no
campo das relações de poder visto que o grupo de Hamilton Rios havia fortalecido as suas
bases de dominação validando-se da posse da prefeitura em dez anos de governo. Além disso,
o prefeiturável da vermelhada, já carregava sobre si um grande aparato simbólico. Roberto
Lopes narra um episódio em que um “curador” fazia um despacho no cemitério contra os
azuis causando a maior confusão com os eleitores de Misael. Com a aparição de Mitinho no
local “foi como se chagasse um Rei!”. A situação foi controlada antes da chegada da polícia,
pois ele era temido por todos e sabia se impor diante dos adversários. Deste modo, Hamilton
Rios, baseado em métodos antigos e “eficazes” de persuasão do eleitor, ao final da campanha,
venceu o pleito com duzentos e trinta votos de frente.
O resultado das eleições sempre fora contestado pela oposição, pois além da
tradicional “troca” do voto por algumas benesses, o próprio mecanismo eleitoral era falho
com o voto por cédula, havendo possibilidade das autoridades responsáveis pelo processo
também se corromperem. Em 1982, após sentir um mal estar, a juíza suspendeu as apurações
quando Misael ganhava com poucos votos de vantagem.
[...] Eu me julgo vencedor daquela eleição... Pois ali o veredicto na realidade, era a
vontade do povo. O povo queria Misael na prefeitura [...]. Eu perdi uma eleição fraudada!
Dormi prefeito e acordei derrotado. (Misael Ferreira, 26 jun. 2009).
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21. 21
Os “azuis” contestaram os resultados, mas, segundo Misael, não recorreram por vias
legais pois não tinha poder suficiente a ponto de “entrar numa ação segura para anular as
eleições”. Deste modo, durante os próximos seis anos, Conceição do Coité foi governada por
Hamilton Rios, que conseguiu sobreviver ao processo de transição para a democracia e
consolidou seu poder em seu último mandato. O jornal Tribuna Coiteense apresenta em uma
de suas edições de 1989, um balanço dessa fase, através de uma pesquisa feita com alguns
coiteenses onde analisaram a atuação político-administrativa de Hamilton Rios durante dez
anos como prefeito em dois mandatos, na qual concluíram que “o líder paternalista/
clientelista e assistencialista Hamilton Rios é um bom samaritano, amigo, prestativo e
popular, mas como representante dos interesses do povo, nunca soube o que é ser prioridade
e justiça social”. 6
A transição para a democracia no Brasil ocorreu de forma lenta e no cenário baiano, o
processo chegou a abalar as forças políticas ligadas à ditadura. ACM, que ascendeu e
consolidou-se sobre as bases do regime ditatorial, foi derrotado por Waldir Pires nas eleições
de 1986 para governador da Bahia, mas ligeiramente, soube adequar os seus interesses à Nova
república, em cujo governo de Tancredo Neves e posteriormente de Sarney, conviviam
personalidades que serviram à ditadura e aqueles que lutaram fielmente contra ela. Apesar de
apresentar tais contradições, o novo governo estava comprometido com o retorno da
normalidade institucional, deste modo o pleito de 1988 ocorrera num contexto bem
diferenciado do de 1982, com poucos dias após a promulgação da nova constituição brasileira.
Pela primeira vez as legendas criadas imediatamente após a reforma partidária de 1979
(PMDB, PDS, PTB, PDT e PT) disputaram uma eleição exclusivamente municipal.
Em Conceição do Coité, ocorrera a primeira disputa eleitoral com três candidatos a
prefeito. A novidade foi a candidatura de Arivaldo Mota e Meyre Sandra do Partido dos
Trabalhadores (PT), que visava construir uma identidade política em meio a um período
histórico marcado pelas disputas tradicionais. Na época, Misael atuava como Deputado
estadual e os azuis indicariam o nome de Doutor Iêdo (PMDB), um médico que havia
conquistado espaço político em decorrência da popularidade, mas após a sua morte quem
assume a candidatura é a viúva Tânia Cirino, juntamente com Gilberto Gonçalves. Mitinho
lança então o seu sobrinho Ewerton Rios de Araújo Filho, jovem recém-formado em
6
O Jornal expõe a nota que foi atribuída pelos entrevistados à saúde (7); educação (4); habitação (1); limpeza
urbana (3); segurança (1); transporte (1); industrialização (1); lazer (4); salários (2); agricultura (2); saneamento
(6) e urbanização (10). Tribuna Coiteense, 2ª quinzena de Janeiro de 1989, nº 40.
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22. 22
Economia que compusera uma chapa com Diovando Carneiro, e esses juntos conseguiram
mais uma vitória para os “vermelhos” com três mil setecentos e sessenta votos de frente, e por
meio dela conduziram os destinos de Conceição do Coité até 1992.
Desde o início de sua trajetória, Hamilton Rios conseguiu projetar sua imagem entre
muitos de seus seguidores e até adversários e construir em torno de si uma capa de imbatível.
Obteve em suas mãos o sinal e o conteúdo da Radio Sisal que atingia os ouvidos de um vasto
número de coiteenses. Mantivera uma política paternalista e assistencialista, onde os
benefícios públicos que eram aplicados por direito da população, acabavam sendo visto por
grande parte de seus eleitores como atos de bondade, dignos de retribuição. Além disso,
obtinha forte ligação com o governo carlista, atuando desta forma como distribuidor de cargos
estaduais no município, dava empregos aos seus, controlando funcionários públicos e todo o
sistema educacional, visto que em Coité não realizou nenhum concurso público para
professores até 1992. Concretizou o seu poder e fez sucessores políticos mantendo a sua
linhagem no comando por vinte anos. Todas as articulações foram mecanismos de controle
fundamentais na montagem de uma mega estrutura para sustentar o “Mito” e garantir que
nenhum vento pudesse o abater.
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23. 23
CAPÍTULO 2
Escravo do povo, herói da caridade
“Por isso é que da pobreza
Para nós surgiu algo novo
Da gema da nossa gente
Vem surgindo um renovo
Luz que veio clarear
Os dias do nosso povo [...]
[...] Com o seu grande prestígio
Com caridade e fé,
Servindo para o povo
Pois caridoso ele é,
Ele sim é o homem certo
Prá Conceição do Coité”7
Os valores cordiais e a exaltação das formas sensíveis da religião constituem aspectos
do comportamento social brasileiro que foram por muito tempo referencial de personalidade e
significam em certos meios fatores determinantes na escolha de um representante político.
Segundo Sérgio Buarque (1988, p. 112), os valores tradicionais característicos da formação do
Brasil desde o período colonial, transmitidos no seio familiar, conseguiram se manter, mesmo
diante da difusão das indústrias, e dos mecanismos capitalistas que restringem as relações
pessoais e distanciam os seres humanos. O núcleo familiar, lugar dos primeiros contatos
emocionais é responsável pelo modelo de relações sociais de onde resulta o caráter do
“homem cordial”, aquele que reage segundo o ritmo da afetividade.
Tais aspectos da formação social do brasileiro, que preserva o discurso voltado para a
moral e a ética, podem ser observados a partir de um olhar sobre o ambiente pré-eleitoral,
através das atitudes e dos jingles tocados pela cidade, onde os sussurros nas ruas confirmam o
que o eleitor observa no seu preferido: ele é “gente direita”, é de família honesta, portanto
“merece” ser votado. Neste sentido, os atributos pessoais, as emoções a subjetividade são
fatores de forte influência na escolha de um representante, despertado através da atmosfera
simbólica que rege as disputas eleitorais.
7
Diovando Carneiro, o herói da caridade. Conceição do Coité. Estrofe VI e XXVI.
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24. 24
Segundo Borba (2005, p.155), dentre as principais teorias que visam explicar o
comportamento dos eleitores no Brasil destacam-se as que estudam pela perspectiva racional,
onde as escolhas são movidas por fatores materiais; a de viés sociológico, que tem o foco nos
fatores macroestruturais e nas variáveis socioeconômicas, demográficas e ocupacionais; e a
que tem o foco maior no campo psicológico e psicossociológico, onde a estruturação do
comportamento eleitoral dos brasileiros é identificada como resultado das motivações e
percepções do indivíduo em relação à política. Nesta última, não é negado o impacto dos
fatores sociais, mas acredita-se que estes somente não explicam tudo.
Sendo assim, busca-se analisar também a orientação afetiva que mobiliza o
direcionamento do voto através das “imagens políticas” que são transmitidas ao eleitor e que
podem estar relacionadas às prioridades que os candidatos estabelecem em relação aos
interesses do povo ou da elite, ou ao posicionamento numa escala de direita e esquerda.
Contudo, as mudanças ocorridas nas ultimas décadas provocou um crescente descrédito na
esfera da representação pública, visto que houve uma diminuição das atividades partidárias e
um declínio dos partidos políticos, distanciando cada vez mais a população da participação na
política. Assim, faz-se necessário a difusão de novas ideologias e de personagens políticos
carismáticos, que desperte o interesse do eleitor que lhe dará um voto por confiança, como
afirma Irlys Barreira, citada por Bezerra (2008, p. 3):
[...] Uma figura pública, no contexto de um espaço público esvaziado, deveria
apresentar aos outros “aquilo que sente”, sendo essa representação sobre o seu
sentimento o móvel que suscitaria credibilidade. O enfraquecimento dos papéis
públicos, finalmente, converteria o discurso político em discurso psicológico.
Nesse contexto os atributos decisivos para o julgamento dos candidatos passam a ser a
competência e a honestidade, sendo que o grande fator de relevância na escolha dos
representantes é a avaliação que se faz de suas características pessoais. A análise do caráter,
voltada para o culto à personalidade influenciam mais do que as ações ou programas de
políticas públicas defendidas pelos aspirantes a algum cargo público.
2.1 Vando de Deus, dos pobres, de todos
O surgimento de um novo nome na política coiteense a partir de 1982 modificaria o
cenário municipal até então sob a égide de um domínio tradicionalista mantido pelo grupo
liderado por Hamilton Rios de Araújo. Diovando Carneiro Cunha, ou simplesmente “Vando”
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25. 25
para o povo, nasceu em Conceição do Coité no dia 2 de julho de 1938, e passou grande parte
de sua infância no povoado de Juazeirinho, onde vivia com seus pais. Aos dezesseis anos de
idade foi para Vitória da Conquista – Espírito Santo, a fim de trabalhar, mas voltou para a sua
cidade natal onde conheceu Maria Eridan Mascarenhas Cunha, com quem se casou e teve dois
filhos. Até então nunca tivera pretensões de exercer cargos públicos.
Vando residia na Fazenda Lagoa do Veado, e sendo um dos poucos a possuir carro na
região, sempre era cogitado para prestar algum serviço dando início a uma prática de auxílio
as pessoas que buscavam por sua ajuda. Era comum encontrar a sala da sua casa ocupada por
conhecidos e desconhecidos, que passavam a noite em colchonetes, para durante a madrugada
ser transportado para algum hospital fora do município. Como a prefeitura não ofertava esse
serviço para a comunidade visto que não possuía ambulância, ele se dispusera a transportar
aqueles que precisassem de acompanhamento médico em Salvador ou Feira de Santana, assim
como também socorrer os moradores daquela localidade em casos de emergência.
Apesar de não freqüentar a igreja todo domingo, era um homem religioso e participava
frequentemente das festas anuais da paróquia. Carregado de valores familiares tradicionais,
em seu discurso, demonstrava simplicidade e preocupação com os carentes, a ponto de ser
apelidado de “Irmã Dulce de Coité”. A expressão “povo de minha terra” frequentemente
utilizada por ele, para se dirigir aos coiteenses (principalmente os menos favorecidos)
evidencia não só a preocupação que tinha com a população humilde, mas dá idéia de
proximidade entre os membros do mesmo lugar de origem, do mesmo lar e, portanto uma
grande família, onde uns ajudam aos outros.
Incentivado por seus amigos Walter Ramos Guimarães e João Emílio se candidata a
vereador na eleição de 1982 pelo PDS apoiando a chapa de Misael. Foi a sua primeira
experiência política, na qual ganhou a eleição como o vereador mais votado, e foi eleito
também para presidente da câmara em 1985 exercendo o cargo até 1986. Durante todo o
mandato continuou o trabalho voluntário que fazia fortalecendo ainda mais os laços de
amizade com a população do município, que se encontrava inserida numa realidade nacional,
onde as políticas públicas não suprem as necessidades básicas do indivíduo, fazendo-se
necessário a “ajuda” de particulares, ambiente favorável para a emergência de lideranças
carismáticas que se apresentam com solucionadores dos problemas sociais e políticos.
A realidade vivenciada pela população era facilmente aproveitada pelos candidatos a
algum cargo público, que em época de eleição providenciavam cestas básicas ou outros
“presentes” para angariar votos. No caso de Diovando, tais práticas já faziam parte de sua
rotina e mesmo que não tivesse a intenção de se promover politicamente, provocava um
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26. 26
sentimento de gratidão devido à sua forma de assistência, despertando o interesse do grupo
situacionista que via a possibilidade de ganhar mais uma eleição tendo Vando ao seu lado.
Forneceram-lhe um carro para transportar os doentes e propuseram-lhe que rompesse com o
grupo político dos “azuis”, e se candidatasse a vice-prefeito de Everton Rios de Araújo Filho,
até então apenas conhecido como “o sobrinho de Hamilton Rios”, pois não tinha atuado em
nenhum cargo político. Diovando, que nunca fora “apegado” ideologicamente com partido
algum, disputa agora ao lado do grupo situacionista numa nova campanha vitoriosa, como
relata seu sobrinho Joilson:
Utilizou-se desta ingenuidade de Vando desse ser desprendido e sem preguiça
porque todos os dias ele saia daqui três horas da manhã e praticamente chegava dez
onze horas da noite. Então, esse movimento rendia muito voto sem eles ter que botar
a mão no bolso. (Joilson Araújo, 2. jul. 2009)
A popularidade de Vando, somada à força política do grupo dos vermelhos exerceu
influência determinante na vitória de Ewerton Rios na eleição municipal de 1988, contra
Tânia Cirino, esposa de Dr. Iêdo. A visibilidade que foi dada ao seu nome é evidente nos
panfletos de divulgação onde o candidato a prefeito e a vice, aparecem em destaque, diferente
do que comumente acontecia que muitas vezes a ênfase recaia sobre aquele que encabeçava a
chapa, deste modo, esta união garantiria por mais quatro anos o poder nas mãos da
vermelhada.
Durante o período em que atuava como vice-prefeito, Vando teve um filho fora do
casamento, Diovando Almeida Quirino Cunha, e apesar de exercer um cargo de visibilidade, a
união extraconjugal não afetou a sua popularidade. O título de vice-prefeito não impediu que
continuasse realizando o trabalho voluntário, mesmo sendo criticado pelos adversáros, suas
ações despertava a sensibilidade em quem conhecia a sua história, e reforçava ainda mais a
figura de pessoa caridosa e sem interesses financeiros, como aconteceu com um
caminhoneiro, fato narrado por Joilson, em entrevista mencionada anteriormente:
[...] “rapaz ontem eu encontrei aqui uma pessoa cansada dormindo no carro, com
mais de dezoito pessoas dizendo que tava levando pra Coité e que ele era o vice-
prefeito, eu num acreditei. Eu nunca vi vice-prefeito com o salário que ganha ficar
transportando pessoas”. Aí meu pai, cunhado de Vando, disse: “não, é meu cunhado
ele faz isso há muito tempo!”. Aí o sujeito ficou tão impressionado que falou:
“quando eu tiver oportunidade ainda vou transferir o meu título e morar em coité só
pra votar nessa pessoa”.
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27. 27
Esse espírito solidário despertava curiosidade naqueles que encaravam certas atitudes
possivelmente comuns para um candidato, mas absurdas para um vice-prefeito, e fazia com
que se destacasse entre os demais que em épocas de eleição voltavam-se para o
assistencialismo, sendo que Vando agia em prol do outro em qualquer momento ou lugar.
Roberto Lopes (2009, p.64) coordenador da campanha de Vando para prefeito, narra um
episódio em que compara a atitude de Diovando com a de Hamilton Rios quando este se
candidatou pela primeira vez em 1972:
Durante a Campanha, fui com Vando a Salvador e lá pelas tantas da noite, ele
inventa que ia fazer uma visita no bairro Cosme de Farias. Passou um tempo
precioso. Quando olho pra cima, “praquelas” ruazinhas tortuosas e estreitas, entre
construções desinformes, lá vem Vando descendo uma escada de Madeira em
balanço, com uma velhinha nos braços em tempo de tropeçar e rolar ladeira abaixo.
Lembrei-me de Mitinho quando em campanha idêntica, no Tabuleiro de 1972,
beijou uma vela esquálida, tuberculosa, cuspindo sangue [...].
Foi nesse ambiente de assistencialismo que a imagem pública de Diovando começa a
ser desenhada e difundida entre o “povo” de sua terra, imagem bem caracterizada nos
“singelos versos” cheios de empolgação e emoção das páginas de um livreto de cordel escrito
em sua homenagem. Literatura que constitui uma manifestação popular, e ajuda a
compreender vários aspectos do cotidiano e da opinião de quem o produziu. É possível
reconhecer no cordel, a visão popular acerca dos atributos que mais enobrece o ser humano
que Diovando Carneiro é. O fato de não ser um membro da elite, mas um morador da zona
rural tinha um peso importante no campo das relações sociais, pois ele conhecia bem o
homem do campo e suas limitações. A relação que tinha com Irmã Dulce para dar assistência
aos carentes, o apego à religiosidade, transmitia a idéia de que suas obras não tinham interesse
político, mas era um compromisso cristão com o outro, tido como irmão, reconhecendo nele
um ser desinteressado e portanto diferente dos demais.
O autor, que não se identifica, intitula: “Diovando Carneiro, o herói da caridade”, e
tenta ao longo de suas palavras comprovar o porquê de tal afirmação. Inicia deixando bem
claro que “o homem só vale pelo que é”, colocando o prestígio pessoal obtido por alguém que
conserva os seus valores e sua moral, como mais valorizados do que a posse de riquezas, idéia
esta comumente difundida na Bahia durante século XIX, aspecto que pode ser observado nos
frequentes casamentos entre membros de famílias tradicionais empobrecidas com ricos
brasileiros e estrangeiros, a fim de estes se apropriarem do prestígio que o “nome” de tais
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28. 28
famílias poderia lhe trazer. Do mesmo modo que criados e escravos, trabalhavam com
dedicação ao seu senhor a fim de lhes serem reconhecidos qualidades de “gente direita” sendo
que sua dedicação garantiria além de casa e comida a esperança da ascensão social e “tudo
isso valia mais do que dinheiro” ( MATOSO, 1992, p. 13).
Dentro dessas concepções, o “valor” de Diovando Carneiro não estava no que ele
tinha, seu reconhecimento fora adquirido principalmente por ser um homem caridoso e
desapegado a títulos ou promoções, de modo que efetuava seu trabalho voluntário sempre
com muita disposição e alegria, e apesar de ser reconhecido e aplaudido pelo povo não se
vangloriava agindo com humildade. A figura do “herói”, também chamado de “Diovando do
povo, ou mesmo Vando de Deus”, representava um sinal de esperança para uma população
“carente de paz e não somente de cobre” e cujas autoridades dedicavam seu tempo e atenção
apenas com promessas e “palavras bonitas”, enquanto Vando estava presente e era próximo à
realidade daquelas pessoas.
Quem bem conhece Diovando
é o povo sofredor
o trabalhador rural
o popular lavrador
Diovando os conhece
e eles lhe dão valor.
Conhecer, nas palavras do autor, significa muito mais do que perceber a existência,
chamar pelo nome, ou saber onde mora, está ligado à questão do relacionamento direto e,
portanto a troca de experiências de vida, pois somente conhecendo poderia perceber as
necessidades do outro e fazer algo em seu favor. No campo das representações, ou seja, o
campo simbólico da construção de articulações entre candidatos e eleitores, o ideal de
proximidade é responsável pela criação de laços entre representantes e representados, pois
revela a harmonia de interesses e valores (BARREIRA, 1998, p.43). Graças a tais
características apontadas no texto, e ao comportamento tido como digno, o autor pede a
benção de Deus para “o ventre que o gerou”, exaltando a educação familiar que fez de
Diovando Carneiro um “homem correto”, que veio ao mundo para dar felicidade ao seu povo.
O texto é redigido no momento em que Vando atuava como vice-prefeito juntamente
com Everton Rios, cargo que, segundo o autor, lhe foi dado como um sinal de gratidão por
parte da população reconhecendo o seu esforço e confiando em seu trabalho.
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29. 29
Filho de Joazeirinho
terra que lhe concebeu
um cargo de confiança
o povão lhe concedeu
e para vice - prefeito
o povo lhe elegeu
E assim congratularam
o querido Diovando
e pelos cantos da cidade
tem grupinhos comentando
vamos fazer nossa parte
as eleições vem chegando
O poeta enfatiza o vermelho que Vando representava no momento, mas apesar de se
tratar do grupo situacionista com forte poder econômico, essa não seria uma característica
dele. Com a proximidade das eleições municipais ambos os grupos políticos discutiam acerca
dos candidatos para concorrerem a uma vaga na prefeitura e a figura de Diovando estava
muito comentada na cidade como um possível nome que os “vermelhos” lançariam. E como
não seria diferente, já começava os preparativos para o próximo pleito, onde o povo
demonstraria a força do “sangue vermelho” que corre na veia de seus seguidores fiéis.
Sendo assim logo veremos
o santo guerreiro cobrir tudo
e derrotar com conteúdo
o dragão do dinheiro
pois o vermelho que corre
nas veias, vale por tudo
Nas artérias dos miúdos
que são seus eleitores
Que eles chamam analfabetos ou rudes
Mas são fiéis seguidores;
Corre o sangue vermelho
No corpo dos sofredores
O “herói popular” parecia representar uma ameaça para as lideranças tradicionais
locais, que não queriam deixar o poder nas mãos de um “carregador de defunto”, “tabaréu”8.
Além disso, era preciso manter a tradição familiar e Vando não fazia parte da estirpe. Na
oposição, o líder dos azuis, Misael Ferreira, já havia disputado três eleições mal sucedidas,
8
Diovando era apenas alfabetizado, e os discursos o apontavam como despreparado e incapaz, principalmente
pela baixa escolaridade.
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30. 30
para prefeito em 1972 e 1982 e uma para Deputado em 1990, e não se achava em condições
de encabeçar outra campanha tão próxima. Alguns amigos de Diovando o incentivavam a se
lançar para prefeito, mas o grupo de Hamilton Rios descartara esta possibilidade. Deste modo
os representantes dos “azuis” percebem no então vice-prefeito uma chance de conquistar o
poder, em decorrência da popularidade que o mesmo havia adquirido.
Não existe adversário
por mais que seja atrevido
que ouse falar mal dele,
pois nunca foi merecido
mesmo sendo dos vermelhos
pelos azuis é querido
Até a oposição
já aprova seu talento;
o seu trabalho real
prova o reconhecimento
e as pesquisas já falam
de seus oitenta por cento
O ambiente relatado no cordel deixa bem claro, que a população cogitava o nome de
Vando para as futuras eleições, e acima de tudo que o poeta reconhece nele uma bondade
desprendida e desapegada, livre de opção política ou partidária, pois atende a “toda a classe” a
qualquer hora, chegando ao ponto de a oposição reconhecer o seu talento. Deste modo não
existindo defeitos, seria um atrevimento alguém lhe direcionar uma crítica, mesmo sendo um
adversário político, pois era mais vantajoso estar com ele do que contra ele. E foi isso que as
lideranças representantes do PMDB e PL fizeram, motivados por interesses de ambos os
lados, montaram uma aliança entre Diovando Carneiro e Misael Ferreira para disputar o cargo
de prefeito em Coité.
2. 2 Uma campanha do coração
A partir do cordel e da análise do discurso político de Diovando Carneiro, pode-se
identificar na sua figura, um extravasamento de emoções que se desenvolve em um ambiente
relacional e que contagia um grupo ao seu redor, elementos que Max Weber (1991, p.159)
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denomina de carisma, ou seja, “uma qualidade pessoal considerada extracotidiana”, e em
virtude da qual se atribuem a uma pessoa características sobrenaturais, e portanto digna de
liderança. Assim como os outros tipos de dominação definidos pelo autor, um líder
carismático só exerce poder mediante o reconhecimento por parte de seus seguidores, nesse
sentido o poder do carisma não é atribuído legalmente ou dado por tradição, mas é baseado na
exemplaridade do caráter, numa crença da santidade das ações heróicas realizadas pelo líder.
Dentro da perspectiva Weberiana, o tipo carismático realiza suas atividades com o
sentido de missão e vocação, desapegado a recompensas ou a uma atividade econômica
contínua. Seu reconhecimento é obtido em virtude do êxito de suas ações, e mediante tais
“provas” consegue manter o prestígio perante aqueles aos quais dirige a sua missão. Neste
sentido o poder de Diovando Carneiro só existiria enquanto os seus “fiéis seguidores” o
reconhecessem como um líder, através de uma avaliação subjetiva de seu discurso, e da
imagem que conseguira projetar. Após obtido o reconhecimento, esse força “sobrenatural”
seria capaz de mover uma massa em prol de um ideal, visto que
O carisma é a grande força revolucionária nas épocas com forte vinculação à
tradição (...) significa uma modificação da direção da consciência e das ações, com
orientação totalmente nova de todas as atitudes diante de todas as formas de vida e
diante do mundo em geral. (WEBER, 1991, p. 161).
Weber destaca o papel das lideranças carismáticas como força de transformação em
contextos de poderes tradicionalistas visto que o possuidor de tais características tem o poder
destituído de base racional, composto por instabilidades, incorporando facilmente aspectos
revolucionários, de mudanças.
Durante as campanhas políticas de 1992, a estratégia das lideranças azuis foi montar
uma chapa que reunisse o carisma de Diovando Carneiro e o respaldo político de Misael
Ferreira, visto que este já possuía uma caminhada no grupo e também atuou como Deputado
Estadual entre 1987 e 1991, logo, percebiam nessa aliança uma chance de retirar o poder das
mãos da família Rios. Como adversários, teriam que enfrentar a força tradicional, financeira e
simbólica de Hamilton Rios de Araújo, que junto com Jorge Tirço usaria todas as armas para
garantir a manutenção da máquina administrativa em suas mãos. Mesmo assim Vando se
lançou sem nenhuma pretensão, pois não tinha recursos econômicos, e teria deste modo que
se valer de outras estratégias para conquista do voto.
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Após o estabelecimento da aliança entre Vando e Misael, ambos afiliaram-se ao
Partido Liberal (PL), tentaram uma aliança com Partido dos Trabalhadores local, mas o
mesmo se recusou. Na falta de um financiador, a campanha contou com o apoio de alguns
comerciantes e empresários simpatizantes dos azuis, mas os recursos eram poucos
comparados ao montante investido pelo grupo rival. Nos comícios da chapa de Hamilton
Rios, os proprietários de automóveis ganhavam gasolina para participar das carreatas, que
sempre chamavam a atenção pelo grande número de veículos e pessoas. Era comum também a
distribuição de camisas e bandeiras vermelhas para os eleitores, assim como a realização de
“showmícios” sempre com bandas locais e fogos de artifício para dar um ar de “festa da
vitória”, mesmo antes do pleito. Os grandes comícios ganhavam destaque mediante a
utilização de recursos simbólicos, onde “ o palanque na condição de lugar convergente de
olhares e escutas, oferece a metáfora do trono provisório. Durante o evento, o candidato
“reina” e sua principal estratégia é transformar o provisório em Definitivo” (BARREIRA,
1998 . p.95) e sendo assim mobilizar a massa em prol de um ideal.
Os comícios e caminhadas representam uma dimensão entre “povo e políticos”
ajudando fortalecer o ideal de proximidade. Neste sentido as campanhas aliam estratégias de
propagação de idéias nos meios de comunicação e formas simbólicas de exposição de
candidatos no espaço público através do contato físico com o eleitorado proporcionando uma
relação de proximidade. Numa campanha, principalmente em cidades pequenas, nem tudo o
que acontece é estruturado por especialistas em marketing, visto que “as novas formas de
comunicação política não substituem mecanicamente práticas dotadas de vitalidade como
inauguração, comemorações, manifestações e comícios “( BARREIRA, 1998. p. 23). Neste
sentido, a campanha de Vando e Misael, foi no silêncio, principalmente devido a falta de
recurso para investimento, aconteciam comícios, mas as carreatas eram muito inferiores
equiparadas a do adversário. O contato direto com o povo, em caminhada pelos bairros e
também na zona rural, sempre enfatizando a prioridade em relação a saúde foram as
estratégias principais dos azuis.
Ao romper com o grupo situacionista, imediatamente retiraram o carro ao qual
Diovando utilizava em seu trabalho voluntário, pois a utilização do mesmo só seria viável
para Hamilton Rios tendo Vando ao seu lado, no caso de ruptura, assistência ao povo não era
mais útil, portanto foi cortada com o intuito de diminuir a chance de influência no
direcionamento do voto. Deste modo, graças a ajuda de alguns amigos como João Emílio,
com a doação de uma caminhonete, Vando pode continuar o trabalho de assistência, mesmo
contrariando aqueles que o considerava uma ameaça às estruturas tradicionais.
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O momento da campanha eleitoral, faz emergir ou “aflorar” atitudes pouco comuns em
outras épocas possibilitando analisar não só o jogo de estratégias em busca do voto, mas é um
campo produtivo para se entender variadas dimensões do cotidiano cultural de determinada
sociedade. Em Conceição do Coité a partir da década de setenta, o nome dos candidatos
sempre foi vinculado às cores que representavam o seu grupo político e não ao partido que
eram afiliados, visto que os mesmos mudavam frequentemente de legenda, e na maioria dos
pleitos a rivalidade era apenas municipal. Grande parte do eleitorado não era guiada por
ideologia ou propostas políticas, mas pelo jogo de interesses entre os que fazem parte dos
beneficiados e os que não obtêm benefício algum dentro da prefeitura.
A cultura política local movida pelas cores obrigava alguns fanáticos, a renovar o
guarda-roupa para não vestir a camisa do “time” adversário. Nessa eleição a coloração não
seria diferente, o “vermelho” estaria presente nas bandeiras, no slogan e nos jingles dos
representantes da situação. A chapa adversária deslocou o foco da cor azul e direcionou para a
emoção, na tentativa de demonstrar que representava os interesses de todos fizeram uma
campanha onde “azuis e vermelhos são irmãos”. Nos cartazes, camisas e santinhos, o nome de
Vando aparece com a letra “o” em forma de coração, pintado de azul e vermelho.
Numa simbólica união, o destaque que foi dado à sensibilidade, indica que Diovando
pertencia a todos e o seu coração não fazia distinção política, pois tratava as pessoas como
irmãos. Partindo dessas características, o slogan de campanha elaborado pelo marqueteiro
Roberto Lopes enfatizou a sensibilidade do candidato, aquele que reage segundo o ritmo da
afetividade, “o prefeito do coração”, pois o mesmo não possuía riqueza material, e um voto de
confiança lhe seria dado livre de interesses materiais movidos pelo afeto, por emoções. Nesse
sentido Joilson afirma que:
[...] no Vando não tinha razão, você não encontrava a racionalidade! Então não
encontrando a racionalidade pra perceber que ele representava a liderança que era,
ele usava só a sensibilidade, e aí não tinha como não fazer uma campanha em cima
daquele ser[...]. Faltou no Vando unir razão e coração então o destaque foi mais em
cima do que ele era, e isso ajudou muito a população perceber que de fato Vando
era só coração, era só amigo [...].
Segundo Ada Bezerra (2007, p.4) em seu estudo sobre sentimentos e emoções na
política, o campo das disputas simbólicas onde o indivíduo depende de fatores externos e da
aceitação carismática por parte do eleitorado, o uso das emoções no discurso dos apelantes é
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fundamental. O momento das eleições é percebido como uma “situação na qual a troca
simbólica se realiza entre voto e adesão por credibilidade”, onde a relação de confiança é
promovida por meio de apelos sentimentais, crenças e subjetividades do imaginário
despertado a partir das emoções. Nesse contexto, há uma interação entre valores culturais e
políticos onde um conjunto de crenças no terreno da subjetividade será o ponto de partida para
as percepções políticas de cada eleitor, que se dá nos discursos, nas imagens e nas músicas
que compõem a trilha sonora do município em períodos eleitorais.
Em um dos jingles políticos da campanha de 1992, paródia da música Desejo de
amar é possível identificar a exaltação da figura de Diovando como o “salvador” da cidade,
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a única solução para os problemas de Conceição do Coité. Numa conexão entre política, parte
do mundo secular, e sinais de “encantamento”, um apelo mágico de um povo que sofre a
espera de “salvação”, o candidato é apresentado como aquele que está sempre disposto a
ajudar nas horas difíceis, tanto a azuis quanto a vermelhos:
Vando foi chegando com amor dando a mão
A você, e tocou o seu coração não vou lhe esquecer
Me machuquei, me feri , me perdi
Com prazer, Vando não deixa na mão, não, não, não.
Hoje estou decidido vou votar
E vencer, Vando nasce pra ganhar, pra salvar Coité
Hoje o azul e vermelho é irmão
Em Coité e não tem separação não, não, não.
O povo está sozinho precisando de você
Mas Vando sempre está por perto pra poder lhe ajudar
A estrada dessa vida está difícil sem você
Mas Vando sempre está por perto pra poder lhe ajudar.
Em outra canção, não diferente, se enfatizam as práticas de assistência aos pobres nos
momentos de tristeza e atribulação, e como se o candidato fosse um super-herói o povo pedia
“Vando salve esta terra linda, salve o nosso lugar [...], este povo vai gostar”. As letras de um
modo geral faziam referência às dificuldades vivenciadas pelos coiteenses, as quais seriam
muito mais complicado de enfrentar sem a ajuda de Vando, deste modo a eleição torna-se
uma grande oportunidade para que ele estivesse sempre perto dos necessitados, e ajudar ainda
mais. Segundo Silvia di Poli (2008, p. 14), os jingles, são repletos de apelos sentimentais, por
isso:
DANIEL; PAULO, João. Desejo de amar. João Paulo e Daniel. 2002. 1 disco compacto ( 62 min): Dolby
9
Digital 2.0.
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