1. OBRA ANALISADA Memórias do Cárcere
GÊNERO Narrativo - memórias
AUTOR Graciliano Ramos
DADOS BIOGRÁFICOS
Nome completo: Graciliano Ramos de Oliveira
Nascimento: 27 de outubro de 1892, na cidade de
Quebrangulo, sertão de Alagoas.
Morte: 20 de março de 1953, no Rio de Janeiro-RJ,
de câncer no pulmão
BIBLIOGRAFIA
Romance
- Caetés (1933)
- São Bernardo (1934)
- Angústia (1936)
- Vidas secas (1938)
- Brandão entre o Mar e o Amor (1942, romance em
parceria com Rachei de Queiroz, José Lins do Rego,
Jorge Amado e Aníbal Machado)
Memórias
- Infância (1945)
- Memórias do cárcere (1953)
Contos
- Alexandre e outros irmãos - Histórias de
Alexandre, A terra dos meninos pelados e Pequena
história da República (1944)
- Dois dedos (1945)
- Histórias Incompletas (1946)
- Insônia (1947)
- Sete Histórias Verdadeiras (1951)
- O Estribo de Prata (conto infanto-juvenil)
Crônicas
- Linhas tortas (1962)
- Viventes das Alagoas (1962)
Outras
Relatos
- Viagem - impressões sobre a Tcheco-Eslováquia e
a URSS. (1954)
- Cartas - correspondência pessoal.
RESENHA
Memórias? Sim, relato que alguém faz, muitas vezes
na forma de obra literária, a partir de
acontecimentos históricos dos quais participou ou foi
testemunha, ou que estão fundamentados em sua
vida particular.
Escrito postumamente em quatro volumes (sem o
capítulo final, pois Graciliano faleceu antes de
concluí-lo), narra acontecimentos da vida de seu
autor e de outras pessoas que estiveram presas
durante o Estado Novo. Narrativa amarga, mas sem
exageros ou invenções; é obra fiel aos
acontecimentos. Se há amarguras e sordidez, é
porque as situações vividas foram sórdidas e
amarguradas.
A obra é testemunho da realidade nua e crua de
quem, sem saber o porquê, viveu em porões
imundos, sofreu com torturas e privações
2. provocadas por um regime ditatorial - o ESTADO
NOVO.
O discurso, regido pela égide da opressão, é
caracterizado pelo desdobramento: é psicológico, e,
ao mesmo tempo, um documentário; é particular,
mas universaliza-se.
“O mundo se tornava fascista. Num mundo assim,
que futuro nos reservariam? Provavelmente não
havia lugar para nós, éramos fantasmas, rolaríamos
de cárcere em cárcere, findaríamos num campo de
concentração. Nenhuma utilidade representávamos
na ordem nova. Se nos largassem, vagaríamos
tristes, inofensivos e desocupados, farrapos vivos,
fantasmas prematuros; desejaríamos enlouquecer,
recolhermo-nos ao hospício ou ter coragem de
amarrar uma corda ao pescoço e dar o mergulho
decisivo. Essas idéias, repetidas, vexavam-me;
tanto me embrenhara nelas que me sentia
inteiramente perdido.”
Graciliano mostra-nos que a prisão é um lugar onde
não há mais o espaço da intimidade. Vê-se apenas
corpos em situações humilhantes e vexatórias. É
importante ressaltar que estes corpos marcam-se
como o espaço da resistência. Embora passem por
todas estas torturas, resistem à morte
anteriormente anunciada. Esta é uma vitória tanto
de Graciliano quanto de seus companheiros de
cárcere, pois faz-se uma denúncia da violência que
todos sofrem.
ESTILO DE ÉPOCA Modernismo – segunda geração
Narrativa autobiográfica presa à subjetividade do
autor; mas não se esgota apenas no registro de seu
drama pessoal, pois ultrapassa o individual para
atingir o social e o universal.
Dono de estilo contundente e direto, Graciliano
Ramos é um dos mais importantes autores da
literatura brasileira, cujo interesse estético é
inseparável do comprometimento ético.
Nesta publicação póstuma, o autor ocupou seus
últimos anos, tornando públicos, “depois de muita
hesitação”, acontecimentos da sua e da vida de
outras pessoas - políticos ou não, intelectuais ou
não, homens e mulheres - presos durante o Estado
Novo.
Ao fazer uso da forma autobiográfica, ao falar de si
mesmo, intencionalmente mistura a sua voz a
outras, até então silenciadas, contrariando assim a
perspectiva natural desse tipo de relato.
Está claro que a leitura de hoje não pode ser a
mesma de há quase quarenta anos. O próprio
desenrolar da História traz outra visão para os fatos
narrados. E isto se manifesta particularmente,
segundo me parece, no modo pelo qual passamos a
ver, no livro, a relação entre o sujeito da
3. enunciação e o sujeito do enunciado.
O sujeito da enunciação é o narrador-autor,
biograficamente definido e cujo vulto já entrou em
nosso imaginário. O mesmo que afirmaria, no Auto-
retrato aos 56 anos, ser ateu, odiar a burguesia e
adorar crianças, desejar a morte do capitalismo,
gostar de palavrões escritos e falados, não dar
preferência a nenhum de seus livros publicados e ter
como leitura predileta a Bíblia. Seria preciso
acrescentar que era comunista de carteirinha
fornecida em 1945, e que assumia publicamente a
defesa de seu partido.
O sujeito do enunciado, isto é, o Graciliano da
época em que a ação decorre, tem o mesmo ódio à
burguesia, ao capitalismo e, ademais, está
profundamente cônscio do peso que a condição de
classe tem na mentalidade dos indivíduos (não fosse
ele o autor de São Bernardo...). E alguém que
assume uma "corajosa amargura" e que tem o
"sentimento ateu do pecado", conforme se
expressou o crítico Antonio Candido (1956:71-73)
que viu também em Graciliano "uma espécie de
anarquismo profundo que não raro se desenvolve
nos homens de sensibilidade".
O sujeito da enunciação procura dar voz ao outro
sujeito, mas nem sempre a fusão se dá totalmente,
percebe-se até certo distanciamento entre os dois.
As Memórias do cárcere dão o paradigma dessa
complexidade textual. Ao percorrê-las, somos
levados tanto a reconstituir a fisionomia e os gestos
de alguns companheiros de prisão de Graciliano,
quanto a contemplar a metamorfose dessa matéria
em uma prosa una e única - a palavra do narrador.
O narrador contempla corpos sofridos que às vezes
emitem palavras, talvez idéias, farrapos de idéias,
mas estas importam-lhe pouco em si mesmas. A
solidariedade que lhe inspiram aqueles homens é
existencial, para não dizer estritamente corporal.
Não é a luta partidária de cada um que o afeta, mas
o seu modo próprio de estar naquelas condições
adversas, o seu jeito de sobreviver.
INTERTEXTUALIDADE
Memórias do Cárcere – Camilo Castelo Branco,
1862
Camilo Castelo Branco seduz e rapta Ana Plácido
(esposa do negociante Pinheiro Alves); são
capturados pelas autoridades e julgados. Este caso
emocionou a opinião pública pelo seu conteúdo
tipicamente romântico do amor contrariado que se
ergue à revelia das convenções sociais. Ficam
presos na cadeia da Relação do Porto, local onde
foi escrita a obra (dois volumes, escritos em
quarenta dias), tendo conhecido o famoso
delinqüente Zé do Telhado.
Zé do Telhado inspirou a literatura de cordel,
romances biográficos (Eduardo de Noronha, 1923),
4. uma opereta e três filmes (Rino Lupo, 1929;
Armando de Miranda, 1945-49).
Música “Poeira”, de Cordel do Fogo Encantado
Na tela dos cinemas, Nelson Pereira dos Santos
deixou registrado em 1984, as Memórias do
Cárcere:
No final de 1934, as diferentes tendências de
esquerda atuantes na vida política do Brasil
tentaram unir suas forças, temendo o avanço do
fascismo representado pela Ação Integralista
Brasileira e as indecisões do Governo Getúlio
Vargas. O movimento culminou na criação da
Aliança Nacional Libertadora, lançada em março de
1935, recrutando a maior parte de seus adeptos nas
classes médias urbanas, especialmente entre
militares, intelectuais, profissionais liberais e
estudantes. A ANL iniciava suas atividades como um
vigoroso movimento de massas, no qual conviviam
comunistas, socialistas, católicos, positivistas e
democratas de vários partidos, atraídos pela frente
ampla antifascistas, antiimperalista e
antilatifundiária.
O período de legalidade da Aliança Nacional
Libertadora durou, entretanto, menos de quatro
meses: sua sede foi fechada pela polícia a partir de
um decreto governamental baixado em julho de
1935. A clandestinidade reforçou, dentro da ANL, a
iniciativa do Partido Comunista, mas o que se
delineava como ampla frente de massas se
resumiria a um movimento conspiratório executado
por uma fração ínfima dos efetivos militares do país.
O levante de novembro de 1935, liderado por Luiz
Carlos Prestes apoderou-se de quartéis em Natal,
Recife e Rio de Janeiro, mas foi facilmente sufocado
pelo Exército. A partir de então, a repressão
desencadeada recai não só sobre os comunistas,
mas também atinge, sob a proteção de medidas
constitucionais de defesa da ordem política e social,
a todos os suspeitos de colaboração com a extinta
ANL.
Estavam suspensas as garantias das liberdades
individuais de todos os brasileiros, inclusive as do
escritor Graciliano Ramos, que em março de 1936
ocupava o cargo público de diretor de instrução do
Estado de Alagoas, até ser preso e conduzido à
longa viagem descrita em Memórias do Cárcere.
O filme tem o mesmo ritmo seco e direto da obra
homônima. No espaço mínimo da prisão estão todos
os elementos da sociedade brasileira da época: o
jovem, a mulher, o negro, o nordestino, o sulista, a
classe média militar, o prisioneiro comum, o ladrão,
o homossexual.
A cela era o microcosmo social. É um filme sobre a
liberdade e a libertação, não só da prisão, como
também de nossos preconceitos.
A história de Nelson Pereira dos Santos se confunde
com a trajetória do próprio cinema brasileiro.
VISÃO CRÍTICA
5. A obra lida é a análise da prepotência que marcou a
ditadura Vargas e que, em última análise, marca
qualquer ditadura. É um dos depoimentos mais
tensos da literatura brasileira. A narrativa é amarga,
mas sem exageros ou invenções, o autor é fiel aos
acontecimentos. Se há amarguras e sordidez, é
porque as situações vividas foram sórdidas e
amarguradas.
Nos três primeiros parágrafos do livro ele se explica,
justificando a demora de dez anos. E, depois,
resolvido a escrever, sabe que sua narrativa será
amarga: “Quem dormiu no chão deve lembra-se
disto, impor-se disciplina, sentar-se em cadeiras
duras, escrever em tábuas estreitas. Escreverá
talvez asperezas, mas é delas que a vida é feita:
inútil negá-las, contorná-las, envolvê-las em gaze”.
O intuito de Graciliano se realizou. Fiel aos
acontecimentos, não escondeu, não negou, não
exagerou: “Escreveu, realmente, com exatidão
espantosa, com rigor excepcional. Tudo o que é
negro, em sua narração, é negro pela própria
natureza, o que é sórdido porque nasceu sórdido, o
que é feio é mesmo feio. Não há pincelada do
narrador no sentido de frisar traços, de agravar
condições, de destacar minúcias denunciadoras.”
(Nélson Werneck Sodré, prefácio de Memórias do
Cárcere).
"No âmago de sua arte há um desejo intenso de
testemunhar sobre o homem...". Não apenas sobre
o homem do seu tempo e de seu meio, mas sobre
as angústias e dramas do homem de sempre.
(crítico Antonio Candido)
Dialeticamente, o remorso, que é efeito de uma
quebra no processo de comunicação, acaba
movendo o sujeito a empreender o seu único
projeto de relação continuada com o outro: a
palavra escrita, que converte o próximo em leitor
distante, e o interlocutor presente e modesto em
sombra ignota e muda. Talvez cúmplice.
No caso do escritor destas memórias a aproximação
imediata se dá com o eu de Infância. Quem leu este
livro extraordinário decerto lembrará o quanto os
afetos atribuídos ao menino também entram nesse
contexto de ilhamento sem perdão, a começar pela
sua conversa frustrada com a mãe.
Nas Memórias o recorte do pormenor supõe a
confissão honesta de que a totalização seria um
ideal muito difícil de alcançar e talvez incompatível
com os limites da testemunha:
"Escrevi até à noite. Se houvesse guardado aquelas
páginas, com certeza acharia nelas incongruências,
erros, hiatos, repetições. O meu desejo era retratar
os circunstantes, mas, além dos nomes,
escassamente haverei gravado fragmentos deles: os
olhos azuis de José Macedo, a contração facial de
Lauro Lago, a queimadura horrível de Gastão, as
duas cicatrizes de Epifânio Guilhermino, o peito
6. cabeludo e o rosário do beato José Inácio, a calva
de Mário Paiva, os braços magros de Carlos Van der
Linden, o rosto negro de Maria Joana iluminado por
um sorriso muito branco" (I, 22).