Morri e agora (psicografia vera lúcia marinzeck de carvalho espírito antoni...
Vivendo a experiência da morte
1. Vivendo a Morte
Edimar Silva
Era quase dia, provavelmente. Não estava com muito sono durante a noite, estava
cansado, de fato, mas sem sono. Fiquei lendo algum livro, não me recordo o qual, a última vez
que olhei no relógio lembro que marcava, aproximadamente, quatro horas da manhã. Não sei
quanto tempo depois fui conseguir dormir, sei que ainda terminei de ler três capítulos após a
última conferida na hora.
Acordei, mas não abri os olhos. Sentia a claridade penetrar através de minhas
pálpebras, ouvia os pássaros cantando nas árvores e uma leve garoa batia em minha janela.
Fiquei alguns segundos admirando a suave batida da garoa. Juntamente com o cantar dos
pássaros, harmonizava um som ímpar, o qual poderia ser ouvido o resto do dia sem que eu me
cansasse. Enquanto meus ouvidos se deliciavam com tal bela melodia, tentei levantar-me. Mas
não consegui, estava imobilizado. Pensei em chamar meu irmão, para poder me ajudar,
mesmo sem saber que tipo de ajuda eu precisava. Era como se eu estivesse enclausurado
dentro de mim mesmo. Mas seria inútil qualquer tentativa de chamá-lo, era domingo e
certamente ele estaria na igreja, como de costume. O que me surpreende é que ele não havia
tentado me acordar para acompanhá-lo. Talvez ele tivesse desistido disso, pois sabia que era
em vão. Não estou dizendo que não acredito em um ser superior, tinha minhas dúvidas após
certos acontecimentos em minha vida. Mas, deixando isso de lado, e sem conseguir me mexer,
fiquei imaginando a situação em que eu me encontrava. Inerte, como uma rocha em forma
humana. Assustei-me ao perceber que não conseguia nem ao menos abrir os olhos. Meu único
contato com o mundo parecia ser através dos ouvidos. Sabia o que acontecia ao meu redor
graças à audição. Mas ainda não tinha tentado falar, mesmo que inutilmente, apenas para ter
certeza se eu ainda era capaz disso.
Mas foi em vão. Minha boca não se mexia, não conseguia emitir ruído algum, nem
mesmo com a garganta. O que teria acontecido comigo? Nada se esclarecia, pergunta alguma
era respondida. Estava atônito, impaciente, já não aguentava mais tal situação. E foi nesse
momento que ouvi a porta de meu quarto se abrir e passos se dirigirem em minha direção.
Fiquei pasmado ao ouvir meu irmão dizer que tinha levantado cedo, tomado seu banho e, ao
tentar me chamar para a missa, ter percebido que eu estava morto.
“Morto?”, pensei eu. Não era possível. Como pode alguém estar morto, mas ciente das
coisas ao seu redor? Como pode alguém morrer e ouvir as pessoas falando sobre sua própria
morte? Não fazia sentido. Mas enquanto essas dúvidas surgiam, senti que alguém tocava em
meu peito. Certamente era um médico, um pára - médico ou algo parecido, a julgar pela
conversa entre ele e meu irmão. Ouvi, desse homem, a confirmação daquilo que meu irmão
tinha dito anteriormente: eu estava mesmo morto.
Ao ouvir a confirmação, meu irmão sequer demonstrou alguma reação. Queria ter
visto o rosto dele naquele momento. Ouvi-o agradecendo ao médico e se despedindo. Disse
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2. que tomaria as medidas necessárias. Estranhei a reação de meu irmão. Talvez já tivesse
chorado antes, no momento em que percebeu que eu jazia em minha própria cama. Mas não
tinha certeza disso. Inúmeras dúvidas passavam por minha cabeça. Algumas delas eram
resolvidas, algumas se tornavam mais e mais intrigantes ao passar do tempo. Lembrei ter
sentido a mão de alguém tocando meu peito. Logo, eu poderia ouvir e sentir as coisas. Mas
por que eu continuava com apenas dois dos meus sentidos? Tato e audição. Audição e tato.
Ainda preferia a visão. Visão e audição seriam primordiais nessa ocasião. Tenho certeza que se
todos aqueles que morrem pudessem continuar com dois sentidos após a morte, esses seriam
os sentidos escolhidos. Poder ver e ouvir as outras pessoas. Ver quem chorou de alívio, quem
chorou de tristeza. Quem falou que sentiria falta, quem desdenhou. Esse talvez fosse um
sonho de muita gente. E eu fui escolhido para ser o detentor de tal bênção. Ou, melhor
dizendo, de tal maldição. Sem saber o que estava por vir, sentia a claridade atravessando
minhas pálpebras, dando noção de que o sol estaria nascendo. Ou seja, de certa forma eu
tinha, ainda, um outro sentido: a visão. Apesar de não enxergar nada por causa das pálpebras
cerradas, podia ter a certeza de que minha visão ainda funcionava, a julgar pelo modo como
eu sentia a claridade do sol penetrando por elas. Certamente, se alguém abrisse meus olhos
para verificar o estado deles, eu iria conseguir ver as coisas ao meu redor. Mas ninguém se deu
ao trabalho de fazer isso. Era empenho demais por alguém que nada valia.
Como não podia fazer nada além de esperar, tratei de inundar a mente com
pensamentos sobre a situação na qual eu me encontrava. Pensava nas possibilidades que teria,
mas saber o que falariam de mim no meu velório era o principal quesito em que pensava. Em
momento algum me deixei abater pelo sentimento de tristeza ou de desânimo. Eu estava
morto. E o que eu poderia fazer, senão aproveitar aquele momento único? Não posso dizer,
obviamente, que estava feliz. Mas ao analisar o fato de estar em uma situação da qual eu não
poderia mais sair e ter noção disso, sabendo que podia, pelo menos, ouvir os sons ao meu
redor, era maravilhoso.
Mas foi nesse momento que uma dúvida, como um estalo, surgiu: e se essa capacidade
que eu tinha fosse normal para os mortos? Digo, e se cada pessoa que morre partilhasse os
mesmos sentidos remanescentes? Como saber se as pessoas por quem chorei em seus velórios
não tinham consciência de que eu chorava por elas? E, pior: como saber se aquelas de quem
falei mal não me ouviram maldizer delas? Aquilo que antes me animava, agora, me assustava.
E pensamentos relacionados às ideias malucas que em minha mente passavam ficavam cada
vez mais frequentes. Senti meu corpo ser retirado da cama por algumas pessoas. Meu irmão
disse que não queria exames para saber a causa da morte, queria apenas que me deixassem
pronto, o mais rápido possível, para ser levado ao funeral.
Meu funeral. Eu estaria ciente das coisas ao meu redor. Isso ainda me animava. Já não
pensava mais nas outras pessoas que morreram e que, talvez, tenham tido essa mesma
experiência. O importante agora era que eu pudesse ter certeza de que escolhi as pessoas
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3. certas para fazerem parte de minha vida. E teria essa certeza quando essas pessoas se
aproximassem de meu caixão. Mas e se eu fosse cremado? Esse era meu desejo, ser cremado
para que não restasse muito de mim neste mundo. Todavia, não creio que meu irmão tenha
cogitado tal possibilidade. Eu não tivera tempo de expressar meu desejo. Era o que eu queria,
mas ninguém sabia. Talvez fosse melhor assim. Sendo um defunto ciente, ao ser levado à
minha cova, teria chance de acompanhar meus últimos momentos em cima desta terra. Isso
que eu chamo de ‘aproveitar ao máximo a estadia neste mundo’.
Enquanto infindáveis possibilidades se misturavam a incansáveis pensamentos, meu
corpo fora preparado para o funeral. A julgar pelo modo como meu corpo estava, posso dizer
que nesse momento eu já estava deitado em meu caixão. Nesse exato momento, o carro
fúnebre começa a se mover, levando meu corpo ao local de sua derradeira morada. No
cemitério onde eu seria enterrado havia uma pequena capela, e lá, certamente, eu seria
velado. Pelos solavancos durante a viagem, senti minha cabeça bater na tampa do caixão
algumas vezes. Pouco tempo depois, o carro pára. Sinto que algumas pessoas carregam meu
caixão em direção à capela.
Finalmente. Lá estava eu, deitado, inerte, ciente de tudo ao meu redor graças à minha
audição. A princípio, poucos passos podiam ser notados ao redor do local onde eu estava à
mostra. Sentia-me um frango numa vitrine. Dentre os burburinhos não consegui reconhecer
voz alguma. Na verdade, parecia que toda essa gente nem me conhecia. Mas aos poucos isso
começou a mudar. Não que eu fosse uma pessoa de muitos amigos, reconhecido, ou
altamente sociável. Muito pelo contrario. Algumas das vozes que lá ouvi eram de colegas de
serviço, patrões ou cobradores. Não sei por qual motivo cobradores iriam ao funeral de seus
clientes. Talvez apenas para ter certeza de que havia perdido um deles. Repentinamente, ouço
gritos histéricos e um choro compulsivo de uma mulher. Pelo que ela dizia, não acreditava que
eu estava morto. Mas durou pouco. Ao se aproximar, ela percebeu que estava enganada, não
me conhecia. Nunca pensei que coisas assim acontecessem. Logo após esse incidente, uma
calmaria. E, para quebrar o silêncio que se fez depois da saída de tal mulher, o homem que eu
considerava meu melhor amigo se aproximou de meu corpo. Sei que era ele pela respiração
ofegante, típica dele. Tocou em minhas mãos, tocou minha testa. Não disse nada. Talvez por
sempre ser um homem de poucas palavras, ou por estar demasiado emocionado naquele
momento, mas nada disse. Respirou profundamente, sussurrou algumas palavras que me
foram inaudíveis, e se afastou.
Isso me fez pensar que alguém sentiria minha falta. E que eu tinha feito a escolha certa
em relação àquele que seria meu melhor amigo. Mais tarde, ouço uma mulher tentando
convencer uma criança a se aproximar do caixão. A criança insistentemente dizia que não, que
tinha medo, mas era em vão. Por causa dessa discussão, um bebê começa a chorar. Não havia
bebê algum antes. Cheguei à conclusão de que essa mulher levava consigo sua filha, com
quem discutira, e o bebê em seu colo. Por prestar atenção demais na conversa das duas, em
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4. momento algum, exceto na hora em que se aproximou de mim, percebi que essa voz era,
simplesmente, da única mulher que amei na vida. Infelizmente, esse meu amor, para ela, nada
significou. Ela sabia que por causa da desgraça que foi tê-la amado, eu tinha ficado muito
doente. E pude perceber que ela, ali, ao meu lado, se culpava pela minha morte. Dizendo que,
caso ela não tivesse sido tão egoísta, ela poderia ter vivido uma vida feliz comigo e que, talvez,
naquele momento eu ainda estivesse vivo. Mas arrependimentos não matam. Nem
ressuscitam. Não adiantava chorar ou imaginar como tudo teria sido diferente. Sei que ela era
casada com um oficial da Marinha, tinha tudo do bom e do melhor. E tinha filhos para cuidar.
Ela ainda chorava. Entregou o bebê à sua filha e debruçou-se sobre mim. Senti as lágrimas dela
caindo em meu rosto quando, em um gesto desesperado, me beijou esperando que eu
acordasse. Foi necessário que outras pessoas ajudassem-na a sair, devido ao grande desespero
em que ela se encontrava. Após a saída dela, ouvi várias pessoas cochichando sobre ela. E
percebi que, na verdade, eu tinha sido alguém significante apenas para poucas pessoas. Mas
de forma intensa. Era o que me aliviava.
Todavia, isso tudo ficaria apenas na memória. Não poderia ser vivido novamente, nem
que fosse de forma diferente. Minha estadia na Terra havia acabado. E só restariam
lembranças àqueles que ainda permaneciam vivos. Repentinamente, veio-me à mente uma
dúvida que me deixou intrigado: por que nenhum de meus parentes sequer se deu ao trabalho
de ir ao meu velório? Digo isso por ter certeza que em momento algum pude notar a voz de
alguém de minha família ao meu redor. Nem mesmo a voz de meu irmão eu tinha notado até
então. Talvez eu não valesse nada para os demais. Talvez eu fosse apenas um estorvo que
agora seria despejado num buraco e coberto com terra, fazendo com que todos se livrassem
de um inútil ser humano que de nada servia. As dúvidas iam se acumulando ao passar das
horas. Não tenho noção de quanto tempo já havia se passado. Tinha ouvido alguém comentar
que iria almoçar e depois voltaria para poder ver o ‘último capítulo’. Sim, foi esse termo que a
pessoa usou. Não sei quem era, mas pela frase que havia proferido, dava a entender que meu
funeral, na verdade, era, para essa pessoa, um espetáculo.
Imagino o que eles fariam se soubessem que eu ouvia todos os comentários ao meu
redor. Houve quem dissesse que eu estava em um lugar melhor, longe das pessoas ruins do
planeta. Ledo engano, eu estava lá, misturado a todas elas. E pior: com a noção de que,
realmente, as pessoas, em sua maioria, não prestam. Com essa conclusão, senti-me bem por
ter passado minha vida afastado das pessoas. Ter tido poucos amigos, poucos contatos e raras
relações pessoais, havia feito de mim uma pessoa mais sensata. Admito que, dessa forma, me
tornei uma pessoa fria, mas isso era irrelevante. Sempre achei melhor ser frio do que ser falso.
A frieza, pelo menos, é sincera. Não me arrependo de ter tido a vida que tive. E mesmo que
me arrependesse, não poderia consertar mais. Uma voz masculina disse, rindo, que se eu não
tivesse morrido, ele me mataria, só pra poder participar de um funeral como o meu. Não sei o
que ele quis dizer com isso. Talvez tivesse conhecido alguém interessante (apesar de eu achar
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5. que se alguém chega a tal ponto, é uma pessoa extremamente sem escrúpulos), ou se dizia
isso se referindo à comida que naquele momento era servida. Na verdade, parecia que haviam
feito do meu funeral uma festa. Tornava-se mais comum perceber pessoas rindo, contando
piadas. A comida, certamente, era coisa do meu irmão. Somente ele teria uma mente sagaz o
bastante para sugerir que fosse servida comida aos “convidados”.
O tempo ia passando, minha paciência diminuindo e uma certeza aumentando: era
mesmo muito melhor partir desse mundo tão podre. Cercado de pessoas que misturavam o
riso ao choro, a tristeza à alegria, a dor e a vontade de ir embora. Nunca havia imaginado que
as pessoas chegariam ao ponto de cercar um corpo sem vida para falar tanta futilidade, como
se o morto fosse apenas um pequeno detalhe no cenário. Eu me sentia o coadjuvante do meu
próprio velório. Sentia uma vontade enorme de levantar daquele caixão e colocar toda aquela
gente numa cova bem funda. Afinal, gente tão desprezível como aquela não faria a menor falta
na face da Terra.
Repentinamente, ouço a voz de meu irmão, ecoando pela pequena capela, pedindo
licença porque ele tinha um pronunciamento a fazer. Assim sendo, fiquei curioso para saber
quais seriam as palavras direcionadas a mim, naquele último momento partilhado comigo. Ele
começou citando uma frase de Epicuro: “A morte não é nada para nós, pois, quando existimos,
não existe a morte, e quando existe a morte, não existimos mais”. Não sei como essa frase
acabou sendo dita por ele, já que meu irmão, pelo que me lembro, jamais utilizou algum livro
sem ter como propósito segurar papel ou calçar alguma mesa. Após essas palavras, um silêncio
sepulcral pôde ser notado. Então, para ‘quebrar o gelo’, meu irmão disse que citaria outra
frase, desta vez de Benjamin Franklin: “Nesse mundo nada é certo, além da morte e dos
impostos”. E todos começaram a rir. Se alguém olhou pra mim naquele momento, talvez tenha
conseguido ter uma pequena noção de que eu estava em tremendo desgosto por causa de
tudo aquilo. Meu funeral parecia um circo.
Ainda desgostoso com as coisas que acabara de ouvir, fui sentindo a tensão aliviar ao
passar do tempo. Sabendo que aquelas pessoas continuariam vivendo a vida miserável que
tinham enquanto eu partia rumo ao desconhecido, me fazia suportar aquele momento de
raiva. Eu estava deixando para trás aquelas pessoas. Pelos nomes que eu continuava a ouvir e
pelas vozes que eu insistia em tentar reconhecer, tenho certeza de que quase a totalidade
daquelas pessoas nunca tinha passado pela minha vida. Pelo menos não até aquele momento,
de morte-vida inexplicável.
Alguns minutos depois, ouço comentários de que o padre estava chegando. Não sei a
razão disso, talvez coisa do meu irmão. Aliás, certamente era coisa do meu irmão. Eu não era
católico. Após uma longa sessão de orações repetitivas, que de tanto ouvir, acabei decorando,
percebo que é hora da partida. Sinto que mais pessoas passam por mim, tocando em minhas
mãos e sussurrando palavras indecifráveis. Iriam fechar o caixão. A escuridão me esperava.
Ouço a tampa sendo colocada. Adeus, mundo cruel.
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6. Sou levado, sofrivelmente, até meu local de repouso eterno. Se eu estivesse vivo,
aquele balançar do caixão teria me deixado enjoado. O buraco estava aberto. Eu seria
enterrado numa cova comum. Nada de túmulo de família, gaveta ou o diabo a quatro. Eu ia
pro buraco. Mas isso não era o pior. A precariedade era tanta que a corda que me sustentava
rompeu e eu fui em queda livre, a sete palmos. Felizmente nada de ruim ocorreu. Aliás, nada
pior do que já tinha ocorrido até aquele momento. Ouvi a terra batendo na tampa do meu
caixão. Pronto. Eu estava isolado da iníqua sociedade.
Sem saber quando eu, finalmente, perderia os sentidos, tentei dormir, mas foi em vão.
Como poderia um morto dormir? Então resolvi relembrar os fatos de minha vida enquanto as
horas passavam e, lentamente, meu corpo era dissolvido pelo tempo.
Depois de muito tempo, algo diferente começou a acontecer. Senti que minha pele
começava a se desprender dos ossos. Eu estava deteriorando. Mas ainda lúcido o suficiente
para sentir meus pedaços se espalhando ao longo da superfície já dura do caixão. Meu cérebro
deveria ainda estar intacto, ou não seria possível perceber tudo aquilo. Mas que maldição seria
essa? Ser testemunha do próprio enterro e ainda ter que sentir o corpo se desfazendo? Pouco
a pouco fui me esvaindo. Pedacinho por pedacinho meu ‘eu’ foi deixando de existir. Não dava
mais pra ouvir o ranger da madeira do caixão. Eu sabia que aquilo estava perto de acabar.
Foi nesse momento que a claridade tocou aquilo que ainda restava de mim. O pouco
que havia sobrado dos meus olhos percebeu que eu estava sendo tirado da cova. Ninguém
havia se importado comigo durante os anos que lá passei. Não fizeram túmulo ou colocaram
lápide. Apenas me deixaram lá, como se eu fosse um estorvo. Eu achava que poderia
descansar em paz, mas o coveiro me levava, provavelmente num carrinho de mão, para um
outro lugar.
Eu ainda não estava completamente decomposto, mas o coveiro não pensou duas
vezes. O que restava de minha pele sentia que um calor enorme estava próximo. Eu iria ser
queimado vivo. Melhor dizendo, iria ser apenas ‘queimado’. Vivo eu não estava há tempos.
Não literalmente falando. Pude ouvir, precariamente, que o coveiro ria da situação. Falou algo
como “churrasco” ou “carrasco”, não consegui discernir. Provavelmente ele era o carrasco
encarregado do churrasco. Ou algo parecido. Mas tanto faz. Ele foi tirando meus membros e os
atirava na fornalha, pedaço a pedaço. Parecia que ele sabia do meu sofrimento. Deixou a
cabeça por último. Segurou minha cabeça numa mão, ergueu-a sobre a cabeça e falou, em alto
e bom tom, a célebre frase de Hamlet: “Ser ou não ser, eis a questão!”. E atirou minha cabeça
pra dentro da fornalha, como uma bola de boliche. Antes de terminar de ser consumido pelo
fogo, ainda pude ouvir um grito dele, algo como “strike”. Meu irmão adorava boliche...
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