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A vanguarda surrealista na literatura e no cinema: Julio Cortázar e
Michelangelo Antonioni
(Maria do Carmo Pinheiro e Silva Cardoso Mendes – Universidade do Minho)
Toda la obra de Julio Cortázar está
marcada por esa sospecha (el diría
certeza) de una realidad segunda que el
surrealismo había convertido en el norte
de sus búsquedas.
Jaime Alazraki
El mundo real es marco de los orbes
ficticios y autónomos creados por la
fotografía, las narraciones, la pintura,
las películas cinematográficas, las
imaginaciones, las televisiones y los
espejos.
Oscar Hahn
1. Diálogos inter-artes
1.1. A vanguarda surrealista ocupa um lugar determinante na ficção narrativa do
escritor argentino Julio Cortázar (1914 – 1984). Contos como “Casa tomada”, “Carta a
una señorita en Paris” ou “Las babas del diablo” fazem prova de que Cortázar entende o
Surrealismo como uma cosmovisão que põe em confronto um universo ordenado e um
universo caótico, que em permanência lança instabilidade sobre o primeiro.1
O Surrealismo é também tema persistente na produção ensaística do escritor. Entre
os vários ensaios a ele dedicados ao longo da década de 1940 – “Teoría del túnel”,
“Muerte de Antonin Artaud”, “Un cadáver viviente” e “Surrealismo” –, assinalo as
reflexões contidas no último. Elas revelam uma atitude crítica perante o positivismo
1
Apoiando-se em diversos autores que trataram a presença do Surrealismo na ficção do argentino,
Patrício Goyalde Palácios (2001: 243-4) afirma que a obra de Cortázar reflecte “la dicotomía de una
realidad dual, base esencial de la visión del mundo surrealista: por un lado, la realidad razonable del
ámbito de la vigilia y la conciencia e, por otra, la realidad de la imaginación del ámbito del deseo y de la
subconciencia”.
2
oitocentista e uma valorização do Surrealismo enquanto manifestação poética e
“reencontro com a dimensão humana” da realidade:
El panorama filosófico del siglo XIX desemboca en el positivismo, postura
eufórica y cerrada a todo avizoramiento super o infrahumano, a toda visión mágica
de la realidad. El surrealista prueba pronto que su concepción es esencial y
solamente poética. (…) enlaza formas tradicionales, las funde y fusiona para
manifestarse desde toda posibilidad, se precipita a una novela de discurso poético, se
abandona a todos los prestigios de la escritura automática, la erupción onírica, las
asociaciones verbales libres. (…) Surrealismo es ante todo concepción del universo
y no sistema verbal. (…) Surrealista es ese hombre para quien cierta realidad existe,
y su misión está en encontrarla (Cortázar, 1994a: 100-103).2
A busca de uma realidade outra (uma alter-realidade), a aposta em temas de
fronteira – em especial, na contaminação onírica da realidade humana –, a exploração
do acaso e do insólito, que vencem a previsibilidade, e a naturalização de fenómenos
sobrenaturais, são motivos recorrentes da ficção breve de Julio Cortázar e também do
conto que analisarei.3
Tais motivos representam literariamente a ligação de Cortázar ao
imaginário surrealista.
1.2. Cortázar é uma referência no contexto da literatura fantástica latino-americana
de Novecentos e, desde a sua estreia contística, mostra-se influenciado pela obra
borgesiana. Em entrevista concedida em 1970 à revista francesa La Quinzaine
Littéraire, confessa: “Borges ha dejado su marca profunda en los escritores de mi
generación. Él fue quien nos mostró las posibilidades inauditas de lo fantástico. En la
Argentina se escribía una literatura más bien romántica, realista, un poco popular a
veces. Solamente con Borges lo fantástico alcanzó un alto nivel” (apud Alazraki, 1994:
57).
2
Confessa também Cortázar que “toda novela contemporánea con alguna significación acusa la influencia
surrealista en uno u otro sentido; la irrupción del lenguaje poético sin fin ornamental, los temas
fronterizos, la aceptación sumisa de un desborde de realidad en el sueño, el “azar”, la magia, la
premonición, (…) son contaminaciones surrealistas dentro de la mayor o menor continuidad tradicional
de la literatura” (idem: 107).
3
Davi Arrigucci Jr. (1995: 99) defende que a narrativa de Cortázar apresenta diversos pontos de contacto
com o teatro do absurdo de Antonin Artaud: “a valorização do irracional, a visão de uma realidade
múltipla e caótica, com regiões escuras e indevassáveis, irredutível ao pensamento conceptual que
procura encerrá-la num sistema fechado, unitário e coerente; a exploração de recursos como o nonsense, a
paródia, a ironia, enfim, a cerrada crítica da linguagem, o cerne antiliterário”.
3
Jaime Alazraki, profundo conhecedor da obra de Cortázar, propôs o termo
neofantástico para designar um significativo número de ficções do escritor argentino
que exploram este género, fazendo-o, todavia, de forma substancialmente diferente dos
autores oitocentistas e primo-novecentistas.
A opção pelo neofantástico integra-se, em primeiro lugar, na concepção cortazariana
do Surrealismo como “una empresa de conquista de la realidad, una realidad más real
que el mundo real, cruzando las fronteras de lo real” (Alazraki, 1994: 66).
A vanguarda surrealista propiciou novas abordagens do género fantástico e, por
consequência, distanciou-o do fantástico dito tradicional.4
Em Cortázar, a exploração do neofantástico significa uma concepção do género
diferente daquela que é veiculada por escritores do século XIX e das primeiras décadas
do seguinte: enquanto para estes o fantástico depende da obsidiante presença de
episódios aterradores e de figuras que os protagonizam (e.g. fantasmas, vampiros,
lobisomens)5
, e assume como principal propósito a vivência do terror (das personagens
e do leitor), para Cortázar, o fantástico produz-se “de una forma marcadamente trivial y
prosaica”, sem “avisos y premoniciones, guiones adecuados y ambientes apropiados
como en la literatura gótica o en los modernos relatos fantásticos de baja calidad. (…)
Siempre he pensado que lo fantástico no aparece de forma áspera o directa, ni es
cortante, sino que más bien se presenta de una manera que podríamos llamar intersticial,
que se desliza entre dos momentos o dos actos en el mecanismo binario típico de la
razón humana a fin de permitirnos vislumbrar la posibilidad latente de una tercera
frontera” (Cortázar, 1994b: 98). É esta possibilidade que, entre muitos, os contos
“Axolotl” e “Las babas de diablo” exploram. No segundo, um acontecimento e uma
figura insólitos não despertam um sentimento de temor, mas são naturalmente
encaixados pelo protagonista na ordem natural dos acontecimentos. De igual modo, a
possibilidade de um dos narradores do conto ser um morto é encarada como verosímil,
logo, distante da hipótese fantasmagórica e aterradora do fantástico oitocentista.
4
Como reconhece Remo Ceserani (1996: 133-4), “esperienze come quelle delle avanguardie e in
particolare del surrealismo, non solo in letteratura ma anche e forse più nella pintura e nel cinema, hanno
messo a disposizione del modo fantastico strumenti di rapresentazione, linguaggi e una concezione della
letteratura tutti nuovi”.
5
No ensaio “El estado actual de la narrativa en Hispanoamérica”, escreve Cortázar: “algo me indicaba
desde el comienzo que el camino formal de esa otra realidad no se encontraba en los recursos y trucos
literarios de que depende la literatura fantástica tradicional para su tan celebrado ‘pathos’, que no se
encontraba en esa escenografía verbal que consiste en ‘desorientar’ al lector desde el principio
condicionándole dentro de un ambiente morboso a fin de obligarle a acceder dócilmente al misterio y al
terror” (Cortázar, 1994c: 96).
4
O neofantástico supõe, portanto, que os episódios realistas da narrativa convivem
harmoniosamente com acontecimentos trans-empíricos. Os planos fantástico
(surrealista) e realista possuem idêntico estatuto de realidade (ou de irrealidade). Em
“Las babas del diablo” – como no filme de Antonioni inspirado no conto – os dois
níveis adquirem análogo estatuto de verosimilhança.
1.3. A ficção narrativa de Julio Cortázar possibilita a identificação de múltiplas
aproximações entre as artes, em especial com o cinema (Cortázar foi admirador de
Alain Resnais, de Luís Buñuel e de Jean-Luc Godard, mas manifestou alguma
desconfiança relativamente aos realizadores italianos Michelangelo Antonioni e
Federico Fellini, como se verá), com a música (sobretudo o jazz: Louis Armstrong,
Thelonious Monk, John Coltrane, Chet Baker e Miles Davis são referências
fundamentais do universo musical do escritor argentino, que chegou a escrever o conto
“El perseguidor”, inspirado nos derradeiros momentos de vida do saxofonista Charlie
Parker6
), com a pintura e com a fotografia. A natureza deste trabalho determina que
essas relações dialógicas se circunscrevam à fotografia e ao cinema.
A fotografia desempenha uma função determinante no universo ficcional e na
biografia do autor de Rayuela. Da paixão de Cortázar pela fotografia resultou, entre
outras, a obra Prosa del Observatorio, um texto extenso sobre fotografias feitas pelo
próprio argentino numa viagem à Índia.
Para Cortázar, a fotografia é uma técnica capaz de captar os interstícios da realidade;
não se trata da procura de uma imagem objectiva, única e de contornos rigorosos, mas
da captação de cambiantes e de fragmentos da realidade:
Yo, para sacar la foto, tengo que separar las imágenes, es decir, que en
determinados momentos las cosas se me apartan, se mueven, se corren a un lado y
entonces, de ese hueco, esa especie de intersticio, que yo no sé exactamente lo qué
es, surge una incitación que en muchos casos me lleva a escribir (apud González
Bermejo, 1978: 43).
No conto “Las babas del diablo”, verifica-se uma realização completa desta
definição: Roberto Michel, protagonista-narrador, procura, em cada ampliação,
fragmentos de realidade que preencham os espaços vazios deixados pelo olhar.
6
Também o filme Bird, de Clint Eastwood, se inspira na vida de Charlie Parker.
5
O interesse de Cortázar pela técnica fotográfica revela-se também na analogia
estabelecida entre o conto e a fotografia. No ensaio “Algunos aspectos del cuento”, a
aproximação entre romance e cinema é semelhante à que Cortázar identifica entre conto
e fotografia:
La novela y el cuento se dejan comparar analógicamente con el cine y la fotografía,
en la medida en que una película es en principio un “orden abierto”, novelesco,
mientras que una fotografía lograda presupone una ceñida limitación previa,
impuesta en parte por el reducido campo que abarca la cámara y por la forma en que
el fotógrafo utiliza estéticamente esa limitación. (…) siempre me ha sorprendido que
el [fotógrafo] se exprese tal como podría hacerlo un cuentista en muchos aspectos
(Cortázar, 1994b: 371).
A aproximação entre o conto e a fotografia é também explorada graças às
expectativas de recepção que proporcionam. Cortázar sustenta que ambos transformam
um fragmento da realidade numa “explosión que abre de par en par una realidad más
amplia”. Forçados a seleccionar um acontecimento ou uma imagem, contista e fotógrafo
escolhem aquele episódio ou aquela imagem que valem não apenas por si mesmos, mas
também pela capacidade de actuar no leitor ou no espectador “como una especie de
apertura, de fermento que proyecta la inteligencia y la sensibilidad hacia algo que va
mucho más allá de la anécdota visual o literaria contenidas en la foto o en el cuento”
(idem: 371-2).
Ainda que centralize a minha atenção no conto “Las babas del diablo”, não posso
deixar de observar a função exercida pela fotografia na narrativa autobiográfica
Apocalipsis de Solentiname. Em visita a esta localidade nicaraguense, o protagonista
fotografa algumas pinturas inócuas realizadas pelos habitantes de uma comunidade
rural. Já em Paris, a revelação das fotografias apresenta ao fotógrafo uma situação
fantástica, que desencadeia a surpresa e o terror: os quadros haviam sido substituídos
por imagens de violência praticada na América Latina. Como acontece em “Las babas
del diablo”, o desfecho da narrativa não esclarece o protagonista e o leitor, que
permanecem na dúvida sobre o conteúdo das imagens.
A atenção dedicada por Cortázar à fotografia constitui também um reconhecimento
da ascendência surrealista na sua obra. De facto, alguns procedimentos fotográficos
adoptados pelas vanguardas dadaísta e surrealista (exemplarmente contemplados na
6
produção do americano Man Ray, cujo aposta em novas técnicas fotográficas teve por
objectivo substituir o princípio de que a fotografia é uma reprodução fiel da realidade
por aquele que reenvia para a surrealidade e a subjectividade) incluem a colagem e a
fotomontagem. Técnicas como o close e o informe procuram apreender detalhes de um
objecto ou de uma figura, desarticulando-o ou fragmentando-o. São também estes
propósitos que dominam os fotógrafos do conto e do filme em análise. Em ambos, os
valores testemunhais, objectivos e rigorosos, associados ao acto de fotografar, são
neutralizados.
Analisar a relação de Cortázar com o cinema significa, em primeiro lugar,
considerar o lugar ocupado por esta arte na obra do escritor argentino. Essa presença
permite duas leituras: aquela que revela o fascínio de Cortázar pelo cinema e aquela que
traduz um certo desencanto perante alguns realizadores.
O conto “Cazador de crepúsculos” uma admiração (reforçada pela constatação de
uma incapacidade pessoalmente assumida) pela aptidão do cineasta para captar
momentos excepcionais. Cortázar valoriza, não a técnica de um director de cinema, mas
a sua habilidade (de que o escritor se sente destituído) para fixar eternamente momentos
extraordinários:
Si yo fuera cineasta me dedicaría a cazar crepúsculos. Todo lo tengo estudiado
menos el capital necesario para el safari, porque un crepúsculo no se deja cazar así
nomás, quiero decir que a veces empieza poquita cosa y justo cuando se lo abandona
le salen todas las plumas (…). Para llegar al crepúsculo definitivo tendía que filmar
cuarenta o cincuenta, porque si fuera cineasta tendría las mismas exigencias que con
las palabras, las mujeres o la geopolítica (Cortázar, 1995: 284).
O cinema (sobretudo surrealista) importa a Cortázar como imaginação puramente
visual, encontrando no cineasta argentino Manuel Antín, com quem privou, um
exemplo paradigmático desta capacidade imaginativa. Em 1963, quando colabora com
Antín na adaptação fílmica da obra Circe, escreve Cortázar:
Asistir al funcionamiento mental de un cineasta es algo asombroso. Yo adelantaba
una sugestión cualquiera sobre el cuento, y de inmediato Antón se quedaba como en
trance. (…) Una imaginación puramente visual es algo extraordinario, y mi trabajo
7
con Antón me ha enseñado a ver de otra manera el cine, a verlo desde dentro, y no
como un mero espectáculo (idem, 2002: 324).
Depois de assistir a El Ángel Exterminador, de Buñuel, confessa em carta a Antín:
“estoy de vuelta a casa, y todo, absolutamente todo me da vueltas, y te estoy escribiendo
con una especie de pulpo que va y viene y me arranca las palabras con las patas y las
escribe por su cuenta, y todo es increíblemente hermoso y atroz y entre rojo y mujer y
una especie de total locura” (idem: 143).
No entanto, Cortázar assume uma posição crítica perante realizadores de filmes
psicológicos, como Fellini e Antonioni: “Dios sabe lo poco que me gusta el cine
psicológico y el hastío que me producen en general Antonioni, Fellini y los demás
novelistas del cine, como perversamente doy en llamarlos” (idem: 498).
2. O que os olhos não vêem
2.1. Intertexto do filme Blow-Up, de Michelangelo Antonioni, o conto de Cortázar
apresenta virtualidades intertextuais mais vastas, demonstradas em diversas adaptações
cinematográficas das suas obras, não obstante a reflexão feita pelo escritor argentino em
1973: “Yo no creo que mi obra haya tenido ninguna influencia en el cine, absolutamente
ninguna. A lo sumo, una influencia muy, muy indirecta” (apud Luciani, 1998: 183).
Esta observação é infirmada pelos ensaios de Mahieu e de Frederick Luciani. O
primeiro estabelece uma cronologia da cinematografia inspirada no conto de Cortázar,
destacando os filmes latino-americanos; o segundo analisa a influência da narrativa de
Cortázar na cinematografia europeia e americana, demonstrando que realizações
cinematográficas como Weekend (1967) de Jean-Luc Godard, Blow-up (1966) de
Antonioni, Greetings (1968) e Blow Out (1981) de Brian De Palma, The Conversation
(1974) de Francis Ford Coppola, e JFK (1991) de Oliver Stone, são marcadas, directa
ou indirectamente, pela influência do conto de Cortázar.7
2.2. O conto “Las babas del diablo” (1959) apresenta uma diegese aparentemente
simples. O narrador-protagonista é um fotógrafo que vive em Paris e relata um episódio
ocorrido numa manhã de domingo. A descrição realista que inicia o texto cria um efeito
de verosimilhança (mesmo biográfica, pois Cortázar passou grande parte da sua
existência na capital francesa e foi um profundo apaixonado pela fotografia): “Roberto
7
Cf. José Mahieu (1980: 640-646) e Frederick Luciani (1998: 183-207).
Bastaria uma consulta do sítio www.geocities.com/juliocortazar_arg para conhecer uma cronologia
exaustiva da cinematografia latino-americana e europeia inspirada em obras de Julio Cortázar.
8
Michel, franco-chileno, traductor y fotógrafo aficionado a sus horas, salió del número
11 de la rue Monsieur-le-Prince el domingo 7 de Noviembre del año en curso”
(Cortázar, 1996: 215).
A deambulação do fotógrafo termina no momento em que observa um casal:
inicialmente, Michel julga tratar-se de uma mãe acompanhada pelo filho, mas logo de
seguida supõe que se trata de um casal de namorados, ele com 14 anos, ela
provavelmente com 15:
Lo que había tomado por una pareja se parecía mucho más a un chico con su
madre, aunque al mismo tiempo me daba cuenta de que no era un chico con su
madre, de que era una pareja en el sentido que damos siempre a las parejas cuando
las vemos apoyadas en los parapetos o abrazadas en los bancos de las plazas (idem:
216).
As dúvidas do protagonista sobre a natureza da cena observada (prostituição
masculina? Incesto?) instauram uma vertente fantástica, reforçada pelo comentário do
observador – “Curioso que la escena (la nada, casi: dos que están ahí, desigualmente
jóvenes) tuviera como un aura inquietante” (idem: 218) – e pela descoberta de que o par
é observado ainda por um misterioso homem do interior de um automóvel.
Em termos gramaticais, a abertura do conto coloca uma hipótese fantástica: incapaz
de decidir se o estranho acontecimento deve ser relatado em primeira, em segunda ou
em terceira pessoa, Michel conclui: “Mejor que sea yo que estoy muerto, que estoy
menos comprometido que el resto” (idem: 214). Ou seja, a narrativa apresenta três
sujeitos de enunciação: dois de primeira pessoa (um vivo; o outro morto) e um de
terceira pessoa. A alternância enunciativa relativiza a história narrada e, ao mesmo
tempo, instala a dúvida no espírito do leitor: se a história é oscilante, em função da
variação de enunciador, qual é aquela que o leitor deve tomar como credível?
A multiplicidade de vozes de enunciação antecipa por isso (i) relatos fragmentários,
que ora se complementam, ora se excluem, e (ii) desconexões do enredo, que surge
desordenado e elíptico.
Também os traços psicológicos que definem Michel permitem caracterizá-lo como
uma personagem fantástica: ele é tradutor e fotógrafo, isto é, um homem disperso nos
seus interesses profissionais e porventura excessivamente confiante e disponível para a
aceitação de acontecimentos que escapam à “ordem do real”. Constituem também uma
9
representação do Duplo (motivo determinante no género fantástico): na nacionalidade
franco-chilena, na profissão de tradutor e fotógrafo, e nos lugares que ocupa na diegese
(observador, mas também testemunha de um presumível crime que terá impedido).
Consideremos a natureza das profissões do protagonista. Como fotógrafo e como
tradutor, Michel busca situações excepcionais. A sua própria natureza revela uma
propensão para a busca da invulgaridade, o que, em última instância, o torna uma
personagem disposta a acolher sem temor situações a-normais: “Nada le gusta más que
imaginar excepciones, individuos fuera de la especie, monstruos no siempre
repugnantes” (idem: 220).
Michel não é apenas um fotógrafo; é ainda (como o homem que acompanha a cena
do interior de um automóvel, provavelmente um proxeneta da mulher), um voyeur e um
flâneur e, nestas duas qualidades, torna-se “sujeto inconsciente de su discurso en el cual
figura predominantemente como héroe moral (salva al adolescente de la corrupción) y
víctima inocente: es decir, como mártir” (Gutierrez Mouat, 1987: 39).
Enquanto fotógrafo, Michel apresenta preocupações com a estética fotográfica e
justificações para a sua profissão: “Entre las muchas maneras de combatir la nada, una
de las mejores es sacar fotografías, actividad que debería enseñarse tempranamente a los
niños, pues exige disciplina, educación estética, buen ojo y dedos seguros” (idem: 216).
Michel recusa a actividade do paparazzo, propondo-se fotografar episódios e momentos
irrepetíveis. A fotografia traduz uma forma peculiar e singular de observar o mundo, e
revela a capacidade do seu executante para o interpretar também de forma original,
mostrando-se Michel um alter-ego de Cortázar:
No se trata de estar acechando la mentira como cualquier reporter, y atrapar la
estúpida silueta del personajón que sale del número 10 de Downing Street, pero de
todas maneras cuando se anda con la cámara hay como el deber de estar atento, de
no perder ese brusco y delicioso rebote de un rayo de sol en una vieja piedra, o la
carrera trenzas del aire de una chiquilla que vuelve con un pan o una botella de
leche. Michel sabía que el fotógrafo opera siempre como una permutación de su
manera personal de ver el mundo por otra que la cámara le impone (ibidem).
Já no estúdio, as revelações oferecem a Michel imagens que não correspondem
àquelas que os olhos captaram, mas uma realidade outra. A nova realidade trazida pelas
ampliações acentua a vertente fantástica do conto, traduzida nas questões colocadas por
10
Michel: terá assistido a uma tentativa de homicídio? Terá observado uma cena inocente
entre mãe e filho? Terá sido testemunha fortuita de um envolvimento amoroso (ou então
sexual?) entre uma sedutora ruiva e um incauto adolescente? Terá salvo um rapaz de um
acto de homicídio planeado por uma mulher? Michel tem consciência de que estas
dúvidas o situam num universo de aparências e de ambiguidades. As imagens
ambivalentes fornecidas pelo par encobrem uma outra realidade, porventura perigosa,
quer para o casal, quer para o fotógrafo.
As hesitações de Michel desencadeiam, por isso, especulações imprecisas: sobre o
jovem – “estaba bastante bien vestido y llevada unos guantes amarillos que yo hubiera
jurado que eran de su Hermano mayor (…). Al filo de los catorce, quizá de los quince,
se le adivinaba vestido y alimentado por sus padres, sin un centavo en el bolsillo”
(idem: 217); sobre a mulher – “vestía un abrigo de piel casi negro, casi largo, casi
hermoso. (…) pelo rubio que recortaba su cara blanca y sombría” (ibidem); sobre os
motivos da interrupção abrupta da cena – “El muchacho acabaría por pretextar una cita,
una obligación cualquiera, y se alejaría tropezando y confundido. (…) o bien se
quedaría, fascinando o simplemente incapaz de tomar la iniciativa” (idem: 218). O acto
de fotografar tem como propósito dissipar dúvidas ou, nas palavras de Michel, “mi foto
(…) restituiría las cosas a su tonta verdad” (ibidem).
Blow-Up (1966) é o primeiro filme em língua inglesa do cineasta italiano
Michelangelo Antonioni (1912-2007). O sucesso obtido pelo filme ficou a dever-se, em
primeiro lugar, ao tratamento de temas como a incomunicabilidade e o erotismo, e foi
confirmado em diversas nomeações para os Óscares e na atribuição da Palma de Ouro
do Festival de Cannes, em 1967.
Sendo certo que Antonioni é um realizador do chamado Neo-Realismo italiano,
julgo que a presença de traços surrealistas revela tanto a influência de Cortázar quanto o
interesse do realizador italiano pelo imaginário surrealista. A década de 1960, na qual
Blow-Up se inscreve, é, de resto profícua na disseminação cinematográfica da poética
surrealista.8
8
Fernando Cabral Martins (2000: 214) identifica vários realizadores influenciados pelo Surrealismo:
Fellini, Robe-Grillet, André Delvaux, Andrei Tarkovsky, Emir Kusturica e Peter Greenaway. Na
cinematografia norte-americana, realizadores já do final do século XX como John Carpenter, David
Cronenberg, David Lynch, Tim Burton ou os irmãos Cohen privilegiam a dimensão onírica de
ascendência surrealista.
11
Antonioni segue as obsessões de Cortázar com a visão fragmentária da realidade e o
princípio de indeterminação, muito embora o seu filme proceda a uma expansão (e a
alterações) do enredo e das personagens.9
A banda sonora de Blow-Up, da autoria do pianista e compositor Herbie Hancock,
constitui uma homenagem ao fascínio de Cortázar pelo jazz. De igual modo, a procura
de quadros de paisagens, feita por Thomas num antiquário de Londres, representa um
tributo ao escritor argentino, profundo apaixonado pela pintura.10
O enredo de Blow-Up localiza-se em Londres, no ano de 1966. Thomas, o
protagonista, é um fotógrafo narcísico e arrogante, que, casualmente, fixa na sua
objectiva um casal envolvido numa turbulenta relação em Maryon Park.
Enquanto adaptação de uma obra literária, o filme de Antonioni mostra alguns
distanciamentos relativamente ao seu intertexto. O primeiro diz respeito à
caracterização do protagonista: ao contrário de Michel, Thomas é um reputado fotógrafo
que exerce a sua actividade num universo propício à criação de ilusões e ao esbatimento
de fronteiras entre a realidade e a ficção: o universo da moda11
. Faz da reputação um
instrumento privilegiado para seduzir jovens raparigas dispostas a quase tudo para
serem aceites como modelos fotográficos. Mostra-se desdenhoso com todas elas, como
pode comprovar-se na resposta à súplica de duas jovens para que lhes dispense dois
minutos: “Nem tenho dois minutos para tirar o apêndice”. Como ser humano, como
fotógrafo, como sedutor e como coleccionador de antiguidades, Thomas é um ser
inconsequente e errático: a observação de um casal de homossexuais desperta-lhe uma
homofóbica repulsa; a cena de sedução que envolve as fotografias tiradas à primeira
modelo termina no momento em que Thomas se lança sobre um sofá; o encontro com a
mulher do parque, que procura recuperar as fotografias, não vai além de um beijo; a
relação com as diversas modelos fotografadas chega a ser agressiva (ora porque o
fotógrafo grita, ora porque rapidamente se cansa e as abandona, pedindo-lhes que
9
Cf. Timothy Corrigan (2000: 60-1).
10
A propósito da influência do Surrealismo em Cortázar, defende Peter Standish (2001: 53) que “among
the surrealists the painters were at least as influential as were the writers. Cortázar went on record several
times saying that he would have liked to be a painter”. Entre os muitos pintores referidos na obra do
escritor artgentino, destacam-se Van Eyck, Picasso, Boticelli, Dürer, Magritte, Bacon, Max Ernst e o
pintor surrealista belga Paul Delvaux.
11
Observa Maria João Baltazar (2008: 2381) que a “construção de Thomas foi influenciada pela
personalidade do fotógrafo inglês David Bailey (1938-), que se notabilizou como fotógrafo de moda e de
celebridades na Londres dos Swinging Sixties – Andy Warhol, os Beatles e Mick Jagger foram algumas
das personalidades que fotografou. A sua ascensão na revista Vogue foi consequência de um trabalho
novo e pessoal, que se afirmou através da cumplicidade e da proximidade estabelecida entre fotógrafo e
modelo de acordo com a própria transformação social da década de 1960”.
12
fechem os olhos e se mantenham de pé por tempo indeterminado); a entrada num
antiquário é motivada pelo desejo de adquirir quadros paisagísticos, mas Thomas
termina por encomendar uma hélice.
O encontro com a mulher fotografada no parque (cuja identidade o filme não
desvenda) apresenta algumas dissemelhanças comparativamente com os demais
envolvimentos emocionais Thomas: esta mulher é a única que Thomas tem a pretensão
de fotografar; é também a única que parece despertar sentimentos até então ausentes em
Thomas: a curiosidade e a atracção. Neste sentido, o beijo trocado no estúdio constituiu
uma promessa de início de uma relação amorosa, mas não passará disso mesmo,
promessa não cumprida.
A capacidade de combater a rotina pela fantasia e a alienação pessoal (que conduz
ao isolamento voluntário dos protagonistas) constituem motivos que aproximam conto e
filme.
A ampliação das fotografias – motivo que sustenta o título atribuído ao filme –
oferece a Thomas uma história diferente daquela visualizou no parque londrino. A
fotografia constitui, assim, a narração de uma “segunda realidade” (já proposta pelo
intertexto).
A ampliação das fotografias revela um presumível crime, uma vez que uma delas
mostra um corpo caído na relva. Como Michel, Thomas deixa de ser apenas um
espectador de uma cena ocorrida no espaço público, para se tornar testemunha de um
assassínio. A incredulidade perante a ampliação determina um primeiro regresso ao
lugar onde o cadáver efectivamente se encontra. Numa segunda visita, Thomas constata,
todavia, o desaparecimento do corpo.
Como se observou, a natureza surrealista do conto de Cortázar é traduzida pela
sequência aparentemente desarticulada de cenas, pela instabilidade psicológica de
Michel e, sobretudo, pelo final “aberto”, porque inexplicável. O sentimento de dúvida
que domina o protagonista é, em última análise, uma revelação das fragilidades da razão
para clarificar uma ou várias realidades fragmentárias.
O desfecho do filme de Antonioni apresenta semelhanças notáveis com o epílogo da
narrativa de Cortázar. O crime revelado nas fotografias não pode ser assumido por
Thomas como uma certeza indesmentível, do mesmo modo que as dúvidas de Michel se
mantêm até ao final do conto.
Nas duas obras, a ampliação de fotografias instaura o mistério de uma segunda
realidade, mais fantástica no filme de Antonioni: as ampliações desvendam o que os
13
olhos não captaram: um rosto masculino escondido atrás de um arbusto testemunha uma
cena amorosa e é observado pela mulher; uma outra ampliação mostra uma mão que
segura um objecto, presumivelmente uma arma; e uma nova ampliação revela a Thomas
um corpo caído. O acto imediato do fotógrafo (regresso ao parque e ao lugar específico
onde se encontra o cadáver) evidencia a necessidade de racionalizar fragmentos da
realidade.
No regresso ao estúdio, Thomas depara-se com um cenário devassado, de onde
desapareceram todas as fotografias e ampliações, à excepção, em aparência, casual, da
última e mais reveladora. É esta ampliação que levará Thomas a manifestar-se muito
assertivo junto do seu editor, assegurando-lhe ter evitado um crime, para pouco depois
afirmar com igual convicção à mulher de um amigo pintor: “Assisti ao homicídio de um
homem num parque qualquer”. Destas afirmações inferem-se duas realidades opostas:
um homicídio planeado mas não executado graças à inesperada captação de imagens e
um homicídio efectivamente cometido. Nenhuma das duas presunções realizadas por
Thomas é confirmada. Mesmo o facto de existir um cadáver na relva do parque não
pode levar à conclusão de que se trata de um homem assassinado. Os olhos e as
fotografias não captam o presumível delito.
Thomas regressa ao parque e constata que o corpo havia desaparecido da relva. O
desaparecimento do cadáver lança novas dúvidas na personagem e no espectador.
Thomas sente-se confundido e desalentado, porque vê frustrado o objectivo de
fotografar o cadáver; o espectador vê também gorada a sua expectativa de resolução do
mistério – morte natural? Homicídio? Em termos hermenêuticos, a indecifração do
enigma vincula o filme ao género fantástico e afasta-o do policial.
O episódio final de Blow-Up constitui uma metáfora do filme: nas ocupações
profissional e de lazer, Thomas movimenta-se em permanência num universo onde se
esbateram as fronteiras entre a realidade e a ficção, mas acaba por aceitar a dimensão
fantástica (aberta) da realidade, porque se deixa envolver num imaginário jogo de ténis.
3. Conclusão
O enredo de “Las babas del diablo” apresenta semelhanças manifestas com a
estética surrealista. O conto, caótico na sua organização discursiva (alternâncias de
vozes de enunciação, cortes na diegese e ambiguidades gramaticais) refracta um
universo repleto de imprecisões, que Antonioni recupera através dos cortes de que é
feito Blow-Up.
14
A oscilação entre realidades – verosímil e onírica – revela que, no conto e no filme,
a dimensão fantástica de uma segunda realidade acaba por se sobrepor à dimensão
factual. No filme, a justaposição da ficção à realidade é a última mensagem oferecida ao
espectador: as personagens de merry-makers (jovens ruidosos, que percorrem um bairro
de Londres com os rostos pintados de branco e abordam diversos transeuntes) que
aparecem na abertura (e cuja funcionalidade na obra só poderá ser compreendida no
desfecho) regressam na cena final para uma ilusória partida de ténis. Thomas deixa-se
envolver nesse universo fantasioso, devolvendo aos jogadores uma imaginária bola
perdida.
A construção de uma realidade outra é um trabalho das fotografias: no conto e no
filme, as ampliações compensam a falibilidade da visão (órgão tão menos fiável quanto,
no filme, o terceiro regresso de Thomas ao parque acontece depois de uma noite em que
bebeu álcool e fumou marijuana12
) e contribuem ainda para adensar o ambiente
fantástico que Michel e Thomas pressentiram durante a realização das fotografias –
actos de simbólica mortal.
Fotografar significa ainda desempenhar um papel activo num episódio surreal, e não
apenas testemunhá-lo.
A fotografia é, por fim, o único “acto-vestígio”13
do texto literário e do filme: uma
fotografia ampliada é o rasto de que leitor e espectador dispõem para desvendarem a
natureza fantástica destas obras. O fantástico é antecipado em Cortázar pelo título do
conto e pela descrição da personagem que, tal como Michel, observa a cena entre o
rapaz e a mulher loura no parque parisiense.14
Em Antonioni, a vertente fantástica é
levada mais longe, na representação de dois irresolúveis mistérios: um presumível crime
e um presumível ocultamento de cadáver.
Assim, e correspondendo ao final “aberto” proposto pela narrativa fantástica,
leitores e espectadores vêem-se incitados à formulação de múltiplas conjecturas de
interpretação do conto de Cortázar e do filme de Antonioni.
Uma última reflexão se impõe: tanto no conto como no filme, é a técnica que
suporta o fantástico. A criação humana de mundos de fantasia é inúmeras vezes
justificada pela presunção de que a técnica é inumana. Ora em “Las babas del diablo” e
12
No conto, a natureza pouco fiável do olhar é traduzida nas expressões que se anulam mutuamente:
Michel afirma que “Creo que sé mirar, si es que algo sé, y que todo mirar rezuma falsedad” (idem: 217).
13
Expressão da autoria de Philippe Dubois (1982).
14
O homem de chapéu cinzento é descrito com traços que supõem uma certa diabolia: “”payaso
enharinado u hombre sin sangre, con la piel apagada e seca, los ojos metidos en lo hondo y los agujeros
de la nariz negros y visibles más negros que las cejas o el pelo o la corbata negra” (Cortázar, 1994a: 220).
15
em Blow-Up é a própria composição técnica das narrativas (literária e fílmica) que
constrói o fantástico.
4. Bibliografia
A. Activa
Antonioni, Michelangelo
(2004) Blow-Up. História de um Fotógrafo, Warner Brothers.
Cortázar, Julio
– – (1994a) Obra Crítica/1, Madrid, Alfaguara.
– – (1994b) Obra Crítica/2,Madrid, Alfaguara.
– – (1994c) Obra Crítica/3, Madrid, Alfaguara.
– – (1995) “Cazador de crepúsculos”, Cuentos Completos/2, sexta edición, Madrid,
Alfaguara, pp. 284-285.
– – (1996) “Las babas del diablo”, Cuentos Completos/1, novena edición, Madrid,
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– – (2002) Cartas (1937-1963), Tomo I, Madrid, Alfaguara.
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Comunicação e Cidadania. Actas do 5º Congresso da Associação Portuguesa de
Ciências da Comunicação, Braga, Centro de Estudos de Comunicação e
Sociedade (Universidade do Minho), pp. 2373-2384.
Ceserani, Remo
(1996) Il fantastico, Bologna, Il Mulino.
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Hall.
16
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(1982) O Acto Fotográfico, Lisboa, Vega.
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(1978) Conversaciones con J. C., Barcelona, Edhasa.
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  • 1. A vanguarda surrealista na literatura e no cinema: Julio Cortázar e Michelangelo Antonioni (Maria do Carmo Pinheiro e Silva Cardoso Mendes – Universidade do Minho) Toda la obra de Julio Cortázar está marcada por esa sospecha (el diría certeza) de una realidad segunda que el surrealismo había convertido en el norte de sus búsquedas. Jaime Alazraki El mundo real es marco de los orbes ficticios y autónomos creados por la fotografía, las narraciones, la pintura, las películas cinematográficas, las imaginaciones, las televisiones y los espejos. Oscar Hahn 1. Diálogos inter-artes 1.1. A vanguarda surrealista ocupa um lugar determinante na ficção narrativa do escritor argentino Julio Cortázar (1914 – 1984). Contos como “Casa tomada”, “Carta a una señorita en Paris” ou “Las babas del diablo” fazem prova de que Cortázar entende o Surrealismo como uma cosmovisão que põe em confronto um universo ordenado e um universo caótico, que em permanência lança instabilidade sobre o primeiro.1 O Surrealismo é também tema persistente na produção ensaística do escritor. Entre os vários ensaios a ele dedicados ao longo da década de 1940 – “Teoría del túnel”, “Muerte de Antonin Artaud”, “Un cadáver viviente” e “Surrealismo” –, assinalo as reflexões contidas no último. Elas revelam uma atitude crítica perante o positivismo 1 Apoiando-se em diversos autores que trataram a presença do Surrealismo na ficção do argentino, Patrício Goyalde Palácios (2001: 243-4) afirma que a obra de Cortázar reflecte “la dicotomía de una realidad dual, base esencial de la visión del mundo surrealista: por un lado, la realidad razonable del ámbito de la vigilia y la conciencia e, por otra, la realidad de la imaginación del ámbito del deseo y de la subconciencia”.
  • 2. 2 oitocentista e uma valorização do Surrealismo enquanto manifestação poética e “reencontro com a dimensão humana” da realidade: El panorama filosófico del siglo XIX desemboca en el positivismo, postura eufórica y cerrada a todo avizoramiento super o infrahumano, a toda visión mágica de la realidad. El surrealista prueba pronto que su concepción es esencial y solamente poética. (…) enlaza formas tradicionales, las funde y fusiona para manifestarse desde toda posibilidad, se precipita a una novela de discurso poético, se abandona a todos los prestigios de la escritura automática, la erupción onírica, las asociaciones verbales libres. (…) Surrealismo es ante todo concepción del universo y no sistema verbal. (…) Surrealista es ese hombre para quien cierta realidad existe, y su misión está en encontrarla (Cortázar, 1994a: 100-103).2 A busca de uma realidade outra (uma alter-realidade), a aposta em temas de fronteira – em especial, na contaminação onírica da realidade humana –, a exploração do acaso e do insólito, que vencem a previsibilidade, e a naturalização de fenómenos sobrenaturais, são motivos recorrentes da ficção breve de Julio Cortázar e também do conto que analisarei.3 Tais motivos representam literariamente a ligação de Cortázar ao imaginário surrealista. 1.2. Cortázar é uma referência no contexto da literatura fantástica latino-americana de Novecentos e, desde a sua estreia contística, mostra-se influenciado pela obra borgesiana. Em entrevista concedida em 1970 à revista francesa La Quinzaine Littéraire, confessa: “Borges ha dejado su marca profunda en los escritores de mi generación. Él fue quien nos mostró las posibilidades inauditas de lo fantástico. En la Argentina se escribía una literatura más bien romántica, realista, un poco popular a veces. Solamente con Borges lo fantástico alcanzó un alto nivel” (apud Alazraki, 1994: 57). 2 Confessa também Cortázar que “toda novela contemporánea con alguna significación acusa la influencia surrealista en uno u otro sentido; la irrupción del lenguaje poético sin fin ornamental, los temas fronterizos, la aceptación sumisa de un desborde de realidad en el sueño, el “azar”, la magia, la premonición, (…) son contaminaciones surrealistas dentro de la mayor o menor continuidad tradicional de la literatura” (idem: 107). 3 Davi Arrigucci Jr. (1995: 99) defende que a narrativa de Cortázar apresenta diversos pontos de contacto com o teatro do absurdo de Antonin Artaud: “a valorização do irracional, a visão de uma realidade múltipla e caótica, com regiões escuras e indevassáveis, irredutível ao pensamento conceptual que procura encerrá-la num sistema fechado, unitário e coerente; a exploração de recursos como o nonsense, a paródia, a ironia, enfim, a cerrada crítica da linguagem, o cerne antiliterário”.
  • 3. 3 Jaime Alazraki, profundo conhecedor da obra de Cortázar, propôs o termo neofantástico para designar um significativo número de ficções do escritor argentino que exploram este género, fazendo-o, todavia, de forma substancialmente diferente dos autores oitocentistas e primo-novecentistas. A opção pelo neofantástico integra-se, em primeiro lugar, na concepção cortazariana do Surrealismo como “una empresa de conquista de la realidad, una realidad más real que el mundo real, cruzando las fronteras de lo real” (Alazraki, 1994: 66). A vanguarda surrealista propiciou novas abordagens do género fantástico e, por consequência, distanciou-o do fantástico dito tradicional.4 Em Cortázar, a exploração do neofantástico significa uma concepção do género diferente daquela que é veiculada por escritores do século XIX e das primeiras décadas do seguinte: enquanto para estes o fantástico depende da obsidiante presença de episódios aterradores e de figuras que os protagonizam (e.g. fantasmas, vampiros, lobisomens)5 , e assume como principal propósito a vivência do terror (das personagens e do leitor), para Cortázar, o fantástico produz-se “de una forma marcadamente trivial y prosaica”, sem “avisos y premoniciones, guiones adecuados y ambientes apropiados como en la literatura gótica o en los modernos relatos fantásticos de baja calidad. (…) Siempre he pensado que lo fantástico no aparece de forma áspera o directa, ni es cortante, sino que más bien se presenta de una manera que podríamos llamar intersticial, que se desliza entre dos momentos o dos actos en el mecanismo binario típico de la razón humana a fin de permitirnos vislumbrar la posibilidad latente de una tercera frontera” (Cortázar, 1994b: 98). É esta possibilidade que, entre muitos, os contos “Axolotl” e “Las babas de diablo” exploram. No segundo, um acontecimento e uma figura insólitos não despertam um sentimento de temor, mas são naturalmente encaixados pelo protagonista na ordem natural dos acontecimentos. De igual modo, a possibilidade de um dos narradores do conto ser um morto é encarada como verosímil, logo, distante da hipótese fantasmagórica e aterradora do fantástico oitocentista. 4 Como reconhece Remo Ceserani (1996: 133-4), “esperienze come quelle delle avanguardie e in particolare del surrealismo, non solo in letteratura ma anche e forse più nella pintura e nel cinema, hanno messo a disposizione del modo fantastico strumenti di rapresentazione, linguaggi e una concezione della letteratura tutti nuovi”. 5 No ensaio “El estado actual de la narrativa en Hispanoamérica”, escreve Cortázar: “algo me indicaba desde el comienzo que el camino formal de esa otra realidad no se encontraba en los recursos y trucos literarios de que depende la literatura fantástica tradicional para su tan celebrado ‘pathos’, que no se encontraba en esa escenografía verbal que consiste en ‘desorientar’ al lector desde el principio condicionándole dentro de un ambiente morboso a fin de obligarle a acceder dócilmente al misterio y al terror” (Cortázar, 1994c: 96).
  • 4. 4 O neofantástico supõe, portanto, que os episódios realistas da narrativa convivem harmoniosamente com acontecimentos trans-empíricos. Os planos fantástico (surrealista) e realista possuem idêntico estatuto de realidade (ou de irrealidade). Em “Las babas del diablo” – como no filme de Antonioni inspirado no conto – os dois níveis adquirem análogo estatuto de verosimilhança. 1.3. A ficção narrativa de Julio Cortázar possibilita a identificação de múltiplas aproximações entre as artes, em especial com o cinema (Cortázar foi admirador de Alain Resnais, de Luís Buñuel e de Jean-Luc Godard, mas manifestou alguma desconfiança relativamente aos realizadores italianos Michelangelo Antonioni e Federico Fellini, como se verá), com a música (sobretudo o jazz: Louis Armstrong, Thelonious Monk, John Coltrane, Chet Baker e Miles Davis são referências fundamentais do universo musical do escritor argentino, que chegou a escrever o conto “El perseguidor”, inspirado nos derradeiros momentos de vida do saxofonista Charlie Parker6 ), com a pintura e com a fotografia. A natureza deste trabalho determina que essas relações dialógicas se circunscrevam à fotografia e ao cinema. A fotografia desempenha uma função determinante no universo ficcional e na biografia do autor de Rayuela. Da paixão de Cortázar pela fotografia resultou, entre outras, a obra Prosa del Observatorio, um texto extenso sobre fotografias feitas pelo próprio argentino numa viagem à Índia. Para Cortázar, a fotografia é uma técnica capaz de captar os interstícios da realidade; não se trata da procura de uma imagem objectiva, única e de contornos rigorosos, mas da captação de cambiantes e de fragmentos da realidade: Yo, para sacar la foto, tengo que separar las imágenes, es decir, que en determinados momentos las cosas se me apartan, se mueven, se corren a un lado y entonces, de ese hueco, esa especie de intersticio, que yo no sé exactamente lo qué es, surge una incitación que en muchos casos me lleva a escribir (apud González Bermejo, 1978: 43). No conto “Las babas del diablo”, verifica-se uma realização completa desta definição: Roberto Michel, protagonista-narrador, procura, em cada ampliação, fragmentos de realidade que preencham os espaços vazios deixados pelo olhar. 6 Também o filme Bird, de Clint Eastwood, se inspira na vida de Charlie Parker.
  • 5. 5 O interesse de Cortázar pela técnica fotográfica revela-se também na analogia estabelecida entre o conto e a fotografia. No ensaio “Algunos aspectos del cuento”, a aproximação entre romance e cinema é semelhante à que Cortázar identifica entre conto e fotografia: La novela y el cuento se dejan comparar analógicamente con el cine y la fotografía, en la medida en que una película es en principio un “orden abierto”, novelesco, mientras que una fotografía lograda presupone una ceñida limitación previa, impuesta en parte por el reducido campo que abarca la cámara y por la forma en que el fotógrafo utiliza estéticamente esa limitación. (…) siempre me ha sorprendido que el [fotógrafo] se exprese tal como podría hacerlo un cuentista en muchos aspectos (Cortázar, 1994b: 371). A aproximação entre o conto e a fotografia é também explorada graças às expectativas de recepção que proporcionam. Cortázar sustenta que ambos transformam um fragmento da realidade numa “explosión que abre de par en par una realidad más amplia”. Forçados a seleccionar um acontecimento ou uma imagem, contista e fotógrafo escolhem aquele episódio ou aquela imagem que valem não apenas por si mesmos, mas também pela capacidade de actuar no leitor ou no espectador “como una especie de apertura, de fermento que proyecta la inteligencia y la sensibilidad hacia algo que va mucho más allá de la anécdota visual o literaria contenidas en la foto o en el cuento” (idem: 371-2). Ainda que centralize a minha atenção no conto “Las babas del diablo”, não posso deixar de observar a função exercida pela fotografia na narrativa autobiográfica Apocalipsis de Solentiname. Em visita a esta localidade nicaraguense, o protagonista fotografa algumas pinturas inócuas realizadas pelos habitantes de uma comunidade rural. Já em Paris, a revelação das fotografias apresenta ao fotógrafo uma situação fantástica, que desencadeia a surpresa e o terror: os quadros haviam sido substituídos por imagens de violência praticada na América Latina. Como acontece em “Las babas del diablo”, o desfecho da narrativa não esclarece o protagonista e o leitor, que permanecem na dúvida sobre o conteúdo das imagens. A atenção dedicada por Cortázar à fotografia constitui também um reconhecimento da ascendência surrealista na sua obra. De facto, alguns procedimentos fotográficos adoptados pelas vanguardas dadaísta e surrealista (exemplarmente contemplados na
  • 6. 6 produção do americano Man Ray, cujo aposta em novas técnicas fotográficas teve por objectivo substituir o princípio de que a fotografia é uma reprodução fiel da realidade por aquele que reenvia para a surrealidade e a subjectividade) incluem a colagem e a fotomontagem. Técnicas como o close e o informe procuram apreender detalhes de um objecto ou de uma figura, desarticulando-o ou fragmentando-o. São também estes propósitos que dominam os fotógrafos do conto e do filme em análise. Em ambos, os valores testemunhais, objectivos e rigorosos, associados ao acto de fotografar, são neutralizados. Analisar a relação de Cortázar com o cinema significa, em primeiro lugar, considerar o lugar ocupado por esta arte na obra do escritor argentino. Essa presença permite duas leituras: aquela que revela o fascínio de Cortázar pelo cinema e aquela que traduz um certo desencanto perante alguns realizadores. O conto “Cazador de crepúsculos” uma admiração (reforçada pela constatação de uma incapacidade pessoalmente assumida) pela aptidão do cineasta para captar momentos excepcionais. Cortázar valoriza, não a técnica de um director de cinema, mas a sua habilidade (de que o escritor se sente destituído) para fixar eternamente momentos extraordinários: Si yo fuera cineasta me dedicaría a cazar crepúsculos. Todo lo tengo estudiado menos el capital necesario para el safari, porque un crepúsculo no se deja cazar así nomás, quiero decir que a veces empieza poquita cosa y justo cuando se lo abandona le salen todas las plumas (…). Para llegar al crepúsculo definitivo tendía que filmar cuarenta o cincuenta, porque si fuera cineasta tendría las mismas exigencias que con las palabras, las mujeres o la geopolítica (Cortázar, 1995: 284). O cinema (sobretudo surrealista) importa a Cortázar como imaginação puramente visual, encontrando no cineasta argentino Manuel Antín, com quem privou, um exemplo paradigmático desta capacidade imaginativa. Em 1963, quando colabora com Antín na adaptação fílmica da obra Circe, escreve Cortázar: Asistir al funcionamiento mental de un cineasta es algo asombroso. Yo adelantaba una sugestión cualquiera sobre el cuento, y de inmediato Antón se quedaba como en trance. (…) Una imaginación puramente visual es algo extraordinario, y mi trabajo
  • 7. 7 con Antón me ha enseñado a ver de otra manera el cine, a verlo desde dentro, y no como un mero espectáculo (idem, 2002: 324). Depois de assistir a El Ángel Exterminador, de Buñuel, confessa em carta a Antín: “estoy de vuelta a casa, y todo, absolutamente todo me da vueltas, y te estoy escribiendo con una especie de pulpo que va y viene y me arranca las palabras con las patas y las escribe por su cuenta, y todo es increíblemente hermoso y atroz y entre rojo y mujer y una especie de total locura” (idem: 143). No entanto, Cortázar assume uma posição crítica perante realizadores de filmes psicológicos, como Fellini e Antonioni: “Dios sabe lo poco que me gusta el cine psicológico y el hastío que me producen en general Antonioni, Fellini y los demás novelistas del cine, como perversamente doy en llamarlos” (idem: 498). 2. O que os olhos não vêem 2.1. Intertexto do filme Blow-Up, de Michelangelo Antonioni, o conto de Cortázar apresenta virtualidades intertextuais mais vastas, demonstradas em diversas adaptações cinematográficas das suas obras, não obstante a reflexão feita pelo escritor argentino em 1973: “Yo no creo que mi obra haya tenido ninguna influencia en el cine, absolutamente ninguna. A lo sumo, una influencia muy, muy indirecta” (apud Luciani, 1998: 183). Esta observação é infirmada pelos ensaios de Mahieu e de Frederick Luciani. O primeiro estabelece uma cronologia da cinematografia inspirada no conto de Cortázar, destacando os filmes latino-americanos; o segundo analisa a influência da narrativa de Cortázar na cinematografia europeia e americana, demonstrando que realizações cinematográficas como Weekend (1967) de Jean-Luc Godard, Blow-up (1966) de Antonioni, Greetings (1968) e Blow Out (1981) de Brian De Palma, The Conversation (1974) de Francis Ford Coppola, e JFK (1991) de Oliver Stone, são marcadas, directa ou indirectamente, pela influência do conto de Cortázar.7 2.2. O conto “Las babas del diablo” (1959) apresenta uma diegese aparentemente simples. O narrador-protagonista é um fotógrafo que vive em Paris e relata um episódio ocorrido numa manhã de domingo. A descrição realista que inicia o texto cria um efeito de verosimilhança (mesmo biográfica, pois Cortázar passou grande parte da sua existência na capital francesa e foi um profundo apaixonado pela fotografia): “Roberto 7 Cf. José Mahieu (1980: 640-646) e Frederick Luciani (1998: 183-207). Bastaria uma consulta do sítio www.geocities.com/juliocortazar_arg para conhecer uma cronologia exaustiva da cinematografia latino-americana e europeia inspirada em obras de Julio Cortázar.
  • 8. 8 Michel, franco-chileno, traductor y fotógrafo aficionado a sus horas, salió del número 11 de la rue Monsieur-le-Prince el domingo 7 de Noviembre del año en curso” (Cortázar, 1996: 215). A deambulação do fotógrafo termina no momento em que observa um casal: inicialmente, Michel julga tratar-se de uma mãe acompanhada pelo filho, mas logo de seguida supõe que se trata de um casal de namorados, ele com 14 anos, ela provavelmente com 15: Lo que había tomado por una pareja se parecía mucho más a un chico con su madre, aunque al mismo tiempo me daba cuenta de que no era un chico con su madre, de que era una pareja en el sentido que damos siempre a las parejas cuando las vemos apoyadas en los parapetos o abrazadas en los bancos de las plazas (idem: 216). As dúvidas do protagonista sobre a natureza da cena observada (prostituição masculina? Incesto?) instauram uma vertente fantástica, reforçada pelo comentário do observador – “Curioso que la escena (la nada, casi: dos que están ahí, desigualmente jóvenes) tuviera como un aura inquietante” (idem: 218) – e pela descoberta de que o par é observado ainda por um misterioso homem do interior de um automóvel. Em termos gramaticais, a abertura do conto coloca uma hipótese fantástica: incapaz de decidir se o estranho acontecimento deve ser relatado em primeira, em segunda ou em terceira pessoa, Michel conclui: “Mejor que sea yo que estoy muerto, que estoy menos comprometido que el resto” (idem: 214). Ou seja, a narrativa apresenta três sujeitos de enunciação: dois de primeira pessoa (um vivo; o outro morto) e um de terceira pessoa. A alternância enunciativa relativiza a história narrada e, ao mesmo tempo, instala a dúvida no espírito do leitor: se a história é oscilante, em função da variação de enunciador, qual é aquela que o leitor deve tomar como credível? A multiplicidade de vozes de enunciação antecipa por isso (i) relatos fragmentários, que ora se complementam, ora se excluem, e (ii) desconexões do enredo, que surge desordenado e elíptico. Também os traços psicológicos que definem Michel permitem caracterizá-lo como uma personagem fantástica: ele é tradutor e fotógrafo, isto é, um homem disperso nos seus interesses profissionais e porventura excessivamente confiante e disponível para a aceitação de acontecimentos que escapam à “ordem do real”. Constituem também uma
  • 9. 9 representação do Duplo (motivo determinante no género fantástico): na nacionalidade franco-chilena, na profissão de tradutor e fotógrafo, e nos lugares que ocupa na diegese (observador, mas também testemunha de um presumível crime que terá impedido). Consideremos a natureza das profissões do protagonista. Como fotógrafo e como tradutor, Michel busca situações excepcionais. A sua própria natureza revela uma propensão para a busca da invulgaridade, o que, em última instância, o torna uma personagem disposta a acolher sem temor situações a-normais: “Nada le gusta más que imaginar excepciones, individuos fuera de la especie, monstruos no siempre repugnantes” (idem: 220). Michel não é apenas um fotógrafo; é ainda (como o homem que acompanha a cena do interior de um automóvel, provavelmente um proxeneta da mulher), um voyeur e um flâneur e, nestas duas qualidades, torna-se “sujeto inconsciente de su discurso en el cual figura predominantemente como héroe moral (salva al adolescente de la corrupción) y víctima inocente: es decir, como mártir” (Gutierrez Mouat, 1987: 39). Enquanto fotógrafo, Michel apresenta preocupações com a estética fotográfica e justificações para a sua profissão: “Entre las muchas maneras de combatir la nada, una de las mejores es sacar fotografías, actividad que debería enseñarse tempranamente a los niños, pues exige disciplina, educación estética, buen ojo y dedos seguros” (idem: 216). Michel recusa a actividade do paparazzo, propondo-se fotografar episódios e momentos irrepetíveis. A fotografia traduz uma forma peculiar e singular de observar o mundo, e revela a capacidade do seu executante para o interpretar também de forma original, mostrando-se Michel um alter-ego de Cortázar: No se trata de estar acechando la mentira como cualquier reporter, y atrapar la estúpida silueta del personajón que sale del número 10 de Downing Street, pero de todas maneras cuando se anda con la cámara hay como el deber de estar atento, de no perder ese brusco y delicioso rebote de un rayo de sol en una vieja piedra, o la carrera trenzas del aire de una chiquilla que vuelve con un pan o una botella de leche. Michel sabía que el fotógrafo opera siempre como una permutación de su manera personal de ver el mundo por otra que la cámara le impone (ibidem). Já no estúdio, as revelações oferecem a Michel imagens que não correspondem àquelas que os olhos captaram, mas uma realidade outra. A nova realidade trazida pelas ampliações acentua a vertente fantástica do conto, traduzida nas questões colocadas por
  • 10. 10 Michel: terá assistido a uma tentativa de homicídio? Terá observado uma cena inocente entre mãe e filho? Terá sido testemunha fortuita de um envolvimento amoroso (ou então sexual?) entre uma sedutora ruiva e um incauto adolescente? Terá salvo um rapaz de um acto de homicídio planeado por uma mulher? Michel tem consciência de que estas dúvidas o situam num universo de aparências e de ambiguidades. As imagens ambivalentes fornecidas pelo par encobrem uma outra realidade, porventura perigosa, quer para o casal, quer para o fotógrafo. As hesitações de Michel desencadeiam, por isso, especulações imprecisas: sobre o jovem – “estaba bastante bien vestido y llevada unos guantes amarillos que yo hubiera jurado que eran de su Hermano mayor (…). Al filo de los catorce, quizá de los quince, se le adivinaba vestido y alimentado por sus padres, sin un centavo en el bolsillo” (idem: 217); sobre a mulher – “vestía un abrigo de piel casi negro, casi largo, casi hermoso. (…) pelo rubio que recortaba su cara blanca y sombría” (ibidem); sobre os motivos da interrupção abrupta da cena – “El muchacho acabaría por pretextar una cita, una obligación cualquiera, y se alejaría tropezando y confundido. (…) o bien se quedaría, fascinando o simplemente incapaz de tomar la iniciativa” (idem: 218). O acto de fotografar tem como propósito dissipar dúvidas ou, nas palavras de Michel, “mi foto (…) restituiría las cosas a su tonta verdad” (ibidem). Blow-Up (1966) é o primeiro filme em língua inglesa do cineasta italiano Michelangelo Antonioni (1912-2007). O sucesso obtido pelo filme ficou a dever-se, em primeiro lugar, ao tratamento de temas como a incomunicabilidade e o erotismo, e foi confirmado em diversas nomeações para os Óscares e na atribuição da Palma de Ouro do Festival de Cannes, em 1967. Sendo certo que Antonioni é um realizador do chamado Neo-Realismo italiano, julgo que a presença de traços surrealistas revela tanto a influência de Cortázar quanto o interesse do realizador italiano pelo imaginário surrealista. A década de 1960, na qual Blow-Up se inscreve, é, de resto profícua na disseminação cinematográfica da poética surrealista.8 8 Fernando Cabral Martins (2000: 214) identifica vários realizadores influenciados pelo Surrealismo: Fellini, Robe-Grillet, André Delvaux, Andrei Tarkovsky, Emir Kusturica e Peter Greenaway. Na cinematografia norte-americana, realizadores já do final do século XX como John Carpenter, David Cronenberg, David Lynch, Tim Burton ou os irmãos Cohen privilegiam a dimensão onírica de ascendência surrealista.
  • 11. 11 Antonioni segue as obsessões de Cortázar com a visão fragmentária da realidade e o princípio de indeterminação, muito embora o seu filme proceda a uma expansão (e a alterações) do enredo e das personagens.9 A banda sonora de Blow-Up, da autoria do pianista e compositor Herbie Hancock, constitui uma homenagem ao fascínio de Cortázar pelo jazz. De igual modo, a procura de quadros de paisagens, feita por Thomas num antiquário de Londres, representa um tributo ao escritor argentino, profundo apaixonado pela pintura.10 O enredo de Blow-Up localiza-se em Londres, no ano de 1966. Thomas, o protagonista, é um fotógrafo narcísico e arrogante, que, casualmente, fixa na sua objectiva um casal envolvido numa turbulenta relação em Maryon Park. Enquanto adaptação de uma obra literária, o filme de Antonioni mostra alguns distanciamentos relativamente ao seu intertexto. O primeiro diz respeito à caracterização do protagonista: ao contrário de Michel, Thomas é um reputado fotógrafo que exerce a sua actividade num universo propício à criação de ilusões e ao esbatimento de fronteiras entre a realidade e a ficção: o universo da moda11 . Faz da reputação um instrumento privilegiado para seduzir jovens raparigas dispostas a quase tudo para serem aceites como modelos fotográficos. Mostra-se desdenhoso com todas elas, como pode comprovar-se na resposta à súplica de duas jovens para que lhes dispense dois minutos: “Nem tenho dois minutos para tirar o apêndice”. Como ser humano, como fotógrafo, como sedutor e como coleccionador de antiguidades, Thomas é um ser inconsequente e errático: a observação de um casal de homossexuais desperta-lhe uma homofóbica repulsa; a cena de sedução que envolve as fotografias tiradas à primeira modelo termina no momento em que Thomas se lança sobre um sofá; o encontro com a mulher do parque, que procura recuperar as fotografias, não vai além de um beijo; a relação com as diversas modelos fotografadas chega a ser agressiva (ora porque o fotógrafo grita, ora porque rapidamente se cansa e as abandona, pedindo-lhes que 9 Cf. Timothy Corrigan (2000: 60-1). 10 A propósito da influência do Surrealismo em Cortázar, defende Peter Standish (2001: 53) que “among the surrealists the painters were at least as influential as were the writers. Cortázar went on record several times saying that he would have liked to be a painter”. Entre os muitos pintores referidos na obra do escritor artgentino, destacam-se Van Eyck, Picasso, Boticelli, Dürer, Magritte, Bacon, Max Ernst e o pintor surrealista belga Paul Delvaux. 11 Observa Maria João Baltazar (2008: 2381) que a “construção de Thomas foi influenciada pela personalidade do fotógrafo inglês David Bailey (1938-), que se notabilizou como fotógrafo de moda e de celebridades na Londres dos Swinging Sixties – Andy Warhol, os Beatles e Mick Jagger foram algumas das personalidades que fotografou. A sua ascensão na revista Vogue foi consequência de um trabalho novo e pessoal, que se afirmou através da cumplicidade e da proximidade estabelecida entre fotógrafo e modelo de acordo com a própria transformação social da década de 1960”.
  • 12. 12 fechem os olhos e se mantenham de pé por tempo indeterminado); a entrada num antiquário é motivada pelo desejo de adquirir quadros paisagísticos, mas Thomas termina por encomendar uma hélice. O encontro com a mulher fotografada no parque (cuja identidade o filme não desvenda) apresenta algumas dissemelhanças comparativamente com os demais envolvimentos emocionais Thomas: esta mulher é a única que Thomas tem a pretensão de fotografar; é também a única que parece despertar sentimentos até então ausentes em Thomas: a curiosidade e a atracção. Neste sentido, o beijo trocado no estúdio constituiu uma promessa de início de uma relação amorosa, mas não passará disso mesmo, promessa não cumprida. A capacidade de combater a rotina pela fantasia e a alienação pessoal (que conduz ao isolamento voluntário dos protagonistas) constituem motivos que aproximam conto e filme. A ampliação das fotografias – motivo que sustenta o título atribuído ao filme – oferece a Thomas uma história diferente daquela visualizou no parque londrino. A fotografia constitui, assim, a narração de uma “segunda realidade” (já proposta pelo intertexto). A ampliação das fotografias revela um presumível crime, uma vez que uma delas mostra um corpo caído na relva. Como Michel, Thomas deixa de ser apenas um espectador de uma cena ocorrida no espaço público, para se tornar testemunha de um assassínio. A incredulidade perante a ampliação determina um primeiro regresso ao lugar onde o cadáver efectivamente se encontra. Numa segunda visita, Thomas constata, todavia, o desaparecimento do corpo. Como se observou, a natureza surrealista do conto de Cortázar é traduzida pela sequência aparentemente desarticulada de cenas, pela instabilidade psicológica de Michel e, sobretudo, pelo final “aberto”, porque inexplicável. O sentimento de dúvida que domina o protagonista é, em última análise, uma revelação das fragilidades da razão para clarificar uma ou várias realidades fragmentárias. O desfecho do filme de Antonioni apresenta semelhanças notáveis com o epílogo da narrativa de Cortázar. O crime revelado nas fotografias não pode ser assumido por Thomas como uma certeza indesmentível, do mesmo modo que as dúvidas de Michel se mantêm até ao final do conto. Nas duas obras, a ampliação de fotografias instaura o mistério de uma segunda realidade, mais fantástica no filme de Antonioni: as ampliações desvendam o que os
  • 13. 13 olhos não captaram: um rosto masculino escondido atrás de um arbusto testemunha uma cena amorosa e é observado pela mulher; uma outra ampliação mostra uma mão que segura um objecto, presumivelmente uma arma; e uma nova ampliação revela a Thomas um corpo caído. O acto imediato do fotógrafo (regresso ao parque e ao lugar específico onde se encontra o cadáver) evidencia a necessidade de racionalizar fragmentos da realidade. No regresso ao estúdio, Thomas depara-se com um cenário devassado, de onde desapareceram todas as fotografias e ampliações, à excepção, em aparência, casual, da última e mais reveladora. É esta ampliação que levará Thomas a manifestar-se muito assertivo junto do seu editor, assegurando-lhe ter evitado um crime, para pouco depois afirmar com igual convicção à mulher de um amigo pintor: “Assisti ao homicídio de um homem num parque qualquer”. Destas afirmações inferem-se duas realidades opostas: um homicídio planeado mas não executado graças à inesperada captação de imagens e um homicídio efectivamente cometido. Nenhuma das duas presunções realizadas por Thomas é confirmada. Mesmo o facto de existir um cadáver na relva do parque não pode levar à conclusão de que se trata de um homem assassinado. Os olhos e as fotografias não captam o presumível delito. Thomas regressa ao parque e constata que o corpo havia desaparecido da relva. O desaparecimento do cadáver lança novas dúvidas na personagem e no espectador. Thomas sente-se confundido e desalentado, porque vê frustrado o objectivo de fotografar o cadáver; o espectador vê também gorada a sua expectativa de resolução do mistério – morte natural? Homicídio? Em termos hermenêuticos, a indecifração do enigma vincula o filme ao género fantástico e afasta-o do policial. O episódio final de Blow-Up constitui uma metáfora do filme: nas ocupações profissional e de lazer, Thomas movimenta-se em permanência num universo onde se esbateram as fronteiras entre a realidade e a ficção, mas acaba por aceitar a dimensão fantástica (aberta) da realidade, porque se deixa envolver num imaginário jogo de ténis. 3. Conclusão O enredo de “Las babas del diablo” apresenta semelhanças manifestas com a estética surrealista. O conto, caótico na sua organização discursiva (alternâncias de vozes de enunciação, cortes na diegese e ambiguidades gramaticais) refracta um universo repleto de imprecisões, que Antonioni recupera através dos cortes de que é feito Blow-Up.
  • 14. 14 A oscilação entre realidades – verosímil e onírica – revela que, no conto e no filme, a dimensão fantástica de uma segunda realidade acaba por se sobrepor à dimensão factual. No filme, a justaposição da ficção à realidade é a última mensagem oferecida ao espectador: as personagens de merry-makers (jovens ruidosos, que percorrem um bairro de Londres com os rostos pintados de branco e abordam diversos transeuntes) que aparecem na abertura (e cuja funcionalidade na obra só poderá ser compreendida no desfecho) regressam na cena final para uma ilusória partida de ténis. Thomas deixa-se envolver nesse universo fantasioso, devolvendo aos jogadores uma imaginária bola perdida. A construção de uma realidade outra é um trabalho das fotografias: no conto e no filme, as ampliações compensam a falibilidade da visão (órgão tão menos fiável quanto, no filme, o terceiro regresso de Thomas ao parque acontece depois de uma noite em que bebeu álcool e fumou marijuana12 ) e contribuem ainda para adensar o ambiente fantástico que Michel e Thomas pressentiram durante a realização das fotografias – actos de simbólica mortal. Fotografar significa ainda desempenhar um papel activo num episódio surreal, e não apenas testemunhá-lo. A fotografia é, por fim, o único “acto-vestígio”13 do texto literário e do filme: uma fotografia ampliada é o rasto de que leitor e espectador dispõem para desvendarem a natureza fantástica destas obras. O fantástico é antecipado em Cortázar pelo título do conto e pela descrição da personagem que, tal como Michel, observa a cena entre o rapaz e a mulher loura no parque parisiense.14 Em Antonioni, a vertente fantástica é levada mais longe, na representação de dois irresolúveis mistérios: um presumível crime e um presumível ocultamento de cadáver. Assim, e correspondendo ao final “aberto” proposto pela narrativa fantástica, leitores e espectadores vêem-se incitados à formulação de múltiplas conjecturas de interpretação do conto de Cortázar e do filme de Antonioni. Uma última reflexão se impõe: tanto no conto como no filme, é a técnica que suporta o fantástico. A criação humana de mundos de fantasia é inúmeras vezes justificada pela presunção de que a técnica é inumana. Ora em “Las babas del diablo” e 12 No conto, a natureza pouco fiável do olhar é traduzida nas expressões que se anulam mutuamente: Michel afirma que “Creo que sé mirar, si es que algo sé, y que todo mirar rezuma falsedad” (idem: 217). 13 Expressão da autoria de Philippe Dubois (1982). 14 O homem de chapéu cinzento é descrito com traços que supõem uma certa diabolia: “”payaso enharinado u hombre sin sangre, con la piel apagada e seca, los ojos metidos en lo hondo y los agujeros de la nariz negros y visibles más negros que las cejas o el pelo o la corbata negra” (Cortázar, 1994a: 220).
  • 15. 15 em Blow-Up é a própria composição técnica das narrativas (literária e fílmica) que constrói o fantástico. 4. Bibliografia A. Activa Antonioni, Michelangelo (2004) Blow-Up. História de um Fotógrafo, Warner Brothers. Cortázar, Julio – – (1994a) Obra Crítica/1, Madrid, Alfaguara. – – (1994b) Obra Crítica/2,Madrid, Alfaguara. – – (1994c) Obra Crítica/3, Madrid, Alfaguara. – – (1995) “Cazador de crepúsculos”, Cuentos Completos/2, sexta edición, Madrid, Alfaguara, pp. 284-285. – – (1996) “Las babas del diablo”, Cuentos Completos/1, novena edición, Madrid, Alfaguara, pp. 214-224. – – (2002) Cartas (1937-1963), Tomo I, Madrid, Alfaguara. B. Passiva Alazraki, Jaime (1994) Hacia Cortázar. Aproximaciones a su obra, Madrid, Editorial Anthropos. Alonso, Carlos J. (1998) Julio Cortázar. ew Readings, Cambridge, Cambridge University Press. Arrigucci Jr., Davi (1995) O Escorpião Encalacrado. A poética da destruição em Julio Cortázar, São Paulo, Editora Schwarcz Ltda. Baltazar, Maria João (2008) “Do olhar moderno em O Homem da Câmara de Filmar ao olhar do fotógrafo em BlowUp, Moisés de Lemos Martins e Manuel Pinto (Orgs), Comunicação e Cidadania. Actas do 5º Congresso da Associação Portuguesa de Ciências da Comunicação, Braga, Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade (Universidade do Minho), pp. 2373-2384. Ceserani, Remo (1996) Il fantastico, Bologna, Il Mulino. Corrigan, Timothy (2000) Film and Literature. An Introduction and Reader, New Jersey, Prentice Hall.
  • 16. 16 Dubois, Philippe (1982) O Acto Fotográfico, Lisboa, Vega. González Bermejo, Ernesto (1978) Conversaciones con J. C., Barcelona, Edhasa. Goyalde Palacios, Patricio (2001) La interpretación, el texto y sus fronteras. Estudio de las interpretaciones críticas de los cuentos de Julio Cortázar, Madrid, UNED Ediciones. Gutierrez Mouat, Ricardo (1987) “‘Las babas del diablo’: exorcismo, traducción, voyeurismo”, Fernando Burgos (ed.), Los ochenta mundos de Cortázar. Ensayos, Madrid, EDI-6, S.A., pp. 37-46. Hahn, Oscar (1981) Julio Cortázar, Madrid, Taurus. Lastra, Pedro (ed.) (1981) Julio Cortázar. El escritor y la crítica, Madrid, Taurus. Luciani, Frederick (1998) “The Man in the Car / in the Trees / venid the Frence: From Cortázar’s ‘Blow-Up’ to Oliver Stone’s JFK”, Carlos Alonso (ed.), Julio Cortázar. ew Readings, Cambridge, Cambridge University Press, pp. 183-207. Mahieu, José (1980) “Cortázar en cine”, Cuadernos Hispanoamericanos, 364-366, pp. 640-46. Martins, Fernando Cabral (2000) O Trabalho das Imagens, Lisboa, Aríon. Standish, Peter (2001) Understanding Julio Cortázar, Columbia, University of South Carolina Press.