3. “A Inquisição católica promoveu o extermínio de
aproximadamente 20 milhões de pessoas ao longo de
quase 1000 anos.”
História das Inquisições de HÉLIO DANIEL CORDEIRO
Finalidade: “A finalidade do novo órgão judiciário
[Inquisição] seria converter e reintegrar os hereges,
absolvendo os penitentes e condenando só os
contumazes, os incorrigíveis.”
4. A Inquisição era um tribunal eclesiástico destinado a defender a fé católica: vigiava,
perseguia e condenava aqueles que fossem suspeitos de praticar outras religiões.
Exercia também uma severa vigilância sobre o comportamento moral dos fiéis e
censurava toda a produção cultural bem como resistia fortemente a todas as
inovações científicas. Na verdade, a igreja receava que as ideias inovadoras
conduzissem os crentes à dúvida religiosa e à contestação da autoridade do papa.
A 23 de maio de 1536 – bula do papa Paulo II - estabelece a Inquisição em
Portugal, no reinado de D. João III.
Os judeus foram os mais perseguidos pela inquisição em Portugal. As pessoas
viviam amedrontadas e sabiam que podiam ser denunciadas a qualquer momento
sem que houvesse necessariamente razão para isso. Quando alguém era
denunciado, levavam-no preso e, muitas vezes, era torturado até confessar.
A Inquisição em Portugal terminou em 1821 depois da revolução liberal de 1820.
5. A matança dos cristãos-novos
em Lisboa no reinado de
D. Manuel I -
Desenho de Manuel de
Macedo.
6. É no reinado de D. João V que se revigora a Inquisição em Portugal, com
implacável severidade e reiterados autos-de-fé, fortalecendo a tradição da união
entre o Estado e a Igreja.
Aumentou o número de autos-de-fé e o próprio D. João V assistia à grande maioria
deles, mesmo nos últimos anos do reinado. Era o seu “espetáculo” preferido e
pensava que era a melhor forma de manter os princípios do cristianismo.
Durante o seu reinado realizaram-se, em Lisboa, 28 autos-de-fé públicos. E o
número de condenados podia atingir as dezenas.
Montavam-se bancadas de madeira para a assistência nas praças onde tinham
lugar - em Lisboa, era no Terreiro do Paço ou no Rossio. Geralmente, após os
autos-de-fé, inquisidores e rei jantavam em banquetes organizados pela Inquisição
7. O governo de D. João V utilizou a Inquisição como
meio de garantir seu poder sobre os súditos e, ao
mesmo tempo, como instrumento de poder, para
garantir aos cofres do governo os recursos
necessários a sua manutenção, através da delação,
extorsão e apropriação indébita dos bens móveis e
imóveis de muçulmanos, ciganos e judeus residentes
no Reino de Portugal.
Esse quadro sociopolítico foi campo aberto e palco
ideal para uma das páginas mais sangrentas do
Tribunal da Santa Inquisição, mecanismo de coação,
censura e aniquilamento de pessoas e grupos
diferentes largamente utilizado pelos reis ibéricos,
como forma de autoafirmação dos seus poderes.
8.
9. “Que isso [a tortura] se faça sem crueldade! Não
somos carrascos!” Manual dos Inquisidores
“Melhor é deixar um crime impune do que condenar
um inocente” Instrução aos inquisidores, 1246
10. Os números são considervelmente
inferiores aos anunciados
11.
12. A INQUISIÇÃO TINHA UM
TRIBUNAL ONDE ERAM JULGADOS
E SENTENCIADOS OS ACUSADOS
DE CRIMES CONTRA A FÉ CRISTÃ
A TORTURA ERA UTILIZADA, POR
VEZES, PARA OBTER UMA
CONFISSÃO
13.
14. O Candelabro
Peça de madeira em formato de triângulo onde a vítima
era colocada de pernas abertas e forçada para baixo.
Era uma das formas usadas para punir bruxarias, pois a
pessoa tinha que fazer muita força para contrair suas
pernas e evitar que a peça entrasse, coisa que era
inevitável.
Tortura da água
Ao réu, preso à mesa, durante o
"interrogatório" era dada água até o seu
ventre se partir
15. Autos-de-fé
Cerimónias públicas onde os
condenados da Inquisição eram
queimados vivos.
A dama de ferro
Um sarcófago de madeira com espinhos
afiados e longos. Essa ferramenta de tortura
tinha os espinhos colocados de tal forma que
não atingia nenhum ponto vital das vítimas,
para prolongar seu sofrimento.
16.
17. A Pêra
O nome é dado pelo formato da peça. É uma peça
que expandia progressivamente as aberturas onde
era introduzida.
Esse instrumento forçava a boca, o ânus ou a
vagina da vítima. Era usada para punir os
condenados por adultério, ou união sexual com
Satã, e também para blasfémias ou hereges.
18. A Roda
Era uma das mais utilizadas formas de tortura
da antiguidade. Existem evidências de sua
utilização na Inglaterra, Holanda e Alemanha
entre o ano de 1100 a 1700. Podia ser usada
de duas formas: Eram quebrados os ossos das
juntas da vítima (pulsos, joelhos, cotovelos,
ombros), para que essa pudesse ser
"trançada" entre os raios da roda. Estando a
vítima nua e com os membros trançados, a
roda era suspensa e ficava exposta em praça
pública ou em locais chamados de docas de
execução. As vítimas agonizavam até a morte,
muitas vezes com os ossos expostos.
21. Memorial do Convento denuncia o medo que se vivia
na época devido às perseguições levadas a cabo pelo
Santo Ofício.
As descrições das procissões dos penitentes e
supliciados e também as procissões religiosas, como a
do Corpo de Deus, são textos de enorme visualismo,
pelo rigor de pormenor e objetividade.
23. Mas vem agora entrando D. Nuno da Cunha,
que é o bispo inquisidor, e traz consigo um
franciscano velho.
(Cap. I)
Usa cada qual os olhos que tem para ver o que
pode ou lhe consentem, ou apenas parte
pequena do que desejaria, quando não é por
simples obra de acaso, como Baltasar, que por
trabalhar no açougue veio com os mais moços
de carga e cortadores ao terreiro, a ver chegar
o cardeal D. Nuno da Cunha que vai receber o
chapéu das mãos de el-rei, acompanha-o o
enviado do papa numa liteira toda forrada de Inquisidor-Geral Nuno
veludo carmesim com passaranes de ouro […] Cunha
(Cap. VIII) (Gravura da época)
24. D. Maria Ana não irá hoje ao auto-de-fé. Está de luto
por seu irmão José, O imperador da Áustria […]
D. Maria Ana não estará no auto-de-fé porque, apesar
de prenha, três vezes a sangraram, e isso foi-lhe causa
de grande debilitação, […]
(Cap. V)
El-rei, com os infantes seus manos e suas manas infantas, jantará na Inquisição
depois de terminado o acto de fé, e estando já aliviado do seu incómodo honrará a
mesa do inquisidor-mor […]
(Cap. V)
25. Outro exemplo, mais do proveito da alma, se o corpo tão repleto está, será dado
hoje aqui. Começou a sair a procissão, vêm os dominicanos á frente, trazendo a
bandeira de S. Domingos, e os inquisidores depois, todos em comprida fila, até
aparecerem os sentenciados, foi já dito que cento e quatro, trazem círios na mão,
ao lado os acompanhantes, e tudo são rezas e murmúrios, por diferenças de gorro e
sambenito se conhece quem vai morrer e quem não, embora um outro sinal haja
que não mente, que é ir o alçado crucifixo de costas voltadas para as mulheres que
acabarão na fogueira, pelo contrário mostrando a sofredora e benigna face àqueles
que desta escaparão com vida, maneiras simbólicas de se entenderem todos
quanto àquilo que os espera, se não reparassem no que trazem vestido, e isso sim,
é tradução visual da sentença, o sambenito amarelo com a cruz de Santo André a
vermelho para os que não mereceram a morte, o outro com as chamas viradas para
baixo, dito fogo revolto, se confessando as culpas a evitaram, e a samarra cinzenta,
lúgubre cor, com o retrato do condenado cercado de diabos e labaredas, o que,
passado a linguagem, significa que aquelas duas mulheres vão arder não tarda.
(Cap. V)
26.
27. Grita o povinho furiosos impropérios aos condenados, guincham as
mulheres debruçadas dos peitoris, alanzoam os frades, a procissão é uma
serpente enorme que não cabe direita no Rossio e por isso se vai curvando
e recurvando como se determinasse chegar a toda a parte ou oferecer o
espetáculo edificante a toda a cidade, aquele que ali vai é Simeão de
Oliveira e Sousa, sem mester nem benefício, mas que do Santo Ofício
declarava ser qualificador, e sendo secular dizia missa, confessava e
pregava, e ao mesmo tempo que isto fazia proclamava ser herege e judeu,
raro se viu confusão assim […]
(Cap. V)
28. E estando já passados quase dois anos que se queimaram pessoas em
Lisboa, está o Rossio cheio de povo duas vezes em festa por ser domingo
e haver auto-de-fé, nunca sé chegará a saber de que mais gostam os
moradores, se disto, se das touradas, mesmo quando só estas se usarem
(Cap. V)
Terminado o auto-de-fé, varridos os restos, Blimunda retirou-se, o padre
foi com ela, e quando Blimunda chegou a casa deixou a porta aberta para
que Baltasar entrasse.
(Cap. V)
29. Pode falar a el-rei e conhecia a mãe de Blimunda, que foi condenada pela
Inquisição,
(Cap. VI)
30. [Padre Bartolomeu de Gusmão]
[…] se não fosse a proteção de el-rei não sei o que seria de mim, mas el-rei acreditou
mim
na minha máquina e tem consentido que, na quinta do duque de Aveiro, a S.
Sebastião da Pedreira, eu faça os meus experimentos , enfim já me deixam respirar
um pouco os maldizentes, que chegaram ao ponto de desejar que eu partisse as
maldizentes
pernas quando me lançasse do castelo, sendo certo que nunca eu tal coisa
prometera, e que a minha arte tinha mais que ver com a jurisdição do Santo Ofício
que com a geometria
[…]
Parece-me que estão na verdade aqueles que disseram que essa arte de voar se
entendia mais com o Santo Ofício que com a geometria, se eu estivesse no vosso
caso dobraria de cautelas, olhai que cárcere, degredo e fogueira costumam ser a
paga desses excessos, mas disto sabe um padre mais do que um soldado, Tenho
cuidado e não me faltam proteções, Lá virá o dia.
Cap. VI
31. Amanhã não comerei quando acordar, sairemos depois de casa e eu vou-te dizer
o que vir, mas para ti nunca olharei, nem te porás na minha frente, queres assim,
Quero, respondeu Baltasar, mas diz-me que mistério é este, como foi que te veio
esse poder, se não estás a enganar-me, Amanhã saberás que falo verdade, E não
tens medo do Santo Ofício, por muito menos têm outros pagado, O meu dom
não é heresia, nem é feitiçaria, os meus olhos são naturais, Mas a tua mãe foi
naturais
açoitada e degredada por ter visões e revelações, aprendeste com ela, Não é a
mesma coisa, eu só vejo o que está no mundo, não vejo o que é de fora dele, céu
ou inferno, não digo rezas, não faço passes de mãos, só vejo,
(Cap. VIII)
32. Outra contrariedade esperada é o auto-de-fé, não para a Igreja, que dele
aproveita em reforço piedoso e outras utilidades, nem para el-rei que, tendo
saído no auto senhores. de engenho brasileiros, aproveita da fazenda deles, mas
para quem leva seus açoites, ou vai degredado, ou é queimado na fogueira, vá
lá que desta vez saiu relaxada em carne só uma mulher, não será muito o
trabalho de lhe pintar o retrato na igreja de S. Domingos, ao lado de outros
chamuscados, assados, dispersos e varridos, que parece impossível como não
serve de escarmento a uns o suplício de tantos, porventura gostarão os homens
tantos
de sofrer ou estimam mais a convicção do espírito do que a preservação do
corpo, Deus não sabia no que se metia quando criou Adão e Eva.
(Cap. IX)
33. Sete-Sóis e Sete-Luas, se nome tão belo lhe puseram, bom é que o use, não
desceram de S. Sebastião da Pedreira ao Rossio para ver o auto-de-fé, mas não
auto-de-fé
faltou o povo geral à festa, e de alguns que lá estiveram, mais os registos que
sempre ficam apesar de incêndios e terramotos, ficou memória do que viram e a
quem viram, queimados ou penitentes, a preta de Angola, o mulato da Caparica, a
penitentes
freira judia, os religiosos que diziam missa, confessavam e pregavam sem terem
ordens para tal, o juiz de fora de Arraiolos compartes de cristão-novo por ambas
as vias, ao todo cento e trinta e sete pessoas, que o Santo Ofício, podendo, lança
as redes ao mundo e trá-las cheias, assim peculiarmente praticando a boa lição
de Cristo quando a Pedro disse que o queria pescador de homens.
(Cap. IX)
34. Cheira a carne queimada, mas é um cheiro que não ofende estes
narizes, habituados que estão ao churrasco do auto-de-fé, e ainda
assim vai o boi ao prato, sempre é um final proveito, que do judeu
só ficam os bens que cá deixou.
(Cap. IX)
35. Na guerra de João perdeu a mão Baltasar, na guerra da Inquisição
perdeu Blimunda a mãe, nem João ganhou, que feitas as pazes ficámos
mãe
como dantes, nem ganhou a Inquisição, que por cada feiticeira morta
nascem dez, sem contar os machos, que também não são poucos.
dez
(Cap. X)
36. Não conheci o meu pai, acho que já tinha morrido quando nasci, minha mãe
foi degredada para Angola por oito anos, só passaram dois, e não sei se está
anos
viva, nunca tive notícias, Eu e Blimunda vamos ficar a viver aqui em Mafra, a
ver se arranjo uma casa, Não vale a pena procurares, esta dá para os quatro, já
cá viveu mais gente, e por que é que a sua mãe foi degredada, Porque a
denunciaram ao Santo Ofício, Pai, Blimunda não é judia nem cristã-nova, isto
do Santo Ofício, do cárcere e do degredo foi coisa de visões que a mãe dela
dizia que tinha, e revelações, e que também ouvia vozes, Não há mulher
nenhuma que não tenha visões e revelações, e que não ouça vozes, ouvimo-
las o dia todo, para isso não é preciso ser feiticeira, Minha mãe não era
feiticeira, nem eu o sou, Também tens visões, Só as que todas as mulheres
têm, minha mãe, Ficas a ser minha filha, Sim, minha mãe, Juras então que não
és judia nem és cristã-nova, Juro, meu pai, Sendo assim, bem-vinda sejas à
casa dos Sete-Sóis,
(Cap. X)
37. Há muitos modos de juntar um homem e uma mulher, mas, não
sendo isto inventário nem vademeco de casamentar, fiquem
registados apenas dois deles, e o primeiro é estarem ele e ela perto
um do outro, nem te sei nem te conheço, num auto-de-fé, da banda
outro
de fora, claro está, a ver passar os penitentes, e de repente volta-se a
penitentes
mulher para o homem e pergunta, Que nome é o seu, não foi
inspiração divina, não perguntou por sua vontade própria, foi ordem
mental que lhe veio da própria mãe, a que ia na procissão, a que tinha
visões e revelações, e se, como diz o Santo Ofício, as fingia, não fingiu
fingia
estas, não, que bem viu e se lhe revelou ser este soldado maneta o
homem que haveria de ser de sua filha, é desta maneira os juntou.
(Cap. X)
38. ainda bem que o padre Bartolomeu Lourenço se não escandaliza com
estas livres conversações, acaso também teve a sua parte de vontades
desfalecidas, na Holanda por onde andou, ou a tem aqui, não o
sabendo a Inquisição, ou fazendo de contas que o ignora, por não
ignora
andar a falta acompanhada de pecados menos veniais.
(Cap. XIII)
39. Dos julgamentos do Santo Ofício não se fala aqui, que esse tem bem
abertos os olhos, em vez de balança um ramo de oliveira, e uma
espada afiada onde a outra é romba e com bocas. Há quem julgue
que o raminho é oferta de paz, quando está muito patente que se
trata do primeiro graveto da futura pilha de lenha
(Cap. XVI)
40. Mas, não vindo juntos todos os males, chegou a sentença estão vontades humanas
dentro das esferas, para o Santo Ofício não há vontades, há só almas, dirão que as
mantemos presas, a almas cristãs, e as impedimos de subir ao paraíso, bem sabem
que, querendo o Santo Ofício, são más todas as razões boas, e boas todas as razões
más, e quando umas e outras faltem, lá estão os tormentos da água e do fogo, do
potro e da polé, para fazê-las nascer do nada e à discrição, Mas, estando el-rei do
nosso lado, o Santo Ofício não irá contra o gosto e a vontade de sua majestade, El-rei,
sendo caso duvidoso, só fará o que o Santo Ofício lhe disser que faça.
Tornou Blimunda a perguntar, De que tem mais medo, padre Bartolomeu Lourenço,
do que poderá vir a acontecer, ou do que está acontecendo, Que queres dizer, Que já o
Santo Ofício acaso se está aproximando como se aproximou de minha mãe, conheço
bem os sinais, é como uma aura que envolve aqueles que se tornaram suspeitos aos
sinais
olhos dos inquisidores, ainda não sabem do que vão ser acusados e já parecem
culpados, Eu sei do que me acusarão, se a minha hora chegar, dirão que me converti
ao judaísmo, e é verdade, dirão que me entrego a feitiçarias, e também verdade é, se
feitiçaria é esta passarola e outras artes em que não paro de meditar, e com o que
acabo de dizer estou nas mãos de ambos e perdido estarei se me forem denunciar
(Cap. XVI)
41. O padre Bartolomeu Lourenço entrou violentamente na abegoaria,
vinha pálido, lívido, cor de cinza, como um ressuscitado que já fosse
apodrecendo, Temos de fugir, o Santo Ofício anda à minha procura,
querem prender-me, onde estão os frascos. Blimunda abriu a arca,
retirou umas roupas, Estão aqui, e Baltasar perguntou, Que vamos
fazer. O padre tremia todo, mal podia sustentar-se de pé, Blimunda
amparou-o, Que faremos, repetiu, e ele gritou, Vamos fugir na
máquina, depois, como subitamente assustado, murmurou quase
inaudivelmente, apontando a passarola, Vamos fugir nela, Para onde,
Não sei, o que é preciso é fugir daqui.
(Cap. XVI)
42. Devagar, a terra aproxima-se, Lisboa distingue-se melhor, o retângulo torto
do Terreiro do Paço, o labirinto das ruas e travessas, o friso das varandas
onde o padre morava, e onde agora estão entrando os familiares do Santo
Ofício para o prenderem, tarde piaram, gente tão escrupulosa dos
interesses do céu e não se lembram de olhar para cima, é certo que, a tal
altura, a máquina é um pontinho no azul, como levantariam os olhos se
estão aterrados diante de uma Bíblia rasgada na altura do Pentateuco, de
um Alcorão feito em pedaços indecifráveis, e já saem, vão na direção do
Rossio, do palácio dos Estaus, a informar que fugiu o padre a quem iam
buscar para o cárcere, e não adivinham que o protege a grande abóbada
celeste aonde eles nunca irão, é bem verdade que Deus escolhe os seus
favoritos, doidos, defeituosos, excessivos, mas não familiares do Santo
Ofício.
(Cap. XVI)
43. O Palácio dos Estaus, também referido como Paço dos Estaus ou Palácio da
Inquisição, com as suas torres de três andares, localizava-se no topo norte da Praça
do Rossio, no centro histórico de Lisboa, em Portugal. Em seu lugar ergue-se, desde o
século XIX, o Teatro Nacional D. Maria II.
“e já saem, vão
na direção do
Rossio, do
palácio dos
Estaus, a
informar que
fugiu o padre”
Cap. XVI
O Palácio dos Estaus após ter ardido em 1836.
44. Então Blimunda perguntou, Aonde vamos, e o padre respondeu, Lá
aonde não possa chegar o braço do Santo Ofício, se existe esse lugar.
Faremos subir a máquina, já conhecemos as manobras, se O vento nos
não faltar, um dia inteiro dará para chegarmos longe, onde o Santo
Ofício o não alcance.
(Cap. XVI)
45. Eu não sou bruxo, ponham-se a dizer essas coisas, e leva-me o
Santo Ofício, e também ninguém me ouviu dizer que voei, Mas
declaraste que estiveste perto do sol, e ainda outra coisa, que
começaste a ser igual a Deus depois de teres ficado sem a mão,
se tal heresia chega aos ouvidos do Santo Ofício, então é que
não te salvas mesmo,
(Cap. XVIII)
46. Se este é o lugar que realmente melhor conviria a S. Francisco, por
ser, de todos os santos que vão nesta leva, o de mais feminis
virtudes, de coração manso e alegre vontade, também em lugar
certo vêm S. Domingos e Santo Inácio, ambos ibéricos e sombrios,
logo demoníacos, se não é isto ofender o demónio, se não seria
demoníacos
justo, afinal, dizer que só um santo seria capaz de inventar a
inquisição e outro santo a modelação das almas.
(Cap. XXIII)
47. Entre os mil cheiros fétidos da cidade, a aragem noturna trouxe-lhe o da
carne queimada. Havia multidão em S. Domingos, archotes, fumo negro,
fogueiras. Abriu caminho, chegou-se às filas da frente, Quem são, perguntou
a uma mulher que levava uma criança ao colo, De três sei eu, aquele além e
aquela são pai e filha que vieram por culpas de judaísmo, e o outro, o da
ponta, é um que fazia comédias de bonifrates e se chamava António José da
Silva, dos mais não ouvi falar.
São onze os supliciados. A queima já vai adiantada, os rostos mal se
distinguem. Naquele extremo arde um homem a quem falta a mão
esquerda. Talvez por ter a barba enegrecida, prodígio cosmético da fuligem,
parece mais novo. E uma nuvem fechada está no centro do seu corpo. Então
Blimunda disse, Vem. Desprendeu-se a vontade de Baltasar Sete-Sóis, mas
não subiu para as estrelas, se à terra pertencia e a Blimunda.
(Cap. XXV)
O desenvolvimento da Inquisição em Portugal foi muito variável. Inicialmente, durante perto de um século, vigorou ali o figurino espanhol, mantendo-se Estado e inquisição solidamente unidos. Esta era, para aquele, um instrumento destinado a manter a ordem, a presença do cristianismo, a reforçar o poder real, a garantir a identidade e a unidade da pátria (...). tão estreita dependência perante o Poder secular ficou nítida co m o fato de que o cargo de Inquisidor Geral foi desempenhado, durante muito tempo pelo cardeal D. Henrique, irmão de D. João III. D. Henrique só deixou esse posto quando, em 1578, após a morte do seu sobrinho neto D. Sebastião, veio a ser aclamado rei” (GONZAGA, 1993, p.233-234).
Há uma constante denúncia dos métodos usados pela Inquisição e da repressão exercida pelo povo, mas também uma critica a esse povo que dançava em volta das fogueiras onde se queimavam os condenados e que assistia aos autos-de-fé como se fosse um divertimento comparado ás touradas.