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Ensaio sobre a fome.(ou “da história da cozinha”)
Os Comedores de Batatas // Vincent van Gogh // 1885
«Eu digo muitas vezes que o instinto serve melhor os animais do que a razão a nossa
espécie.
E o instinto serve melhor os animais porque é conservador, defende a vida.
Se um animal come outro, come-o porque tem de comer, porque tem de viver.»
José Saramago, Diálogos
I
Será como um passeio pelas palavras. Um deambular do pensamento pela história.
Um ensaio sobre a história da cozinha. Diferente, talvez. Influenciado. Não apolítico ou
limpo de influências literárias, filosóficas ou de correntes históricas. Um ensaio, marcado
pela herança do pensamento de Umberto Eco, na forma que tenho de olhar para a
História. Por isso, é um ensaio. Uma viagem. Uma travessia. E não um trabalho, simples,
de investigação. Esse foi feito ao longo da vida. E do tempo. E com o tempo. Este é um
ensaio. Partindo da fome. Olhar para esse conceito, instinto ou condição, ao longo das
várias épocas da passagem do homem pelo tempo. Olhar e pensar. Ensaiar aquilo que
penso. Desenhar a forma de olhar para cada momento seguindo as pegadas de uma
narrativa construída pela dúvida. Saltando partes. Recortando outras. Destacando
algumas. Não é uma análise histórica. É um ensaio. E por isso, cheio de lapsos
propositados. Omissões silenciosas ou clamorosamente claras. Ou, tão só, pensamentos
que são provocações. Uma história da cozinha feita ensaio sobre a fome. Uma tentativa.
II
Se fosse possível dividir o mundo em duas partes tudo começaria pela fome.
Instinto ou condição. E pensar a fome é pensar o acto de comer. Comer que foi refeição,
repasto, manjar, festim, banquete ou simples saciar da fome. Degustação. Tudo isto,
alimentar o homem. Porque não há história sem memória e não há memória sem o
homem. E o homem existe porque se alimenta. Come. Bebe. Comete esse acto vil ou
pecaminoso de comer. Farei de cada palavra, neste ensaio, uma ilustração do tempo em
que habita e da sua lógica. E começar pelas origens do homem levam-me sempre ao
confronto com a minha descoberta tardia da obra de Darwin. Cresci e fui formado numa
lógica judaico-cristã. Onde a origem do mundo estava no mistério de um Deus unificador.
E no pecado pelo comer o fruto proibido. Tudo começa, sempre, pelo comer. O fruto.
Mesmo que a fome seja outra. A do quebrar o paraíso prometido para procurar o infernal
“livre arbítrio” em forma de fruto que a tentação apresenta aos primeiros seres humanos
dotados de razão para além da Fé. Como dizia, cheguei tarde a Darwin. Mas sou um
evolucionista convicto desde que conheci essa obra maior da história do pensamento
científico. A origem do homem resulta, de facto, da evolução da espécie. Das espécies. E
com elas, do homem. A hominização não é mais do que um lento caminhar do ser
humano para a evolução natural. Não sou determinista e por isso não acredito tanto na
ideia de que o mais forte prevalecerá ou que essa evolução seja uma constante não
variável. Mas a essência do pensamento de Darwin vai marcar esta primeira abordagem
no tempo em que o homem estava a ser “criado”.
Se é verdade que a pré-história é marcada pela hominização e a fixação daquilo
que hoje chamamos de evolução natural dos primeiros homens ao homo sapiens sapiens,
a verdade é que há elementos únicos nesse lento caminhar que são determinantes para a
visão da história da alimentação ou do cozinhar para a sobrevivência que são muito
especiais. A ideia da verticalidade como revolução surge da fome. Não sei a razão pela
qual esta ideia surge sempre na minha forma de explicar esse passo de gigante. A
verticalidade. O caminhar. A libertação da mão. Mais do que a descoberta do uso e
domínio do fogo esta foi a grande “revolução” do homem. A mão, liberta, permitia, com o
polegar oponível, o domínio dos instrumentos, a construção e a manipulação de outros
alimentos. Saciar a fome era uma necessidade. Primária. Simples. De sobrevivência.
Sabemos isso pelos registos arqueológicos que mostram molares e formas de rosto
marcados pela alimentação primária. Crua e simples. Limpa de confecções mas rica em
conjugações. Falamos da fome, como sobrevivência. Natural condição de que não nos
conseguimos libertar. Nesse tempo e hoje. O acto de “alimentar” o corpo surge vazio de
lógica para além desta simples, limpa e determinante. A fome é aqui a mãe de todas as
coisas. As outras. Como a fuga ou a defesa do frio. Como a libertação dos espaços pelo
nomadismo necessário na procura constante de alimento. Não falamos de conter a fome
fazendo refeições. Falamos de conter a fome procurando alimento. É aqui que voltaremos
para uma análise e comparação com o tempo de hoje. Porque aqui a fome não é
condição. É natureza determinante na sustentação do ser. De existir. Até ao momento
prometido. Os homens da antiguidade clássica vão ilustrar este momento com a mitologia
única e esplendorosa de Prometeu que rouba o fogo aos Deuses. No entanto, é sem
dúvida, o domínio do fogo que trará a mudança no processo de hominização que
determinará uma mudança radical no simples acto de comer, antes de todos os outros.
Antes de seguir pelo caminho desta mudança, regresso a Darwin. Li a sua autobiografia e
a “Origem das Espécies” com natural curiosidade. Procurava “falhas” na lógica de
pensamento. Principalmente na questão da “seleção natural”. Encontrei palavras curiosas:
«As many more individuals of each species are born than can possibly survive; and as,
consequently, there is a frequently recurring struggle for existence, it follows that any
being, if it vary however slightly in any manner profitable to itself, under the complex and
sometimes varying conditions of life, will have a better chance of surviving, and thus be
naturally selected. From the strong principle of inheritance, any selected variety will tend to
propagate its new and modified form.» (Darwin, A Origem das Espécies, Introdução). Esta
ideia não se coaduna com a mudança nesse percurso da hominização que a história e a
arqueologia vão validando. Teria o homem, com o “roubo” do fogo aos deuses superado
esta condição proposta como lei por Darwin? Ou seria a ideia apresentada por
Megginson, sobre a leitura da ideia de Darwin, aquela que mais razão aparenta ter neste
contexto? «Não é o mais forte que sobrevive, nem o mais inteligente, mas o que melhor
se adapta às mudanças.» É que o domínio do fogo pelo homem aparece, de facto, como
o domínio sobre o estado. A realidade das coisas. É o domínio do fogo que marca a
primeira mudança na natureza da fome e do cozinhar para ser alimentado. Não é que o
homem, em evolução, não tivesse já conhecimento sobre os alimentos transformados.
Quer pelos incêndios naturais, quer pelas ocorrências imprevistas esse conhecimento era
natural e óbvio como a arqueologia actual já demonstrou. Confeccionar (misturar)
diferentes alimentos era já conhecido. A questão está no domínio sobre a sua confecção.
Sobre o tempo e o modo. É aqui que digo que emerge uma primeira mudança da
condição da fome. Deixa de ser natural. Condição de instinto, sim. Natural é que não.
Muda o seu estado. Não passa, ainda a condição como veremos muito mais tarde. Mas
sim a estado. Controlável, agora, pelo domínio do fogo que permitia ao homem, em
evolução, controlar o tempo de fome. O seu estado. Da fome ao estar saciado. Do
conforto e do momento de e para comer. Era o estado presente e a dimensão do previsto
que passava a prevalecer. Porque, sabemos pelos estudos actuais, que a ligação entre a
sedentarização e o domínio do fogo não se podem separar. Sabemos também que, com a
sedentarização, o homem procurou novos alimentos. Teve uma necessidade primária de
encontrar alimentos que não fossem imediatos. Da fome como instinto, passou-se à fome
como estado. E daí ao passo do domínio sobre o que comer e quando comer é um passo
lógico e claro pelo que a ciência actual nos explica. Não dizemos ainda, no modo de
repasto. Ainda estamos no domínio único da alimentação como necessidade. Mas
falamos desta visão e realidade única e revolucionária do que o que se come e quando se
come passar a marcar toda a lógica da confecção do “cozinhar” e da realidade vivida pelo
ser humano. Falamos ainda dessa mudança geradora de construção social ou
socializante para o homem. Surge o círculo. O espaço de e para comer. E o tempo de e
para comer. Há aqui uma mudança brutal na lógica do comer para sobreviver. É
necessário estar, permanecer, entrar em contacto, para ser alimentado. Esperar. Gerir a
presença e estar em comum. A fome é a razão. O que se vai comer e quando se vai
comer passa a ter a lógica de interacção necessária para a sobrevivência. Torna-se um
acto contínuo. Controlável no tempo. E com possibilidade de escolha nos produtos. Esta é
a mudança que determinará, posteriormente, toda a lógica civilizacional que irá nascer.
Em torno do alimento. Da produção. E da cozinha que, daqui, nasce. Que aqui, nasce.
Ainda que na sua lógica mais rudimentar e simples. Enquanto confecção simples. Limpa.
Clara. Sem condição. Apenas estado. Tal como a fome. Estado entre momentos.
Dominada. Pela primeira vez, na história, o homem domina uma condição de
sobrevivência. Se esta se torna determinante, tal acontece também com os instrumentos.
E as técnicas. Estes factores, combinados com um devir histórico natural (diria Darwin)
levaram determinantemente à edificação das primeiras “grandes” civilizações.
Dado este “salto” no “tempo evolucional” temos que nos fixar, por momentos breves
neste ensaio, nas chamadas civilizações entre os dois rios, a Mesopotâmia, assim como,
no Egipto. Esta breve paragem serve para observar a fome, novamente, mas agora pela
lógica contrária para uma história da cozinha mais “limpa” do efeito generalista da história
contada como ilustração e não como elemento único de referência. A história nunca deve
ser usada como ilustração. Deve sim, permitir ao pensador uma referência. E por isso,
temos que colocar aqui, neste ensaio sobre a fome, a ideia contrária que determinará o
pensamento humano num determinado momento que falaremos mais adiante. Falamos
da abundância. Da ideia do espaço geográfico, naturalmente rico, que levará a essa
abundância. Não há “ausência” de fome mas do seu controlo. Do surgimento da ideia de
prosperidade. De domínio. Dos metais às origens da ciência, até ao festim/festival
começam a surgir as bases da lógica de que a fome é só um estado temporário entre
momentos. Já percebido na lógica evolutiva anterior, é aqui reforça pela cozinha como
momento para o convívio. Este é o espaço conquistado pela cozinha enquanto encontro.
A não existência de um Estado mas sim de “povos” cria nesta ideia de abundância de
uma terra entre rios (Tigre e Eufrates – deixamos o Nilo para uma análise futura) que a
prosperidade se consegue pela convivência. E a cozinha surge aqui como elemento único
de ligação. E surge ainda uma diferenciação realmente importante que não podemos
deixar de referir. Passa a existir uma cozinha “interior” e uma cozinha “do momento
comum”. Esta mudança simples representa uma radical alteração no modo de vida. Os
aglomerados habitacionais impostos pela fixação dos povos levam a uma
familiarização/individualização dos espaços. E estes, partilhados, passam a ser comuns.
Isto é, da comunidade passamos aos agregados familiares ou comunitários, havendo para
isso necessidade de espaços em conformidade e de tempos divididos. Os tempos
comuns são tempos de trabalho e festa. E os tempos familiares/individuais são os tempos
de alimentação e descanso. Assim como os espaços também se vão organizar deste
modo. E com isso, a alimentação. E a cozinha. A interior, respeitando o espaço e o tempo
familiar/individual em comunidade mas num tempo e num local reservado a essa
comunidade familiar/agregada. E o espaço/tempo de momento comum em que a
“festividade” com o surgimento da dança e do tempo de celebração, emerge como espaço
de alimentação e cozinha comum. Partilhada mesmo entre comunidades familiares no
espaço de tempo comum dedicado à celebração. É este o resultado de uma evolução
civilizacional onde a abundância representa uma mudança única e histórica na
alimentação e no “domínio” sobre a fome que surge apenas como espaço e elemento de
movimentação do tempo natural, sustentado pelo florescimento do domínio do homem
sobre a natureza e, conscientemente, sobre a fome. Estamos perante um dos momentos
mais importantes da história da cozinha e da alimentação, como veremos e faremos
naturalmente ressalva neste ensaio de outros como este. Mas este, a par do surgimento
da escrita, marcam profundamente aquilo que será a alimentação no futuro e para o
homem no tempo e no espaço. Um estado. A fome passa de instinto natural de
sobrevivência a estado dominado entre momentos do quotidiano. E a cozinha, tida como
confecção ainda, representa em si mesma essa mudança. No espaço e no tempo que lhe
são dedicados.
Se o espaço físico condiciona a origem das primeiras civilizações, também o
desenho geográfico de um “crescente fértil” não permite que neste ensaio não se fale,
para além dos povos já referidos anteriormente (Sumários, Assírios, Fenícios, etc...) do
surgimento da civilização Egipcia. Esta viagem da pré-história até à queda o império
romano do ocidente não permite grandes deambulações para além das referências óbvias
e clássicas. Mas há, neste imenso limite temporal uma marca onde a fome encontra o seu
elemento mais fundamental que é preciso referir para esclarecimento futuro de outras
reflexões a seu tempo. Diria Eric Hobsbawm: «A única generalização cem por cento
segura sobre a história é aquela que diz que enquanto houver raça humana haverá
história.» E é neste caminho que seguimos. Ao seguir a fome no tempo, no seu tempo,
tendemos a seguir os seus passos. Acompanhando a confecção dos alimentos, e a
cozinha, enquanto espaço e tempo. E é no Antigo Egipto que a cozinha ganha espaço. A
fome ganha um elemento novo: a diferenciação. De instinto a estado. De estado, a
diferenciação. A fome, como elemento motor da evolução humana torna-se elemento
consciente numa civilização construída com base numa noção de cidade e numa noção
de estado social e função diferente, partindo da noção de poder. É neste momento
histórico que a civilização transforma a cozinha, a confecção, na procura pelo sabor, tanto
como pela nutrição. É a edificação da ideia do comer como repasto ou refeição. Falamos
de uma organização necessária da confecção (tempo e espaço – assim como utensílios),
como do tempo e do modo. Estamos, efectivamente e pela primeira vez a falar de
cozinha. De cozinhar. Ainda sem um conceito/palavra a esta associado, a verdade é que a
organização de base, a definição da organização base é feita em função das
necessidades civilizacionais mais evidentes no caso da civilização egípcia. Tal como a
cozinha ganha espaço físico e tempo próprio, tanto a nível familiar como a nível das
funções sociais partilhadas (politica, celebração e trabalho) também a fome ganha o
elemento de diferenciação que a determinará nesta época e para o futuro como
característica definidora da sua essência. A fome deixa de ser igual para todos. Tal como
a cozinha. Aqui, nesta época histórica ainda não podemos falar de uma grande diferença
nos de produtos. Mas podemos falar de diferenciação pela função. A alimentação para o
trabalho é confecionada com base no factor força/energia. A fome é tida como natural nos
que trabalham e a ser saciada para o cumprimento da função. Dos trabalhadores aos
escravos. Dos funcionários aos sacerdotes. A fome é diferenciada. Diferenciadora. Porque
a sua função social também o é. Não estamos a falar, claramente, dos momentos de
celebração comum ou religiosa. Estamos a falar do tempo quotidiano. Do viver contínuo e
continuado. Onde as diferenças são mais evidentes. Mais reais. Mais constantes. A fome
é diferenciadora na sua realidade. Porque para a força é “saciadora”. E porque para o
hábito de alimentação é tempo. Repasto. Alimentação no tempo certo. Um eterno retorno
que nasce aqui, como repetição da certeza. Da previsibilidade mas só para alguns.
Associamos a esta ideia uma noção ainda mais representativa. Falamos da religiosidade.
Já dela falámos neste ensaio. Na criação do mundo, no pecado original. Voltamos a ela
para edificar esta noção diferenciadora da fome. Com as oferendas, as celebrações, a
religiosidade estruturante da civilização egípcia a cozinha, a alimentação, o ritual da
“mesa” ganham novas dimensões. Oferece-se o que sustém. O que sustenta. O que dá
vida. O que tira a fome. O que dá força. Aos deuses. Aos deuses-homens, na figura de um
faraó, no seu tempo, omnipotente. Faz-se do alimento, oferenda. Pede-se sorte. Deseja-
se protecção. Para os alimentos. Para a salvação da fome daqueles que não são
saciados mas comensais. Aqueles que passam a fazer refeições. A procurar cozinhar e a
procurar o sabor. Há aqui, neste tempo histórico algo de determinante. Sabemos, pelos
recentes estudos arqueológicos que a confecção de refeições no Antigo Egipto era
elaborado. Em complexo. Era saboroso. Para o contexto de uma elite, que o procurava.
Para outros, era alimento. Ainda apenas alimento, sobrevivência. E por isso, procura de
força e de vida. Doce, energético, para “matar” a fome. Voltaremos a estas ideias muito
em breve para os complementar com o excerto inicial de Saramago que colocámos na
abertura deste ensaio.
Para não falar de outras civilizações, porque este ensaio é, em si mesmo cativo da
visão ocidental do pensamento contemporâneo, fechamos este tempo antigo com a fome
em duas grandes civilizações que tanto teriam para dizer como para revelar sobre a fome,
no seu tempo e no seu espaço. As chamadas civilizações clássicas, Grécia e Roma, são
a essência do que hoje conhecemos como adquirido civilizacionalmente. No entanto, é
aqui que a fome nasce. E é aqui que a cozinha, emerge como elemento de sustentação
civilizacional. Há, neste tempo clássico, para a fome, a descoberta do seu limite. Vou em
pensamento a Maria Helena da Rocha Pereira, de quem aprendi tanto. “Nas tragédias
gregas, quando menos se espera, desencadeiam-se desgraças sobre o homem, que ele
muitas vezes provocou sem saber. Isto tem que ver com um dos conceitos mais
discutidos na «Poética» de Aristóteles: «Hamartia». (...) Muitos pensam, e eu também
penso, que esta «Hamartia» é um errar por desconhecimento. É o que acontece
particularmente no «Rei Édipo», de Sófocles. No fundo, é sempre a ideia das limitações
do homem, que não pode ultrapassar a sua medida e tentar igualar-se aos deuses.” E
com a fome, neste tempo e neste lugar, o limite é outra das suas condições essenciais
revelada. Este é o tempo dos limites. São estas as civilizações dos limites. E a fome,
ganha forma, como o tempo ou a filosofia, para os conhecer. Há duas condições à priori
para falar de cozinha, alimentação e fome nestas duas civilizações fundamentais (de
fundação): a primeira, a sua dimensão. Quer dimensão territorial (no caso da fase do
Império Romano), quer da dimensão cultural e civilizacional (nos casos gregos e
romanos). A segunda, a normalização. A ideia aristotélica de que para o homem se manter
bem tem que comer pouco e trabalhar muito representa parte desta ideia de
normalização. O conceito de “romanização” que a historiografia vulgarmente emprega
ilustra melhor a ideia que tenho que registar aqui para dar corpo a esta reflexão.
Normalizar significa padronizar. Dar uma lógica identitária a uma civilização. Seja este o
caso grego ou romano clássico. O modelo impera sobre a lógica de determinação
individual, assim como, a lei se impõe sobre a vontade ou o modo. Na alimentação isto
também é uma realidade. Mas tudo começa com a casa. A família. A organização social
em torno de um centro. De um núcleo. As villas ou as cidades-estado (romanas ou
gregas, respectivamente, tornam clara a forma como a determinação da visão de uma
normalização estruturante pode mudar a forma como o homem passa de um tempo e de
um espaço comunitário de circulação para uma realidade centralizada e uniformizadora
da vida quotidiana no espaço comum. A casa ganha o espaço da cozinha. Quer na
civilização romana quer na civilização grega esta é uma realidade transformadora. Os
espaços comuns são agora os espaços de co-habitação e convivência. A cozinha passa a
ser um serviço. Uma área para serviço. Para trabalho. Cozinhar, passa a função. A tarefa.
Fazem-se refeições, em tempos e modos similares. Conjuga-se o que se come, com o
como se come, com o onde se come. Criam-se utensílios para a cozinha. E dividem-se
funções, para e na cozinha. Faz-se dos momentos de refeição, um momento de
cerimónia. E tendo em conta a lógica, de ritual. De rito. De repetição. A fome acompanha
tudo isto. Ganha tempo certo. Determina o gosto e acompanha o cerimonial. Isto, claro
está, num grupo social marcado pelo acesso e pela possibilidade. A história tente a
determinar este como o homem modelo/comum. Que não o é. Aos olhos da fome, nunca
o será. E é por isso que chamar aqui e agora, a ideia da fome pode parecer estranho.
Tem-se a ideia mítica (do tempo dos deuses e do Olimpo) da ordem e da razão. Da
racionalização das coisas e da harmonia. A ideia destas civilizações, em termos
ilustrativos, é confinada neste espaço imaginário. De Alexandre, o Grande, a César. De
Platão a Homero. É uma ideia de ordem, sobre o caos. De organização, sobre a
confluência e a afluência. De domínio, sobre o tempo, o modo e o espaço. No caso
romano, na lógica de um Império que se estendeu no tempo e no espaço como quase
nenhum outro. E que no seu interior fervilhava de diversidade muito mais do que da
normalização de que se podia esperar. Da Ibéria ao Médio Oriente, à Ásia e África, não se
comia da mesma forma, não se cozinhava da mesma forma, não se comiam as mesmas
coisas e a fome, limite de tudo isto, não era, de facto a mesma em nenhum destes
lugares. É por isso que esta ideia geral, global, aglomeradora destes conceitos tende a
ser tão mais errada quanto é a procura de integrar tudo e todos numa só definição. Numa
só linha de pensamento. Mas temos que voltar. Voltar à fome. E a esse elemento que é
junto ao instinto, ao estado, à determinação e agora ao limite. A razão de colocar aqui a
noção de limite para a fome é a mesma que eleva a cozinha a função. O cozinhar, a
tarefa. É que, tirando os mitos das celebrações, dos banquetes gregos e romanos, das
festividades e do ócio que tinham, de facto, as suas regras tão bem definidas, assim
como, no provar e no sabor a sua essência, mais do que na quantidade tanto exagerada
quanto buçal na visão redutora sobre o que era o banquetear dos deuses e dos homens
de uma certa elite neste tempo, a verdade é a que fome, foi, neste período, limite de tudo.
Limite para a sobrevivência dos escravos. Limite para as conquistas dos exércitos. Limite
para as navegações. Para as caminhadas. Limite para os espaços e os tempos. Limite
para a consciência dos recursos. Dos abastecimentos. A fome, foi falta. Falha. Ausência.
Mais do que em outros momentos históricos, foi mesmo limite da condição humana e da
condição civilizacional. Cercava-se e sitiava-se para gerar fome. Ou perdia-se batalhas
por falta de abastecimento. Ou revoltavam-se os habitantes das cidades pelo preço dos
alimentos. Até ao momento único da história da humanidade em que um alimento se
tornou símbolo de tudo e tudo mudou. Até a fome. Até esse mesmo limite da fome. Se os
mitos podem ter alguma forma, esta é uma delas: in hoc signo vinces (sob este signo
vencerás, teria dito o Imperador Constantino). A cruz cristã. É no marco da divisão da
história em que a religião ganha um peso e dimensão única, para além de tudo o que até
aqui havia sido possível. Mas não é esse o símbolo que ficaria. É um alimento. O pão.
Não tendo falado dele até aqui, do pão emerge daqui para a frente toda a lógica deste
ensaio. Não é uma oferenda, como vimos nas referências históricas anteriores. É
oferecido. Vida. Porque é alimento. Porque é o fim do limite. Da fome. Na lógica da
racionalidade que as civilizações clássicas trouxeram, o pão, aquele único alimento,
quebra essa lógica colocando a Fé num lugar superior à Razão. E o pão no espaço único
que não mais viria a perder. Quando um alimento é elevado a este “estado divino", então
o acto da confecção da alimentação passa a ser ritualizado e “agradecido”. Uma
concessão. Não dos deuses, mas de um Deus. E aqui, neste momento, a História e a
Religião cruzam-se para só se voltarem a separar muitos séculos depois como iremos
falar mais adiante. É necessário voltar a pegar na palavra “revolução”. Tal como o fogo,
dominado pelo homem. Tal como o círculo em que se sentou, em volta de uma fogueira e
que o levou a desenvolver a linguagem e a mudar a alimentação, ou quase como numa
citação de um filme recente sobre a ideia de origem do universo: “I know, I know, but
suppose - just suppose! - the purity of the circle has blinded us from seeing anything
beyond it! I must begin all over with new eyes. I must rethink everything!... What if we
dared to look at the world just as it is. Let us shed for a moment every preconceived idea -
what shape would it show us?” (Ágora, 2009). E com tudo isto, porque os outros também
podem ter fome, o Império Romano virá a colapsar. Os limites mostram sempre o outro
espaço. E os outros. O que ficam para além da nossa capacidade de ver e conhecer. E a
fome tem, neste momento histórico, essa verdade revelada. Os outros. Que estarmos
saciados não coloca nos outros a fome como lugar de consolo. Pelo contrário. Os
bárbaros também são possuidores de fome. De vontade. De desejo de ser saciados. Os
limites dessa fome, desta “nova” fome permitiram a tantos pensadores ver isto. Saber
isso. Escrever sobre isso. E é aqui que a dimensão da memória emerge também. Por via
dessa fome. A memória do que se comia. Como se comia. E as civilizações antigas,
clássicas, sentiram essa necessidade. De deixar escrito. De perpectuar na memória a
normalização desejada, muito mais do que a real, vivida. Surgem as “receitas”. O Livro de
Cozinha de Apício é um desses exemplos. A receita permite normalizar o que se come. O
modo, é um ritual passado pela educação. E pelo hábito. Pela representação. O que ficou,
as “receitas” e a organização espaços representam das conquistas mais importantes da
história da cozinha e da alimentação da humanidade.
II
O ano de 476 d.C. marca a queda do Império Romano do Ocidente e com ele o
início do que tendemos a chamar de Idade Média. A Idade do Meio. O Tempo Médio. Que
vai até 1453, na visão clássica da divisão/periodização histórica. A queda de
Constantinopla. Sem a “malha” do Império Romano, grande parte do “mundo conhecido”
deixa desfazer as leis, regras, normas e lógica que governou os homens no seu tempo
para ficar apenas o vazio. E o vazio é a fome. Entre invasões e ocupações de povos
“bárbaros” e a condição natural e da natureza que o homem havia, em parte, esquecido
pela certeza da pertença a um mundo civilizacional normalizado, tudo se transforma. Os
outros, com a justiça desejada e a fome como razão, ocupam espaços. Trazem com eles
novas coisas. Coisas de comer. Para comer. E formas de o fazer que eram
desconhecidas. Estranhas. Exóticas. É talvez, a par dos “descobrimentos marítimos” um
dos momentos de maior mudança nos hábitos, produtos e formas de alimentação da
história da humanidade. Ao contrário da imagem “mitológica” de uma idade média sombria
e escura, de fomes, pestes e guerras (que existiram mas ocuparam apenas parcialmente
um tempo desse vasto espaço histórico que foi o Tempo Médio) a ocupação territorial por
inúmeros povos com hábitos alimentares diferenciados resultou numa mistura fabulosa no
que diz respeito à cozinha e à forma de cozinhar. Circulam produtos que serão
determinantes em momentos históricos futuros. Recordo a laranja e a oliveira/azeitona. E
depois o modo. Introduz-se na cozinha o tempo. Sim, mais um elemento fundamental. O
tempo. Reverte-se a refeição do deleite. Da delicia. É um manjar. Ocupado no tempo com
a presença. Transformador pela lógica da presença. É o tempo de descanso que coincide
com o tempo de alimentação. Isto é trazido por vários povos árabes. Pelo ritual em si
mesmo de estar e preparar a refeição. Para acolher. Para provar. Para saborear as
iguarias. Ensina-se a usar os produtos para se ter perto aquilo que é de outras zonas. As
técnicas. As formas. Até na cozinha se ensina o frigir (de onde vem a ideia de frigideira)
usando o azeite. E muda-se a cozinha para o espaço comum. Em parte, a reserva da
lógica de serviço passa a ser feita em comum com o espaço de refeição. E a cozinha
refina-se. Transforma-se. Transmuta-se. Ganha forma de ser oferta aos outros. A quem
entra. A quem é recebido. A quem, viajante, precisa de comer. A Idade Média é uma época
histórica marcada por tantos momentos que é sempre difícil fazer esta viagem sem parar
vezes sem conta. E a fome chama o pensamento de volta aos outros. Nesta fase, de
conquistas, ocupações, reconquistas e definições de território, a fome é sempre a dos
outros. É aqui que a fome ganha uma nova dimensão. A dimensão da alteridade. Se as
civilizações clássicas colocavam o “outro” como “bárbaro”, a verdade é que a ocupação,
partilha do território, conquista ou reconquista comportam em si mesmas essa ideia de
cultura diferenciada. O outro. A fome é sempre do outro. Mesmo que seja “nossa” também
é, antes demais, do outro. Mas o outro é, culturalmente, o que foi ou será conquistado.
Não o que habita ou permanece. Quando juntamos a esta equação do pensamento a
ideia de um confronto religioso, tal como marcadamente a Idade Média tende a
representar, percebemos que esta interacção, esta interdependência do outro acontece
por oposição mas valida a realidade existente. Somos o contrário. O oposto. E por isso a
fome é contrariada pelo banquete. E a simplicidade pela opulência. E a Idade Média é,
para a cozinha, tudo isto também. Porque, fixados os limites territoriais e os reinos de
ocupação cristã e muçulmana, temos como representação da deste tempo a mais
extraordinária evolução da cozinha enquanto gosto e prazer que a história da humanidade
virá a ver em tão profunda mudança. Pode parecer estranha esta ideia de “iluminação” da
cozinha nos tempos medievais mas tal só é estranho se tivermos este tempo como um
tempo de “trevas”, ideia criada no imaginário colectivo por via de uma visão religiosa de
oposição ao tempo de reforma que se vai seguir e quase ilustrativo dos antigos
testamentos por oposição ao esclarecimento que veremos mais tarde. Nisto, recuperamos
Umberto Eco e a afirmação que esta linha de pensamento segue também: «O homem
medieval via-se, pelo contrário, num ambiente luminosíssimo.» (Umberto Eco, História da
Beleza). A ideia de escuridão na Idade Média é tão válida para todas as outras épocas,
pelo menos até à invenção da electricidade. E no que diz respeito à cozinha isto ainda é
mais real. Se da nobreza, agora sustentada por uma agricultura próxima e trabalhadores
“cativos” das suas regalias de protecção, resultam os banquetes e festins, a verdade é
que dos camponeses e trabalhadores resultam princípios alimentares que mudam a forma
como se vê a alimentação tida como refeição só por si. Se da elite se conhecem as
receitas, a forma de diversão, a cozinha organizada rudemente por “alimentos a
confeccionar”, havendo mesmo em alguns castelos espaços destinados à “matança e
desfeitura”, o que sabemos do homem que trabalhava é ainda mais rico. Porque a ideia
constante até esta época é, tirando as referencias já feitas anteriormente, da simplicidade
e conformismo. Isto é, cozinha-se o que existe e é produzido perto. Na Idade Média há,
parcialmente uma alteração desta concepção. As feiras e os mercados permitem as
trocas. Há circulação de pessoas, bens e mercadorias. Pequenas deslocações,
movimentações, mudanças. Em curtos espaços e circunscritas muitas vezes pelas
limitações de um reino ou pela seguranças mas, nem sempre, o homem “comum”
consome e alimenta-se exclusivamente do que produz. Um dos elementos mais curiosos
como ilustração desta realidade é o sal. O uso e troca comercial, já anterior a este tempo,
mas neste tempo mais disseminado. Por outro lado, a emergência dos mosteiros e das
ordens religiosas vão permitir que aqueles “filhos segundos”, de sexo masculino e
feminino, gastem o seu tempo de ócio na elaboração daquilo a que hoje tendemos a
chamar “doçaria conventual”. Outra limitação da construção imaginária da Idade Média é
reduzir os mosteiros e conventos a “fábricas de doces”. A verdade é que sendo detentores
de grandes espaços e produções agrícolas eram espaços de elaboração gastronómica de
todo o tipo. Do queijo aos vinhos, dos doces aos assados. É neste espaço que as “ervas
aromáticas” ganham lugar na cozinha como referência. Tal é possível de saber hoje pelas
inúmeras receitas e livros de receitas existentes na Europa que retratam esta realidade.
Esta realidade, possível por muitos destes espaços religiosos serem ocupados por “filhos”
de uma nobreza terratenente, são ilustrativos de toda uma riqueza ao nível da
alimentação comum que desfazem a ideia de escuridão que tanto marca a Idade Média
ainda hoje. No entanto, é também neste tempo médio que a fome ganha mais uma das
suas determinações e onde começa a mudança de perspectiva real sobre a fome
enquanto estado para uma fome enquanto condição que virá a ocorrer nos nossos dias e
que, no fim deste ensaio, terá o seu espaço reservado para reflexão. As fomes, pestes e
guerras que assolam toda a Idade Média, culminam e ganham força no fim deste período
histórico. A fome passa a ser um elemento a somar à pobreza e à doença. É a
brutalidade: «When God saw that the world was so over proud,/ He sent a dearth on earth,
and made it full hard./ A bushel of wheat was at four shillings or more,/ Of which men might
have had a quarter before.../ And then they turned pale who had laughed so loud,/ And
they became all docile who before were so proud./ A man's heart might bleed for to hear
the cry/ Of poor men who called out, "Alas! For hunger I die ...!" (Eduardo II, 1321). A
Idade Média representa para a fome o que de mais brutal podia ser mostrado. E em larga
escala. É uma das primeiras fases do fim da previsibilidade. O imprevisto, o não domínio
do homem sobre a natureza, gerava essa brutalidade que era a fome. Então o “outro”,
essa alteridade relevante que os primeiros tempos desta época vão trazer parte-se em
estilhaços perante essa brutalidade natural que só o homem primitivo poderia
compreender porque sempre havia dependido da ordem natural das coisas. Sem deuses
a quem clamar por novos e melhores tempos, o homem procura explicar esta brutalidade
da fome voltando a tentar dominar aquilo que lhe tirava o alimento. E a Razão tende a
imperar sobre a Fé, quando esta falta ou falha, na história da humanidade porque a
natureza trazia, a este homem medieval aquilo que nenhum outro havia ainda visto. A
brutalidade crua da fome em larga escala. A fome que é, de novo, ausência. Estado.
Contexto. É com esta dimensão da fome que o homem enfrenta o tempo que virá. Com a
luz da Razão.
III
"Segundo a definição dos estoicos o sábio é aquele que vive de acordo com as
regras da razão prescrita, e o louco, ao contrário, é o que se deixa arrastar ao sabor de
suas paixões." (Erasmo; Elogio da Loucura). O tempo histórico não é naturalmente o
tempo real. É um tempo artificial que permite quebrar a ordem das coisas vividas em
coisas pensadas à luz do presente olhando o passado. Olhar para o fim da Idade Média
apenas pela data da queda de Constantinopla é pensar que a Idade Média termina, para
o comum dos homens, com uma data e um acontecimento que, na maioria deles, no seu
tempo, não tiveram conhecimento de ter acontecido. Pode parecer estranha esta reflexão
mas, de tempos a tempos, neste ensaio, voltarei a olhar para esta história da cozinha
pelos olhos do homem comum. E o homem comum, na Europa, neste “fim” do Tempo
Médio, era agricultor. Trabalhador de um pequeno campo. Numa pequena vila. O senhor
do seu terreno. Ou religioso. Ou comerciante. Habitando os seus dias, para além do
quotidiano, com a ritualidade das festas, procurando a certeza dos dias nesse contar
simples do calendário. O que muda, então, nessa forma de viver, neste novo tempo.
Nesta Época Moderna que ganha forma com o descobrir de novos mundos. O novo
mundo do homem comum era sair da sua vila para ir a outra. Não para ir num barco
descobrir terras que nem sabia que eram possíveis existirem. A fome, impedia-o. A
incerteza, garantia o resto. E por isso, os chamados “descobrimentos” representam, numa
primeira fase, apenas uma ideia de expansão. De fuga da fome. Da escassez. Mas
também um triunfo da Razão sobre a Fé, que esta tenderá a colonizar a seu tempo. Dos
portugueses, aos ingleses, aos espanhóis, a todos os povos europeus que partiram na
epopeia dos descobrimentos, a condição de busca e descoberta foi realidade de uns
poucos que mudou os hábitos de muitos. As descobertas dos caminhos marítimos, tal
como havia sido a descoberta dos caminho terrestes para “terras desconhecidas”
representa o acesso. Acesso ao conhecido (aumentando a escala) e acesso ao
desconhecido (e por isso ao temor e ao diferente). É aqui que a fome ganha essa
dimensão de temor. E é aqui que a cozinha ganha o seu espaço para a diversidade e a
experimentação. Se a introdução de produtos desconhecidos na cozinha já não era
novidade, a forma de o fazer e o contexto em que é feito representa uma evolução natural
no que será a confecção dos alimentos na época moderna. Se a cozinha e a introdução
de novos produtos vem trazer a renovação dos sabores a uma maior quantidade de
pessoas (pois consumo de muitos dos produtos “novos” que chegam à Europa já eram
conhecidos nas cortes das grandes nações europeias) a verdade é que a fome, por outro
lado, ganha uma dimensão estranha a si mesma. Se a dimensão de estado permite ver a
fome como determinação da forma de controlo (como por exemplo no caso da “guerra”
medieval), aqui, neste tempo de “achamentos”, a fome representa o temor do
desconhecido. Da viagem. E do que se encontra. A água, bebida elevada à dimensão de
vida, torna-se tão importante como o alimento. O que salva e cura (como é o caso da
laranja que já falámos que ganha aqui a dimensão de fruto/medicamento para as viagens
a bordo de embarcações de longo percurso marítimo) é, de facto, o alimento. A cozinha,
para muitos dos descobridores e homens do mar representa a certeza. E a fome, torna-se
sinónimo de carestia. Daí o temor. O medo de ficar sem sustento dá, à fome, a veracidade
que lhe faltava. E dará, também, como veremos neste ensaio, uma dimensão política e
estratégica na visão que o homem passará a ter sobre este estado. E na cozinha, na
função, na técnica e na criação, a ideia de reprodução do que a elite tende a fazer torna-
se agora mais acessível a mais gente, habitando a cidade na procura de condições de
vida fora do cerco rural da fome e com uma ideia mais social do simples acto de tomar
uma refeição. É aqui que a dimensão organizativa da cozinha passa da centralidade de
uma pessoa para a multiplicidade de primeiras funções e segundas funções, também na
cozinha. Tal como em outros trabalhos, o mestre ensina o aprendiz. E outros ajudam.
Nesta lógica de “mesteirais” a cozinha e o acto de cozinha, transforma-se em alguns
contextos num sistema organizado. Familiar, quase todas as vezes e em quase todas as
situações urbanas, mas muito mais complexos nas dimensões empresariais e de corte.
Por outro lado, se há essa abertura a novos produtos, novas formas de confecção e
novos modos de apresentação, também é verdade que numa primeira fase desta
comenda do descobrir lugares ocultos, há uma sobriedade e uma reserva que procura
levar da Europa para o mundo o modo e a forma de cozinhar e comer. Só numa fase mais
tardia, de aculturação, podemos falar de inclusão e inovação nos sabores e nos saberes
da cozinha. Veja-se o caso dos portugueses no Japão ou no Brasil como exemplo.
Olhando para um biombo Nambam é possível perceber a estranheza de ambos os lados
destes descobrimentos, ou lendo uma carta de um qualquer navegador podemos
compreender que mais vale a fome que o estranho hábito de comer coisas
desconhecidas. É o outro lado da fome. A fome pela estranheza. Mas esta será,
rapidamente, ultrapassada condicionada pelo instinto de sobrevivência que determina,
primariamente, todo o elemento estranho ao medo e à fome. É assim que, estando a meio
deste ensaio percebo as palavras de José Matoso na “sua” História da Vida Privada:
“Uma coisa é a vida privada individual, outra coisa são as concepções da mentalidade
dominante numa determinada época acerca daquilo que é privado e público.” E assim se
passa com a fome e com a cozinha, neste tempo de uma modernidade estranha e
desconhecida. Guarda-se as práticas para conservar a identidade. E a “Europa” quando
se desloca para a descoberta de novos mundos leva tudo consigo, numa primeira fase,
pelo temor do desconhecido. Só depois os produtos ganham estatuto de exótico, de belo
e de bom. De nobreza pela posse. E como tal da transformação na confecção para a
alimentação. Tal se passa com açúcar ou o chocolate. É, novamente, o triunfo da Razão
sobre algo. Neste caso, sobre o medo. Sobre o incerto. E o princípio da incerteza, que
esta época terá como elemento marcante, passa pela sua fase de inexistência. A Fé,
propagada pelo mundo à custa da técnica criada pela Razão do homem entra numa crise
religiosa de representação. A Reforma e a Contra-Reforma colocam o pão no centro da
discussão. O alimento do espírito procura não perder a batalha contra o homem, certo de
que a sua lógica e a sua racionalidade o levavam mais longe do que a sua ideia de um
Deus que tudo concede. Trento, e a reunião das almas católicas numa determinação
quase imposta da lógica do ritual como representação da Fé coloca em cima da mesa um
elemento estranho à cozinha. A gula. O pecado. E a caridade. E os Sacramentos. E o
ritual do sagrado em detrimento do profano. Do pagão. A religião ganha forma de poder.
De determinação social. E com ela a fome ganha mais uma dimensão. A de comiseração.
É uma fome compreendida. Por um lado como modo de vida: “a pobreza de Cristo”, por
outro lado como forma de caridade. De salvação. E por estranho que possa parecer a
fome numa mais será a mesma. A forma como o homem transforma a ideia de fome,
enquanto estado em algo que representa um estado, numa condição, começa aqui. Não é
definida aqui, mas começa aqui. Porque a ideia de um estado social ainda não existe e
por isso não se pode falar da fome enquanto condição. Mas há esta dimensão única que
transmuta a fome em algo que o homem, pela Fé ou pela Razão, tende a ligar a uma
compaixão determinante de um estado. Não se trata mais de olhar para a fome enquanto
modo de sobrevivência. Falamos de fome enquanto representação social. E com isto, a
força de uns sobre os outros. Numa sociedade cada vez mais desigual no modo e na
forma de se alimentar. É assim, curioso pensar-se que uma grande parte da batalha entre
Fé e Razão (enquanto domínio da técnica) que a época moderna representa passa,
também, pela cozinha. Se a religiosidade católica aprende que para a sua sobrevivência a
repressão terá que controlar os desvios da lógica e das representações pagãs, também a
Razão e a evolução social tende a encenar todo um ritual ostentativo da sua nova
condição. A dita origem divina do poder que os Reis reclamam tem que ser demonstrado
na mesa. No domínio da cozinha. E a autoridade católica, na prática alimentar, no pão e
no vinho, no alimento (como por exemplo o consumo de carne) tem que representar essa
pertença clara e inequívoca sob pena de condenação naquele que será o espaço mais
representativo de uma tentativa de sobrevivência da Fé pela força. A força é a fome.
Sempre. Pelas suas características já conquistadas historicamente e pela representação
religiosa que passa a ter neste tempo dual numa Europa em espanto.
Mas é preciso regressar ao homem comum. Nesta época moderna, feita de
descobrimentos, da invenção da imprensa, da luta entre Fé e Razão e no fecho do seu
tempo histórico pela opulência como representação do poder, o homem comum vê-se
“renascido”. Ou não será bem assim. Se a ideia de renascimento é uma ideia comum para
descrever esta fase da “alta” renascença, a verdade é que, para o homem comum tudo,
ou quase tudo, se mantém inalterável. A condição de uma sociedade agrária ainda é
evidente. É também evidente que o homem continua a depender da alimentação básica
para o sustento. O que muda é o rito. A forma. E o acesso. As feiras e mercados passam
a ser lugares de compra de muito mais produtos. As cidades tornam-se lugares de
representação artística e social. Politicamente forte. Quase como num período grego ou
romano clássico que já aqui abordámos. A fome passa a ser estatuto. Ou reflexo. A
refeição passa a ser um cerimonial. Seja ele de festa ou da vida quotidiana. Representa a
cerimónia. E para o homem comum, também. Seja um cerimonial diário, seja nos
momento de celebração. A cozinha transforma-se num espaço de concepção do ritual.
Cria-se o espaço para a mesa. E, em certos contextos, uma primeira organização por
especialização aparece. São necessários homens que saibam fazer o pão. Gente que
saiba fazer certas coisas para servir a corte urbana. O vinho é um caso especial. Mas o
pão, também. É preciso, para o homem comum que vive na cidade, consumir o que
outros cozinham. A cozinha exterior ao lar ganha espaço. A compra do produto
confeccionado, também. O mesmo não se passa tanto no espaço rural embora, com o
caso do queijo e do mel tal seja uma realidade que historicamente se vem a verificar
muito cedo e em maior escala neste tempo. Nos antípodas desta vivência comum está a
cozinha da corte. De uma nobreza de toga e de serviços. De uma encenação do Poder
sobre a Fé e nessa luta constante pela representação para o homem comum do Poder
pela forma como se vive. É aqui que as cortes europeias, ricas e enriquecidas pelas
descobertas e pelo “desligar” contínuo e continuado do “homem comum” que tem na fome
ainda um elemento de estado e de identificação, levam ao extremo esta
representação/encenação. A criação decorativa da cozinha especializa-se. É parte desta
encenação. É uma realidade em si mesma. São grupos de trabalho especializado que
servem estes momentos encenados, quase como uma equipa de teatro o faz para a
criação de um peça. O trabalhador da cozinha ganha estatuto de membro dessa corte em
que se insere como mestre de cerimónia. A técnica de cozinha ganha dimensão. Novas
formas, novas regras. E um glamour que ainda se guarda na memória histórica centrado
nessa densificação do ritual. Da opulência à gula. Estamos perante a bilateralidade de
toda uma identidade de época histórica. E a cozinha é, em parte, o adorno de tudo isso.
Assim como a fome, no outro lado. Do outro lado. Do lado daqueles que vão reclamar,
pela força política e declarativa da fome, o seu direito.
III
Comer ganha, na época contemporânea o estatuto de direito. Liberdade, Igualdade
e Fraternidade fazem nascer essa mesma época, se considerarmos a clássica
periodização histórica como temos estado a fazer ao longo de todo este ensaio sobre a
fome. É a fome o motor desta mudança. É aqui que nunca mais a dimensão política e de
resistência será retirada à fome. Estamos perante a maior mudança histórica na noção
que o homem passa a ter sobre a fome desde o tempo em que esta passa a ser estado.
Estamos perante um dos primeiros momentos de construção da fome enquanto condição.
É o fundamento de força política de um terceiro estado que, até este momento via apenas
a fome como castigo social. Os direitos naturais sustentam esta ideia principal. E o mundo
ocidental vai render-se a esta dimensão política da fome ao ponto de ter que pensar e
definir o estado social, como mais tarde irá acontecer e este ensaio vai acompanhar. É a
Revolução Francesa que vai transformar esta visão do que é a fome para os séculos
seguintes, mesmo que, em parte esta ideia política e de resistência da fome se venha a
perder para a questão solidária da mesma que veremos mais adiante.
Emergente da revolução e pós período de império napoleónico (que não
destacaremos neste ensaio pois a lógica da fome em contexto de guerra já tinha ganho a
sua dimensão anteriormente) temos a consolidação dos estados e das nações, assim
como, o “triunfo” da técnica, da Razão e da Lógica sobre a Fé. Pode parecer estranho
este “salto” histórico que damos neste momento. Mas a verdade é que as dimensões da
fome e da cozinha não acompanham sempre o devir histórico. São-lhe paralelos. Em
parte porque a dimensão de sobrevivência está sempre presente como pano de fundo,
assim, como as restantes dimensões vão ganhando força em determinados momentos e
é nisso que este ensaio se quer prender. Digamos que, temos que fazer uma paragem
nos Séculos XVIII (final) e XIX para perceber novamente a lógica de uma transmutação
das dimensões e revelação de mudança no que se come, como se come e como se
confecciona aquilo que se vai comer. Estamos no momento histórico em que o homem,
em número atinge pela primeira vez o primeiro milhar de milhão de almas. Esta ideia de
alma é mesmo usada no sentido de quebrar aqui a lógica de pensamento histórico
anterior. A Razão renascida acaba por prevalecer sobre a Fé temida. A separação de
poderes entre o que é “de César” e o que é “de Deus” ganha forma neste espaço de
tempo que vai da eclosão da Revolução Francesa aos nossos dias, marcada pela
separação entre as coisas dos homens e as coisas de Deus. Esta mudança permite que a
Técnica e a Ciência prosperem. E o homem entra em contacto com o estado mais puro da
sua Razão pela Ciência. A Técnica reproduz para o homem comum aquilo que a Ciência
descobre. Seja na saúde, como na engenharia, como na arte ou na cozinha. E a verdade
é que revolução industrial e mudança que esta vem trazer resulta novamente de um factor
que determina sempre a actuação humana nos momentos históricos: a fome. Do campo
para a cidade. E num número de almas cada vez maior. Era preciso “servir” todos. A
alimentação, após revolução e direito assinalado como natural, não era compatível com a
permissão da fome. A produção em larga escala permitia isso. Dar a muitos o que muitos
precisavam. E até o que não precisavam. O modelo industrial não é uma evolução
histórica. É um necessidade. Um imperativo da evolução humana. De sobrevivência. É,
sem dúvida fruto do devir histórico anterior, mas é mais do que isso. Uma emergência.
Uma urgência que se impõe.
Ainda não é o tempo dos bairros industriais que descreve George Orwell no seu “O
caminho para Wigan Pier”. Mas é o tempo de serviço. E da fome enquanto desesperança.
O homem comum, trabalhador desta industria primária, perdeu a esperança e muitas
vezes anda perto da mendicidade para si e para a sua família. É outro dos elementos da
fome enquanto condição que se começa a formar. É também neste tempo que a cozinha,
depois do glamour perdido e quase condenado da época passada passa a ser o
cumprimento de um momento obrigatório para a força de trabalho desejada. Se numa
classe média e alta o ritual da alimentação difere essencialmente na qualidade e frescura
dos produtos, no homem comum este momento perde a ritualidade e ganha função. O
regresso à função de alimento. Degrada a sua lógica. E é isto que Auguste Escoffier vai
encontrar e redesenhar. Por incrível que possa parecer, a ideia da cozinha como espaço
de intimidade e de familiaridade perde-se quase por completo neste tempo. O respeito
pelo trabalho na cozinha está perdido pela necessidade e função da alimentação. Não há
nobreza na forma nem na função. E se hoje olhamos com admiração para a organização
que Escoffier dá à cozinha, com a especialização das funções, a organização do espaço e
o reconhecimento da função, só o podemos fazer à luz do que é a realidade que existia e
esta ideia refeita da utilidade em detrimento da nobreza do acto de comer. Se o acto é
nobre, a função que o permite, também. É tão lógico como claro, no nosso tempo, mas
não assim tão simples no momento em que é desenhada esta mudança. Por outro lado,
há uma necessidade emergente e óbvia. Há mais gente. Mais almas. Mais pessoas. É
preciso cozinhar regularmente e ordenadamente para muitos. E não em contextos
conjunturais. É preciso organização diária. Regular. Contínua. É essa mudança imperativa
que o modelo criado por Escoffier parece cumprir. Assim como outras conquistas e
mudanças. A Belle Époque vai ser o culimar desta nova reorganização e “limpeza” feita na
ideia de brutalidade do cumprimento do acto de comer que agora se desfaz novamente
para renascer enquanto convívio e festa que anteriormente já tinha sido. Retira-se a
opulência e dá-se funcionalidade. Reorganizam-se os espaços. A música, a alimentação.
Simplificam-se os processos de confecção porque é preciso servir mais gente em menos
tempo. O tempo ganha um lugar especial na cozinha. Porque se organiza a produção. E
porque a repetição, tal como nos produtos, é clamada por aqueles que consomem. O
homem comum procura nessa espaço de diversão, nesse momento de descanso, o
conforto. O reconfortar do corpo e da dispersão do trabalho seriado. Mas procura-o pela
repetição. E isso altera a cozinha. Por outro lado, a fome ganha também essa dimensão.
De continuidade. De constância. Outros dos elementos únicos da fome enquanto
condição. Já não se tem fome. A fome pode ser prolongada. Contínua no tempo. Quase
natureza da pessoa. A ideia conquistada da revolução francesa do “ser humano” parece
perder-se aqui. Porque a condição começa a impor-se à natureza do direito a não ter
fome. A não ser discriminado. A mendicidade não é um processo mas sim uma realização.
Determinante. E este é o seu tempo. Mas o triunfo da Razão e da Técnica levou também
ao triunfo das nações e da identidade de cada uma numa Europa feita manta de retalhos
de identidades. É com esta realidade que chegamos ao primeiro momento de mudança
radical da visão do homem sobre o domínio da técnica. O primeiro conflito mundial trará
ao homem mais um momento de reforço do princípio da incerteza. Um conflito de
dimensão quase global trará, novamente, a fome para o centro da realidade de um largo
número de pessoas. E a somar a isto a morte. A fome não é associada à morte em tão
grande dimensão como neste momento histórico. Estamos perante uma mudança radical
de associação. Vai-se morrer em batalha mas também a fome limita a saúde e traz a
morte. É outra dimensão que é trazia à fome. É comum. É ordinária. Neste tempo a
redução dos produtos torna-se um elemento comum a todos. E isto gera o regresso à
ideia da incerteza da sobrevivência. Soma-se a tudo isto que o fim da guerra não traz a
prosperidade mas sim a crise. É um tempo prolongado de fome. Uma fome social. A
dimensão política da fome tem um papel fundamenta após a crise de 1929. Estamos
perante uma fome social. Uma fome que advém do trabalho, ou da falta dele. E a Razão,
por detrás de tudo isto, espreita impávida e serena. É a condição humana, escrevem
muitos. É a economia. E a lógica capitalista emergente. Escrevem outros. É a
necessidade de cessar a fome pela partilha dos meios de produção, clamam outros há
mais tempo. Estamos no apogeu da fome como poder político. E na sua dimensão mais
alargada. O que se promete é mesmo isso: acabar com a fome. A cozinha acompanha
isto. Torna-se “enlatada”. Simples porque cumpre, novamente, uma função simples.
Alimentar. Minimalista nos meios mais elitistas ou de haute cousine mas simplificada.
Limpa de ostentação. Cumpre a sua função. Está organizada. E tenho que regressar a
Orwell e ao homem comum: «Percorrendo as ruas das cidades industriais, perdemo-nos
em labirintos de pequenas casas de tijolo escurecidas pelo fumo, que crescem num caos
desordenado em volta de ruelas enlameadas e pequenos pátios pardacentos cheios de
caixotes do lixo malcheirosos, roupas encardidas a secar nas cordas e casas de banho
meio arruinadas.» (George Orwell, O caminho para Wigan Pier). É neste contexto que a
cozinha representa função simples de alimentação, novamente. Também é neste contexto
que se industrializa. Se torna profissão. Porque é preciso alimentar este proletariado. Em
massa. Em dimensão constante. A cozinha é reservada, em parte, para este espaço de
tempo curto de alimentação para a força de trabalho. Porque, para este homem comum, o
que é preciso é fugir da fome. Sua e dos seus. Resume-se a base da vida isto num tempo
marcado pela incerteza passada.
É claro que o discurso que promete a fuga da fome tinha que prosperar neste
contexto. Impõe-se a demagogia fascista e os “ismos”. A Razão única impõe-se sempre
mais facilmente do que necessidade de explicação da Ciência ou da Fé perdidas no
emaranhado deste tempo em que a força é a medida do peso do valor das coisas. Com o
surgimento dos nacionalismos na Europa, regressa aquilo que já determinava e definia a
fome em épocas anteriores. Mas há algo de novo. Assustadoramente novo. A fome como
demonstração do Poder. Se a fome até aqui era, na maioria do casos, estado condicional,
raramente o foi um estado determinado. Isto é, imposto. De uns sobre os outros como
demonstração de poder e superioridade. A fome como arma é algo de condicional. Usada
pelos nacionalismos europeus nos períodos que antecedem a Segunda Guerra Mundial,
representa aquilo que é a maior transgressão do direito natural do ser humano no uso do
poder. A fome era imposta aos outros. Como determinação para a extinção.
Assustadoramente este poder não vai, também, voltar a desaparecer da natureza da
noção de fome. Pode ser imposta. Pode ser razão de extinção. Instrumento político e de
força de uns sobre os outros. É claro que os cercos medievais ou em contexto de guerra
usavam muitas vezes a lógica da privação da alimentação para a obtenção da vitória ou
rendição. Mas era essa a finalidade. Não a lógica racional do medo, do mal, da
aniquilação nesta dimensão e/ou realização. Por contraponto, a cozinha renova a ideia já
descrita anteriormente de “normalização”. A identidade constrói-se pela memória da
história e como na “romanização” a procura da normalização resulta sempre na
construção de uma identidade, também assim o vai acontecer neste tempo dos
nacionalismos europeus até ao seu fim com a Segunda Grande Guerra.
O período do pós-guerra até à afirmação da potencialidade dos Estados Unidos da
América representa para a cozinha um tempo estruturante. O Ocidente procura a
reconstrução e a afirmação da lógica capitalista vs comunista e o mundo procura o
equilíbrio depois da destruição. A reconstrução é uma necessidade e um imperativo. A Fé
reserva-se ao domínio do privado, assim como a Razão ganha estatuto nas “conquistas”
da técnica. Seja colocar o Homem na lua, seja no desenvolvimento das melhorias na
saúde. A Ciência ganha o seu lugar no centro da confiança do homem face ao seu
presente e ao seu futuro. É também o tempo de definição do poder e delimitações
regionais/nacionais. Mas a cozinha acompanha tudo isto com uma constância
estruturante. Isto é, acompanha a evolução social e de regulação/normalização dos
hábitos. Torna-se “fast” nos contexto de trabalho e “elitista” nos contextos de
celebração/cerimónia. A industrialização da cozinha permite servir mais rápido, mais
simples e com teor alimentar mais controlado. Frigir torna-se simples. A confecção e a
mecanização permitem mudar a forma como se cozinha em casa. A refeição ganha lugar
à alimentação. Procura-se recriar em contexto doméstico aquilo que é feito por equipas
profissionais nas cozinhas dos espaços comuns, sejam o restaurante, seja o espaço de
celebração/cerimónia. Há uma identidade pelo que se come. A fome ganha forma de
estranheza. Ou de último reduto para os excluídos socialmente. A fome ganha e
transforma-se, por último, em condição. Associa-se a pobreza à fome. Deixa de ser
estado. Passa a ser condição. Passa a ser algo externo. À sociedade ou ao espaço (país,
nação, local, rua). A fome como condição é o mais elevado grau de afastamento que o
homem já atingiu face à noção instintiva e de sobrevivência que a fome tem. Morrer de
fome parece impossível, porque é uma condição. É determinação (natural ou social). Mas
é determinante. A estranheza deste conceito não parece ser natural. Porque não o é. Mas
é a dimensão actual da fome. Condição. Ser condição. Uma condição que tapa a visão
básica de combate para além da solidariedade que emerge da consciência de uns sobre
esta dimensão da fome.
A cozinha, enquanto espaço e enquanto processo chega ao fim do século XX como
uma das maiores conquistas da humanidade. Por muito óbvia que possa parecer. Fruto
desta evolução e da evolução da técnica que acompanhou todo o fim do Século XX, é
também na cozinha que se representa a ideia de globalização. Seja pela deslocação de
modelos de alimentação entre países, seja dos processos de confecção. Aquilo que se
chamou de fusão não é mais do que essa mesma natural condicionante de um acesso
global de todos a tudo e de tudo a todos. Os meios de comunicação e circulação
permitiram essa realização de encontros e de aprendizagem. Os tempos desta
contemporaneidade são espelho desta alteração de realidade. Não só os produtos
chegam com mais facilidade e rapidez como aqueles que os confeccionam circulam nos
espaços globais para aprender técnicas. Trocam-se pessoas, produtos, ideias e
conhecimentos a uma velocidade e com uma dimensão nunca antes conseguidas. Isto faz
com que a cozinha se transforme. Passa a ser identidade e encontro. Confluência. Esta
ideia de uma cozinha “aprendida” e “misturada” pode parecer estranha mas é uma
determinação antiga. Se aqui se falou, em contexto, nos mesteirais, a verdade é que a
dimensão do número de pessoas a aprender e a cozinhar, assim como a multiplicidade
das técnicas partilhadas representa a emergência de dois elementos fundamentais: a
cozinha como saber (que se ensina e aprende – ou seja técnica) e a cozinha como
profissão. A afirmação do perfil profissional do cozinheiro/chefe representa a afirmação da
cozinha como trabalho qualificado. Diferenciado na forma mas como trabalho que é feito
de técnicas que podem ser aprendidas e desenvolvidas. Esta afirmação surge com o
direito do trabalho que emerge do fim do Século XX. Este direito ao trabalho e do
trabalho, conquista recente do homem, funciona na mesma perspectiva e paralelamente
com a afirmação do estado social. Aquele compromisso que o homem faz consigo
mesmo, enquanto ser que integra um estado organizado de combate à fome enquanto
condição. E é verdadeiramente poderosa esta dimensão social da cozinha e da
alimentação como afirmação de valores sociais que são, de facto, conquistas da
contemporaneidade e da humanidade.
Resta ao ser humano, no Século XXI, a certeza de que não vive o fim da história
que Francis Fukuyama proclamou. Resta ainda a certeza que a Ciência reservou espaço
à cozinha para a descoberta molecular e de mutação das formas e texturas dos
alimentos. E que a, acompanhar tudo isto, a tecnologia permitiu a evolução da forma
como nos alimentamos para além do espaço físico da cozinha. O principio da incerteza
vigou a sua lógica no tempo actual. Desde a incerteza do fim do dualismo espiritual e
religioso que, afinal, parece ainda vingar num outro lado do mundo que os “ocidentais”
tendem a esquecer, assim como, ao holismo profundo que as civilizações asiáticas
determinam como mais real do que o conhecimento racional do Ocidente. Sem fim da
história, ainda, a cozinha acompanhará o homem. Neste tempo de prosperidade, onde,
como nunca tantos tiveram acesso a tanto, emerge uma necessidade maior. Pensar a
fome. Ultrapassar a ideia de condição. Reformular o valor, esse valor, da fome. Porque
esta sempre foi motor de mudança. E se a prosperidade é uma realidade, também o é, a
dimensão avassaladora desta fome condicional. Talvez esta ideia da incerteza represente,
para a actualidade, aquilo que representou o fogo para o primeiro homem. A verdade é
que, «A incompreensão do presente nasce fatalmente da ignorância do passado.» (Marc
Bloch). E olhar para o passado permite perceber que o futuro da cozinha passa sempre
pela afirmação do seu lugar, no tempo, no espaço e modo.
IV
“Como a palavra comum, e mais do que ela, a escrita é um risco total. De uma maneira
geral ninguém a lerá como o seu autor a concebeu. Ela será ocasião inevitável de
desentendimento, desatenção, porventura irritação ou desprezo, mas igualmente de
comunhão possível, de entusiasmo, sobretudo de veículo para o transporte do próprio
sonho.” (Eduardo Lourenço; Tempo e Poesia). Escolhi uma imagem inicial para enquadrar
este ensaio. Os comedores de batata. A razão é essa. Por mais que estas palavras
possam descrever tudo aquilo, nenhuma delas o consegue fazer como aquela imagem e
seguindo Eduardo Lourenço, termino este pequeno ensaio sobre a fome com a noção que
escondi muitas partes da história. Escondi, muito do que fez da fome o que ela é hoje. E
escondi, ainda mais, o que podia ter dito sobre a cozinha. Este não era um ensaio sobre a
história da cozinha. A cozinha atravessa-se na histórica pela sua necessidade. E a fome
pela sua urgência. Estão ligadas, uma à outra, de forma umbilical. E isso, não são
palavras como estas que podem desligar ou, mesmo esquecendo muito, apagar de cada
sabor que hoje provamos ou de cada realidade que constatamos em torno desta lógica de
que comer é um modo, um estar e um ser. E tudo, movido pela fome. Seja ela condição,
estado ou simplesmente, conceito para um ensaio.
João Lima
2015
Bibliografia Geral
APFELBAUM, M.; PERLEMUTER, L.; NICLOS, P.; FORAT, C.; e BERGON,
M.,Dictionnaire pratique de la nutrition, Paris, Masson, 1981.
ARISTÓTELES, Tratado da Política, Europa-América, 1977.
BERTIN, Jacques; HÉMARDINQUER, Jean-Jacques; KEUL, Michael; e RANDLES,
W.G.L, Atlas des cultures vivrières, Paris, Haia, Mouton, 1971.
BIRKET-SMITH, K., The origin of maize cultivation, Copenhague, Munksgaard, 1943.
BOIS, D., Les plantes alimentaires chez tous les peuples et à travers les âges, 2 vol.,
Paris, Lechevalier, 1927-1928.
BOURDEAU, L., Histoire de l’Alimentation, Paris, 1894.
BOURGAUX, A., Quatre siècles d’histoire du cacao et du chocolat, Bruxelles,Office
international du cacao et du chocolat, 1935.
BRAUDEL, Fernand, Civilização material e capitalismo, Lisboa, Cosmos, 1970.
URKE, Peter, A revolução francesa da historiografia. A escola dos Annales. 1929-1989,
São Paulo, Edunesp, 1991.
CRAPLET, C. e J., Dictionnaire des aliments et de la nutrition, Paris, 1979.
FERRÃO, José E. Mendes, A aventura das plantas e os descobrimentos portugueses,
Lisboa, instituto de Investigação Científica Tropical/Comissão Nacional para as
comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1992.
FISCHLER, Claude, “A McDonaldização dos costumes” in FLANDRIN &
MONTANARI,História da Alimentação, 1998.
FLANDRIN, Jean-Louis; e MONTANARI, Massimo, História da Alimentação, tradução de
Luciano Vieira Machado e Guilherme J. F. Teixeira, São Paulo, Estação Liberdade, 1998.
EMERY, Louis, Traité des Aliments, ou l’on trouve la différence, et le choix, qu’on en doit
faire; les bons, et les mauvais effets, qu’ils peuvent produire; leurs principes; les
circonstances où ils conviennent, 3º éd., Paris, Chez Durand, 1755.
LÉVI-STRAUSS, Claude, O Pensamento Selvagem, Papirus, 1989.
MATOSSIAN, Mary Kilbourne, Poisons of the Past: Molds, epidemics and History,Yale
University Press, 1989.
MAURIZIO, Adam, Histoire de l’alimentation végétale depuis la préhistoire jusqu’à nos
jours, Paris, Payot, 1932.
ROTBERG, R.; e RAAB, T., Hunger and History. The impact of changing food production
and comsumption patterns on society, Cambridge, Cambridge University Press, 1985.
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anedotes, from prehistory to the present, New York, Henry Holt, 1995.
WHITE, Lynn, “The vitality of the tenth century”, Annales ESC 16 n.3, 1961.
WOORTMAN, Klaas, “A comida, a família e a construção do gênero feminino”,Revista de
Ciências Sociais, 29 (1), 1986.

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A fome como motor da evolução humana

  • 1. Ensaio sobre a fome.(ou “da história da cozinha”)
  • 2. Os Comedores de Batatas // Vincent van Gogh // 1885
  • 3. «Eu digo muitas vezes que o instinto serve melhor os animais do que a razão a nossa espécie. E o instinto serve melhor os animais porque é conservador, defende a vida. Se um animal come outro, come-o porque tem de comer, porque tem de viver.» José Saramago, Diálogos I Será como um passeio pelas palavras. Um deambular do pensamento pela história. Um ensaio sobre a história da cozinha. Diferente, talvez. Influenciado. Não apolítico ou limpo de influências literárias, filosóficas ou de correntes históricas. Um ensaio, marcado pela herança do pensamento de Umberto Eco, na forma que tenho de olhar para a História. Por isso, é um ensaio. Uma viagem. Uma travessia. E não um trabalho, simples,
  • 4. de investigação. Esse foi feito ao longo da vida. E do tempo. E com o tempo. Este é um ensaio. Partindo da fome. Olhar para esse conceito, instinto ou condição, ao longo das várias épocas da passagem do homem pelo tempo. Olhar e pensar. Ensaiar aquilo que penso. Desenhar a forma de olhar para cada momento seguindo as pegadas de uma narrativa construída pela dúvida. Saltando partes. Recortando outras. Destacando algumas. Não é uma análise histórica. É um ensaio. E por isso, cheio de lapsos propositados. Omissões silenciosas ou clamorosamente claras. Ou, tão só, pensamentos que são provocações. Uma história da cozinha feita ensaio sobre a fome. Uma tentativa. II Se fosse possível dividir o mundo em duas partes tudo começaria pela fome. Instinto ou condição. E pensar a fome é pensar o acto de comer. Comer que foi refeição, repasto, manjar, festim, banquete ou simples saciar da fome. Degustação. Tudo isto, alimentar o homem. Porque não há história sem memória e não há memória sem o homem. E o homem existe porque se alimenta. Come. Bebe. Comete esse acto vil ou pecaminoso de comer. Farei de cada palavra, neste ensaio, uma ilustração do tempo em que habita e da sua lógica. E começar pelas origens do homem levam-me sempre ao confronto com a minha descoberta tardia da obra de Darwin. Cresci e fui formado numa lógica judaico-cristã. Onde a origem do mundo estava no mistério de um Deus unificador. E no pecado pelo comer o fruto proibido. Tudo começa, sempre, pelo comer. O fruto. Mesmo que a fome seja outra. A do quebrar o paraíso prometido para procurar o infernal “livre arbítrio” em forma de fruto que a tentação apresenta aos primeiros seres humanos dotados de razão para além da Fé. Como dizia, cheguei tarde a Darwin. Mas sou um evolucionista convicto desde que conheci essa obra maior da história do pensamento científico. A origem do homem resulta, de facto, da evolução da espécie. Das espécies. E com elas, do homem. A hominização não é mais do que um lento caminhar do ser humano para a evolução natural. Não sou determinista e por isso não acredito tanto na ideia de que o mais forte prevalecerá ou que essa evolução seja uma constante não variável. Mas a essência do pensamento de Darwin vai marcar esta primeira abordagem no tempo em que o homem estava a ser “criado”. Se é verdade que a pré-história é marcada pela hominização e a fixação daquilo que hoje chamamos de evolução natural dos primeiros homens ao homo sapiens sapiens, a verdade é que há elementos únicos nesse lento caminhar que são determinantes para a visão da história da alimentação ou do cozinhar para a sobrevivência que são muito especiais. A ideia da verticalidade como revolução surge da fome. Não sei a razão pela qual esta ideia surge sempre na minha forma de explicar esse passo de gigante. A verticalidade. O caminhar. A libertação da mão. Mais do que a descoberta do uso e domínio do fogo esta foi a grande “revolução” do homem. A mão, liberta, permitia, com o polegar oponível, o domínio dos instrumentos, a construção e a manipulação de outros alimentos. Saciar a fome era uma necessidade. Primária. Simples. De sobrevivência. Sabemos isso pelos registos arqueológicos que mostram molares e formas de rosto marcados pela alimentação primária. Crua e simples. Limpa de confecções mas rica em conjugações. Falamos da fome, como sobrevivência. Natural condição de que não nos conseguimos libertar. Nesse tempo e hoje. O acto de “alimentar” o corpo surge vazio de lógica para além desta simples, limpa e determinante. A fome é aqui a mãe de todas as coisas. As outras. Como a fuga ou a defesa do frio. Como a libertação dos espaços pelo nomadismo necessário na procura constante de alimento. Não falamos de conter a fome fazendo refeições. Falamos de conter a fome procurando alimento. É aqui que voltaremos para uma análise e comparação com o tempo de hoje. Porque aqui a fome não é condição. É natureza determinante na sustentação do ser. De existir. Até ao momento prometido. Os homens da antiguidade clássica vão ilustrar este momento com a mitologia
  • 5. única e esplendorosa de Prometeu que rouba o fogo aos Deuses. No entanto, é sem dúvida, o domínio do fogo que trará a mudança no processo de hominização que determinará uma mudança radical no simples acto de comer, antes de todos os outros. Antes de seguir pelo caminho desta mudança, regresso a Darwin. Li a sua autobiografia e a “Origem das Espécies” com natural curiosidade. Procurava “falhas” na lógica de pensamento. Principalmente na questão da “seleção natural”. Encontrei palavras curiosas: «As many more individuals of each species are born than can possibly survive; and as, consequently, there is a frequently recurring struggle for existence, it follows that any being, if it vary however slightly in any manner profitable to itself, under the complex and sometimes varying conditions of life, will have a better chance of surviving, and thus be naturally selected. From the strong principle of inheritance, any selected variety will tend to propagate its new and modified form.» (Darwin, A Origem das Espécies, Introdução). Esta ideia não se coaduna com a mudança nesse percurso da hominização que a história e a arqueologia vão validando. Teria o homem, com o “roubo” do fogo aos deuses superado esta condição proposta como lei por Darwin? Ou seria a ideia apresentada por Megginson, sobre a leitura da ideia de Darwin, aquela que mais razão aparenta ter neste contexto? «Não é o mais forte que sobrevive, nem o mais inteligente, mas o que melhor se adapta às mudanças.» É que o domínio do fogo pelo homem aparece, de facto, como o domínio sobre o estado. A realidade das coisas. É o domínio do fogo que marca a primeira mudança na natureza da fome e do cozinhar para ser alimentado. Não é que o homem, em evolução, não tivesse já conhecimento sobre os alimentos transformados. Quer pelos incêndios naturais, quer pelas ocorrências imprevistas esse conhecimento era natural e óbvio como a arqueologia actual já demonstrou. Confeccionar (misturar) diferentes alimentos era já conhecido. A questão está no domínio sobre a sua confecção. Sobre o tempo e o modo. É aqui que digo que emerge uma primeira mudança da condição da fome. Deixa de ser natural. Condição de instinto, sim. Natural é que não. Muda o seu estado. Não passa, ainda a condição como veremos muito mais tarde. Mas sim a estado. Controlável, agora, pelo domínio do fogo que permitia ao homem, em evolução, controlar o tempo de fome. O seu estado. Da fome ao estar saciado. Do conforto e do momento de e para comer. Era o estado presente e a dimensão do previsto que passava a prevalecer. Porque, sabemos pelos estudos actuais, que a ligação entre a sedentarização e o domínio do fogo não se podem separar. Sabemos também que, com a sedentarização, o homem procurou novos alimentos. Teve uma necessidade primária de encontrar alimentos que não fossem imediatos. Da fome como instinto, passou-se à fome como estado. E daí ao passo do domínio sobre o que comer e quando comer é um passo lógico e claro pelo que a ciência actual nos explica. Não dizemos ainda, no modo de repasto. Ainda estamos no domínio único da alimentação como necessidade. Mas falamos desta visão e realidade única e revolucionária do que o que se come e quando se come passar a marcar toda a lógica da confecção do “cozinhar” e da realidade vivida pelo ser humano. Falamos ainda dessa mudança geradora de construção social ou socializante para o homem. Surge o círculo. O espaço de e para comer. E o tempo de e para comer. Há aqui uma mudança brutal na lógica do comer para sobreviver. É necessário estar, permanecer, entrar em contacto, para ser alimentado. Esperar. Gerir a presença e estar em comum. A fome é a razão. O que se vai comer e quando se vai comer passa a ter a lógica de interacção necessária para a sobrevivência. Torna-se um acto contínuo. Controlável no tempo. E com possibilidade de escolha nos produtos. Esta é a mudança que determinará, posteriormente, toda a lógica civilizacional que irá nascer. Em torno do alimento. Da produção. E da cozinha que, daqui, nasce. Que aqui, nasce. Ainda que na sua lógica mais rudimentar e simples. Enquanto confecção simples. Limpa. Clara. Sem condição. Apenas estado. Tal como a fome. Estado entre momentos. Dominada. Pela primeira vez, na história, o homem domina uma condição de sobrevivência. Se esta se torna determinante, tal acontece também com os instrumentos.
  • 6. E as técnicas. Estes factores, combinados com um devir histórico natural (diria Darwin) levaram determinantemente à edificação das primeiras “grandes” civilizações. Dado este “salto” no “tempo evolucional” temos que nos fixar, por momentos breves neste ensaio, nas chamadas civilizações entre os dois rios, a Mesopotâmia, assim como, no Egipto. Esta breve paragem serve para observar a fome, novamente, mas agora pela lógica contrária para uma história da cozinha mais “limpa” do efeito generalista da história contada como ilustração e não como elemento único de referência. A história nunca deve ser usada como ilustração. Deve sim, permitir ao pensador uma referência. E por isso, temos que colocar aqui, neste ensaio sobre a fome, a ideia contrária que determinará o pensamento humano num determinado momento que falaremos mais adiante. Falamos da abundância. Da ideia do espaço geográfico, naturalmente rico, que levará a essa abundância. Não há “ausência” de fome mas do seu controlo. Do surgimento da ideia de prosperidade. De domínio. Dos metais às origens da ciência, até ao festim/festival começam a surgir as bases da lógica de que a fome é só um estado temporário entre momentos. Já percebido na lógica evolutiva anterior, é aqui reforça pela cozinha como momento para o convívio. Este é o espaço conquistado pela cozinha enquanto encontro. A não existência de um Estado mas sim de “povos” cria nesta ideia de abundância de uma terra entre rios (Tigre e Eufrates – deixamos o Nilo para uma análise futura) que a prosperidade se consegue pela convivência. E a cozinha surge aqui como elemento único de ligação. E surge ainda uma diferenciação realmente importante que não podemos deixar de referir. Passa a existir uma cozinha “interior” e uma cozinha “do momento comum”. Esta mudança simples representa uma radical alteração no modo de vida. Os aglomerados habitacionais impostos pela fixação dos povos levam a uma familiarização/individualização dos espaços. E estes, partilhados, passam a ser comuns. Isto é, da comunidade passamos aos agregados familiares ou comunitários, havendo para isso necessidade de espaços em conformidade e de tempos divididos. Os tempos comuns são tempos de trabalho e festa. E os tempos familiares/individuais são os tempos de alimentação e descanso. Assim como os espaços também se vão organizar deste modo. E com isso, a alimentação. E a cozinha. A interior, respeitando o espaço e o tempo familiar/individual em comunidade mas num tempo e num local reservado a essa comunidade familiar/agregada. E o espaço/tempo de momento comum em que a “festividade” com o surgimento da dança e do tempo de celebração, emerge como espaço de alimentação e cozinha comum. Partilhada mesmo entre comunidades familiares no espaço de tempo comum dedicado à celebração. É este o resultado de uma evolução civilizacional onde a abundância representa uma mudança única e histórica na alimentação e no “domínio” sobre a fome que surge apenas como espaço e elemento de movimentação do tempo natural, sustentado pelo florescimento do domínio do homem sobre a natureza e, conscientemente, sobre a fome. Estamos perante um dos momentos mais importantes da história da cozinha e da alimentação, como veremos e faremos naturalmente ressalva neste ensaio de outros como este. Mas este, a par do surgimento da escrita, marcam profundamente aquilo que será a alimentação no futuro e para o homem no tempo e no espaço. Um estado. A fome passa de instinto natural de sobrevivência a estado dominado entre momentos do quotidiano. E a cozinha, tida como confecção ainda, representa em si mesma essa mudança. No espaço e no tempo que lhe são dedicados. Se o espaço físico condiciona a origem das primeiras civilizações, também o desenho geográfico de um “crescente fértil” não permite que neste ensaio não se fale, para além dos povos já referidos anteriormente (Sumários, Assírios, Fenícios, etc...) do surgimento da civilização Egipcia. Esta viagem da pré-história até à queda o império romano do ocidente não permite grandes deambulações para além das referências óbvias e clássicas. Mas há, neste imenso limite temporal uma marca onde a fome encontra o seu elemento mais fundamental que é preciso referir para esclarecimento futuro de outras
  • 7. reflexões a seu tempo. Diria Eric Hobsbawm: «A única generalização cem por cento segura sobre a história é aquela que diz que enquanto houver raça humana haverá história.» E é neste caminho que seguimos. Ao seguir a fome no tempo, no seu tempo, tendemos a seguir os seus passos. Acompanhando a confecção dos alimentos, e a cozinha, enquanto espaço e tempo. E é no Antigo Egipto que a cozinha ganha espaço. A fome ganha um elemento novo: a diferenciação. De instinto a estado. De estado, a diferenciação. A fome, como elemento motor da evolução humana torna-se elemento consciente numa civilização construída com base numa noção de cidade e numa noção de estado social e função diferente, partindo da noção de poder. É neste momento histórico que a civilização transforma a cozinha, a confecção, na procura pelo sabor, tanto como pela nutrição. É a edificação da ideia do comer como repasto ou refeição. Falamos de uma organização necessária da confecção (tempo e espaço – assim como utensílios), como do tempo e do modo. Estamos, efectivamente e pela primeira vez a falar de cozinha. De cozinhar. Ainda sem um conceito/palavra a esta associado, a verdade é que a organização de base, a definição da organização base é feita em função das necessidades civilizacionais mais evidentes no caso da civilização egípcia. Tal como a cozinha ganha espaço físico e tempo próprio, tanto a nível familiar como a nível das funções sociais partilhadas (politica, celebração e trabalho) também a fome ganha o elemento de diferenciação que a determinará nesta época e para o futuro como característica definidora da sua essência. A fome deixa de ser igual para todos. Tal como a cozinha. Aqui, nesta época histórica ainda não podemos falar de uma grande diferença nos de produtos. Mas podemos falar de diferenciação pela função. A alimentação para o trabalho é confecionada com base no factor força/energia. A fome é tida como natural nos que trabalham e a ser saciada para o cumprimento da função. Dos trabalhadores aos escravos. Dos funcionários aos sacerdotes. A fome é diferenciada. Diferenciadora. Porque a sua função social também o é. Não estamos a falar, claramente, dos momentos de celebração comum ou religiosa. Estamos a falar do tempo quotidiano. Do viver contínuo e continuado. Onde as diferenças são mais evidentes. Mais reais. Mais constantes. A fome é diferenciadora na sua realidade. Porque para a força é “saciadora”. E porque para o hábito de alimentação é tempo. Repasto. Alimentação no tempo certo. Um eterno retorno que nasce aqui, como repetição da certeza. Da previsibilidade mas só para alguns. Associamos a esta ideia uma noção ainda mais representativa. Falamos da religiosidade. Já dela falámos neste ensaio. Na criação do mundo, no pecado original. Voltamos a ela para edificar esta noção diferenciadora da fome. Com as oferendas, as celebrações, a religiosidade estruturante da civilização egípcia a cozinha, a alimentação, o ritual da “mesa” ganham novas dimensões. Oferece-se o que sustém. O que sustenta. O que dá vida. O que tira a fome. O que dá força. Aos deuses. Aos deuses-homens, na figura de um faraó, no seu tempo, omnipotente. Faz-se do alimento, oferenda. Pede-se sorte. Deseja- se protecção. Para os alimentos. Para a salvação da fome daqueles que não são saciados mas comensais. Aqueles que passam a fazer refeições. A procurar cozinhar e a procurar o sabor. Há aqui, neste tempo histórico algo de determinante. Sabemos, pelos recentes estudos arqueológicos que a confecção de refeições no Antigo Egipto era elaborado. Em complexo. Era saboroso. Para o contexto de uma elite, que o procurava. Para outros, era alimento. Ainda apenas alimento, sobrevivência. E por isso, procura de força e de vida. Doce, energético, para “matar” a fome. Voltaremos a estas ideias muito em breve para os complementar com o excerto inicial de Saramago que colocámos na abertura deste ensaio. Para não falar de outras civilizações, porque este ensaio é, em si mesmo cativo da visão ocidental do pensamento contemporâneo, fechamos este tempo antigo com a fome em duas grandes civilizações que tanto teriam para dizer como para revelar sobre a fome, no seu tempo e no seu espaço. As chamadas civilizações clássicas, Grécia e Roma, são a essência do que hoje conhecemos como adquirido civilizacionalmente. No entanto, é
  • 8. aqui que a fome nasce. E é aqui que a cozinha, emerge como elemento de sustentação civilizacional. Há, neste tempo clássico, para a fome, a descoberta do seu limite. Vou em pensamento a Maria Helena da Rocha Pereira, de quem aprendi tanto. “Nas tragédias gregas, quando menos se espera, desencadeiam-se desgraças sobre o homem, que ele muitas vezes provocou sem saber. Isto tem que ver com um dos conceitos mais discutidos na «Poética» de Aristóteles: «Hamartia». (...) Muitos pensam, e eu também penso, que esta «Hamartia» é um errar por desconhecimento. É o que acontece particularmente no «Rei Édipo», de Sófocles. No fundo, é sempre a ideia das limitações do homem, que não pode ultrapassar a sua medida e tentar igualar-se aos deuses.” E com a fome, neste tempo e neste lugar, o limite é outra das suas condições essenciais revelada. Este é o tempo dos limites. São estas as civilizações dos limites. E a fome, ganha forma, como o tempo ou a filosofia, para os conhecer. Há duas condições à priori para falar de cozinha, alimentação e fome nestas duas civilizações fundamentais (de fundação): a primeira, a sua dimensão. Quer dimensão territorial (no caso da fase do Império Romano), quer da dimensão cultural e civilizacional (nos casos gregos e romanos). A segunda, a normalização. A ideia aristotélica de que para o homem se manter bem tem que comer pouco e trabalhar muito representa parte desta ideia de normalização. O conceito de “romanização” que a historiografia vulgarmente emprega ilustra melhor a ideia que tenho que registar aqui para dar corpo a esta reflexão. Normalizar significa padronizar. Dar uma lógica identitária a uma civilização. Seja este o caso grego ou romano clássico. O modelo impera sobre a lógica de determinação individual, assim como, a lei se impõe sobre a vontade ou o modo. Na alimentação isto também é uma realidade. Mas tudo começa com a casa. A família. A organização social em torno de um centro. De um núcleo. As villas ou as cidades-estado (romanas ou gregas, respectivamente, tornam clara a forma como a determinação da visão de uma normalização estruturante pode mudar a forma como o homem passa de um tempo e de um espaço comunitário de circulação para uma realidade centralizada e uniformizadora da vida quotidiana no espaço comum. A casa ganha o espaço da cozinha. Quer na civilização romana quer na civilização grega esta é uma realidade transformadora. Os espaços comuns são agora os espaços de co-habitação e convivência. A cozinha passa a ser um serviço. Uma área para serviço. Para trabalho. Cozinhar, passa a função. A tarefa. Fazem-se refeições, em tempos e modos similares. Conjuga-se o que se come, com o como se come, com o onde se come. Criam-se utensílios para a cozinha. E dividem-se funções, para e na cozinha. Faz-se dos momentos de refeição, um momento de cerimónia. E tendo em conta a lógica, de ritual. De rito. De repetição. A fome acompanha tudo isto. Ganha tempo certo. Determina o gosto e acompanha o cerimonial. Isto, claro está, num grupo social marcado pelo acesso e pela possibilidade. A história tente a determinar este como o homem modelo/comum. Que não o é. Aos olhos da fome, nunca o será. E é por isso que chamar aqui e agora, a ideia da fome pode parecer estranho. Tem-se a ideia mítica (do tempo dos deuses e do Olimpo) da ordem e da razão. Da racionalização das coisas e da harmonia. A ideia destas civilizações, em termos ilustrativos, é confinada neste espaço imaginário. De Alexandre, o Grande, a César. De Platão a Homero. É uma ideia de ordem, sobre o caos. De organização, sobre a confluência e a afluência. De domínio, sobre o tempo, o modo e o espaço. No caso romano, na lógica de um Império que se estendeu no tempo e no espaço como quase nenhum outro. E que no seu interior fervilhava de diversidade muito mais do que da normalização de que se podia esperar. Da Ibéria ao Médio Oriente, à Ásia e África, não se comia da mesma forma, não se cozinhava da mesma forma, não se comiam as mesmas coisas e a fome, limite de tudo isto, não era, de facto a mesma em nenhum destes lugares. É por isso que esta ideia geral, global, aglomeradora destes conceitos tende a ser tão mais errada quanto é a procura de integrar tudo e todos numa só definição. Numa só linha de pensamento. Mas temos que voltar. Voltar à fome. E a esse elemento que é
  • 9. junto ao instinto, ao estado, à determinação e agora ao limite. A razão de colocar aqui a noção de limite para a fome é a mesma que eleva a cozinha a função. O cozinhar, a tarefa. É que, tirando os mitos das celebrações, dos banquetes gregos e romanos, das festividades e do ócio que tinham, de facto, as suas regras tão bem definidas, assim como, no provar e no sabor a sua essência, mais do que na quantidade tanto exagerada quanto buçal na visão redutora sobre o que era o banquetear dos deuses e dos homens de uma certa elite neste tempo, a verdade é a que fome, foi, neste período, limite de tudo. Limite para a sobrevivência dos escravos. Limite para as conquistas dos exércitos. Limite para as navegações. Para as caminhadas. Limite para os espaços e os tempos. Limite para a consciência dos recursos. Dos abastecimentos. A fome, foi falta. Falha. Ausência. Mais do que em outros momentos históricos, foi mesmo limite da condição humana e da condição civilizacional. Cercava-se e sitiava-se para gerar fome. Ou perdia-se batalhas por falta de abastecimento. Ou revoltavam-se os habitantes das cidades pelo preço dos alimentos. Até ao momento único da história da humanidade em que um alimento se tornou símbolo de tudo e tudo mudou. Até a fome. Até esse mesmo limite da fome. Se os mitos podem ter alguma forma, esta é uma delas: in hoc signo vinces (sob este signo vencerás, teria dito o Imperador Constantino). A cruz cristã. É no marco da divisão da história em que a religião ganha um peso e dimensão única, para além de tudo o que até aqui havia sido possível. Mas não é esse o símbolo que ficaria. É um alimento. O pão. Não tendo falado dele até aqui, do pão emerge daqui para a frente toda a lógica deste ensaio. Não é uma oferenda, como vimos nas referências históricas anteriores. É oferecido. Vida. Porque é alimento. Porque é o fim do limite. Da fome. Na lógica da racionalidade que as civilizações clássicas trouxeram, o pão, aquele único alimento, quebra essa lógica colocando a Fé num lugar superior à Razão. E o pão no espaço único que não mais viria a perder. Quando um alimento é elevado a este “estado divino", então o acto da confecção da alimentação passa a ser ritualizado e “agradecido”. Uma concessão. Não dos deuses, mas de um Deus. E aqui, neste momento, a História e a Religião cruzam-se para só se voltarem a separar muitos séculos depois como iremos falar mais adiante. É necessário voltar a pegar na palavra “revolução”. Tal como o fogo, dominado pelo homem. Tal como o círculo em que se sentou, em volta de uma fogueira e que o levou a desenvolver a linguagem e a mudar a alimentação, ou quase como numa citação de um filme recente sobre a ideia de origem do universo: “I know, I know, but suppose - just suppose! - the purity of the circle has blinded us from seeing anything beyond it! I must begin all over with new eyes. I must rethink everything!... What if we dared to look at the world just as it is. Let us shed for a moment every preconceived idea - what shape would it show us?” (Ágora, 2009). E com tudo isto, porque os outros também podem ter fome, o Império Romano virá a colapsar. Os limites mostram sempre o outro espaço. E os outros. O que ficam para além da nossa capacidade de ver e conhecer. E a fome tem, neste momento histórico, essa verdade revelada. Os outros. Que estarmos saciados não coloca nos outros a fome como lugar de consolo. Pelo contrário. Os bárbaros também são possuidores de fome. De vontade. De desejo de ser saciados. Os limites dessa fome, desta “nova” fome permitiram a tantos pensadores ver isto. Saber isso. Escrever sobre isso. E é aqui que a dimensão da memória emerge também. Por via dessa fome. A memória do que se comia. Como se comia. E as civilizações antigas, clássicas, sentiram essa necessidade. De deixar escrito. De perpectuar na memória a normalização desejada, muito mais do que a real, vivida. Surgem as “receitas”. O Livro de Cozinha de Apício é um desses exemplos. A receita permite normalizar o que se come. O modo, é um ritual passado pela educação. E pelo hábito. Pela representação. O que ficou, as “receitas” e a organização espaços representam das conquistas mais importantes da história da cozinha e da alimentação da humanidade. II
  • 10. O ano de 476 d.C. marca a queda do Império Romano do Ocidente e com ele o início do que tendemos a chamar de Idade Média. A Idade do Meio. O Tempo Médio. Que vai até 1453, na visão clássica da divisão/periodização histórica. A queda de Constantinopla. Sem a “malha” do Império Romano, grande parte do “mundo conhecido” deixa desfazer as leis, regras, normas e lógica que governou os homens no seu tempo para ficar apenas o vazio. E o vazio é a fome. Entre invasões e ocupações de povos “bárbaros” e a condição natural e da natureza que o homem havia, em parte, esquecido pela certeza da pertença a um mundo civilizacional normalizado, tudo se transforma. Os outros, com a justiça desejada e a fome como razão, ocupam espaços. Trazem com eles novas coisas. Coisas de comer. Para comer. E formas de o fazer que eram desconhecidas. Estranhas. Exóticas. É talvez, a par dos “descobrimentos marítimos” um dos momentos de maior mudança nos hábitos, produtos e formas de alimentação da história da humanidade. Ao contrário da imagem “mitológica” de uma idade média sombria e escura, de fomes, pestes e guerras (que existiram mas ocuparam apenas parcialmente um tempo desse vasto espaço histórico que foi o Tempo Médio) a ocupação territorial por inúmeros povos com hábitos alimentares diferenciados resultou numa mistura fabulosa no que diz respeito à cozinha e à forma de cozinhar. Circulam produtos que serão determinantes em momentos históricos futuros. Recordo a laranja e a oliveira/azeitona. E depois o modo. Introduz-se na cozinha o tempo. Sim, mais um elemento fundamental. O tempo. Reverte-se a refeição do deleite. Da delicia. É um manjar. Ocupado no tempo com a presença. Transformador pela lógica da presença. É o tempo de descanso que coincide com o tempo de alimentação. Isto é trazido por vários povos árabes. Pelo ritual em si mesmo de estar e preparar a refeição. Para acolher. Para provar. Para saborear as iguarias. Ensina-se a usar os produtos para se ter perto aquilo que é de outras zonas. As técnicas. As formas. Até na cozinha se ensina o frigir (de onde vem a ideia de frigideira) usando o azeite. E muda-se a cozinha para o espaço comum. Em parte, a reserva da lógica de serviço passa a ser feita em comum com o espaço de refeição. E a cozinha refina-se. Transforma-se. Transmuta-se. Ganha forma de ser oferta aos outros. A quem entra. A quem é recebido. A quem, viajante, precisa de comer. A Idade Média é uma época histórica marcada por tantos momentos que é sempre difícil fazer esta viagem sem parar vezes sem conta. E a fome chama o pensamento de volta aos outros. Nesta fase, de conquistas, ocupações, reconquistas e definições de território, a fome é sempre a dos outros. É aqui que a fome ganha uma nova dimensão. A dimensão da alteridade. Se as civilizações clássicas colocavam o “outro” como “bárbaro”, a verdade é que a ocupação, partilha do território, conquista ou reconquista comportam em si mesmas essa ideia de cultura diferenciada. O outro. A fome é sempre do outro. Mesmo que seja “nossa” também é, antes demais, do outro. Mas o outro é, culturalmente, o que foi ou será conquistado. Não o que habita ou permanece. Quando juntamos a esta equação do pensamento a ideia de um confronto religioso, tal como marcadamente a Idade Média tende a representar, percebemos que esta interacção, esta interdependência do outro acontece por oposição mas valida a realidade existente. Somos o contrário. O oposto. E por isso a fome é contrariada pelo banquete. E a simplicidade pela opulência. E a Idade Média é, para a cozinha, tudo isto também. Porque, fixados os limites territoriais e os reinos de ocupação cristã e muçulmana, temos como representação da deste tempo a mais extraordinária evolução da cozinha enquanto gosto e prazer que a história da humanidade virá a ver em tão profunda mudança. Pode parecer estranha esta ideia de “iluminação” da cozinha nos tempos medievais mas tal só é estranho se tivermos este tempo como um tempo de “trevas”, ideia criada no imaginário colectivo por via de uma visão religiosa de oposição ao tempo de reforma que se vai seguir e quase ilustrativo dos antigos testamentos por oposição ao esclarecimento que veremos mais tarde. Nisto, recuperamos Umberto Eco e a afirmação que esta linha de pensamento segue também: «O homem
  • 11. medieval via-se, pelo contrário, num ambiente luminosíssimo.» (Umberto Eco, História da Beleza). A ideia de escuridão na Idade Média é tão válida para todas as outras épocas, pelo menos até à invenção da electricidade. E no que diz respeito à cozinha isto ainda é mais real. Se da nobreza, agora sustentada por uma agricultura próxima e trabalhadores “cativos” das suas regalias de protecção, resultam os banquetes e festins, a verdade é que dos camponeses e trabalhadores resultam princípios alimentares que mudam a forma como se vê a alimentação tida como refeição só por si. Se da elite se conhecem as receitas, a forma de diversão, a cozinha organizada rudemente por “alimentos a confeccionar”, havendo mesmo em alguns castelos espaços destinados à “matança e desfeitura”, o que sabemos do homem que trabalhava é ainda mais rico. Porque a ideia constante até esta época é, tirando as referencias já feitas anteriormente, da simplicidade e conformismo. Isto é, cozinha-se o que existe e é produzido perto. Na Idade Média há, parcialmente uma alteração desta concepção. As feiras e os mercados permitem as trocas. Há circulação de pessoas, bens e mercadorias. Pequenas deslocações, movimentações, mudanças. Em curtos espaços e circunscritas muitas vezes pelas limitações de um reino ou pela seguranças mas, nem sempre, o homem “comum” consome e alimenta-se exclusivamente do que produz. Um dos elementos mais curiosos como ilustração desta realidade é o sal. O uso e troca comercial, já anterior a este tempo, mas neste tempo mais disseminado. Por outro lado, a emergência dos mosteiros e das ordens religiosas vão permitir que aqueles “filhos segundos”, de sexo masculino e feminino, gastem o seu tempo de ócio na elaboração daquilo a que hoje tendemos a chamar “doçaria conventual”. Outra limitação da construção imaginária da Idade Média é reduzir os mosteiros e conventos a “fábricas de doces”. A verdade é que sendo detentores de grandes espaços e produções agrícolas eram espaços de elaboração gastronómica de todo o tipo. Do queijo aos vinhos, dos doces aos assados. É neste espaço que as “ervas aromáticas” ganham lugar na cozinha como referência. Tal é possível de saber hoje pelas inúmeras receitas e livros de receitas existentes na Europa que retratam esta realidade. Esta realidade, possível por muitos destes espaços religiosos serem ocupados por “filhos” de uma nobreza terratenente, são ilustrativos de toda uma riqueza ao nível da alimentação comum que desfazem a ideia de escuridão que tanto marca a Idade Média ainda hoje. No entanto, é também neste tempo médio que a fome ganha mais uma das suas determinações e onde começa a mudança de perspectiva real sobre a fome enquanto estado para uma fome enquanto condição que virá a ocorrer nos nossos dias e que, no fim deste ensaio, terá o seu espaço reservado para reflexão. As fomes, pestes e guerras que assolam toda a Idade Média, culminam e ganham força no fim deste período histórico. A fome passa a ser um elemento a somar à pobreza e à doença. É a brutalidade: «When God saw that the world was so over proud,/ He sent a dearth on earth, and made it full hard./ A bushel of wheat was at four shillings or more,/ Of which men might have had a quarter before.../ And then they turned pale who had laughed so loud,/ And they became all docile who before were so proud./ A man's heart might bleed for to hear the cry/ Of poor men who called out, "Alas! For hunger I die ...!" (Eduardo II, 1321). A Idade Média representa para a fome o que de mais brutal podia ser mostrado. E em larga escala. É uma das primeiras fases do fim da previsibilidade. O imprevisto, o não domínio do homem sobre a natureza, gerava essa brutalidade que era a fome. Então o “outro”, essa alteridade relevante que os primeiros tempos desta época vão trazer parte-se em estilhaços perante essa brutalidade natural que só o homem primitivo poderia compreender porque sempre havia dependido da ordem natural das coisas. Sem deuses a quem clamar por novos e melhores tempos, o homem procura explicar esta brutalidade da fome voltando a tentar dominar aquilo que lhe tirava o alimento. E a Razão tende a imperar sobre a Fé, quando esta falta ou falha, na história da humanidade porque a natureza trazia, a este homem medieval aquilo que nenhum outro havia ainda visto. A brutalidade crua da fome em larga escala. A fome que é, de novo, ausência. Estado.
  • 12. Contexto. É com esta dimensão da fome que o homem enfrenta o tempo que virá. Com a luz da Razão. III "Segundo a definição dos estoicos o sábio é aquele que vive de acordo com as regras da razão prescrita, e o louco, ao contrário, é o que se deixa arrastar ao sabor de suas paixões." (Erasmo; Elogio da Loucura). O tempo histórico não é naturalmente o tempo real. É um tempo artificial que permite quebrar a ordem das coisas vividas em coisas pensadas à luz do presente olhando o passado. Olhar para o fim da Idade Média apenas pela data da queda de Constantinopla é pensar que a Idade Média termina, para o comum dos homens, com uma data e um acontecimento que, na maioria deles, no seu tempo, não tiveram conhecimento de ter acontecido. Pode parecer estranha esta reflexão mas, de tempos a tempos, neste ensaio, voltarei a olhar para esta história da cozinha pelos olhos do homem comum. E o homem comum, na Europa, neste “fim” do Tempo Médio, era agricultor. Trabalhador de um pequeno campo. Numa pequena vila. O senhor do seu terreno. Ou religioso. Ou comerciante. Habitando os seus dias, para além do quotidiano, com a ritualidade das festas, procurando a certeza dos dias nesse contar simples do calendário. O que muda, então, nessa forma de viver, neste novo tempo. Nesta Época Moderna que ganha forma com o descobrir de novos mundos. O novo mundo do homem comum era sair da sua vila para ir a outra. Não para ir num barco descobrir terras que nem sabia que eram possíveis existirem. A fome, impedia-o. A incerteza, garantia o resto. E por isso, os chamados “descobrimentos” representam, numa primeira fase, apenas uma ideia de expansão. De fuga da fome. Da escassez. Mas também um triunfo da Razão sobre a Fé, que esta tenderá a colonizar a seu tempo. Dos portugueses, aos ingleses, aos espanhóis, a todos os povos europeus que partiram na epopeia dos descobrimentos, a condição de busca e descoberta foi realidade de uns poucos que mudou os hábitos de muitos. As descobertas dos caminhos marítimos, tal como havia sido a descoberta dos caminho terrestes para “terras desconhecidas” representa o acesso. Acesso ao conhecido (aumentando a escala) e acesso ao desconhecido (e por isso ao temor e ao diferente). É aqui que a fome ganha essa dimensão de temor. E é aqui que a cozinha ganha o seu espaço para a diversidade e a experimentação. Se a introdução de produtos desconhecidos na cozinha já não era novidade, a forma de o fazer e o contexto em que é feito representa uma evolução natural no que será a confecção dos alimentos na época moderna. Se a cozinha e a introdução de novos produtos vem trazer a renovação dos sabores a uma maior quantidade de pessoas (pois consumo de muitos dos produtos “novos” que chegam à Europa já eram conhecidos nas cortes das grandes nações europeias) a verdade é que a fome, por outro lado, ganha uma dimensão estranha a si mesma. Se a dimensão de estado permite ver a fome como determinação da forma de controlo (como por exemplo no caso da “guerra” medieval), aqui, neste tempo de “achamentos”, a fome representa o temor do desconhecido. Da viagem. E do que se encontra. A água, bebida elevada à dimensão de vida, torna-se tão importante como o alimento. O que salva e cura (como é o caso da laranja que já falámos que ganha aqui a dimensão de fruto/medicamento para as viagens a bordo de embarcações de longo percurso marítimo) é, de facto, o alimento. A cozinha, para muitos dos descobridores e homens do mar representa a certeza. E a fome, torna-se sinónimo de carestia. Daí o temor. O medo de ficar sem sustento dá, à fome, a veracidade que lhe faltava. E dará, também, como veremos neste ensaio, uma dimensão política e estratégica na visão que o homem passará a ter sobre este estado. E na cozinha, na função, na técnica e na criação, a ideia de reprodução do que a elite tende a fazer torna- se agora mais acessível a mais gente, habitando a cidade na procura de condições de vida fora do cerco rural da fome e com uma ideia mais social do simples acto de tomar
  • 13. uma refeição. É aqui que a dimensão organizativa da cozinha passa da centralidade de uma pessoa para a multiplicidade de primeiras funções e segundas funções, também na cozinha. Tal como em outros trabalhos, o mestre ensina o aprendiz. E outros ajudam. Nesta lógica de “mesteirais” a cozinha e o acto de cozinha, transforma-se em alguns contextos num sistema organizado. Familiar, quase todas as vezes e em quase todas as situações urbanas, mas muito mais complexos nas dimensões empresariais e de corte. Por outro lado, se há essa abertura a novos produtos, novas formas de confecção e novos modos de apresentação, também é verdade que numa primeira fase desta comenda do descobrir lugares ocultos, há uma sobriedade e uma reserva que procura levar da Europa para o mundo o modo e a forma de cozinhar e comer. Só numa fase mais tardia, de aculturação, podemos falar de inclusão e inovação nos sabores e nos saberes da cozinha. Veja-se o caso dos portugueses no Japão ou no Brasil como exemplo. Olhando para um biombo Nambam é possível perceber a estranheza de ambos os lados destes descobrimentos, ou lendo uma carta de um qualquer navegador podemos compreender que mais vale a fome que o estranho hábito de comer coisas desconhecidas. É o outro lado da fome. A fome pela estranheza. Mas esta será, rapidamente, ultrapassada condicionada pelo instinto de sobrevivência que determina, primariamente, todo o elemento estranho ao medo e à fome. É assim que, estando a meio deste ensaio percebo as palavras de José Matoso na “sua” História da Vida Privada: “Uma coisa é a vida privada individual, outra coisa são as concepções da mentalidade dominante numa determinada época acerca daquilo que é privado e público.” E assim se passa com a fome e com a cozinha, neste tempo de uma modernidade estranha e desconhecida. Guarda-se as práticas para conservar a identidade. E a “Europa” quando se desloca para a descoberta de novos mundos leva tudo consigo, numa primeira fase, pelo temor do desconhecido. Só depois os produtos ganham estatuto de exótico, de belo e de bom. De nobreza pela posse. E como tal da transformação na confecção para a alimentação. Tal se passa com açúcar ou o chocolate. É, novamente, o triunfo da Razão sobre algo. Neste caso, sobre o medo. Sobre o incerto. E o princípio da incerteza, que esta época terá como elemento marcante, passa pela sua fase de inexistência. A Fé, propagada pelo mundo à custa da técnica criada pela Razão do homem entra numa crise religiosa de representação. A Reforma e a Contra-Reforma colocam o pão no centro da discussão. O alimento do espírito procura não perder a batalha contra o homem, certo de que a sua lógica e a sua racionalidade o levavam mais longe do que a sua ideia de um Deus que tudo concede. Trento, e a reunião das almas católicas numa determinação quase imposta da lógica do ritual como representação da Fé coloca em cima da mesa um elemento estranho à cozinha. A gula. O pecado. E a caridade. E os Sacramentos. E o ritual do sagrado em detrimento do profano. Do pagão. A religião ganha forma de poder. De determinação social. E com ela a fome ganha mais uma dimensão. A de comiseração. É uma fome compreendida. Por um lado como modo de vida: “a pobreza de Cristo”, por outro lado como forma de caridade. De salvação. E por estranho que possa parecer a fome numa mais será a mesma. A forma como o homem transforma a ideia de fome, enquanto estado em algo que representa um estado, numa condição, começa aqui. Não é definida aqui, mas começa aqui. Porque a ideia de um estado social ainda não existe e por isso não se pode falar da fome enquanto condição. Mas há esta dimensão única que transmuta a fome em algo que o homem, pela Fé ou pela Razão, tende a ligar a uma compaixão determinante de um estado. Não se trata mais de olhar para a fome enquanto modo de sobrevivência. Falamos de fome enquanto representação social. E com isto, a força de uns sobre os outros. Numa sociedade cada vez mais desigual no modo e na forma de se alimentar. É assim, curioso pensar-se que uma grande parte da batalha entre Fé e Razão (enquanto domínio da técnica) que a época moderna representa passa, também, pela cozinha. Se a religiosidade católica aprende que para a sua sobrevivência a repressão terá que controlar os desvios da lógica e das representações pagãs, também a
  • 14. Razão e a evolução social tende a encenar todo um ritual ostentativo da sua nova condição. A dita origem divina do poder que os Reis reclamam tem que ser demonstrado na mesa. No domínio da cozinha. E a autoridade católica, na prática alimentar, no pão e no vinho, no alimento (como por exemplo o consumo de carne) tem que representar essa pertença clara e inequívoca sob pena de condenação naquele que será o espaço mais representativo de uma tentativa de sobrevivência da Fé pela força. A força é a fome. Sempre. Pelas suas características já conquistadas historicamente e pela representação religiosa que passa a ter neste tempo dual numa Europa em espanto. Mas é preciso regressar ao homem comum. Nesta época moderna, feita de descobrimentos, da invenção da imprensa, da luta entre Fé e Razão e no fecho do seu tempo histórico pela opulência como representação do poder, o homem comum vê-se “renascido”. Ou não será bem assim. Se a ideia de renascimento é uma ideia comum para descrever esta fase da “alta” renascença, a verdade é que, para o homem comum tudo, ou quase tudo, se mantém inalterável. A condição de uma sociedade agrária ainda é evidente. É também evidente que o homem continua a depender da alimentação básica para o sustento. O que muda é o rito. A forma. E o acesso. As feiras e mercados passam a ser lugares de compra de muito mais produtos. As cidades tornam-se lugares de representação artística e social. Politicamente forte. Quase como num período grego ou romano clássico que já aqui abordámos. A fome passa a ser estatuto. Ou reflexo. A refeição passa a ser um cerimonial. Seja ele de festa ou da vida quotidiana. Representa a cerimónia. E para o homem comum, também. Seja um cerimonial diário, seja nos momento de celebração. A cozinha transforma-se num espaço de concepção do ritual. Cria-se o espaço para a mesa. E, em certos contextos, uma primeira organização por especialização aparece. São necessários homens que saibam fazer o pão. Gente que saiba fazer certas coisas para servir a corte urbana. O vinho é um caso especial. Mas o pão, também. É preciso, para o homem comum que vive na cidade, consumir o que outros cozinham. A cozinha exterior ao lar ganha espaço. A compra do produto confeccionado, também. O mesmo não se passa tanto no espaço rural embora, com o caso do queijo e do mel tal seja uma realidade que historicamente se vem a verificar muito cedo e em maior escala neste tempo. Nos antípodas desta vivência comum está a cozinha da corte. De uma nobreza de toga e de serviços. De uma encenação do Poder sobre a Fé e nessa luta constante pela representação para o homem comum do Poder pela forma como se vive. É aqui que as cortes europeias, ricas e enriquecidas pelas descobertas e pelo “desligar” contínuo e continuado do “homem comum” que tem na fome ainda um elemento de estado e de identificação, levam ao extremo esta representação/encenação. A criação decorativa da cozinha especializa-se. É parte desta encenação. É uma realidade em si mesma. São grupos de trabalho especializado que servem estes momentos encenados, quase como uma equipa de teatro o faz para a criação de um peça. O trabalhador da cozinha ganha estatuto de membro dessa corte em que se insere como mestre de cerimónia. A técnica de cozinha ganha dimensão. Novas formas, novas regras. E um glamour que ainda se guarda na memória histórica centrado nessa densificação do ritual. Da opulência à gula. Estamos perante a bilateralidade de toda uma identidade de época histórica. E a cozinha é, em parte, o adorno de tudo isso. Assim como a fome, no outro lado. Do outro lado. Do lado daqueles que vão reclamar, pela força política e declarativa da fome, o seu direito. III Comer ganha, na época contemporânea o estatuto de direito. Liberdade, Igualdade e Fraternidade fazem nascer essa mesma época, se considerarmos a clássica periodização histórica como temos estado a fazer ao longo de todo este ensaio sobre a fome. É a fome o motor desta mudança. É aqui que nunca mais a dimensão política e de
  • 15. resistência será retirada à fome. Estamos perante a maior mudança histórica na noção que o homem passa a ter sobre a fome desde o tempo em que esta passa a ser estado. Estamos perante um dos primeiros momentos de construção da fome enquanto condição. É o fundamento de força política de um terceiro estado que, até este momento via apenas a fome como castigo social. Os direitos naturais sustentam esta ideia principal. E o mundo ocidental vai render-se a esta dimensão política da fome ao ponto de ter que pensar e definir o estado social, como mais tarde irá acontecer e este ensaio vai acompanhar. É a Revolução Francesa que vai transformar esta visão do que é a fome para os séculos seguintes, mesmo que, em parte esta ideia política e de resistência da fome se venha a perder para a questão solidária da mesma que veremos mais adiante. Emergente da revolução e pós período de império napoleónico (que não destacaremos neste ensaio pois a lógica da fome em contexto de guerra já tinha ganho a sua dimensão anteriormente) temos a consolidação dos estados e das nações, assim como, o “triunfo” da técnica, da Razão e da Lógica sobre a Fé. Pode parecer estranho este “salto” histórico que damos neste momento. Mas a verdade é que as dimensões da fome e da cozinha não acompanham sempre o devir histórico. São-lhe paralelos. Em parte porque a dimensão de sobrevivência está sempre presente como pano de fundo, assim, como as restantes dimensões vão ganhando força em determinados momentos e é nisso que este ensaio se quer prender. Digamos que, temos que fazer uma paragem nos Séculos XVIII (final) e XIX para perceber novamente a lógica de uma transmutação das dimensões e revelação de mudança no que se come, como se come e como se confecciona aquilo que se vai comer. Estamos no momento histórico em que o homem, em número atinge pela primeira vez o primeiro milhar de milhão de almas. Esta ideia de alma é mesmo usada no sentido de quebrar aqui a lógica de pensamento histórico anterior. A Razão renascida acaba por prevalecer sobre a Fé temida. A separação de poderes entre o que é “de César” e o que é “de Deus” ganha forma neste espaço de tempo que vai da eclosão da Revolução Francesa aos nossos dias, marcada pela separação entre as coisas dos homens e as coisas de Deus. Esta mudança permite que a Técnica e a Ciência prosperem. E o homem entra em contacto com o estado mais puro da sua Razão pela Ciência. A Técnica reproduz para o homem comum aquilo que a Ciência descobre. Seja na saúde, como na engenharia, como na arte ou na cozinha. E a verdade é que revolução industrial e mudança que esta vem trazer resulta novamente de um factor que determina sempre a actuação humana nos momentos históricos: a fome. Do campo para a cidade. E num número de almas cada vez maior. Era preciso “servir” todos. A alimentação, após revolução e direito assinalado como natural, não era compatível com a permissão da fome. A produção em larga escala permitia isso. Dar a muitos o que muitos precisavam. E até o que não precisavam. O modelo industrial não é uma evolução histórica. É um necessidade. Um imperativo da evolução humana. De sobrevivência. É, sem dúvida fruto do devir histórico anterior, mas é mais do que isso. Uma emergência. Uma urgência que se impõe. Ainda não é o tempo dos bairros industriais que descreve George Orwell no seu “O caminho para Wigan Pier”. Mas é o tempo de serviço. E da fome enquanto desesperança. O homem comum, trabalhador desta industria primária, perdeu a esperança e muitas vezes anda perto da mendicidade para si e para a sua família. É outro dos elementos da fome enquanto condição que se começa a formar. É também neste tempo que a cozinha, depois do glamour perdido e quase condenado da época passada passa a ser o cumprimento de um momento obrigatório para a força de trabalho desejada. Se numa classe média e alta o ritual da alimentação difere essencialmente na qualidade e frescura dos produtos, no homem comum este momento perde a ritualidade e ganha função. O regresso à função de alimento. Degrada a sua lógica. E é isto que Auguste Escoffier vai encontrar e redesenhar. Por incrível que possa parecer, a ideia da cozinha como espaço de intimidade e de familiaridade perde-se quase por completo neste tempo. O respeito
  • 16. pelo trabalho na cozinha está perdido pela necessidade e função da alimentação. Não há nobreza na forma nem na função. E se hoje olhamos com admiração para a organização que Escoffier dá à cozinha, com a especialização das funções, a organização do espaço e o reconhecimento da função, só o podemos fazer à luz do que é a realidade que existia e esta ideia refeita da utilidade em detrimento da nobreza do acto de comer. Se o acto é nobre, a função que o permite, também. É tão lógico como claro, no nosso tempo, mas não assim tão simples no momento em que é desenhada esta mudança. Por outro lado, há uma necessidade emergente e óbvia. Há mais gente. Mais almas. Mais pessoas. É preciso cozinhar regularmente e ordenadamente para muitos. E não em contextos conjunturais. É preciso organização diária. Regular. Contínua. É essa mudança imperativa que o modelo criado por Escoffier parece cumprir. Assim como outras conquistas e mudanças. A Belle Époque vai ser o culimar desta nova reorganização e “limpeza” feita na ideia de brutalidade do cumprimento do acto de comer que agora se desfaz novamente para renascer enquanto convívio e festa que anteriormente já tinha sido. Retira-se a opulência e dá-se funcionalidade. Reorganizam-se os espaços. A música, a alimentação. Simplificam-se os processos de confecção porque é preciso servir mais gente em menos tempo. O tempo ganha um lugar especial na cozinha. Porque se organiza a produção. E porque a repetição, tal como nos produtos, é clamada por aqueles que consomem. O homem comum procura nessa espaço de diversão, nesse momento de descanso, o conforto. O reconfortar do corpo e da dispersão do trabalho seriado. Mas procura-o pela repetição. E isso altera a cozinha. Por outro lado, a fome ganha também essa dimensão. De continuidade. De constância. Outros dos elementos únicos da fome enquanto condição. Já não se tem fome. A fome pode ser prolongada. Contínua no tempo. Quase natureza da pessoa. A ideia conquistada da revolução francesa do “ser humano” parece perder-se aqui. Porque a condição começa a impor-se à natureza do direito a não ter fome. A não ser discriminado. A mendicidade não é um processo mas sim uma realização. Determinante. E este é o seu tempo. Mas o triunfo da Razão e da Técnica levou também ao triunfo das nações e da identidade de cada uma numa Europa feita manta de retalhos de identidades. É com esta realidade que chegamos ao primeiro momento de mudança radical da visão do homem sobre o domínio da técnica. O primeiro conflito mundial trará ao homem mais um momento de reforço do princípio da incerteza. Um conflito de dimensão quase global trará, novamente, a fome para o centro da realidade de um largo número de pessoas. E a somar a isto a morte. A fome não é associada à morte em tão grande dimensão como neste momento histórico. Estamos perante uma mudança radical de associação. Vai-se morrer em batalha mas também a fome limita a saúde e traz a morte. É outra dimensão que é trazia à fome. É comum. É ordinária. Neste tempo a redução dos produtos torna-se um elemento comum a todos. E isto gera o regresso à ideia da incerteza da sobrevivência. Soma-se a tudo isto que o fim da guerra não traz a prosperidade mas sim a crise. É um tempo prolongado de fome. Uma fome social. A dimensão política da fome tem um papel fundamenta após a crise de 1929. Estamos perante uma fome social. Uma fome que advém do trabalho, ou da falta dele. E a Razão, por detrás de tudo isto, espreita impávida e serena. É a condição humana, escrevem muitos. É a economia. E a lógica capitalista emergente. Escrevem outros. É a necessidade de cessar a fome pela partilha dos meios de produção, clamam outros há mais tempo. Estamos no apogeu da fome como poder político. E na sua dimensão mais alargada. O que se promete é mesmo isso: acabar com a fome. A cozinha acompanha isto. Torna-se “enlatada”. Simples porque cumpre, novamente, uma função simples. Alimentar. Minimalista nos meios mais elitistas ou de haute cousine mas simplificada. Limpa de ostentação. Cumpre a sua função. Está organizada. E tenho que regressar a Orwell e ao homem comum: «Percorrendo as ruas das cidades industriais, perdemo-nos em labirintos de pequenas casas de tijolo escurecidas pelo fumo, que crescem num caos desordenado em volta de ruelas enlameadas e pequenos pátios pardacentos cheios de
  • 17. caixotes do lixo malcheirosos, roupas encardidas a secar nas cordas e casas de banho meio arruinadas.» (George Orwell, O caminho para Wigan Pier). É neste contexto que a cozinha representa função simples de alimentação, novamente. Também é neste contexto que se industrializa. Se torna profissão. Porque é preciso alimentar este proletariado. Em massa. Em dimensão constante. A cozinha é reservada, em parte, para este espaço de tempo curto de alimentação para a força de trabalho. Porque, para este homem comum, o que é preciso é fugir da fome. Sua e dos seus. Resume-se a base da vida isto num tempo marcado pela incerteza passada. É claro que o discurso que promete a fuga da fome tinha que prosperar neste contexto. Impõe-se a demagogia fascista e os “ismos”. A Razão única impõe-se sempre mais facilmente do que necessidade de explicação da Ciência ou da Fé perdidas no emaranhado deste tempo em que a força é a medida do peso do valor das coisas. Com o surgimento dos nacionalismos na Europa, regressa aquilo que já determinava e definia a fome em épocas anteriores. Mas há algo de novo. Assustadoramente novo. A fome como demonstração do Poder. Se a fome até aqui era, na maioria do casos, estado condicional, raramente o foi um estado determinado. Isto é, imposto. De uns sobre os outros como demonstração de poder e superioridade. A fome como arma é algo de condicional. Usada pelos nacionalismos europeus nos períodos que antecedem a Segunda Guerra Mundial, representa aquilo que é a maior transgressão do direito natural do ser humano no uso do poder. A fome era imposta aos outros. Como determinação para a extinção. Assustadoramente este poder não vai, também, voltar a desaparecer da natureza da noção de fome. Pode ser imposta. Pode ser razão de extinção. Instrumento político e de força de uns sobre os outros. É claro que os cercos medievais ou em contexto de guerra usavam muitas vezes a lógica da privação da alimentação para a obtenção da vitória ou rendição. Mas era essa a finalidade. Não a lógica racional do medo, do mal, da aniquilação nesta dimensão e/ou realização. Por contraponto, a cozinha renova a ideia já descrita anteriormente de “normalização”. A identidade constrói-se pela memória da história e como na “romanização” a procura da normalização resulta sempre na construção de uma identidade, também assim o vai acontecer neste tempo dos nacionalismos europeus até ao seu fim com a Segunda Grande Guerra. O período do pós-guerra até à afirmação da potencialidade dos Estados Unidos da América representa para a cozinha um tempo estruturante. O Ocidente procura a reconstrução e a afirmação da lógica capitalista vs comunista e o mundo procura o equilíbrio depois da destruição. A reconstrução é uma necessidade e um imperativo. A Fé reserva-se ao domínio do privado, assim como a Razão ganha estatuto nas “conquistas” da técnica. Seja colocar o Homem na lua, seja no desenvolvimento das melhorias na saúde. A Ciência ganha o seu lugar no centro da confiança do homem face ao seu presente e ao seu futuro. É também o tempo de definição do poder e delimitações regionais/nacionais. Mas a cozinha acompanha tudo isto com uma constância estruturante. Isto é, acompanha a evolução social e de regulação/normalização dos hábitos. Torna-se “fast” nos contexto de trabalho e “elitista” nos contextos de celebração/cerimónia. A industrialização da cozinha permite servir mais rápido, mais simples e com teor alimentar mais controlado. Frigir torna-se simples. A confecção e a mecanização permitem mudar a forma como se cozinha em casa. A refeição ganha lugar à alimentação. Procura-se recriar em contexto doméstico aquilo que é feito por equipas profissionais nas cozinhas dos espaços comuns, sejam o restaurante, seja o espaço de celebração/cerimónia. Há uma identidade pelo que se come. A fome ganha forma de estranheza. Ou de último reduto para os excluídos socialmente. A fome ganha e transforma-se, por último, em condição. Associa-se a pobreza à fome. Deixa de ser estado. Passa a ser condição. Passa a ser algo externo. À sociedade ou ao espaço (país, nação, local, rua). A fome como condição é o mais elevado grau de afastamento que o homem já atingiu face à noção instintiva e de sobrevivência que a fome tem. Morrer de
  • 18. fome parece impossível, porque é uma condição. É determinação (natural ou social). Mas é determinante. A estranheza deste conceito não parece ser natural. Porque não o é. Mas é a dimensão actual da fome. Condição. Ser condição. Uma condição que tapa a visão básica de combate para além da solidariedade que emerge da consciência de uns sobre esta dimensão da fome. A cozinha, enquanto espaço e enquanto processo chega ao fim do século XX como uma das maiores conquistas da humanidade. Por muito óbvia que possa parecer. Fruto desta evolução e da evolução da técnica que acompanhou todo o fim do Século XX, é também na cozinha que se representa a ideia de globalização. Seja pela deslocação de modelos de alimentação entre países, seja dos processos de confecção. Aquilo que se chamou de fusão não é mais do que essa mesma natural condicionante de um acesso global de todos a tudo e de tudo a todos. Os meios de comunicação e circulação permitiram essa realização de encontros e de aprendizagem. Os tempos desta contemporaneidade são espelho desta alteração de realidade. Não só os produtos chegam com mais facilidade e rapidez como aqueles que os confeccionam circulam nos espaços globais para aprender técnicas. Trocam-se pessoas, produtos, ideias e conhecimentos a uma velocidade e com uma dimensão nunca antes conseguidas. Isto faz com que a cozinha se transforme. Passa a ser identidade e encontro. Confluência. Esta ideia de uma cozinha “aprendida” e “misturada” pode parecer estranha mas é uma determinação antiga. Se aqui se falou, em contexto, nos mesteirais, a verdade é que a dimensão do número de pessoas a aprender e a cozinhar, assim como a multiplicidade das técnicas partilhadas representa a emergência de dois elementos fundamentais: a cozinha como saber (que se ensina e aprende – ou seja técnica) e a cozinha como profissão. A afirmação do perfil profissional do cozinheiro/chefe representa a afirmação da cozinha como trabalho qualificado. Diferenciado na forma mas como trabalho que é feito de técnicas que podem ser aprendidas e desenvolvidas. Esta afirmação surge com o direito do trabalho que emerge do fim do Século XX. Este direito ao trabalho e do trabalho, conquista recente do homem, funciona na mesma perspectiva e paralelamente com a afirmação do estado social. Aquele compromisso que o homem faz consigo mesmo, enquanto ser que integra um estado organizado de combate à fome enquanto condição. E é verdadeiramente poderosa esta dimensão social da cozinha e da alimentação como afirmação de valores sociais que são, de facto, conquistas da contemporaneidade e da humanidade. Resta ao ser humano, no Século XXI, a certeza de que não vive o fim da história que Francis Fukuyama proclamou. Resta ainda a certeza que a Ciência reservou espaço à cozinha para a descoberta molecular e de mutação das formas e texturas dos alimentos. E que a, acompanhar tudo isto, a tecnologia permitiu a evolução da forma como nos alimentamos para além do espaço físico da cozinha. O principio da incerteza vigou a sua lógica no tempo actual. Desde a incerteza do fim do dualismo espiritual e religioso que, afinal, parece ainda vingar num outro lado do mundo que os “ocidentais” tendem a esquecer, assim como, ao holismo profundo que as civilizações asiáticas determinam como mais real do que o conhecimento racional do Ocidente. Sem fim da história, ainda, a cozinha acompanhará o homem. Neste tempo de prosperidade, onde, como nunca tantos tiveram acesso a tanto, emerge uma necessidade maior. Pensar a fome. Ultrapassar a ideia de condição. Reformular o valor, esse valor, da fome. Porque esta sempre foi motor de mudança. E se a prosperidade é uma realidade, também o é, a dimensão avassaladora desta fome condicional. Talvez esta ideia da incerteza represente, para a actualidade, aquilo que representou o fogo para o primeiro homem. A verdade é que, «A incompreensão do presente nasce fatalmente da ignorância do passado.» (Marc Bloch). E olhar para o passado permite perceber que o futuro da cozinha passa sempre pela afirmação do seu lugar, no tempo, no espaço e modo.
  • 19. IV “Como a palavra comum, e mais do que ela, a escrita é um risco total. De uma maneira geral ninguém a lerá como o seu autor a concebeu. Ela será ocasião inevitável de desentendimento, desatenção, porventura irritação ou desprezo, mas igualmente de comunhão possível, de entusiasmo, sobretudo de veículo para o transporte do próprio sonho.” (Eduardo Lourenço; Tempo e Poesia). Escolhi uma imagem inicial para enquadrar este ensaio. Os comedores de batata. A razão é essa. Por mais que estas palavras possam descrever tudo aquilo, nenhuma delas o consegue fazer como aquela imagem e seguindo Eduardo Lourenço, termino este pequeno ensaio sobre a fome com a noção que escondi muitas partes da história. Escondi, muito do que fez da fome o que ela é hoje. E escondi, ainda mais, o que podia ter dito sobre a cozinha. Este não era um ensaio sobre a história da cozinha. A cozinha atravessa-se na histórica pela sua necessidade. E a fome pela sua urgência. Estão ligadas, uma à outra, de forma umbilical. E isso, não são palavras como estas que podem desligar ou, mesmo esquecendo muito, apagar de cada sabor que hoje provamos ou de cada realidade que constatamos em torno desta lógica de que comer é um modo, um estar e um ser. E tudo, movido pela fome. Seja ela condição, estado ou simplesmente, conceito para um ensaio. João Lima 2015 Bibliografia Geral APFELBAUM, M.; PERLEMUTER, L.; NICLOS, P.; FORAT, C.; e BERGON, M.,Dictionnaire pratique de la nutrition, Paris, Masson, 1981. ARISTÓTELES, Tratado da Política, Europa-América, 1977. BERTIN, Jacques; HÉMARDINQUER, Jean-Jacques; KEUL, Michael; e RANDLES, W.G.L, Atlas des cultures vivrières, Paris, Haia, Mouton, 1971. BIRKET-SMITH, K., The origin of maize cultivation, Copenhague, Munksgaard, 1943. BOIS, D., Les plantes alimentaires chez tous les peuples et à travers les âges, 2 vol., Paris, Lechevalier, 1927-1928. BOURDEAU, L., Histoire de l’Alimentation, Paris, 1894. BOURGAUX, A., Quatre siècles d’histoire du cacao et du chocolat, Bruxelles,Office international du cacao et du chocolat, 1935.
  • 20. BRAUDEL, Fernand, Civilização material e capitalismo, Lisboa, Cosmos, 1970. URKE, Peter, A revolução francesa da historiografia. A escola dos Annales. 1929-1989, São Paulo, Edunesp, 1991. CRAPLET, C. e J., Dictionnaire des aliments et de la nutrition, Paris, 1979. FERRÃO, José E. Mendes, A aventura das plantas e os descobrimentos portugueses, Lisboa, instituto de Investigação Científica Tropical/Comissão Nacional para as comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1992. FISCHLER, Claude, “A McDonaldização dos costumes” in FLANDRIN & MONTANARI,História da Alimentação, 1998. FLANDRIN, Jean-Louis; e MONTANARI, Massimo, História da Alimentação, tradução de Luciano Vieira Machado e Guilherme J. F. Teixeira, São Paulo, Estação Liberdade, 1998. EMERY, Louis, Traité des Aliments, ou l’on trouve la différence, et le choix, qu’on en doit faire; les bons, et les mauvais effets, qu’ils peuvent produire; leurs principes; les circonstances où ils conviennent, 3º éd., Paris, Chez Durand, 1755. LÉVI-STRAUSS, Claude, O Pensamento Selvagem, Papirus, 1989. MATOSSIAN, Mary Kilbourne, Poisons of the Past: Molds, epidemics and History,Yale University Press, 1989. MAURIZIO, Adam, Histoire de l’alimentation végétale depuis la préhistoire jusqu’à nos jours, Paris, Payot, 1932. ROTBERG, R.; e RAAB, T., Hunger and History. The impact of changing food production and comsumption patterns on society, Cambridge, Cambridge University Press, 1985. TRAGER, James, The Food chronology. A food lover’s compendium of events and anedotes, from prehistory to the present, New York, Henry Holt, 1995. WHITE, Lynn, “The vitality of the tenth century”, Annales ESC 16 n.3, 1961. WOORTMAN, Klaas, “A comida, a família e a construção do gênero feminino”,Revista de Ciências Sociais, 29 (1), 1986.