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SOBRE AUTORES E AUTORIDADES NA ANTROPOLOGIA
Josep Juan
Teoria III
Professor: Valter Sinder
1º semestre de 2015 - PPCIS-UERJ
RESUMO
Este ensaio teórico pretende fomentar a reflexão sobre a questão da autoria na escrita
etnográfica. A partir de algumas obras de diferentes autores chave nesta temática,
procuro pensar como estes especialistas consideram que os autores das etnografias
podem ou devem se colocar no texto e na relação com as pessoas com as quais
pesquisam. Analiso o interpretativismo geertziano; a questão da autoria em Foucault e
Barthes; algumas propostas de autores considerados pós-modernos, como Clifford,
Marcus ou Cushman; a questão da subalternidade e da (im)possibilidade de falar no
pos-colonialismo de Spivak; as relações entre subjetividade e cultura em Sherry
Ortner; e também algumas das críticas centradas nos autores pós-modernos, como as
das antropólogas brasileiras Teresa Caldeira ou Mariza Peirano. Organizo este ensaio
por autores, sem querer dar conta de todo o que o autor falou sobre o tema em
questão e sabendo que o pensamento por ser processual, muda continuamente.
Clifford Geertz
A proposta interpretativa de Geertz pode ser pensada como uma “virada para o texto”
onde se coloca em foco a possibilidade de refletir sobre a sociedade como se fosse
uma “construção textual” e a importância de escrever sobre a experiência etnográfica,
e textual, nos textos. No início da sua trajetória Geertz era parsoniano. Na “Teoria da
ação social” Talcott Parsons adaptou Webber à sociologia norte-americana. E Geertz
deu continuidade a esta discussão, o seu pensamento não surgiu da nada. Mas,
posteriormente, bebeu mais das influências da hermenêutica do filósofo Dilthey. No
livro “a Interpretação das Culturas” (1989, p. 4), Clifford Geertz explica que o conceito
de cultura que ele defende
é essencialmente semiótico. Acreditando, como Max Weber, que o homem é um
animal amarrado a teias de significado que ele mesmo teceu, assumo a cultura como
sendo essas teias e a sua análise; portanto, não como uma ciência experimental em
busca de leis, mas como uma ciência interpretativa, à procura do significado (...) se
você quer compreender o que é a ciência, você deve olhar, em primeiro lugar, não
1
para as suas teorias ou as suas descobertas, e certamente não para o que seus
apologistas dizem sobre ela; você deve ver o que os praticantes da ciência fazem.
Geertz defende que não são as técnicas ou os métodos o que define a etnografia e a
antropologia. O que define o empreendimento é o tipo de esforço intelectual que ele
representa: “um risco elaborado para uma ‘descrição densa’, tomando emprestada
uma noção de Gilbert Ryle” (1989, p. 4). Para Geertz a etnografia “é uma descrição
densa. O que o etnógrafo enfrenta, de fato é uma multiplicidade de estruturas
conceituais complexas, muitas delas sobrepostas ou amarradas umas às outras, que
são simultaneamente estranhas, irregulares e inexplícitas, e que ele tem que, de
alguma forma, primeiro apreender e depois apresentar” (1989, p. 7).
E isso é verdade em todos os níveis de atividade do seu trabalho de campo, mesmo o
mais rotineiro: entrevistar informantes, observar rituais, deduzir os termos de
parentesco, traçar as linhas de propriedade, fazer o censo doméstico... escrever seu
diário. Fazer a etnografia é como tentar ler (no sentido de “construir uma leitura de”)
um manuscrito estranho, desbotado, cheio de elipses, incoerências, emendas suspeitas
e comentários tendenciosos, escrito não com os sinais convencionais do som, mas com
exemplos transitórios de comportamento modelado (1989, p. 7).
Dito de outra forma, o que se deve perguntar a respeito de uma piscadela burlesca ou
de uma incursão fracassada aos carneiros não é qual o seu status ontológico.
Representa o mesmo que pedras de um lado e sonhos do outro –são coisas deste
mundo. O que devemos indagar é qual é a sua importância: o que está sendo
transmitido com a sua ocorrência através da sua agência, seja ela um ridículo ou um
desafio, uma ironia ou uma zanga, um deboche ou um orgulho (1989, p. 8).
Se a etnografia é uma descrição densa e os etnógrafos são aqueles que fazem
descrição, então a questão determinante para qualquer exemplo dado, seja um diário
de campo sarcástico ou uma monografia alentada , do tipo Malinowski, é se ela separa
as piscadelas dos tiques nervosos e as piscadelas verdadeiras das imitadas (1989, p.
12).
Nas palavras de Geertz, a análise cultural é (ou deveria ser) uma adivinhação dos
significados, uma avaliação das conjeturas, um traçar de conclusões explanatórias a
partir das melhores conjeturas e não a descoberta do Continente dos Significados e o
mapeamento de sua paisagem incorpórea (1989, p. 14). Aqui vemos como desconfia,
por exemplo, das teorias estruturalistas. Geertz também reflete sobre como a maior
parte da etnografia é encontrada em livros e artigos, em vez de discos, filmes,
exposições de museus, etc.
2
Mesmo neles há, certamente, fotografias, desenhos, diagramas, tabelas e assim por
diante. Tem feito falta à antropologia uma autoconsciência sobre modos de
representação (para não falar de experimentos com eles) (1989, p. 14).
Isto também me parece um interessante convite de Geertz para não naturalizar as
formas de criação e apresentação antropológica. Todavia, Geertz coloca que, na
medida em que reforçou o impulso do antropólogo em engajar-se com seus
informantes como pessoas ao invés de objetos, a noção de “observação participante”
foi uma noção valiosa.
[Mas] Todavia, ela se transforma na fonte mais poderosa de má fé quando leva o
antropólogo a bloquear da sua visão a natureza muito especial, culturalmente
enquadrada, do seu próprio papel e imaginar-se algo mais do que um interessado (nos
dois sentidos da palavra) temporário (1989, p. 14).
Por outra parte, o antropólogo aborda caracteristicamente tais interpretações mais
amplas e análises mais abstratas a partir de um conhecimento muito extensivo de
assuntos extremamente pequenos (1989, p. 15).
Fatos pequenos podem relacionar-se a grandes temas, as piscadelas à epistemologia,
ou incursões aos carneiros à revolução, por que eles são levados a isso. (...) Qualquer
generalidade que [a antropologia] consegue alcançar surge da delicadeza de suas
distinções, não da amplidão de suas abstrações (Geertz, 1989, p. 17).
Utilizando por vezes a ironia, Geertz coloca que a análise cultural é intrinsecamente
incompleta e, o que é pior, quanto mais profunda, menos completa. É uma ciência
estranha, cujas afirmativas mais marcantes são as que têm a base mais trêmula, na
qual chegar a qualquer lugar com um assunto enfocado é intensificar a suspeita, a sua
própria e a dos outros, de que você não o está encarando de maneira correta. Mas
essa é que é a vida do etnógrafo, “além de perseguir pessoas sutis com questões
obtusas” (1989, p. 20):
Há uma série de caminhos para fugir a isso –transformar a cultura em folclore e
colecioná-lo, transformá-la em traços e contá-los, transformá-la em instituições e
classificá-las, transformá-la em estruturas e brincar com elas. Todavia, isso são fugas. O
fato é que comprometer-se com um conceito semiótico de cultura e uma abordagem
interpretativa de seu estudo é comprometer-se com uma visão da afirmativa
etnográfica como “essencialmente contestável”, tomando emprestada a hoje famosa
expressão de W.B. Gallie. A Antropologia, ou pelo menos a antropologia interpretativa,
é uma ciência cujo progresso é marcado menos por uma perfeição de consenso do que
por um refinamento de debate. O que leva a melhor é a precisão com que nos
irritamos uns aos outros (Geertz, 1989, p. 20).
3
No livro “O saber local: novos ensaios em antropologia interpretativa” (1999), Clifford
Geertz lembra ironicamente um episódio muito marcante para o pensamento
antropológico:
Há alguns anos, um pequeno escândalo irrompeu na antropologia: uma de suas figuras
ancestrais falou a verdade em público. Como cabe a um ancestral, ele o fez
postumamente, por decisão de sua viúva e não dele próprio. Este deslize foi o bastante
para que alguns conservadores em nosso meio elevassem a voz e clamassem que a
viúva, também antropóloga, havia traído o clã, divulgado seus segredos, profanado um
ídolo e decepcionado seus companheiros. Um caso típico de “o que é que as crianças
vão pensar?” e isto sem indagar-se o que os leigos iriam pensar... (1999, p. 85).
O 1967, a publicação do diário de Malinowski gerou inflexões para repensar o trabalho
de campo, o que é fazer antropologia, as relações estabelecidas com as outras pessoas
e o que significa a presença do antropólogo no campo e na escrita. Geertz explica que
a publicação de “A Diary in the Strict Sense of the Term”, fez com que os relatos
oficiais sobre os métodos de trabalho dos antropólogos parecessem bastante
inverossímeis. O mito do pesquisador de campo semicamaleão, que se adapta
perfeitamente ao ambiente exótico que o rodeia, um milagre ambulante em empatia,
tato, paciência e cosmopolitismo, foi, de um golpe, demolido por aquele que tinha
sido, talvez, um dos maiores responsáveis pela sua criação (1999, p. 85). Porém, Geertz
considera que o debate ignorou a questão mais importante que o livro continha:
Isto é, se não é graças a algum tipo de sensibilidade extraordinária, a uma capacidade
quase sobrenatural de pensar, sentir e perceber o mundo como um nativo (uma
palavra que, devo logo dizer, usei aqui “no sentido estrito do termo”) como é possível
que antropólogos cheguem a conhecer a maneira como um nativo pensa, sente e
percebe o mundo? (1999, p. 86)
Em vez de tentar encaixar a experiência das outras culturas dentro da moldura desta
nossa concepção, que é o que a tão elogiada “empatia” acaba fazendo, para entender
as concepções alheias é necessário que deixemos de lado nossa concepção, e
busquemos ver as experiências de outros com relação a sua própria concepção do “eu”
(1999, p. 90-91). Geertz também reflete sobre como, saltando continuamente de uma
visão da totalidade através das várias partes que a compõem, para uma visão das
partes através da totalidade que é a causa de sua existência, e viceversa, com uma
forma de moção intelectual perpétua, buscamos fazer com que uma seja explicação
4
para a outra. E lembra que tudo isso é, claramente, a trajetória, já bastante conhecida,
do método que Dilthey chamou de círculo hermenêutico (1999, p. 105).
No livro “Obras e vidas. O antropólogo como autor” (2005) Clifford Geertz explica que,
embora um material biográfico e histórico entre inevitavelmente em sua discussão, em
numerosos pontos, este estudo seu, em si mesmo, não pretende ser biográfico nem
histórico, interessando-se primordialmente por “como escrevem os antropólogos” –ou
seja, ele se orienta para o texto. Colocando em foco o momento da escrita, Geertz
destaca que, impossibilitados de recuperar os dados imediatos do trabalho de campo
para uma re-inspeção empírica, damos ouvidos a algumas vozes e ignoramos outras.
Alguns etnógrafos são mais eficientes do que outros em criar a impressão, em sua
prosa, de que tiveram um contato estreito com vidas distantes.
Ao descobrirmos de que modo, numa determinada monografia ou artigo, essa
impressão é criada, descobriremos, ao mesmo tempo, por quais critérios julgá-los.
Assim como a crítica da ficção e da poesia brota melhor do compromisso imaginativo
com a própria ficção e com a poesia do que de idéias importadas sobre como estas
devem ser, a crítica dos escritos antropológicos (que, num sentido estrito, não são uma
coisa nem outra, e, num sentido lato, são ambas as coisas) deve brotar de um
engajamento semelhante com eles, e não de preconcepções sobre como deve ser a
antropologia para se qualificar como ciência (2005, p. 17-18).
A dificuldade está em que a estranheza de construir textos ostensivamente científicos
a partir de experiências em grande parte biográficas, que é o que fazem os etnógrafos,
afinal, fica inteiramente obscurecida. A questão da assinatura, tal como o etnógrafo a
confronta, ou tal como ela confronta o etnógrafo, exige o olimpianismo do físico não
autoral e a consciência soberana do romancista hiperautoral, sem de fato permitir
nenhum dos dois. O primeiro suscita acusações de insensibilidade, de tratar as pessoas
como objetos, de ouvir a letra, mas não a música, e, é claro, de etnocentrismo. A
segunda, acusações de impressionismo, de tratar as pessoas como fantoches, de ouvir
uma música que não existe e, é claro, de etnocentrismo. Não admira que a maioria dos
etnógrafos tenda a oscilar, insegura, entre as duas coisas, ora em livros diferentes, ora,
com mais freqüência, no mesmo livro (2005, p. 22).
Por tanto, encontramos em Geertz a questão que poderíamos definir como “de que o
autor é autor?” ou “o problema do discurso”, como ele o chamou. Ele explica que esta
5
questão também é proposta, de maneira mais geral, no ensaio foucaultiano “Que é um
autor?” e num texto de Roland Barthes (“mais sutil, a meu ver”, em palavras de
Geertz), “Autores e escritores”, publicado cerca de dez anos antes:
A maneira como Barthes formula tudo isso consiste em distinguir o “autor” do
“escritor” (e, noutro ponto, a “obra”, que é aquilo que o “autor” produz, e o “texto”,
que é o que produz o “escritor” (Barthes, 1979, p. 73-82 apud Geertz, 2005, p. 32)1
). O
autor cumpre uma função, diz Barthes; o escritor exerce uma atividade. O autor
participa do papel do sacerdote (Barthes o compara a um feiticeiro maussiano), o
escritor, do papel exercido pelo escriba. Para um autor, “escrever” é um verbo
intransitivo –ele é um homem que absorve radicalmente o porquê do mundo num
como escrever”. Para o escritor, “escrever” é um verbo transitivo – ele escreve algo.
“Ele estabelece um objetivo (demonstrar, explicar, instruir), do qual a linguagem é
meramente um meio; para ele, a linguagem sustenta uma práxis, mas não se constitui
numa práxis. (...) É devolvida à natureza de instrumento de comunicação, veículo do
‘pensar’” (Barthes, 1982, p. 187, 189 apud Geertz, 2005, p. 33)2
.
Por último, também não se trata de um choque entre tipos puros e absolutos. Aliás,
Barthes encerra “Autores e escritores” afirmando que a figura literária característica
de nossa época é um tipo bastardo, o “autor-escritor”: o intelectual profissional,
apanhado entre o desejo de criar uma estrutura verbal fascinante, de entrar no que
Barthes chama de “teatro de linguagem”, e o desejo de transmitir fatos e idéias, de
comercializar a informação, e que acaba se entregando, intermitentemente, a um ou a
outro desses anseios. Seja como for, no caso do discurso propriamente literário ou no
do discurso propriamente científico, que ainda parecem inclinar-se, de maneira
bastante clara, para a linguagem como práxis ou para a linguagem como meio, o
discurso antropológico decerto continua empacado como uma mula entre as duas
alternativas (Geertz, 2005, p. 34).
No livro “Obras e vidas” (2005), Clifford Geertz toma como “exemplos ilustrativos”
quatro figuras muito diferentes: Claude Lévi-Strauss, Edward Evan Evans-Pritchard,
Bronislaw Malinowski e Ruth Benedict-, e os considera “autores” no sentido
“intransitivo” de “fundadores de discursividade”;
São estudiosos que assinaram seus textos com certa determinação e construíram
teatros de linguagem em que um grande número de outros, de maneira mais ou
menos convincente, apresentaram-se, apresentam-se e, sem dúvida, ao menos por
algum tempo, continuarão a se apresentar (2005, p. 35).
1
Aqui Geertz cita: R. Barthes. From work to text. IN: J. V. Harari, Textual Strategies, Ithaca, N.Y.
2
Aqui Geertz cita: Barthes. Authors and writers.
6
Parece-me interessante a idéia de “teatros de linguagem”. Geertz acaba o primeiro
capítulo de “Obras e vidas” dizendo que “estar lá” em termos autorais, enfim, de
maneira palpável na página, é um truque tão difícil de realizar quanto “estar lá” em
pessoa, o que afinal exige, no mínimo, pouco mais do que uma reserva de passagens e
a permissão para desembarcar, a disposição de suportar uma certa dose de solidão,
invasão de privacidade e desconforto físico, uma certa serenidade diante de
excrescências corporais estranhas e febres inexplicáveis, a capacidade de permanecer
imóvel para receber insultos artísticos, e o tipo de paciência necessária para sustentar
uma busca interminável de agulhas invisíveis em palheiros invisíveis (Geertz, 2005,
p.38).
A vantagem de desviarmos para o fascínio da escrita ao menos parte da atenção que
temos dedicado ao fascínio do trabalho de campo, que nos manteve aprisionados por
tanto tempo, está não apenas em que essa dificuldade será entendida com mais
clareza, mas também em que aprenderemos a ler com um olhar mais perspicaz. Cento
e quinze anos de prosa asseverativa e inocência literária (se datarmos nossa profissão
a partir de Tylor, como se convenciona fazer) são mais do que suficientes (Geertz,
2005, p. 39).
Michel Foucault
Partimos da base de que a autoridade para falar da realidade é construída
processualmente. Também resulta interessante tomar consciência de que autoridade e
autoritarismo encontram a raiz no “autor”. Foucault coloca a questão da autoria numa
perspectiva histórica:
Um quiasma produziu-se no século XVII, ou no XVIII; começou-se a aceitar os discursos
científicos por eles mesmos, no anonimato de uma verdade estabelecida ou sempre
demonstrável novamente; e sua vinculação a um conjunto sistemático que lhes dá
garantia, e de forma alguma a referência ao indivíduo que os produziu. A função autor
se apaga (...) Mas os discursos "literários" não podem mais ser aceitos senão quando
providos da função autor: a qualquer texto de poesia ou de ficção se perguntara de
onde ele vêm, quem o escreveu, em que data, em que circunstancias ou a partir de
que projeto (...) O anonimato literário não é suportável para nós; só o aceitamos na
qualidade de enigma. A função-autor hoje em dia atua fortemente nas obras literárias
(Foucault, 2006, p.4).
No prefácio de “As palavras e as coisas” (2000) Foucault cita um conto de Jorge Luis
Borges intitulado “Enciclopédia Chinesa”. A moral do assunto seria que as coisas não
são classificadas naturalmente mas porque são arbitradas. Classificamos o mundo e,
7
por vezes, naturalizamos as nossas classificações. Foucault chama a atenção para as
nossas limitações na hora de entender outras formas de imaginar ou classificar o
mundo ou a nossa própria maneira de classificá-lo.
Este livro nasceu de um texto de Borges. Do riso que, com sua leitura,
perturba todas as familiaridades do pensamento – do nosso: daquele que tem nossa
idade e nossa geografia-, abalando todas as superfícies ordenadas e todos os planos
que tornam sensata para nós a profusão dos seres, fazendo vacilar e inquietando, por
muito tempo, nossa prática milenar do Mesmo e do Outro. Esse texto cita “uma certa
enciclopédia chinesa” onde será escrito que “os animais se dividem em: a)
pertencentes ao imperador, b) embalsamados, c) domesticados, d) leitões, e) sereias,
f) fabulosos, g) cães em liberdade, h) incluídos na presente classificação, i) que
se agitam como loucos, j) inumeráveis, k) desenhados com um pincel muito fino de
pelo de camelo, l) et cetera, m) que acabam de quebrar a bilha, n) que de longe
parecem moscas”. No deslumbramento dessa taxonomia, o que de súbito atingimos, o
que, graças ao apólogo, não é indicado como o encanto exótico de um outro
pensamento, é o limite do nosso: a impossibilidade patente de pensar isso (Foucault,
2000, p. 6).
Roland Barthes
Barthes também faz o exercício crítico de colocar o autor numa perspectiva histórica:
El autor es un personaje moderno, producido indudablemente por nuestra sociedad,
en la medida en que ésta, al salir de la Edad Media y gracias al empirismo inglés, el
racionalismo francés y la fe personal de la Reforma, descubre el prestigio del individuo
o, dicho de manera más noble, de la persona humana. Es lógico, por lo tanto, que en
materia de literatura sea el positivismo, resumen y resultado de la ideología capitalista,
el que haya concedido la máxima importancia a la persona del autor. Aún impera el
autor en los manuales de historia literaria, las biografías de escritores, las entrevistas
de revista, y hasta en la misma conciencia de los literatos, que tienen buen cuidado de
reunir su persona con su obra gracias a su diario íntimo; la imagen de la literatura que
es posible encontrar en la cultura común tiene su centro, tiránicamente, en el autor, su
persona, su historia, sus gustos, sus pasiones; la crítica aún consiste, la mayor parte de
las veces, en decir que la obra de Baudelaire es el fracaso de Baudelaire como hombre;
la de Van Gogh, su locura; la de Tchaikovski, su vicio: la explicación de la obra se busca
siempre en el que la ha producido, como si, a través de la alegoría más o menos
transparente de la acción, fuera, en definitiva, siempre, la voz de una sola y misma
persona, el autor, la que estaría entregando sus “confidencias” (Barthes, 2006, s/p).
No artigo intitulado “La muerte del autor” (2006) Barthes levanta a proposta da morte
do autor para reconhecer a agência dos leitores na hora de criar os sentidos do texto.
A importância de não pensar o texto como uma coisa acabada mas como uma coisa
viva, aberta3
:
3
Sobre estas questões ver o texto “A ilusão biográfica” onde Pierre Bourdieu reflete sobre diferentes
processos de produção de verdade: histórica, jurídica, mítica, biográfica, científica, acadêmica...
Bourdieu destaca como o batismo seria um momento de produção de identidade e de unidade de um
ser que se encontra em transformação continua. E levanta o exemplo do metrô para dizer que não da
para entender a vida de uma pessoa sem levar em consideração a rede de relações que estabelece com
8
(…) el lector es el espacio mismo en que se inscriben, sin que se pierda ni una, todas las
citas que constituyen una escritura; la unidad del texto no está en su origen, sino en su
destino, pero este destino ya no puede seguir siendo personal: el lector es un hombre
sin historia, sin biografía, sin psicología; él es tan sólo ese alguien que mantiene
reunidas en un mismo campo todas las huellas que constituyen el escrito. Y ésta es la
razón por la cual nos resulta risible oír cómo se condena la nueva escritura en nombre
de un humanismo que se erige, hipócritamente, en campeón de los derechos del
lector. La crítica clásica no se ha ocupado nunca del lector; para ella no hay en la
literatura otro hombre que el que la escribe. Hoy en día estamos empezando a no caer
en la trampa de esa especie de antífrasis gracias a la que la buena sociedad recrimina
soberbiamente en favor de lo que precisamente ella misma está apartando, ignorando,
sofocando o destruyendo; sabemos que para devolverle su porvenir a la escritura hay
que darle la vuelta al mito: el nacimiento del lector se paga con la muerte del Autor
(Barthes, 2006, s/p).
James Clifford
Na introdução de “Retóricas de la antropologia” (1991)4
intitulada “Verdades
parciales”, o autor pós-moderno James Clifford segue a “virada para o texto” proposta
por Geertz e levanta a importância do momento da escrita, desmitificando também o
trabalho de campo:
Estamos hartos de ver las fotos de Margaret Mead, exuberante ella mientras juega con
niños al coro de la patata o entrevistando a los habitantes de Bali. Es lo cierto, que el
método más querido por el etnógrafo es aquel que se lleva a cabo en una pequeña
habitación repleta de libros. Pero todavía, en cualquier parte, embebecido en su
trabajo de campo acerca de los pigmeos, por ejemplo –atravesando la espesura de la
selva, los senderos de la jungla, sentado en medio de una danza nocturna, durmiendo
entre la multitud- Colin Turnbull asegura que su puesto se halla frente a la máquina de
escribir mientras se acaricia el lóbulo de la oreja (…) Se asume, en este libro, que lo
poético y lo político son cosas inseparables; y que lo científico está implícito en ello, no
en sus márgenes (1991, p. 26-27).
Os ensaios reunidos por Clifford e Marcus (1991) pretendem minar o autoritarismo
interpretativo e, assim, fazer mais transparente o substrato cultural e político que se
contempla.
(…) el problema no radica en la interpretación de unos textos literarios, en su sentido
más tradicional. La mayoría de estos ensayos, apoyados en un empirismo constatable,
se refieren a textos elaborados en contextos de poder, de resistencia, de tensiones
institucionales, y espoleado todo ello por una clara intención renovadora (…) La
etnografía, pues, cultiva y desarrolla la máxima de Virginia Wolf que dice así: “Jamás
outras pessoas. Fica claro, assim, como a nossa identidade ou a “história de vida” também é uma
construção que depende tanto de quem a conta quanto de quem a escreve.
4
Título original do livro de James Clifford e George Marcus: “Writing Culture: The Poetics and Politics of
Ethnography” (1986).
9
dejemos de pensar. ¿Qué civilización es ésta en la que nos hallamos a nosotros
mismos?” (1936, p. 62-63 apud Clifford, 1991, p. 27). (…) Y es que la etnografía, en
última instancia, es una actividad situada en el ojo del huracán de los sistemas de
poder que definen el significado. Sitúa sus planteamientos en la frontera, en los límites
de las civilizaciones, de las culturas, de las clases, de las razas y de los sexos.
Clifford também destaca que nos ensaios recopilados se fundem as fronteiras do
artístico e do científico: “Tal es el mayor atractivo del libro” (1991, p. 29).
Michel Foucault (1973), Michel de Certeau (1983) y Terry Eagleton (1983), arguyen que
la literatura, en sí misma, es una categoría transcendental de la investigación científica.
Desde el siglo XVIII, convienen los autores citados, la ciencia occidental ha excluido
ciertos aspectos significativos y definitorios: la retórica (en nombre de la explicación
clara, transparente); la ficción (en nombre del valor de los hechos en sí); y la
subjetividad (en nombre de la objetividad). Tales cualidades, relegadas por la ciencia,
pasaron a engrosar la categoría, acaso infamante, de lo literario (Clifford, 1991, p. 31).
Clifford conclui fazendo um convite poético:
Reconozcamos, mejor, las dimensiones poéticas de la etnografía, para lo cual no hay
sino que desprejuiciarse. Lo poético no es cosa circunscrita a una visión romántica,
modernista o subjetiva; también puede ser lo histórico, lo preciso, lo objetivo… Y,
naturalmente, lo mismo acontece con eso que llamamos prosa. La etnografía debe ser
hiperescritura, actividad textual: trasvase continuo de géneros y de disciplinas. No
sugieren estos ensayos que la etnografía sea sólo literatura. Lo demuestran a través de
su escritura (Clifford, 1991, p. 60).
Na hora de construir uma etnografia Geertz defende a necessidade de explicitar no
texto a forma como o autor se inseriu no campo, como foram construídas as relações
entre as pessoas implicadas no processo da pesquisa... Porém, James Clifford criticou
que no ensaio sobre “A briga de galos balinesa”, Geertz começa explicando como ele e
a sua companheira se inseriram na aldeia balinesa, mas a partir de um certo ponto o
autor some do texto, desaparece, e então parece que a briga de galos explica-se
sozinha, como aquilo que ela é, mais do que sendo uma interpretação geertziana.
Pela sua parte, Clifford sustenta a impossibilidade de tirar a autoridade do autor. No
capítulo “Sobre a autoridade etnográfica”5
, reflete sobre como Malinowski apresenta
os seus textos como se fossem um retrato neutro, imparcial. Tal qual é “a realidade”.
Mas, o nativo na foto da capa da etnografia sobre “os trobriandeses” olha para o
antropólogo, para o autor que se esconde e reduz os seus interlocutores a categorias:
5
In: A experiência etnográfica. Antropologia e Literatura no Século XX. Rio de Janeiro: Editora UFRJ,
2011.
10
“os trobriandeses”. Malinowski os totaliza e dá uma coerência fechada a algo que é
dinâmico, processual, mais complexo. Por outra parte, podemos nos perguntar sobre a
inserção da antropologia pós-moderna no Brasil. E vemos que, por exemplo, o livro
“Writing Culture” (1986) só está sendo traduzido agora no país sul-americano, 30 anos
depois da sua publicação nos Estados Unidos. Porém, no Brasil, a antropologia pós-
moderna conta com apoiadores e detratores, como qualquer corrente de pensamento.
George Marcus e Dick Cushman
No artigo intitulado “Las etnografias como textos” (1982)6
, mesmo considerando a
etnografia como texto narrativo ou literário, Marcus e Cushman não estão dizendo que
a etnografia é ficção ou literatura mas que é uma criação que pode ser analisada.
La característica principal compartida por las etnografías experimentales es que
integran, en sus interpretaciones, una preocupación epistemológica explícita por la
forma en que se han construido tales interpretaciones y en que se las representa
textualmente como discurso objetivo sobre los sujetos entre los cuales se ha
conducido la investigación (…) el propósito de explorar cuestiones epistemológicas
como una parte vital e integral del análisis cultural distingue a estos textos y hace a sus
autores, tanto como a sus lectores, cada vez más conscientes de sus estructuras
narrativas y de su retórica (1982, p. 172).
Na perspectiva de Marcus e Cushman, nesta situação emergente,
los etnógrafos leen ávidamente los nuevos trabajos en busca de modelos,
interesándose tanto –si es que no más- por los estilos de construcción de textos como
por los análisis culturales, los cuales son, de todas maneras, aspectos difíciles de
separar (1982, p. 173).
Também explicam que definimos uma etnografia simplesmente como um relatório que
resulta do fato de ter realizado trabalho de campo, uma atividade relativamente
indisciplinada o folclore da qual conferiu identidade a uma disciplina acadêmica. Neste
sentido, eles proclamam que devemos nos ocupar da representação do trabalho de
campo em textos e ser capazes de identificar, por exemplo, a construção da
autoridade experiencial:
Lo que otorga autoridad al etnógrafo y un sentido penetrante de realidad concreta al
texto, es la afirmación del escritor de que él está representando un mundo cómo sólo
puede hacerlo alguien que lo conoce de primera mano; de esta forma se establece un
6
MARCUS, George; CUSHMAN, Dick. Las etnografías como textos. Annual Review of Anthropology, vol.
11, 1982, pag. 25-69.
11
nexo íntimo entre la escritura etnográfica y el trabajo de campo (Marcus e Cushman
1982, p. 176).
Sobre as possibilidades nas estruturas narrativas, Marcus e Cushman colocam que
En los experimentos recientes con la escritura etnográfica se han desarrollado por lo
menos dos estructuras narrativas alternativas. Una consiste en convertir la naturaleza
temporal de la experiencia del trabajo de campo en un marco de referencia espacial
para el texto (Briggs, 1970; Castaneda, 1968). La otra, en plantear un problema o
paradoja cultural en el primer capítulo y, a través de cierto número de capítulos
dedicados al examen del material relevante, llegar a una solución en las conclusiones
(1982, p. 177-178).
Os autores colocam que a experimentação com o ponto de vista tem sido, desde muito
tempo atrás, um dos elementos que distingue o modo de escrita da ficção e da não-
ficção.
Los etnógrafos tempranos fueron altamente sensibles a la existencia de un predecesor
inmediato y semejante contemporáneo de la etnografía profesional: el relato de viajes.
Una de las diferencias primordiales entre el relato de viajes y la etnografía realista es la
marcada ausencia, en esta última, del narrador como una presencia en primera
persona en el texto, y el predominio en su lugar de un narrador científico (invisible u
omnisciente) que sólo se manifiesta como un observador desapasionado, semejante a
una cámara; la tercera persona, colectiva y plena de autoridad (“el X hizo esto”)
reemplaza a la primera persona, más falible (“yo vi que el X hacía esto”) (Marcus e
Cushman, 1982, p. 178).
Os relatos contemporâneos que questionam com mais força a possibilidade de
representar de um modo realista e não ficcional a subjetividade do outro, são aqueles
que se encontram experimentando nos limites ou para além das fronteiras do gênero
realista (Marcus e Cushman, 1982, p. 181). Entre as formas de construir a autoridade
etnográfica também temos o uso da língua nativa:
Dado que trabajar en la lengua nativa es uno de los pilares que sustentan el trabajo de
campo como una base preferencial para discutir el punto de vista nativo, la evidencia
de la competencia lingüística del etnógrafo –aunque sea indirecta- es una de las
representaciones claves y más sensitivas que se puede lograr en un texto realista
(Marcus e Cushman, 1982, p. 182).
Marcus e Cushman levantam que a autoridade aprecia-se melhor se discutimos três
trabalhos construtivos que se confrontam na escritura etnográfica contemporânea:
Establecer una presencia narrativa, definir una organización textual y preencodificar la
presentación de los datos. Colectivamente, dichos trabajos modifican las convenciones
realistas cuestionando las hazañas epistemológicas que se exigen a los trabajadores de
campo y que presuponen las expresiones textuales de esas convenciones (1982, p.
185) (…) Una vez que se establece un marco para la presencia narrativa (en conjunción
con las otras operaciones que luego se discutirán), la intrusión de testimonios
personales en distintos puntos de un texto juega un rol sumamente crucial y sutil como
12
soporte de determinadas ideas y argumentos desarrollados en el curso de la
descripción (Marcus e Cushman, 1982, p. 186).
A forma como se constrói o espaço organizacional de um texto estabelece a instancia
do narrador e refina a “montagem” dos dados para a interpretação.
Los argumentos (Schieffelin, 1976), los dramas sociales (Turner, 1957), los textos
(Geertz, 1973), las taxonomías (Spradley, 1970), los conceptos clave o las categorías en
uso (Rosaldo, 1980) y los sucesos rituales (Lewis, 1980), entre otros, han servido como
recursos de encuadre para seleccionar detalles para la presentación textual, operando
al mismo tiempo como marcos interpretativos. De este modo, el análisis interpretativo
se halla estrechamente implicado en –y es casi indistinguible de- la manera en que su
objeto se presenta como dato (1982, p. 189).
Por outra parte, o modo dialógico defendido por Marcus e Cushman (1982) pretende
mostrar que o coração da análise etnográfica deve estar na negociação de realidades
compartilhadas entre o etnógrafo e o sujeito. Tanto os etnógrafos como os seus
leitores devem possuir uma enorme tolerância frente à ambigüidade continua como
um aspecto da compreensão, no lugar de uma explicação satisfatória de um objeto
fixado de análise (p. 192).
Gayatri Chakravorty Spivak
Spivak nasceu em Calcuta, India, em 1942, onde realizou seus estudos de graduação
em inglês, na universidade de Calcuta. A seguir, mudou-se para os Estados Unidos para
fazer mestrado e doutorado em literatura comparada na Universidade Cornell. No
famosíssimo artigo intitulado “Pode o subalterno falar?” Spivak conclui que pode, só
que quando fala reproduz o discurso de quem primeiro falou por ele. No Prefácio da
versão brasileira do livro “Pode o subalterno falar?” (2010), intitulado “Apresentando
Spivak”, Sandra Regina Almeida explica que
Uma das preocupações centrais de Spivak é desafiar os discursos hegemônicos e
também nossas próprias crenças como leitores e produtores de saber e conhecimento.
Seu intento é principalmente pensar a teoria crítica como uma prática intervencionista,
engajada e contestadora. Como observam Donna Landry e Gerald MacLean, a
dificuldade da escrita de Spivak denota principalmente sua preocupação em produzir
um discurso crítico que procura influenciar e alterar a forma como lemos e
apreendemos o mundo contemporâneo (LANDRY, MacLEAN. The Spivak Reader.
Selected Works of Gayatri Chakravorty Spivak apud Almeida, 2010, p. 11).
Embora tenha se tornado conhecida primeiramente como a tradutora de Derrida e por
seu trabalho de desconstrução, hoje, Spivak transita por varias áreas de conhecimento.
13
Sua critica, de base marxista, pos-estruturalista e marcadamente desconstrucionista,
freqüentemente se alia a posturas teóricas que abordam o feminismo contemporâneo,
o pos-colonialismo e, mais recentemente, as teorias do multiculturalismo e da
globalização (Almeida, 2010, p. 10).
Para Spivak, que constantemente alude a sua adesão aos princípios do grupo, mas
mantém uma postura critica que ela julga necessária ao trabalho intelectual, o grupo
dos estudos subalternos precisaria refletir sobre uma questão premente nos estudos
pos-coloniais: o subalterno como tal pode, de fato, falar? Esse questionamento,
baseado em uma critica à ênfase de Gramsci na autonomia do sujeito subalterno como
uma premissa essencialista, remete à preocupação de Spivak em teorizar sobre um
sujeito subalterno que não pode ocupar uma categoria monolítica e indiferenciada,
pois esse sujeito é irredutivelmente heterogêneo (Almeida, 2010, p. 11). (...) Em um
texto posterior, que introduz a coletânea A companion to postcolonial studies, Spivak
argumenta que seu artigo “Pode o subalterno falar?” questiona principalmente o
“agenciamento” como uma forma de ação validada institucionalmente. Daí a
impossibilidade de se articular um discurso de resistência que esteja fora dos discursos
hegemônicos (SPIVAK. Foreword: Upon Reading the Companion to Postcolonial
Studies, p.xx). Spivak alega ainda que seu objetivo principal ao elaborar esse artigo era
contar a historia de Bhubaneswari Bhaduri, a mulher indiana cujo ato de rebeldia é
suprimido da historia da nação por jamais ter sido reconhecido e aceito, razão pela
qual ela não pode ser ouvida e seu nome é apagado da memória familiar e histórica
(Almeida, 2010, p. 15-16).
“Pode o subalterno falar?” continua sendo um texto de referencia não apenas para os
estudos pos-coloniais, mas também para os estudos culturais e para a critica feminista
ao indagar as formas de repressão dos sujeitos subalternos, interrogando a própria
cumplicidade dos intelectuais contemporâneos nesse processo (Almeida, 2010, p. 16).
Entre o patriarcado e o imperialismo, a constituição do sujeito e a formação do objeto,
a figura da mulher desaparece, não em um vazio imaculado, mas em um violento
arremesso que é a figuração deslocada da “mulher do Terceiro Mundo”, encurralada
entre a tradição e a modernização. Essas considerações poderiam revisar cada detalhe
de julgamentos que parecem validos para uma historia da sexualidade no Ocidente:
“Tal seria a característica da repressão, aquilo que a distingue de proibições mantidas
pela simples lei penal: a repressão funciona bem como uma sentença que desaparece,
mas também como uma determinação ao silencio, uma afirmação de inexistência; e,
conseqüentemente, declara que de tudo isso não há nada a ser dito, visto ou
conhecido” (FOUCAULT. The History of Sexuality, v. 1, p. 4 apud Spivak, 2010, p. 119).
Spivak explica que tentou usar e também ir alem da desconstrução de Derrida, que
não exalta como um discurso do feminismo, como tal. Entretanto, no contexto da
problemática que discute, considera sua morfologia muito mais apurada e útil do que
o envolvimento imediato e substantivo de Foucault e Deleuze com assuntos mais
“políticos” -como o convite de Deleuze para se “tornar mulher”-, o que pode tornar a
influencia deles mais perigosa para os acadêmicos dos Estados Unidos como radicais
14
entusiastas. Derrida marca a critica radical com o perigo de se apropriar do outro por
assimilação. Ele lê a catacrese na origem. Ele clama por uma reescrita do impulso
estrutural utópico como forma de “tornar delirante aquela voz interior que é a voz do
outro em nos”. Spivak reconhece que vê aqui uma utilidade de longo prazo em Jacques
Derrida que não consegue mais encontrar nos autores de A história da sexualidade e
Mil platôs (Spivak, 2010, p. 125).
O subalterno não pode falar. Não há valor algum atribuído à “mulher” como um item
respeitoso nas listas de prioridades globais. A representação não definhou. A mulher
intelectual como uma intelectual tem uma tarefa circunscrita que ela não deve rejeitar
com um floreio (Spivak, 2010, p. 126).
Sherry Ortner
No artigo “Geertz, subjetividad y conciencia posmoderna”7
, Sherry Ortner examina a
importância da noção de subjetividade para uma antropologia crítica. Mesmo
aceitando que não existe um vínculo necessário entre as questões relacionadas com a
subjetividade, as questões do poder e a subordinação, o interesse da autora se
concentra sobretudo em ampliar as linhas de trabalho que encontram uma íntima
vinculação entre a subjetividade e o poder. Daí a colocação sobre a importância de
investigar a subjetividade enquanto parte da “antropologia como crítica cultural”
(Marcus e Fischer, 1986 apud Ortner, s/d, p. 25).
Por subjetividad entiendo el conjunto de modos de percepción, afecto, pensamiento,
deseo, temor, etc., que animan a los sujetos actuantes. Pero también aludo a las
formaciones culturales y sociales que moldean, organizan y generan determinadas
“estructuras de sentimiento” (Williams, 1977). En sustancia, este trabajo se moverá
una y otra vez entre el examen de dichas formaciones culturales y los estados internos
de los sujetos actuantes (Ortner, s/d, p. 25).
Ortner levanta que Lévi-Strauss tomou a noção durkheimiana do fato social que existe
por cima do indivíduo e que quase tem vida própria, e procurou purificá-la por
completo da presença e a necessidade dos sujeitos.
Así, en la introducción de Lo crudo y lo cocido escribió lo siguiente: “Por lo tanto,
pretendo mostrar, no cómo piensan los hombres en los mitos, sino cómo actúan los
mitos en la mente de los hombres sin que estos sean conscientes del hecho (…) tal vez
sería mejor ir aún más lejos y, haciendo completo caso omiso del sujeto pensante,
proceder como si el proceso del pensamiento se produjera en los mitos, en su reflexión
sobre sí mismos y su interrelación” (Lévi-Strauss, 1969: 12 apud Ortner, p. 26). Aquí ya
no se trata exactamente de una cuestión de libertad y coacción. No sólo se plantea la
7
ORTNER, Sherry. Etnografias Contemporáneas 1 (1), p. 25-54.
15
idea de que la libertad del sujeto es ilusoria, sino también que el propio pensamiento
humano es simplemente un efecto del puro juego de la estructura o un medio para
llevarlo a cabo. Tal como Lévi-Strauss señaló en El pensamiento salvaje, la meta de las
ciencias humanas no “era constituir al hombre sino disolverlo”. Según Nik Farrell Fox
resume en una biografía reciente de Sartre: “el estructuralismo se embarcó en una
crítica concertada del humanismo y el antropocentrismo e invirtió las premisas
humanas al dar prioridad a la estructura sobre el sujeto, lo inconsciente sobre lo
consciente y los análisis objetivos de las leyes científicas sobre las epistemologías
basadas en el yo” (Fox, 2003, p. 24 apud Ortner, s/d, p. 27).
Quando escreveu o artigo sobre Geertz, a subjetividade e a consciência posmoderna,
Sherry Ortner destacou que a paisagem da teoria social e cultural do momento devia
ser pensada contra o telão de fundo desta historia estruturalista. Sobre Geertz, Ortner
colocou o seguinte:
Si bien el concepto geertziano de cultura tiene dos vertientes, resulta evidente que el
problema radica en su primer sentido, la acepción norteamericana, es decir, la idea de
que grupos específicos “tienen” culturas específicas –cada uno la suya- “compartidas”
por todos sus miembros. Las críticas dirigidas a esta concepción de la cultura adoptan
varias formas. Por un lado, el concepto es demasiado indiferenciado, demasiado
homogéneo: vista la existencia de diversas formas de diferencia y desigualdades
sociales, ¿cómo pueden todos los integrantes de una sociedad dada compartir la
misma visión del mundo y la misma orientación hacia éste? Por otro –y ésta ha sido la
crítica más contundente-, la homogeneidad y falta de diferenciación del concepto de
cultura lo vinculaba íntimamente al “esencialismo”, la idea de que “los nuers” o “los
balineses” tenían una esencia singular que los hacía ser como eran y que explicaba,
además, gran parte de lo que hacían y cómo lo hacían. Podemos advertir los peligros
de esta posición cuando observamos los tipos de representaciones de la “cultura
árabe” o la “cultura musulmana” que han empezado a circular por el mundo luego del
11 de septiembre. Geertz, desde luego, nunca adhirió a esta forma de pensar. Su
interés en la comprensión de la diferencia cultural consistía justamente en lo contrario:
era una manera de inaugurar “conversaciones” a través de líneas culturales. Pero el
concepto mismo resultó ser más políticamente escurridizo de lo que antes parecía
(Ortner, s/d, p. 31).
Ortner explica que Geertz defende o que ela chama de conceito norteamericano de
cultura em After the Fact (1995), sobretudo com o argumento de que a cultura é real e
os críticos enterram a cabeça na areia para negá-la. Ela coincide, mas levanta que a
crítica exige uma defesa mais eloqüente em termos da política implícita no uso do
conceito.
Así, si bien reconocemos los peligros muy reales de la “cultura” cuando se la pone en
juego para esencializar y demonizar a grupos enteros de personas, también debemos
admitir su valor político crítico, para entender tanto el funcionamiento del poder,
como los recursos de quienes carecen de él (Ortner, s/d, p. 31).
16
Ortner foi aluna de Geertz na Universidade de Chicago. Ela procura pensar o sujeito
situado no tempo e no espaço e critica que a idéia das ciências humanas não é explicar
o homem, mas esconde-lo. Ortner pretende “devolver” a agência aos sujeitos.
Enquanto no estruturalismo o mais determinante é o inconsciente, a estrutura, a
cultura, a linguagem, Ortner coloca em foco que o indivíduo tem agência e interatua
com o inconsciente, a estrutura... Nesse sentido, uma boa pergunta seria: o que vem
da agência do sujeito (ou do autor) e o que vem da estrutura?
A autora norteamericana coloca, finalmente, que a idéia mesma de agência pressupõe
uma subjetividade subjacente, pela qual um sujeito internaliza em parte uma série de
circunstancias nas quais se encontra e reflete sobre elas. Uma consciência plenamente
cultural sempre é ao mesmo tempo multifacetada e reflexiva, e a sua complexidade e
reflexão constituem o fundamento para questionar o mundo no qual nos encontramos
(Ortner, s/d, p. 47). Ortner coincide com Jameson e Sennett ao advertir que uma
leitura crítica do mundo contemporâneo implica compreender não só as suas novas
formações políticas, econômicas e sociais, mas também a sua nova cultura, uma
cultura que ao mesmo tempo ambos estão lendo desde o ponto de vista dos tipos de
subjetividade que tende a produzir.
He sostenido la importancia de una sólida antropología de la subjetividad, a la vez
como estado mental de actores reales inmersos en el mundo social y como formación
cultural que (al menos en parte) expresa, modela y constituye ese mismo estado. Al
prolongar la obra enormemente trascendente de Max Weber, Clifford Geertz ha
ocupado un lugar de relevancia en este aspecto debido a lo que denominé su teoría de
la cultura orientada hacia la subjetividad. Más allá de Geertz, me interesé
particularmente en comprender la subjetividad en sus relaciones con las (cambiantes)
formas de poder y, en especial –como en los ejemplos de Jameson y Sennett-, con las
sutiles formas de poder que saturan la vida cotidiana a través de las experiencias del
tiempo y el espacio, el trabajo y el juego. En síntesis, he procurado explorar la
posibilidad de una antropología de la subjetividad que constituya la base de la crítica
cultural y nos permita plantear agudos interrogantes sobre la configuración cultural de
las subjetividades en un mundo de relaciones de poder violentamente desiguales, así
como sobre las complejidades de las subjetividades personales dentro de dicho mundo
(Ortner, p. 47).
Teresa Caldeira
Caldeira, antropóloga brasileira, fez um curso com Paul Rabinow e também escreveu
sobre “A presença do autor e a pós-modernidade em antropologia” (1988).
17
Já vai longe o tempo em que o antropólogo, depois de passar algum tempo junto a um
grupo estranho, escrevia textos em que retratava culturas como um todo e em que
tranqüilamente afirmava como os Trobriandeses vivem, o que os Nuer pensam, ou no
que os Arapeshi acreditam. O antropólogo contemporâneo tende a rejeitar as
descrições holísticas, se interroga sobre os limites de sua capacidade de conhecer o
outro, procura expor no texto as suas dúvidas, e o caminho que o levou à
interpretação, sempre parcial (Caldeira, 1988, p. 133).
Caldeira levanta que a reflexão sobre os procedimentos antropológicos e a sua
incorporação aos textos não surgiu obviamente com os pós-modernos, mas está
presente em seus antecessores, os antropólogos hermeneutas representados por
Clifford Geertz.
A antropologia interpretativa, concebendo as culturas como textos, e a análise
antropológica como interpretação sempre provisória, seguramente contribuiu para o
estranhamento da autoridade etnográfica clássica. No entanto, segundo os críticos
pós-modernos (Clifford 1983, Marcus e Cushman 1982, por exemplo) seu rompimento
com o modelo anterior é parcial: ela questiona o processo da produção de
interpretações, mas não rompe com a separação radical entre observador e observado
e suas culturas (...). Os pós-modernos vão tentar romper tanto o caráter de separação
das culturas, quanto o de recriação da totalidade. Para eles a etnografia não deve ser
uma interpretação sobre, mas uma negociação com, um diálogo, a expressão das
trocas entre uma multiplicidade de vozes (Caldeira, 1988, p. 141).
Caldeira considera que quem melhor resumiu esta alternativa foi James Clifford:
Um modelo discursivo da prática etnográfica dá preeminência à intersubjetividade de
toda fala, e ao seu contexto performativo imediato. As palavras da escrita
etnográfica... não podem ser construídas monologicamente, como uma afirmação de
autoridade sobre, ou interpretação de uma realidade abstrata, textualizada. A
linguagem da etnografia é impregnada de outras subjetividades e de tonalidades
contextualmente específicas. Porque toda linguagem, na visão de Bakhtin, é “uma
concreta concepção heteróglota do mundo”. (Clifford, 1983, p. 133 apud Caldeira,
1988, p. 141).
A proposta é, então, escrever etnografias tendo como modelo o diálogo ou, melhor
ainda, a polifonia. Ter como modelo não significa necessariamente transcrever
diálogos. A idéia é representar muitas vozes, muitas perspectivas, produzir no texto
uma plurivocalidade, uma “heteroglossa”, e para isso todos os meios podem ser
tentados: citações de depoimentos, autoria coletiva, “dar voz ao povo” ou o que mais
se possa imaginar. O objetivo final, no que diz respeito ao autor, seria fazer com que
ele agora se diluísse no texto, minimizando em muito a sua presença, dando espaço
aos outros, que antes só apareciam através dele: uma “Autoria dispersa” (Marcus e
Cushman 1982, Clifford 1983 apud Caldeira 1988, p. 141-142). Nas perspectivas dos
18
autores pós-modernos, “cultura” é sempre algo relacional, uma inscrição de processos
comunicativos que existem, historicamente, entre sujeitos em relações de poder.
Finalmente chega-se ao lado oposto da etnografia clássica: o autor não se esconde
para afirmar sua autoridade científica, mas se mostra para dispersar sua autoridade;
não analisa, apenas sugere e provoca. Com isto, a concepção do leitor muda
radicalmente: ele não é mais aquele que se informa, mas deve ser agora participante
ativo na construção do sentido do texto, que apenas sugere conexões de sentido.
Antes de mais nada, é preciso que se diga que não são todos os críticos pós-modernos
que reiteram este modelo. Uma crítica a ele pode ser encontrada em Rabinow (1985 e
1986). Ela é importante porque permite nos trazer de volta à segunda dimensão da
crítica pós-moderna que mencionei anteriormente: a dimensão política e de crítica
cultural que deveria estar presente na antropologia (Caldeira, 1988, p. 142-143).
Na linha de Rabinow, Caldeira coloca que seguramente a etnografia é sempre escrita e
é textualmente que ela tem que enfrentar seus problemas políticos. No entanto, a
questão seria saber se é através da forma que ela pode enfrentar problemas políticos.
Mais ainda, se é através de uma forma que dispersa a autoria e, portanto, o peso da
visão do autor, que ela pode tanto conseguir formular uma crítica cultural, quanto
expressar uma posição política. Pode-se mesmo chegar a perguntar se a mudança na
concepção do autor e a produção de um novo tipo de conhecimento são apenas ou
basicamente um efeito textual, ou se a produção de um novo tipo de texto em
etnografia seria suficiente para produzir um novo enquadramento do autor e de seu
conhecimento (Caldeira, 1988, p. 143).
Para Rabinow, a discussão textual nunca vai se sustentar por si só. Ela deveria estar
aliada a uma análise como a que é feita por Bourdieu (1983), e que tenta localizar
autores em instituições, autores, textos e instituições num campo epistemológico e de
poder, com estratégias próprias e marcado historicamente. Deveria estar também
associada a uma análise inspirada em Foucault, que tentasse analisar as relações de
poder que definem quais enunciados podem ser aceitos como verdadeiros em cada
momento (...). O que estaria faltando, em suma, seria questionar a academia
americana nos anos 80 e seus jogos de poder. Até hoje, contudo, os pós-modernos
parecem não terem se atrevido a isso (Caldeira, 1988, p. 144).
Por outra parte, Caldeira explica que para Taussig a questão do diálogo do trabalho de
campo e da sua representação não se coloca. O diálogo que interessa é aquele
elaborado internamente pelo antropólogo e que marca o seu processo de
conhecimento e de crítica. Em Taussig o autor não vai para segundo plano, não
dispersa a sua autoria, não a compartilha com outros: o autor vai para o centro da
cena e domina a produção de enunciados (...). Interessado em fazer uma crítica
19
cultural, e uma crítica da sua sociedade, Taussig impõe ao autor a responsabilidade de
assumir uma posição política explícita, que deve deixar claro como o tema que está
tratando fala à sua própria sociedade (Caldeira, 1988, p. 152).
Caldeira opina que Geertz, como muitos dos críticos pós-modernos, foi incapaz de
enquadrar a antropologia numa perspectiva mais política, como foi incapaz de pensá-
la do ponto de vista da produção de uma crítica cultural.
Do meu ponto de vista, para se repensar, como quer Geertz, o aumento da
responsabilidade do antropólogo/autor no mundo contemporâneo é impossível
restringir as referências ao processo de produção de textos, como tende a fazer a
maioria dos pós-modernos. É necessário incorporar questões como as que Taussig
enfrenta, ou seja, não apenas pensar que tipo de representação é possível criar sobre
os outros e quais os nossos procedimentos ao construir interpretações, mas que tipo
de crítica e de política nós queremos fazer. E essas questões obviamente não se
decidem de um modo genérico. Não consigo imaginar o antropólogo crítico se
referindo a um paradigma textual apenas, seja ele dialógico, monológico, polifônico ou
qualquer outro, do mesmo modo que não é possível pensar em um modelo único de
relação com os objetos ou em um único modelo de crítica. O estilo do texto se define
em função do objeto e do tipo de análise que se pretende –e talvez seja da consciência
dessa flexibilidade mais do que de receitas textuais que nós precisemos. Segundo eu o
vejo, faz parte do novo papel do antropólogo/autor a busca do estilo que melhor se
adapte aos seus objetivos, a definição crítica desses objetivos, e a responsabilidade
pelas suas escolhas (Caldeira, 1988, p. 157).
Mariza Peirano
Peirano, antropóloga e professora na Universidade de Brasília, reagiu contra as teses
da escola pós-moderna norte-americana e escreveu um texto intitulado “A favor da
etnografia” (1995). Neste artigo, ela aborda o tema da relação entre pesquisa de
campo e etnografia.
A motivação para continuar a discutir esse problema surgiu da constatação de que não
só no Brasil e nos Estados Unidos se questiona a etnografia, mas diversos cientistas
sociais de países europeus e de outros continentes também o fazem. As razões são
diversas, mas o tema, constante: Paul Rabinow fala de um estágio “beyond
ethnography”; Martin Hammersley faz a pergunta “what’s wrong with ethnography?”;
a revista Contemporary Sociology dedica um volume ao assunto; e Nicholas Thomas
posiciona-se “against ethnography”. Optei por discutir o texto de Thomas
principalmente pela clara provocação do título. Mas não só por isso. Escolhi um
pretenso interlocutor pós-moderno porque, geograficamente remoto e socialmente
distante, ele está ideológica e intelectualmente próximo, uma vez que, no Brasil,
funcionamos como “uma câmara de decantação na periferia”8
e na medida em que
8
Peirano explica que a expressão é de Paulo Arantes; “cf. Arantes 1991. No relato da viagem que fez a
vários centros de pesquisa fora dos Estados Unidos, George Marcus salienta sua surpresa por não haver
constatado maior interesse nos questionamentos pós-modernos americanos (Marcus 1991). O silêncio
em relação ao Brasil, país que visitou no mesmo ano, parece confirmar a visão da “câmara de
20
temos como diretriz ideológica o fato de que a ciência é universal (Peirano, 1995, p.
30-31).
Peirano divide as suas observações em quatro partes: em primeiro lugar, apresenta
brevemente os argumentos de Nicholas Thomas; a seguir, tece alguns comentários
sobre dois clássicos da disciplina com o objetivo de mostrar que a “história teórica” da
antropologia apresentada por Nicholas Thomas está viciada por uma visão que opõe
um passado positivista (representado pelas idéias de Radcliffe-Brown) a uma
contemporaneidade interpretativa; em terceiro lugar, discute o impacto da pesquisa
de campo na trajetória intelectual de alguns antropólogos renomados, para então,
finalmente, procurar acatar o desafio de Michael Fischer, de que, mesmo nas
repetições históricas há algo novo que, com sorte, pode ser vislumbrado.
Considero que as alternativas oferecidas por Nicholas Thomas (assim como as de
outros autores da mesma vertente) se baseiam em um processo de reinvenção da
história teórica da antropologia que, além de repetir antigas fórmulas, revive
dicotomias que já deveriam estar ultrapassadas. Velhos debates como iluminismo vs.
romantismo, ciência vs. arte etc., renascem e na versão atual assumem a
forma/fórmula positivismo vs. interpretativismo, cânone vs. pós-etnografia. Penso
também que os textos sobre pesquisa de campo, curiosamente, reproduzem muitas
das preocupações da década de 30, quando, então como agora, se considerava um
perigo a saturação de textos etnográficos. A solução proposta em 30 residia na adoção
de uma abordagem comparativa como meio de atingir uma discussão teórica mais
relevante. É justamente esta a proposta que Nicholas Thomas faz, mas com a natural
ressalva de que não se trata “da velha comparação positivista” (Thomas 1991d, p. 317
apud Peirano, 1995, p. 32-33).
Na perspectiva de Peirano, novas análises e reanálises virão para comprovar a
fecundidade teórica do trabalho etnográfico.
Elas certamente irão reforçar a convicção central dos antropólogos: de que a prática
etnográfica –artesanal, microscópica e detalhista- traduz, como poucas outras, o
reconhecimento do aspecto temporal das explicações. Longe de representar a
fraqueza da antropologia, portanto, a etnografia dramatiza, com especial ênfase, a
visão weberiana da eterna juventude das ciências sociais (Peirano, 1995, p. 53).
Valter Sinder, professor na Universidade Estadual de Rio de Janeiro e na PUC-Rio, na
aula de Teoria Social III que motiva este ensaio, concordou com as críticas que Peirano
realiza mas considerou que a autora comete o erro de tomar a parte pelo todo:
“condena todos os pós-modernos a partir de desacreditar um deles”. Desde o ponto
decantação na periferia” de Paulo Arantes (Peirano, 1995, p. 31).
21
de vista de Sinder, todos estamos “a favor da etnografia” mas a questão seria de quê
forma, como se colocar?
Estranhar a realidade faz parte da literatura. Produzir um estranhamento. Olhar para a
realidade e estranhá-la. A função da literatura é a mesma de qualquer obra de arte:
traduzir uma realidade à qual não pode ser reduzida. A literatura não pode ser
reduzida nem ao autor, nem ao texto, nem ao contexto. E, além do emissor, da
mensagem, do canal e do contexto, também tem que ser levado em conta o leitor.
Quero acabar destacando a lucidez de Clifford Geertz quando sugeriu que os avanços
da antropologia se produzem a partir do aprimoramento da precisão das discussões
nos embates entre diferentes antropólogas. Espero ter levantado algumas questões
relevantes com a precisão que os autores citados merecem. E tenho a convicção da
importância das propostas de todos eles e, mais do que contrapostas, as considero
complementarias.
FONTES
ALMEIDA, Sandra Regina. Prefácio – Apresentando Spivak. IN: Pode o subalterno falar?
Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.
BARTHES, Roland. La muerte del autor. Traducción: C. Fernández Medrano. Fuente:
http://www.cubaliteraria.cu/revista/laletradelescriba/n51/articulo-4.htm. 2006.
CALDEIRA, Teresa. A presença do autor e a pós-modernidade em antropologia. Novos
Estudos, nº 21, julho de 1988.
CLIFFORD, James. Introducción: Verdades parciales. IN: MARCUS, George; CLIFFORD,
James. Retóricas de la antropología. Gijón: Ediciones Júcar, 1991.
CLIFFORD, James. Sobre a autoridade etnográfica. In: A experiência etnográfica.
Antropologia e Literatura no Século XX. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2011.
FOUCAULT, Michel. O que é um autor? IN: Ditos e Escritos – Estética: literatura e pintu-
ra; música e cinema. Rio de Janeiro : Forense Universitária, 2006.
FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. Uma arqueologia das ciências humanas.
São Paulo: Martins Fontes, 2000.
GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1989.
22
GEERTZ, Clifford. O saber local: novos ensaios em antropologia interpretativa.
Petrópolis, RJ: Vozes, 1999.
GEERTZ, Clifford. Obras e vidas. O antropólogo como autor. Rio de Janeiro: Editora
UFRJ, 2005.
MARCUS, George; CUSHMAN, Dick. Las etnografías como textos. Annual Review of
Anthropology, vol. 11, 1982, pag. 25-69.
ORTNER, Sherry. Geertz, subjetividad y conciencia posmoderna. Etnografias
Contemporáneas 1 (1), p. 25-54.
PEIRANO, Mariza. A favor da etnografia. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1995.
SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: Editora UFMG,
2010.
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Geertz e a descrição densa na antropologia

  • 1. SOBRE AUTORES E AUTORIDADES NA ANTROPOLOGIA Josep Juan Teoria III Professor: Valter Sinder 1º semestre de 2015 - PPCIS-UERJ RESUMO Este ensaio teórico pretende fomentar a reflexão sobre a questão da autoria na escrita etnográfica. A partir de algumas obras de diferentes autores chave nesta temática, procuro pensar como estes especialistas consideram que os autores das etnografias podem ou devem se colocar no texto e na relação com as pessoas com as quais pesquisam. Analiso o interpretativismo geertziano; a questão da autoria em Foucault e Barthes; algumas propostas de autores considerados pós-modernos, como Clifford, Marcus ou Cushman; a questão da subalternidade e da (im)possibilidade de falar no pos-colonialismo de Spivak; as relações entre subjetividade e cultura em Sherry Ortner; e também algumas das críticas centradas nos autores pós-modernos, como as das antropólogas brasileiras Teresa Caldeira ou Mariza Peirano. Organizo este ensaio por autores, sem querer dar conta de todo o que o autor falou sobre o tema em questão e sabendo que o pensamento por ser processual, muda continuamente. Clifford Geertz A proposta interpretativa de Geertz pode ser pensada como uma “virada para o texto” onde se coloca em foco a possibilidade de refletir sobre a sociedade como se fosse uma “construção textual” e a importância de escrever sobre a experiência etnográfica, e textual, nos textos. No início da sua trajetória Geertz era parsoniano. Na “Teoria da ação social” Talcott Parsons adaptou Webber à sociologia norte-americana. E Geertz deu continuidade a esta discussão, o seu pensamento não surgiu da nada. Mas, posteriormente, bebeu mais das influências da hermenêutica do filósofo Dilthey. No livro “a Interpretação das Culturas” (1989, p. 4), Clifford Geertz explica que o conceito de cultura que ele defende é essencialmente semiótico. Acreditando, como Max Weber, que o homem é um animal amarrado a teias de significado que ele mesmo teceu, assumo a cultura como sendo essas teias e a sua análise; portanto, não como uma ciência experimental em busca de leis, mas como uma ciência interpretativa, à procura do significado (...) se você quer compreender o que é a ciência, você deve olhar, em primeiro lugar, não 1
  • 2. para as suas teorias ou as suas descobertas, e certamente não para o que seus apologistas dizem sobre ela; você deve ver o que os praticantes da ciência fazem. Geertz defende que não são as técnicas ou os métodos o que define a etnografia e a antropologia. O que define o empreendimento é o tipo de esforço intelectual que ele representa: “um risco elaborado para uma ‘descrição densa’, tomando emprestada uma noção de Gilbert Ryle” (1989, p. 4). Para Geertz a etnografia “é uma descrição densa. O que o etnógrafo enfrenta, de fato é uma multiplicidade de estruturas conceituais complexas, muitas delas sobrepostas ou amarradas umas às outras, que são simultaneamente estranhas, irregulares e inexplícitas, e que ele tem que, de alguma forma, primeiro apreender e depois apresentar” (1989, p. 7). E isso é verdade em todos os níveis de atividade do seu trabalho de campo, mesmo o mais rotineiro: entrevistar informantes, observar rituais, deduzir os termos de parentesco, traçar as linhas de propriedade, fazer o censo doméstico... escrever seu diário. Fazer a etnografia é como tentar ler (no sentido de “construir uma leitura de”) um manuscrito estranho, desbotado, cheio de elipses, incoerências, emendas suspeitas e comentários tendenciosos, escrito não com os sinais convencionais do som, mas com exemplos transitórios de comportamento modelado (1989, p. 7). Dito de outra forma, o que se deve perguntar a respeito de uma piscadela burlesca ou de uma incursão fracassada aos carneiros não é qual o seu status ontológico. Representa o mesmo que pedras de um lado e sonhos do outro –são coisas deste mundo. O que devemos indagar é qual é a sua importância: o que está sendo transmitido com a sua ocorrência através da sua agência, seja ela um ridículo ou um desafio, uma ironia ou uma zanga, um deboche ou um orgulho (1989, p. 8). Se a etnografia é uma descrição densa e os etnógrafos são aqueles que fazem descrição, então a questão determinante para qualquer exemplo dado, seja um diário de campo sarcástico ou uma monografia alentada , do tipo Malinowski, é se ela separa as piscadelas dos tiques nervosos e as piscadelas verdadeiras das imitadas (1989, p. 12). Nas palavras de Geertz, a análise cultural é (ou deveria ser) uma adivinhação dos significados, uma avaliação das conjeturas, um traçar de conclusões explanatórias a partir das melhores conjeturas e não a descoberta do Continente dos Significados e o mapeamento de sua paisagem incorpórea (1989, p. 14). Aqui vemos como desconfia, por exemplo, das teorias estruturalistas. Geertz também reflete sobre como a maior parte da etnografia é encontrada em livros e artigos, em vez de discos, filmes, exposições de museus, etc. 2
  • 3. Mesmo neles há, certamente, fotografias, desenhos, diagramas, tabelas e assim por diante. Tem feito falta à antropologia uma autoconsciência sobre modos de representação (para não falar de experimentos com eles) (1989, p. 14). Isto também me parece um interessante convite de Geertz para não naturalizar as formas de criação e apresentação antropológica. Todavia, Geertz coloca que, na medida em que reforçou o impulso do antropólogo em engajar-se com seus informantes como pessoas ao invés de objetos, a noção de “observação participante” foi uma noção valiosa. [Mas] Todavia, ela se transforma na fonte mais poderosa de má fé quando leva o antropólogo a bloquear da sua visão a natureza muito especial, culturalmente enquadrada, do seu próprio papel e imaginar-se algo mais do que um interessado (nos dois sentidos da palavra) temporário (1989, p. 14). Por outra parte, o antropólogo aborda caracteristicamente tais interpretações mais amplas e análises mais abstratas a partir de um conhecimento muito extensivo de assuntos extremamente pequenos (1989, p. 15). Fatos pequenos podem relacionar-se a grandes temas, as piscadelas à epistemologia, ou incursões aos carneiros à revolução, por que eles são levados a isso. (...) Qualquer generalidade que [a antropologia] consegue alcançar surge da delicadeza de suas distinções, não da amplidão de suas abstrações (Geertz, 1989, p. 17). Utilizando por vezes a ironia, Geertz coloca que a análise cultural é intrinsecamente incompleta e, o que é pior, quanto mais profunda, menos completa. É uma ciência estranha, cujas afirmativas mais marcantes são as que têm a base mais trêmula, na qual chegar a qualquer lugar com um assunto enfocado é intensificar a suspeita, a sua própria e a dos outros, de que você não o está encarando de maneira correta. Mas essa é que é a vida do etnógrafo, “além de perseguir pessoas sutis com questões obtusas” (1989, p. 20): Há uma série de caminhos para fugir a isso –transformar a cultura em folclore e colecioná-lo, transformá-la em traços e contá-los, transformá-la em instituições e classificá-las, transformá-la em estruturas e brincar com elas. Todavia, isso são fugas. O fato é que comprometer-se com um conceito semiótico de cultura e uma abordagem interpretativa de seu estudo é comprometer-se com uma visão da afirmativa etnográfica como “essencialmente contestável”, tomando emprestada a hoje famosa expressão de W.B. Gallie. A Antropologia, ou pelo menos a antropologia interpretativa, é uma ciência cujo progresso é marcado menos por uma perfeição de consenso do que por um refinamento de debate. O que leva a melhor é a precisão com que nos irritamos uns aos outros (Geertz, 1989, p. 20). 3
  • 4. No livro “O saber local: novos ensaios em antropologia interpretativa” (1999), Clifford Geertz lembra ironicamente um episódio muito marcante para o pensamento antropológico: Há alguns anos, um pequeno escândalo irrompeu na antropologia: uma de suas figuras ancestrais falou a verdade em público. Como cabe a um ancestral, ele o fez postumamente, por decisão de sua viúva e não dele próprio. Este deslize foi o bastante para que alguns conservadores em nosso meio elevassem a voz e clamassem que a viúva, também antropóloga, havia traído o clã, divulgado seus segredos, profanado um ídolo e decepcionado seus companheiros. Um caso típico de “o que é que as crianças vão pensar?” e isto sem indagar-se o que os leigos iriam pensar... (1999, p. 85). O 1967, a publicação do diário de Malinowski gerou inflexões para repensar o trabalho de campo, o que é fazer antropologia, as relações estabelecidas com as outras pessoas e o que significa a presença do antropólogo no campo e na escrita. Geertz explica que a publicação de “A Diary in the Strict Sense of the Term”, fez com que os relatos oficiais sobre os métodos de trabalho dos antropólogos parecessem bastante inverossímeis. O mito do pesquisador de campo semicamaleão, que se adapta perfeitamente ao ambiente exótico que o rodeia, um milagre ambulante em empatia, tato, paciência e cosmopolitismo, foi, de um golpe, demolido por aquele que tinha sido, talvez, um dos maiores responsáveis pela sua criação (1999, p. 85). Porém, Geertz considera que o debate ignorou a questão mais importante que o livro continha: Isto é, se não é graças a algum tipo de sensibilidade extraordinária, a uma capacidade quase sobrenatural de pensar, sentir e perceber o mundo como um nativo (uma palavra que, devo logo dizer, usei aqui “no sentido estrito do termo”) como é possível que antropólogos cheguem a conhecer a maneira como um nativo pensa, sente e percebe o mundo? (1999, p. 86) Em vez de tentar encaixar a experiência das outras culturas dentro da moldura desta nossa concepção, que é o que a tão elogiada “empatia” acaba fazendo, para entender as concepções alheias é necessário que deixemos de lado nossa concepção, e busquemos ver as experiências de outros com relação a sua própria concepção do “eu” (1999, p. 90-91). Geertz também reflete sobre como, saltando continuamente de uma visão da totalidade através das várias partes que a compõem, para uma visão das partes através da totalidade que é a causa de sua existência, e viceversa, com uma forma de moção intelectual perpétua, buscamos fazer com que uma seja explicação 4
  • 5. para a outra. E lembra que tudo isso é, claramente, a trajetória, já bastante conhecida, do método que Dilthey chamou de círculo hermenêutico (1999, p. 105). No livro “Obras e vidas. O antropólogo como autor” (2005) Clifford Geertz explica que, embora um material biográfico e histórico entre inevitavelmente em sua discussão, em numerosos pontos, este estudo seu, em si mesmo, não pretende ser biográfico nem histórico, interessando-se primordialmente por “como escrevem os antropólogos” –ou seja, ele se orienta para o texto. Colocando em foco o momento da escrita, Geertz destaca que, impossibilitados de recuperar os dados imediatos do trabalho de campo para uma re-inspeção empírica, damos ouvidos a algumas vozes e ignoramos outras. Alguns etnógrafos são mais eficientes do que outros em criar a impressão, em sua prosa, de que tiveram um contato estreito com vidas distantes. Ao descobrirmos de que modo, numa determinada monografia ou artigo, essa impressão é criada, descobriremos, ao mesmo tempo, por quais critérios julgá-los. Assim como a crítica da ficção e da poesia brota melhor do compromisso imaginativo com a própria ficção e com a poesia do que de idéias importadas sobre como estas devem ser, a crítica dos escritos antropológicos (que, num sentido estrito, não são uma coisa nem outra, e, num sentido lato, são ambas as coisas) deve brotar de um engajamento semelhante com eles, e não de preconcepções sobre como deve ser a antropologia para se qualificar como ciência (2005, p. 17-18). A dificuldade está em que a estranheza de construir textos ostensivamente científicos a partir de experiências em grande parte biográficas, que é o que fazem os etnógrafos, afinal, fica inteiramente obscurecida. A questão da assinatura, tal como o etnógrafo a confronta, ou tal como ela confronta o etnógrafo, exige o olimpianismo do físico não autoral e a consciência soberana do romancista hiperautoral, sem de fato permitir nenhum dos dois. O primeiro suscita acusações de insensibilidade, de tratar as pessoas como objetos, de ouvir a letra, mas não a música, e, é claro, de etnocentrismo. A segunda, acusações de impressionismo, de tratar as pessoas como fantoches, de ouvir uma música que não existe e, é claro, de etnocentrismo. Não admira que a maioria dos etnógrafos tenda a oscilar, insegura, entre as duas coisas, ora em livros diferentes, ora, com mais freqüência, no mesmo livro (2005, p. 22). Por tanto, encontramos em Geertz a questão que poderíamos definir como “de que o autor é autor?” ou “o problema do discurso”, como ele o chamou. Ele explica que esta 5
  • 6. questão também é proposta, de maneira mais geral, no ensaio foucaultiano “Que é um autor?” e num texto de Roland Barthes (“mais sutil, a meu ver”, em palavras de Geertz), “Autores e escritores”, publicado cerca de dez anos antes: A maneira como Barthes formula tudo isso consiste em distinguir o “autor” do “escritor” (e, noutro ponto, a “obra”, que é aquilo que o “autor” produz, e o “texto”, que é o que produz o “escritor” (Barthes, 1979, p. 73-82 apud Geertz, 2005, p. 32)1 ). O autor cumpre uma função, diz Barthes; o escritor exerce uma atividade. O autor participa do papel do sacerdote (Barthes o compara a um feiticeiro maussiano), o escritor, do papel exercido pelo escriba. Para um autor, “escrever” é um verbo intransitivo –ele é um homem que absorve radicalmente o porquê do mundo num como escrever”. Para o escritor, “escrever” é um verbo transitivo – ele escreve algo. “Ele estabelece um objetivo (demonstrar, explicar, instruir), do qual a linguagem é meramente um meio; para ele, a linguagem sustenta uma práxis, mas não se constitui numa práxis. (...) É devolvida à natureza de instrumento de comunicação, veículo do ‘pensar’” (Barthes, 1982, p. 187, 189 apud Geertz, 2005, p. 33)2 . Por último, também não se trata de um choque entre tipos puros e absolutos. Aliás, Barthes encerra “Autores e escritores” afirmando que a figura literária característica de nossa época é um tipo bastardo, o “autor-escritor”: o intelectual profissional, apanhado entre o desejo de criar uma estrutura verbal fascinante, de entrar no que Barthes chama de “teatro de linguagem”, e o desejo de transmitir fatos e idéias, de comercializar a informação, e que acaba se entregando, intermitentemente, a um ou a outro desses anseios. Seja como for, no caso do discurso propriamente literário ou no do discurso propriamente científico, que ainda parecem inclinar-se, de maneira bastante clara, para a linguagem como práxis ou para a linguagem como meio, o discurso antropológico decerto continua empacado como uma mula entre as duas alternativas (Geertz, 2005, p. 34). No livro “Obras e vidas” (2005), Clifford Geertz toma como “exemplos ilustrativos” quatro figuras muito diferentes: Claude Lévi-Strauss, Edward Evan Evans-Pritchard, Bronislaw Malinowski e Ruth Benedict-, e os considera “autores” no sentido “intransitivo” de “fundadores de discursividade”; São estudiosos que assinaram seus textos com certa determinação e construíram teatros de linguagem em que um grande número de outros, de maneira mais ou menos convincente, apresentaram-se, apresentam-se e, sem dúvida, ao menos por algum tempo, continuarão a se apresentar (2005, p. 35). 1 Aqui Geertz cita: R. Barthes. From work to text. IN: J. V. Harari, Textual Strategies, Ithaca, N.Y. 2 Aqui Geertz cita: Barthes. Authors and writers. 6
  • 7. Parece-me interessante a idéia de “teatros de linguagem”. Geertz acaba o primeiro capítulo de “Obras e vidas” dizendo que “estar lá” em termos autorais, enfim, de maneira palpável na página, é um truque tão difícil de realizar quanto “estar lá” em pessoa, o que afinal exige, no mínimo, pouco mais do que uma reserva de passagens e a permissão para desembarcar, a disposição de suportar uma certa dose de solidão, invasão de privacidade e desconforto físico, uma certa serenidade diante de excrescências corporais estranhas e febres inexplicáveis, a capacidade de permanecer imóvel para receber insultos artísticos, e o tipo de paciência necessária para sustentar uma busca interminável de agulhas invisíveis em palheiros invisíveis (Geertz, 2005, p.38). A vantagem de desviarmos para o fascínio da escrita ao menos parte da atenção que temos dedicado ao fascínio do trabalho de campo, que nos manteve aprisionados por tanto tempo, está não apenas em que essa dificuldade será entendida com mais clareza, mas também em que aprenderemos a ler com um olhar mais perspicaz. Cento e quinze anos de prosa asseverativa e inocência literária (se datarmos nossa profissão a partir de Tylor, como se convenciona fazer) são mais do que suficientes (Geertz, 2005, p. 39). Michel Foucault Partimos da base de que a autoridade para falar da realidade é construída processualmente. Também resulta interessante tomar consciência de que autoridade e autoritarismo encontram a raiz no “autor”. Foucault coloca a questão da autoria numa perspectiva histórica: Um quiasma produziu-se no século XVII, ou no XVIII; começou-se a aceitar os discursos científicos por eles mesmos, no anonimato de uma verdade estabelecida ou sempre demonstrável novamente; e sua vinculação a um conjunto sistemático que lhes dá garantia, e de forma alguma a referência ao indivíduo que os produziu. A função autor se apaga (...) Mas os discursos "literários" não podem mais ser aceitos senão quando providos da função autor: a qualquer texto de poesia ou de ficção se perguntara de onde ele vêm, quem o escreveu, em que data, em que circunstancias ou a partir de que projeto (...) O anonimato literário não é suportável para nós; só o aceitamos na qualidade de enigma. A função-autor hoje em dia atua fortemente nas obras literárias (Foucault, 2006, p.4). No prefácio de “As palavras e as coisas” (2000) Foucault cita um conto de Jorge Luis Borges intitulado “Enciclopédia Chinesa”. A moral do assunto seria que as coisas não são classificadas naturalmente mas porque são arbitradas. Classificamos o mundo e, 7
  • 8. por vezes, naturalizamos as nossas classificações. Foucault chama a atenção para as nossas limitações na hora de entender outras formas de imaginar ou classificar o mundo ou a nossa própria maneira de classificá-lo. Este livro nasceu de um texto de Borges. Do riso que, com sua leitura, perturba todas as familiaridades do pensamento – do nosso: daquele que tem nossa idade e nossa geografia-, abalando todas as superfícies ordenadas e todos os planos que tornam sensata para nós a profusão dos seres, fazendo vacilar e inquietando, por muito tempo, nossa prática milenar do Mesmo e do Outro. Esse texto cita “uma certa enciclopédia chinesa” onde será escrito que “os animais se dividem em: a) pertencentes ao imperador, b) embalsamados, c) domesticados, d) leitões, e) sereias, f) fabulosos, g) cães em liberdade, h) incluídos na presente classificação, i) que se agitam como loucos, j) inumeráveis, k) desenhados com um pincel muito fino de pelo de camelo, l) et cetera, m) que acabam de quebrar a bilha, n) que de longe parecem moscas”. No deslumbramento dessa taxonomia, o que de súbito atingimos, o que, graças ao apólogo, não é indicado como o encanto exótico de um outro pensamento, é o limite do nosso: a impossibilidade patente de pensar isso (Foucault, 2000, p. 6). Roland Barthes Barthes também faz o exercício crítico de colocar o autor numa perspectiva histórica: El autor es un personaje moderno, producido indudablemente por nuestra sociedad, en la medida en que ésta, al salir de la Edad Media y gracias al empirismo inglés, el racionalismo francés y la fe personal de la Reforma, descubre el prestigio del individuo o, dicho de manera más noble, de la persona humana. Es lógico, por lo tanto, que en materia de literatura sea el positivismo, resumen y resultado de la ideología capitalista, el que haya concedido la máxima importancia a la persona del autor. Aún impera el autor en los manuales de historia literaria, las biografías de escritores, las entrevistas de revista, y hasta en la misma conciencia de los literatos, que tienen buen cuidado de reunir su persona con su obra gracias a su diario íntimo; la imagen de la literatura que es posible encontrar en la cultura común tiene su centro, tiránicamente, en el autor, su persona, su historia, sus gustos, sus pasiones; la crítica aún consiste, la mayor parte de las veces, en decir que la obra de Baudelaire es el fracaso de Baudelaire como hombre; la de Van Gogh, su locura; la de Tchaikovski, su vicio: la explicación de la obra se busca siempre en el que la ha producido, como si, a través de la alegoría más o menos transparente de la acción, fuera, en definitiva, siempre, la voz de una sola y misma persona, el autor, la que estaría entregando sus “confidencias” (Barthes, 2006, s/p). No artigo intitulado “La muerte del autor” (2006) Barthes levanta a proposta da morte do autor para reconhecer a agência dos leitores na hora de criar os sentidos do texto. A importância de não pensar o texto como uma coisa acabada mas como uma coisa viva, aberta3 : 3 Sobre estas questões ver o texto “A ilusão biográfica” onde Pierre Bourdieu reflete sobre diferentes processos de produção de verdade: histórica, jurídica, mítica, biográfica, científica, acadêmica... Bourdieu destaca como o batismo seria um momento de produção de identidade e de unidade de um ser que se encontra em transformação continua. E levanta o exemplo do metrô para dizer que não da para entender a vida de uma pessoa sem levar em consideração a rede de relações que estabelece com 8
  • 9. (…) el lector es el espacio mismo en que se inscriben, sin que se pierda ni una, todas las citas que constituyen una escritura; la unidad del texto no está en su origen, sino en su destino, pero este destino ya no puede seguir siendo personal: el lector es un hombre sin historia, sin biografía, sin psicología; él es tan sólo ese alguien que mantiene reunidas en un mismo campo todas las huellas que constituyen el escrito. Y ésta es la razón por la cual nos resulta risible oír cómo se condena la nueva escritura en nombre de un humanismo que se erige, hipócritamente, en campeón de los derechos del lector. La crítica clásica no se ha ocupado nunca del lector; para ella no hay en la literatura otro hombre que el que la escribe. Hoy en día estamos empezando a no caer en la trampa de esa especie de antífrasis gracias a la que la buena sociedad recrimina soberbiamente en favor de lo que precisamente ella misma está apartando, ignorando, sofocando o destruyendo; sabemos que para devolverle su porvenir a la escritura hay que darle la vuelta al mito: el nacimiento del lector se paga con la muerte del Autor (Barthes, 2006, s/p). James Clifford Na introdução de “Retóricas de la antropologia” (1991)4 intitulada “Verdades parciales”, o autor pós-moderno James Clifford segue a “virada para o texto” proposta por Geertz e levanta a importância do momento da escrita, desmitificando também o trabalho de campo: Estamos hartos de ver las fotos de Margaret Mead, exuberante ella mientras juega con niños al coro de la patata o entrevistando a los habitantes de Bali. Es lo cierto, que el método más querido por el etnógrafo es aquel que se lleva a cabo en una pequeña habitación repleta de libros. Pero todavía, en cualquier parte, embebecido en su trabajo de campo acerca de los pigmeos, por ejemplo –atravesando la espesura de la selva, los senderos de la jungla, sentado en medio de una danza nocturna, durmiendo entre la multitud- Colin Turnbull asegura que su puesto se halla frente a la máquina de escribir mientras se acaricia el lóbulo de la oreja (…) Se asume, en este libro, que lo poético y lo político son cosas inseparables; y que lo científico está implícito en ello, no en sus márgenes (1991, p. 26-27). Os ensaios reunidos por Clifford e Marcus (1991) pretendem minar o autoritarismo interpretativo e, assim, fazer mais transparente o substrato cultural e político que se contempla. (…) el problema no radica en la interpretación de unos textos literarios, en su sentido más tradicional. La mayoría de estos ensayos, apoyados en un empirismo constatable, se refieren a textos elaborados en contextos de poder, de resistencia, de tensiones institucionales, y espoleado todo ello por una clara intención renovadora (…) La etnografía, pues, cultiva y desarrolla la máxima de Virginia Wolf que dice así: “Jamás outras pessoas. Fica claro, assim, como a nossa identidade ou a “história de vida” também é uma construção que depende tanto de quem a conta quanto de quem a escreve. 4 Título original do livro de James Clifford e George Marcus: “Writing Culture: The Poetics and Politics of Ethnography” (1986). 9
  • 10. dejemos de pensar. ¿Qué civilización es ésta en la que nos hallamos a nosotros mismos?” (1936, p. 62-63 apud Clifford, 1991, p. 27). (…) Y es que la etnografía, en última instancia, es una actividad situada en el ojo del huracán de los sistemas de poder que definen el significado. Sitúa sus planteamientos en la frontera, en los límites de las civilizaciones, de las culturas, de las clases, de las razas y de los sexos. Clifford também destaca que nos ensaios recopilados se fundem as fronteiras do artístico e do científico: “Tal es el mayor atractivo del libro” (1991, p. 29). Michel Foucault (1973), Michel de Certeau (1983) y Terry Eagleton (1983), arguyen que la literatura, en sí misma, es una categoría transcendental de la investigación científica. Desde el siglo XVIII, convienen los autores citados, la ciencia occidental ha excluido ciertos aspectos significativos y definitorios: la retórica (en nombre de la explicación clara, transparente); la ficción (en nombre del valor de los hechos en sí); y la subjetividad (en nombre de la objetividad). Tales cualidades, relegadas por la ciencia, pasaron a engrosar la categoría, acaso infamante, de lo literario (Clifford, 1991, p. 31). Clifford conclui fazendo um convite poético: Reconozcamos, mejor, las dimensiones poéticas de la etnografía, para lo cual no hay sino que desprejuiciarse. Lo poético no es cosa circunscrita a una visión romántica, modernista o subjetiva; también puede ser lo histórico, lo preciso, lo objetivo… Y, naturalmente, lo mismo acontece con eso que llamamos prosa. La etnografía debe ser hiperescritura, actividad textual: trasvase continuo de géneros y de disciplinas. No sugieren estos ensayos que la etnografía sea sólo literatura. Lo demuestran a través de su escritura (Clifford, 1991, p. 60). Na hora de construir uma etnografia Geertz defende a necessidade de explicitar no texto a forma como o autor se inseriu no campo, como foram construídas as relações entre as pessoas implicadas no processo da pesquisa... Porém, James Clifford criticou que no ensaio sobre “A briga de galos balinesa”, Geertz começa explicando como ele e a sua companheira se inseriram na aldeia balinesa, mas a partir de um certo ponto o autor some do texto, desaparece, e então parece que a briga de galos explica-se sozinha, como aquilo que ela é, mais do que sendo uma interpretação geertziana. Pela sua parte, Clifford sustenta a impossibilidade de tirar a autoridade do autor. No capítulo “Sobre a autoridade etnográfica”5 , reflete sobre como Malinowski apresenta os seus textos como se fossem um retrato neutro, imparcial. Tal qual é “a realidade”. Mas, o nativo na foto da capa da etnografia sobre “os trobriandeses” olha para o antropólogo, para o autor que se esconde e reduz os seus interlocutores a categorias: 5 In: A experiência etnográfica. Antropologia e Literatura no Século XX. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2011. 10
  • 11. “os trobriandeses”. Malinowski os totaliza e dá uma coerência fechada a algo que é dinâmico, processual, mais complexo. Por outra parte, podemos nos perguntar sobre a inserção da antropologia pós-moderna no Brasil. E vemos que, por exemplo, o livro “Writing Culture” (1986) só está sendo traduzido agora no país sul-americano, 30 anos depois da sua publicação nos Estados Unidos. Porém, no Brasil, a antropologia pós- moderna conta com apoiadores e detratores, como qualquer corrente de pensamento. George Marcus e Dick Cushman No artigo intitulado “Las etnografias como textos” (1982)6 , mesmo considerando a etnografia como texto narrativo ou literário, Marcus e Cushman não estão dizendo que a etnografia é ficção ou literatura mas que é uma criação que pode ser analisada. La característica principal compartida por las etnografías experimentales es que integran, en sus interpretaciones, una preocupación epistemológica explícita por la forma en que se han construido tales interpretaciones y en que se las representa textualmente como discurso objetivo sobre los sujetos entre los cuales se ha conducido la investigación (…) el propósito de explorar cuestiones epistemológicas como una parte vital e integral del análisis cultural distingue a estos textos y hace a sus autores, tanto como a sus lectores, cada vez más conscientes de sus estructuras narrativas y de su retórica (1982, p. 172). Na perspectiva de Marcus e Cushman, nesta situação emergente, los etnógrafos leen ávidamente los nuevos trabajos en busca de modelos, interesándose tanto –si es que no más- por los estilos de construcción de textos como por los análisis culturales, los cuales son, de todas maneras, aspectos difíciles de separar (1982, p. 173). Também explicam que definimos uma etnografia simplesmente como um relatório que resulta do fato de ter realizado trabalho de campo, uma atividade relativamente indisciplinada o folclore da qual conferiu identidade a uma disciplina acadêmica. Neste sentido, eles proclamam que devemos nos ocupar da representação do trabalho de campo em textos e ser capazes de identificar, por exemplo, a construção da autoridade experiencial: Lo que otorga autoridad al etnógrafo y un sentido penetrante de realidad concreta al texto, es la afirmación del escritor de que él está representando un mundo cómo sólo puede hacerlo alguien que lo conoce de primera mano; de esta forma se establece un 6 MARCUS, George; CUSHMAN, Dick. Las etnografías como textos. Annual Review of Anthropology, vol. 11, 1982, pag. 25-69. 11
  • 12. nexo íntimo entre la escritura etnográfica y el trabajo de campo (Marcus e Cushman 1982, p. 176). Sobre as possibilidades nas estruturas narrativas, Marcus e Cushman colocam que En los experimentos recientes con la escritura etnográfica se han desarrollado por lo menos dos estructuras narrativas alternativas. Una consiste en convertir la naturaleza temporal de la experiencia del trabajo de campo en un marco de referencia espacial para el texto (Briggs, 1970; Castaneda, 1968). La otra, en plantear un problema o paradoja cultural en el primer capítulo y, a través de cierto número de capítulos dedicados al examen del material relevante, llegar a una solución en las conclusiones (1982, p. 177-178). Os autores colocam que a experimentação com o ponto de vista tem sido, desde muito tempo atrás, um dos elementos que distingue o modo de escrita da ficção e da não- ficção. Los etnógrafos tempranos fueron altamente sensibles a la existencia de un predecesor inmediato y semejante contemporáneo de la etnografía profesional: el relato de viajes. Una de las diferencias primordiales entre el relato de viajes y la etnografía realista es la marcada ausencia, en esta última, del narrador como una presencia en primera persona en el texto, y el predominio en su lugar de un narrador científico (invisible u omnisciente) que sólo se manifiesta como un observador desapasionado, semejante a una cámara; la tercera persona, colectiva y plena de autoridad (“el X hizo esto”) reemplaza a la primera persona, más falible (“yo vi que el X hacía esto”) (Marcus e Cushman, 1982, p. 178). Os relatos contemporâneos que questionam com mais força a possibilidade de representar de um modo realista e não ficcional a subjetividade do outro, são aqueles que se encontram experimentando nos limites ou para além das fronteiras do gênero realista (Marcus e Cushman, 1982, p. 181). Entre as formas de construir a autoridade etnográfica também temos o uso da língua nativa: Dado que trabajar en la lengua nativa es uno de los pilares que sustentan el trabajo de campo como una base preferencial para discutir el punto de vista nativo, la evidencia de la competencia lingüística del etnógrafo –aunque sea indirecta- es una de las representaciones claves y más sensitivas que se puede lograr en un texto realista (Marcus e Cushman, 1982, p. 182). Marcus e Cushman levantam que a autoridade aprecia-se melhor se discutimos três trabalhos construtivos que se confrontam na escritura etnográfica contemporânea: Establecer una presencia narrativa, definir una organización textual y preencodificar la presentación de los datos. Colectivamente, dichos trabajos modifican las convenciones realistas cuestionando las hazañas epistemológicas que se exigen a los trabajadores de campo y que presuponen las expresiones textuales de esas convenciones (1982, p. 185) (…) Una vez que se establece un marco para la presencia narrativa (en conjunción con las otras operaciones que luego se discutirán), la intrusión de testimonios personales en distintos puntos de un texto juega un rol sumamente crucial y sutil como 12
  • 13. soporte de determinadas ideas y argumentos desarrollados en el curso de la descripción (Marcus e Cushman, 1982, p. 186). A forma como se constrói o espaço organizacional de um texto estabelece a instancia do narrador e refina a “montagem” dos dados para a interpretação. Los argumentos (Schieffelin, 1976), los dramas sociales (Turner, 1957), los textos (Geertz, 1973), las taxonomías (Spradley, 1970), los conceptos clave o las categorías en uso (Rosaldo, 1980) y los sucesos rituales (Lewis, 1980), entre otros, han servido como recursos de encuadre para seleccionar detalles para la presentación textual, operando al mismo tiempo como marcos interpretativos. De este modo, el análisis interpretativo se halla estrechamente implicado en –y es casi indistinguible de- la manera en que su objeto se presenta como dato (1982, p. 189). Por outra parte, o modo dialógico defendido por Marcus e Cushman (1982) pretende mostrar que o coração da análise etnográfica deve estar na negociação de realidades compartilhadas entre o etnógrafo e o sujeito. Tanto os etnógrafos como os seus leitores devem possuir uma enorme tolerância frente à ambigüidade continua como um aspecto da compreensão, no lugar de uma explicação satisfatória de um objeto fixado de análise (p. 192). Gayatri Chakravorty Spivak Spivak nasceu em Calcuta, India, em 1942, onde realizou seus estudos de graduação em inglês, na universidade de Calcuta. A seguir, mudou-se para os Estados Unidos para fazer mestrado e doutorado em literatura comparada na Universidade Cornell. No famosíssimo artigo intitulado “Pode o subalterno falar?” Spivak conclui que pode, só que quando fala reproduz o discurso de quem primeiro falou por ele. No Prefácio da versão brasileira do livro “Pode o subalterno falar?” (2010), intitulado “Apresentando Spivak”, Sandra Regina Almeida explica que Uma das preocupações centrais de Spivak é desafiar os discursos hegemônicos e também nossas próprias crenças como leitores e produtores de saber e conhecimento. Seu intento é principalmente pensar a teoria crítica como uma prática intervencionista, engajada e contestadora. Como observam Donna Landry e Gerald MacLean, a dificuldade da escrita de Spivak denota principalmente sua preocupação em produzir um discurso crítico que procura influenciar e alterar a forma como lemos e apreendemos o mundo contemporâneo (LANDRY, MacLEAN. The Spivak Reader. Selected Works of Gayatri Chakravorty Spivak apud Almeida, 2010, p. 11). Embora tenha se tornado conhecida primeiramente como a tradutora de Derrida e por seu trabalho de desconstrução, hoje, Spivak transita por varias áreas de conhecimento. 13
  • 14. Sua critica, de base marxista, pos-estruturalista e marcadamente desconstrucionista, freqüentemente se alia a posturas teóricas que abordam o feminismo contemporâneo, o pos-colonialismo e, mais recentemente, as teorias do multiculturalismo e da globalização (Almeida, 2010, p. 10). Para Spivak, que constantemente alude a sua adesão aos princípios do grupo, mas mantém uma postura critica que ela julga necessária ao trabalho intelectual, o grupo dos estudos subalternos precisaria refletir sobre uma questão premente nos estudos pos-coloniais: o subalterno como tal pode, de fato, falar? Esse questionamento, baseado em uma critica à ênfase de Gramsci na autonomia do sujeito subalterno como uma premissa essencialista, remete à preocupação de Spivak em teorizar sobre um sujeito subalterno que não pode ocupar uma categoria monolítica e indiferenciada, pois esse sujeito é irredutivelmente heterogêneo (Almeida, 2010, p. 11). (...) Em um texto posterior, que introduz a coletânea A companion to postcolonial studies, Spivak argumenta que seu artigo “Pode o subalterno falar?” questiona principalmente o “agenciamento” como uma forma de ação validada institucionalmente. Daí a impossibilidade de se articular um discurso de resistência que esteja fora dos discursos hegemônicos (SPIVAK. Foreword: Upon Reading the Companion to Postcolonial Studies, p.xx). Spivak alega ainda que seu objetivo principal ao elaborar esse artigo era contar a historia de Bhubaneswari Bhaduri, a mulher indiana cujo ato de rebeldia é suprimido da historia da nação por jamais ter sido reconhecido e aceito, razão pela qual ela não pode ser ouvida e seu nome é apagado da memória familiar e histórica (Almeida, 2010, p. 15-16). “Pode o subalterno falar?” continua sendo um texto de referencia não apenas para os estudos pos-coloniais, mas também para os estudos culturais e para a critica feminista ao indagar as formas de repressão dos sujeitos subalternos, interrogando a própria cumplicidade dos intelectuais contemporâneos nesse processo (Almeida, 2010, p. 16). Entre o patriarcado e o imperialismo, a constituição do sujeito e a formação do objeto, a figura da mulher desaparece, não em um vazio imaculado, mas em um violento arremesso que é a figuração deslocada da “mulher do Terceiro Mundo”, encurralada entre a tradição e a modernização. Essas considerações poderiam revisar cada detalhe de julgamentos que parecem validos para uma historia da sexualidade no Ocidente: “Tal seria a característica da repressão, aquilo que a distingue de proibições mantidas pela simples lei penal: a repressão funciona bem como uma sentença que desaparece, mas também como uma determinação ao silencio, uma afirmação de inexistência; e, conseqüentemente, declara que de tudo isso não há nada a ser dito, visto ou conhecido” (FOUCAULT. The History of Sexuality, v. 1, p. 4 apud Spivak, 2010, p. 119). Spivak explica que tentou usar e também ir alem da desconstrução de Derrida, que não exalta como um discurso do feminismo, como tal. Entretanto, no contexto da problemática que discute, considera sua morfologia muito mais apurada e útil do que o envolvimento imediato e substantivo de Foucault e Deleuze com assuntos mais “políticos” -como o convite de Deleuze para se “tornar mulher”-, o que pode tornar a influencia deles mais perigosa para os acadêmicos dos Estados Unidos como radicais 14
  • 15. entusiastas. Derrida marca a critica radical com o perigo de se apropriar do outro por assimilação. Ele lê a catacrese na origem. Ele clama por uma reescrita do impulso estrutural utópico como forma de “tornar delirante aquela voz interior que é a voz do outro em nos”. Spivak reconhece que vê aqui uma utilidade de longo prazo em Jacques Derrida que não consegue mais encontrar nos autores de A história da sexualidade e Mil platôs (Spivak, 2010, p. 125). O subalterno não pode falar. Não há valor algum atribuído à “mulher” como um item respeitoso nas listas de prioridades globais. A representação não definhou. A mulher intelectual como uma intelectual tem uma tarefa circunscrita que ela não deve rejeitar com um floreio (Spivak, 2010, p. 126). Sherry Ortner No artigo “Geertz, subjetividad y conciencia posmoderna”7 , Sherry Ortner examina a importância da noção de subjetividade para uma antropologia crítica. Mesmo aceitando que não existe um vínculo necessário entre as questões relacionadas com a subjetividade, as questões do poder e a subordinação, o interesse da autora se concentra sobretudo em ampliar as linhas de trabalho que encontram uma íntima vinculação entre a subjetividade e o poder. Daí a colocação sobre a importância de investigar a subjetividade enquanto parte da “antropologia como crítica cultural” (Marcus e Fischer, 1986 apud Ortner, s/d, p. 25). Por subjetividad entiendo el conjunto de modos de percepción, afecto, pensamiento, deseo, temor, etc., que animan a los sujetos actuantes. Pero también aludo a las formaciones culturales y sociales que moldean, organizan y generan determinadas “estructuras de sentimiento” (Williams, 1977). En sustancia, este trabajo se moverá una y otra vez entre el examen de dichas formaciones culturales y los estados internos de los sujetos actuantes (Ortner, s/d, p. 25). Ortner levanta que Lévi-Strauss tomou a noção durkheimiana do fato social que existe por cima do indivíduo e que quase tem vida própria, e procurou purificá-la por completo da presença e a necessidade dos sujeitos. Así, en la introducción de Lo crudo y lo cocido escribió lo siguiente: “Por lo tanto, pretendo mostrar, no cómo piensan los hombres en los mitos, sino cómo actúan los mitos en la mente de los hombres sin que estos sean conscientes del hecho (…) tal vez sería mejor ir aún más lejos y, haciendo completo caso omiso del sujeto pensante, proceder como si el proceso del pensamiento se produjera en los mitos, en su reflexión sobre sí mismos y su interrelación” (Lévi-Strauss, 1969: 12 apud Ortner, p. 26). Aquí ya no se trata exactamente de una cuestión de libertad y coacción. No sólo se plantea la 7 ORTNER, Sherry. Etnografias Contemporáneas 1 (1), p. 25-54. 15
  • 16. idea de que la libertad del sujeto es ilusoria, sino también que el propio pensamiento humano es simplemente un efecto del puro juego de la estructura o un medio para llevarlo a cabo. Tal como Lévi-Strauss señaló en El pensamiento salvaje, la meta de las ciencias humanas no “era constituir al hombre sino disolverlo”. Según Nik Farrell Fox resume en una biografía reciente de Sartre: “el estructuralismo se embarcó en una crítica concertada del humanismo y el antropocentrismo e invirtió las premisas humanas al dar prioridad a la estructura sobre el sujeto, lo inconsciente sobre lo consciente y los análisis objetivos de las leyes científicas sobre las epistemologías basadas en el yo” (Fox, 2003, p. 24 apud Ortner, s/d, p. 27). Quando escreveu o artigo sobre Geertz, a subjetividade e a consciência posmoderna, Sherry Ortner destacou que a paisagem da teoria social e cultural do momento devia ser pensada contra o telão de fundo desta historia estruturalista. Sobre Geertz, Ortner colocou o seguinte: Si bien el concepto geertziano de cultura tiene dos vertientes, resulta evidente que el problema radica en su primer sentido, la acepción norteamericana, es decir, la idea de que grupos específicos “tienen” culturas específicas –cada uno la suya- “compartidas” por todos sus miembros. Las críticas dirigidas a esta concepción de la cultura adoptan varias formas. Por un lado, el concepto es demasiado indiferenciado, demasiado homogéneo: vista la existencia de diversas formas de diferencia y desigualdades sociales, ¿cómo pueden todos los integrantes de una sociedad dada compartir la misma visión del mundo y la misma orientación hacia éste? Por otro –y ésta ha sido la crítica más contundente-, la homogeneidad y falta de diferenciación del concepto de cultura lo vinculaba íntimamente al “esencialismo”, la idea de que “los nuers” o “los balineses” tenían una esencia singular que los hacía ser como eran y que explicaba, además, gran parte de lo que hacían y cómo lo hacían. Podemos advertir los peligros de esta posición cuando observamos los tipos de representaciones de la “cultura árabe” o la “cultura musulmana” que han empezado a circular por el mundo luego del 11 de septiembre. Geertz, desde luego, nunca adhirió a esta forma de pensar. Su interés en la comprensión de la diferencia cultural consistía justamente en lo contrario: era una manera de inaugurar “conversaciones” a través de líneas culturales. Pero el concepto mismo resultó ser más políticamente escurridizo de lo que antes parecía (Ortner, s/d, p. 31). Ortner explica que Geertz defende o que ela chama de conceito norteamericano de cultura em After the Fact (1995), sobretudo com o argumento de que a cultura é real e os críticos enterram a cabeça na areia para negá-la. Ela coincide, mas levanta que a crítica exige uma defesa mais eloqüente em termos da política implícita no uso do conceito. Así, si bien reconocemos los peligros muy reales de la “cultura” cuando se la pone en juego para esencializar y demonizar a grupos enteros de personas, también debemos admitir su valor político crítico, para entender tanto el funcionamiento del poder, como los recursos de quienes carecen de él (Ortner, s/d, p. 31). 16
  • 17. Ortner foi aluna de Geertz na Universidade de Chicago. Ela procura pensar o sujeito situado no tempo e no espaço e critica que a idéia das ciências humanas não é explicar o homem, mas esconde-lo. Ortner pretende “devolver” a agência aos sujeitos. Enquanto no estruturalismo o mais determinante é o inconsciente, a estrutura, a cultura, a linguagem, Ortner coloca em foco que o indivíduo tem agência e interatua com o inconsciente, a estrutura... Nesse sentido, uma boa pergunta seria: o que vem da agência do sujeito (ou do autor) e o que vem da estrutura? A autora norteamericana coloca, finalmente, que a idéia mesma de agência pressupõe uma subjetividade subjacente, pela qual um sujeito internaliza em parte uma série de circunstancias nas quais se encontra e reflete sobre elas. Uma consciência plenamente cultural sempre é ao mesmo tempo multifacetada e reflexiva, e a sua complexidade e reflexão constituem o fundamento para questionar o mundo no qual nos encontramos (Ortner, s/d, p. 47). Ortner coincide com Jameson e Sennett ao advertir que uma leitura crítica do mundo contemporâneo implica compreender não só as suas novas formações políticas, econômicas e sociais, mas também a sua nova cultura, uma cultura que ao mesmo tempo ambos estão lendo desde o ponto de vista dos tipos de subjetividade que tende a produzir. He sostenido la importancia de una sólida antropología de la subjetividad, a la vez como estado mental de actores reales inmersos en el mundo social y como formación cultural que (al menos en parte) expresa, modela y constituye ese mismo estado. Al prolongar la obra enormemente trascendente de Max Weber, Clifford Geertz ha ocupado un lugar de relevancia en este aspecto debido a lo que denominé su teoría de la cultura orientada hacia la subjetividad. Más allá de Geertz, me interesé particularmente en comprender la subjetividad en sus relaciones con las (cambiantes) formas de poder y, en especial –como en los ejemplos de Jameson y Sennett-, con las sutiles formas de poder que saturan la vida cotidiana a través de las experiencias del tiempo y el espacio, el trabajo y el juego. En síntesis, he procurado explorar la posibilidad de una antropología de la subjetividad que constituya la base de la crítica cultural y nos permita plantear agudos interrogantes sobre la configuración cultural de las subjetividades en un mundo de relaciones de poder violentamente desiguales, así como sobre las complejidades de las subjetividades personales dentro de dicho mundo (Ortner, p. 47). Teresa Caldeira Caldeira, antropóloga brasileira, fez um curso com Paul Rabinow e também escreveu sobre “A presença do autor e a pós-modernidade em antropologia” (1988). 17
  • 18. Já vai longe o tempo em que o antropólogo, depois de passar algum tempo junto a um grupo estranho, escrevia textos em que retratava culturas como um todo e em que tranqüilamente afirmava como os Trobriandeses vivem, o que os Nuer pensam, ou no que os Arapeshi acreditam. O antropólogo contemporâneo tende a rejeitar as descrições holísticas, se interroga sobre os limites de sua capacidade de conhecer o outro, procura expor no texto as suas dúvidas, e o caminho que o levou à interpretação, sempre parcial (Caldeira, 1988, p. 133). Caldeira levanta que a reflexão sobre os procedimentos antropológicos e a sua incorporação aos textos não surgiu obviamente com os pós-modernos, mas está presente em seus antecessores, os antropólogos hermeneutas representados por Clifford Geertz. A antropologia interpretativa, concebendo as culturas como textos, e a análise antropológica como interpretação sempre provisória, seguramente contribuiu para o estranhamento da autoridade etnográfica clássica. No entanto, segundo os críticos pós-modernos (Clifford 1983, Marcus e Cushman 1982, por exemplo) seu rompimento com o modelo anterior é parcial: ela questiona o processo da produção de interpretações, mas não rompe com a separação radical entre observador e observado e suas culturas (...). Os pós-modernos vão tentar romper tanto o caráter de separação das culturas, quanto o de recriação da totalidade. Para eles a etnografia não deve ser uma interpretação sobre, mas uma negociação com, um diálogo, a expressão das trocas entre uma multiplicidade de vozes (Caldeira, 1988, p. 141). Caldeira considera que quem melhor resumiu esta alternativa foi James Clifford: Um modelo discursivo da prática etnográfica dá preeminência à intersubjetividade de toda fala, e ao seu contexto performativo imediato. As palavras da escrita etnográfica... não podem ser construídas monologicamente, como uma afirmação de autoridade sobre, ou interpretação de uma realidade abstrata, textualizada. A linguagem da etnografia é impregnada de outras subjetividades e de tonalidades contextualmente específicas. Porque toda linguagem, na visão de Bakhtin, é “uma concreta concepção heteróglota do mundo”. (Clifford, 1983, p. 133 apud Caldeira, 1988, p. 141). A proposta é, então, escrever etnografias tendo como modelo o diálogo ou, melhor ainda, a polifonia. Ter como modelo não significa necessariamente transcrever diálogos. A idéia é representar muitas vozes, muitas perspectivas, produzir no texto uma plurivocalidade, uma “heteroglossa”, e para isso todos os meios podem ser tentados: citações de depoimentos, autoria coletiva, “dar voz ao povo” ou o que mais se possa imaginar. O objetivo final, no que diz respeito ao autor, seria fazer com que ele agora se diluísse no texto, minimizando em muito a sua presença, dando espaço aos outros, que antes só apareciam através dele: uma “Autoria dispersa” (Marcus e Cushman 1982, Clifford 1983 apud Caldeira 1988, p. 141-142). Nas perspectivas dos 18
  • 19. autores pós-modernos, “cultura” é sempre algo relacional, uma inscrição de processos comunicativos que existem, historicamente, entre sujeitos em relações de poder. Finalmente chega-se ao lado oposto da etnografia clássica: o autor não se esconde para afirmar sua autoridade científica, mas se mostra para dispersar sua autoridade; não analisa, apenas sugere e provoca. Com isto, a concepção do leitor muda radicalmente: ele não é mais aquele que se informa, mas deve ser agora participante ativo na construção do sentido do texto, que apenas sugere conexões de sentido. Antes de mais nada, é preciso que se diga que não são todos os críticos pós-modernos que reiteram este modelo. Uma crítica a ele pode ser encontrada em Rabinow (1985 e 1986). Ela é importante porque permite nos trazer de volta à segunda dimensão da crítica pós-moderna que mencionei anteriormente: a dimensão política e de crítica cultural que deveria estar presente na antropologia (Caldeira, 1988, p. 142-143). Na linha de Rabinow, Caldeira coloca que seguramente a etnografia é sempre escrita e é textualmente que ela tem que enfrentar seus problemas políticos. No entanto, a questão seria saber se é através da forma que ela pode enfrentar problemas políticos. Mais ainda, se é através de uma forma que dispersa a autoria e, portanto, o peso da visão do autor, que ela pode tanto conseguir formular uma crítica cultural, quanto expressar uma posição política. Pode-se mesmo chegar a perguntar se a mudança na concepção do autor e a produção de um novo tipo de conhecimento são apenas ou basicamente um efeito textual, ou se a produção de um novo tipo de texto em etnografia seria suficiente para produzir um novo enquadramento do autor e de seu conhecimento (Caldeira, 1988, p. 143). Para Rabinow, a discussão textual nunca vai se sustentar por si só. Ela deveria estar aliada a uma análise como a que é feita por Bourdieu (1983), e que tenta localizar autores em instituições, autores, textos e instituições num campo epistemológico e de poder, com estratégias próprias e marcado historicamente. Deveria estar também associada a uma análise inspirada em Foucault, que tentasse analisar as relações de poder que definem quais enunciados podem ser aceitos como verdadeiros em cada momento (...). O que estaria faltando, em suma, seria questionar a academia americana nos anos 80 e seus jogos de poder. Até hoje, contudo, os pós-modernos parecem não terem se atrevido a isso (Caldeira, 1988, p. 144). Por outra parte, Caldeira explica que para Taussig a questão do diálogo do trabalho de campo e da sua representação não se coloca. O diálogo que interessa é aquele elaborado internamente pelo antropólogo e que marca o seu processo de conhecimento e de crítica. Em Taussig o autor não vai para segundo plano, não dispersa a sua autoria, não a compartilha com outros: o autor vai para o centro da cena e domina a produção de enunciados (...). Interessado em fazer uma crítica 19
  • 20. cultural, e uma crítica da sua sociedade, Taussig impõe ao autor a responsabilidade de assumir uma posição política explícita, que deve deixar claro como o tema que está tratando fala à sua própria sociedade (Caldeira, 1988, p. 152). Caldeira opina que Geertz, como muitos dos críticos pós-modernos, foi incapaz de enquadrar a antropologia numa perspectiva mais política, como foi incapaz de pensá- la do ponto de vista da produção de uma crítica cultural. Do meu ponto de vista, para se repensar, como quer Geertz, o aumento da responsabilidade do antropólogo/autor no mundo contemporâneo é impossível restringir as referências ao processo de produção de textos, como tende a fazer a maioria dos pós-modernos. É necessário incorporar questões como as que Taussig enfrenta, ou seja, não apenas pensar que tipo de representação é possível criar sobre os outros e quais os nossos procedimentos ao construir interpretações, mas que tipo de crítica e de política nós queremos fazer. E essas questões obviamente não se decidem de um modo genérico. Não consigo imaginar o antropólogo crítico se referindo a um paradigma textual apenas, seja ele dialógico, monológico, polifônico ou qualquer outro, do mesmo modo que não é possível pensar em um modelo único de relação com os objetos ou em um único modelo de crítica. O estilo do texto se define em função do objeto e do tipo de análise que se pretende –e talvez seja da consciência dessa flexibilidade mais do que de receitas textuais que nós precisemos. Segundo eu o vejo, faz parte do novo papel do antropólogo/autor a busca do estilo que melhor se adapte aos seus objetivos, a definição crítica desses objetivos, e a responsabilidade pelas suas escolhas (Caldeira, 1988, p. 157). Mariza Peirano Peirano, antropóloga e professora na Universidade de Brasília, reagiu contra as teses da escola pós-moderna norte-americana e escreveu um texto intitulado “A favor da etnografia” (1995). Neste artigo, ela aborda o tema da relação entre pesquisa de campo e etnografia. A motivação para continuar a discutir esse problema surgiu da constatação de que não só no Brasil e nos Estados Unidos se questiona a etnografia, mas diversos cientistas sociais de países europeus e de outros continentes também o fazem. As razões são diversas, mas o tema, constante: Paul Rabinow fala de um estágio “beyond ethnography”; Martin Hammersley faz a pergunta “what’s wrong with ethnography?”; a revista Contemporary Sociology dedica um volume ao assunto; e Nicholas Thomas posiciona-se “against ethnography”. Optei por discutir o texto de Thomas principalmente pela clara provocação do título. Mas não só por isso. Escolhi um pretenso interlocutor pós-moderno porque, geograficamente remoto e socialmente distante, ele está ideológica e intelectualmente próximo, uma vez que, no Brasil, funcionamos como “uma câmara de decantação na periferia”8 e na medida em que 8 Peirano explica que a expressão é de Paulo Arantes; “cf. Arantes 1991. No relato da viagem que fez a vários centros de pesquisa fora dos Estados Unidos, George Marcus salienta sua surpresa por não haver constatado maior interesse nos questionamentos pós-modernos americanos (Marcus 1991). O silêncio em relação ao Brasil, país que visitou no mesmo ano, parece confirmar a visão da “câmara de 20
  • 21. temos como diretriz ideológica o fato de que a ciência é universal (Peirano, 1995, p. 30-31). Peirano divide as suas observações em quatro partes: em primeiro lugar, apresenta brevemente os argumentos de Nicholas Thomas; a seguir, tece alguns comentários sobre dois clássicos da disciplina com o objetivo de mostrar que a “história teórica” da antropologia apresentada por Nicholas Thomas está viciada por uma visão que opõe um passado positivista (representado pelas idéias de Radcliffe-Brown) a uma contemporaneidade interpretativa; em terceiro lugar, discute o impacto da pesquisa de campo na trajetória intelectual de alguns antropólogos renomados, para então, finalmente, procurar acatar o desafio de Michael Fischer, de que, mesmo nas repetições históricas há algo novo que, com sorte, pode ser vislumbrado. Considero que as alternativas oferecidas por Nicholas Thomas (assim como as de outros autores da mesma vertente) se baseiam em um processo de reinvenção da história teórica da antropologia que, além de repetir antigas fórmulas, revive dicotomias que já deveriam estar ultrapassadas. Velhos debates como iluminismo vs. romantismo, ciência vs. arte etc., renascem e na versão atual assumem a forma/fórmula positivismo vs. interpretativismo, cânone vs. pós-etnografia. Penso também que os textos sobre pesquisa de campo, curiosamente, reproduzem muitas das preocupações da década de 30, quando, então como agora, se considerava um perigo a saturação de textos etnográficos. A solução proposta em 30 residia na adoção de uma abordagem comparativa como meio de atingir uma discussão teórica mais relevante. É justamente esta a proposta que Nicholas Thomas faz, mas com a natural ressalva de que não se trata “da velha comparação positivista” (Thomas 1991d, p. 317 apud Peirano, 1995, p. 32-33). Na perspectiva de Peirano, novas análises e reanálises virão para comprovar a fecundidade teórica do trabalho etnográfico. Elas certamente irão reforçar a convicção central dos antropólogos: de que a prática etnográfica –artesanal, microscópica e detalhista- traduz, como poucas outras, o reconhecimento do aspecto temporal das explicações. Longe de representar a fraqueza da antropologia, portanto, a etnografia dramatiza, com especial ênfase, a visão weberiana da eterna juventude das ciências sociais (Peirano, 1995, p. 53). Valter Sinder, professor na Universidade Estadual de Rio de Janeiro e na PUC-Rio, na aula de Teoria Social III que motiva este ensaio, concordou com as críticas que Peirano realiza mas considerou que a autora comete o erro de tomar a parte pelo todo: “condena todos os pós-modernos a partir de desacreditar um deles”. Desde o ponto decantação na periferia” de Paulo Arantes (Peirano, 1995, p. 31). 21
  • 22. de vista de Sinder, todos estamos “a favor da etnografia” mas a questão seria de quê forma, como se colocar? Estranhar a realidade faz parte da literatura. Produzir um estranhamento. Olhar para a realidade e estranhá-la. A função da literatura é a mesma de qualquer obra de arte: traduzir uma realidade à qual não pode ser reduzida. A literatura não pode ser reduzida nem ao autor, nem ao texto, nem ao contexto. E, além do emissor, da mensagem, do canal e do contexto, também tem que ser levado em conta o leitor. Quero acabar destacando a lucidez de Clifford Geertz quando sugeriu que os avanços da antropologia se produzem a partir do aprimoramento da precisão das discussões nos embates entre diferentes antropólogas. Espero ter levantado algumas questões relevantes com a precisão que os autores citados merecem. E tenho a convicção da importância das propostas de todos eles e, mais do que contrapostas, as considero complementarias. FONTES ALMEIDA, Sandra Regina. Prefácio – Apresentando Spivak. IN: Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010. BARTHES, Roland. La muerte del autor. Traducción: C. Fernández Medrano. Fuente: http://www.cubaliteraria.cu/revista/laletradelescriba/n51/articulo-4.htm. 2006. CALDEIRA, Teresa. A presença do autor e a pós-modernidade em antropologia. Novos Estudos, nº 21, julho de 1988. CLIFFORD, James. Introducción: Verdades parciales. IN: MARCUS, George; CLIFFORD, James. Retóricas de la antropología. Gijón: Ediciones Júcar, 1991. CLIFFORD, James. Sobre a autoridade etnográfica. In: A experiência etnográfica. Antropologia e Literatura no Século XX. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2011. FOUCAULT, Michel. O que é um autor? IN: Ditos e Escritos – Estética: literatura e pintu- ra; música e cinema. Rio de Janeiro : Forense Universitária, 2006. FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. Uma arqueologia das ciências humanas. São Paulo: Martins Fontes, 2000. GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1989. 22
  • 23. GEERTZ, Clifford. O saber local: novos ensaios em antropologia interpretativa. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999. GEERTZ, Clifford. Obras e vidas. O antropólogo como autor. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2005. MARCUS, George; CUSHMAN, Dick. Las etnografías como textos. Annual Review of Anthropology, vol. 11, 1982, pag. 25-69. ORTNER, Sherry. Geertz, subjetividad y conciencia posmoderna. Etnografias Contemporáneas 1 (1), p. 25-54. PEIRANO, Mariza. A favor da etnografia. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1995. SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010. 23